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CAMILO CASTELO BRANCO

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Amor de Perdição - - - -·--- - · ---·
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(Introdução, Conclusão e capítulos 1, IV, X e XIX)

Camilo Castelo Branco - nota biográfica


Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu a 16 de março de 1825, em Lisboa, filho de Manuel Correia
Botelho Castelo Branco, oriundo de uma família nortenha afidalgada, e de Jacinta Rosa, procedente de uma
família humilde de Sesimbra. Dessa união, não legalizada, existia também uma filha, Carolina, quatro anos
mais velha. Apenas em 1827, quando Jacinta Rosa morreu, o pai fez uma escritura de perfilhação, reconhecen-
do Camilo e Carolina como seus filhos.
Quando o pai morreu, em 1835, os filhos foram viver para casa da tia paterna, D. Rita Emília, em Vila Real. O pai
deixara-lhes um pecúlio avultado e, quatro anos mais tarde, quando Carolina casou e foi viver para Vilarinho da
Samardã, Camilo acompanhou-a e, nessa aldeia serrana, viveu a sua adolescência, convivendo com o povo e
conhecendo os seus costumes e linguagem. A formação escolar ~~ Camilo foi confiada ao Padre António de
Azevedo, cunhado da irmã, que lhe ensinou Latim e Francês e o iniciou no estudo dos clássicos portugueses.
Com apenas dezasseis anos, Camilo casou com Joaquina Pereira, filha de um lojista de Friúme, que não ti-
nha ainda quinze anos. Dois anos mais tarde, em 1843, abandonou a mulher, grávida, recebeu a herança que
o pai lhe deixara e fixou-se no Porto, onde estudou e se matriculou na Escola Médico-Cirúrgica. A sua passa-
gem pelo curso de Medicina foi breve, mas viveu intensamente a boémia juvenil.
Em 1845, em Coimbra, ingressou no curso de Direito, mas, também aí, a boémia académica o ocupou mais
do que o estudo. Em 1846, deixou Coimbra e regressou ao Norte onde começou a sua colaboração em jornais,
com ataques violentos à repressão exercida pelo governo de D. Maria li contra o movimento popular da Maria
da Fonte. Datam deste ano os seus amores com Patrícia Emília, de Vila Real, com quem fugiu para o Porto, ten-
do sido ambos presos na Cadeia da Relação, acusados pelo marido da tia Rita do furto de 20 000 cruzados.
Camilo esquecera completamente a mulher, Joaquina Pereira, que veio a morrer em 1847 e a sua filha, Rosa,
morta em 1848. Da sua relação com Patrícia Emília, nasceu também uma menina, Bernardina Amélia, de cuja
educação Camilo se ocupou.
Instalado no Porto, em 1848, Camilo dedicou-se ao jornalismo e, embora denunciando a corrupção dos
costumes, frequentou os salões burgueses e começou a ter prestígio como homem de letras. Em 1850, uma
crise de religiosidade exacerbada levou-o a ingressar no Seminário do Porto, que abandonará dois anos mais
tarde. Deu, então, os primeiros passos na criação novelística e escreveu poesia lírica e satírica. A sua primei-
ra novela em volume, Anátema, data de 1851.
No Porto, em 1850, conheceu Ana Plácido, mulher de um rico comerciante, que o terá deslumbrado desde
a primeira hora. No entanto, só oito anos mais tarde se reencontraram e se tornaram amantes. Acusados de
adultério, Ana Plácido foi presa na Cadeia da Relação do Porto e Camilo, após ter fugido à justiça durante al-
guns meses, acabou por entregar-se, tendo passado mais de um ano nessa mesma prisão. Lá escreveu algu-
mas das suas mais célebres novelas, entre as quais Amor de Perdição.
Saiu da cadeia em outubro de 1861, mas não deixou de viver com Ana Plácido. Partiram para Lisboa e, três
anos depois, tendo morrido o marido de Ana Plácido, foram instalar-se em S. Miguel de Ceide, na casa que
fora deste. Dois filhos nasceram dessa união: Jorge, que revelou uma loucura incurável, e Nuno, cujas tendên-
cias para a dissipação do dinheiro e para o jogo cedo se manifestaram.
Quer pelo seu próprio feitio, quer pelas características culturais da época em que viveu, Camilo foi um ro-
mântico fervoroso. Cultivou a paixão, o idealismo exacerbado, a ironia amarga e sarcástica relativamente a
uma sociedade dominada pelos preconceitos e por uma moral aniquiladora do sonho. Foi um escritor sensível
às correntes de opinião, tendo participado em várias polémicas, algumas de cariz literário como a Questão
Coimbrã, em 1866, com o opúsculo Vaidades Irritadas e lrrnantes. Nesta polémica literária que contrapunha os
defensores do romantismo institucionalizado na sociedade portuguesa, reunidos em volta do poeta António
Feliciano de Castilho, a um grupo de jovens escritores estudantes de Coimbra, que tinham assimilado as ideias
novas provenientes da cultura europeia, Camilo manifestou-se favorável a Castilho.
Os últimos vinte e cinco anos da vida do escritor foram marcados por uma febril atividade literária, mas
amargurados por desgostos familiares e por uma grave doença, a cegueira. Em 1885, Camilo foi distinguido
com o título de Visconde de Correia Botelho e, em 1889, homenageado pela Academia de Lisboa. Aos 65 anos
de idade, desesperado por saber que a cegueira seria irremediável, pôs termo à vida com um tiro de revólver,
no dia 1 de junho de 1890.
Escreveu, entre muitíssimas obras, as seguintes: Mistérios de Lisboa (1854), Doze Casamentos Felizes (1861 ),
Romance dum Homem Rico (1861 ), Amor de Perdição (1862), Memórias do Cárcere (1862), Coração, Cabeça e Es-
tômago (1862), O Bem e o Mal (1863), Noites de Lamego (1863), Amor de Salvação (1864), Vinte Horas de Liteira
( 1864), A Queda dum Anjo (1866), Novelas do Minho (1877), Eusébio Macário (1879), A Brasileira de Prazins (1 882).

Visão global
Apresentação dos documentos que constituíram as fontes da novela, dos temas (amor, perdição,


morte e falsa honra) que nela irão ser tratados e da sua ação linear («Amou, perdeu-se, e morreu
amando»).

Narração da história de Domingos Botelho desde a sua formatura em Coimbra, em 1767, passando
pela sua aceitação na corte em Lisboa, o seu namoro e casamento com uma dama do Paço, a sua
incumbência profissional como juiz de fora em Cascais, o nascimento do seu filho Simão, em 1784, a
sua transferência para Vila Real e as reações negativas da sua esposa em relação às condições de vida
na província, a sua ocupação do cargo de provedor em Lamego e, posteriormente, de corregedor em
Viseu. Identificação dos cinco filhos do corregedor, bem como das relações familiares. Caracteriza-
ção do filho Simão.

Enquadramento da vida académica de Simão em Coimbra e das suas proezas de boémia no contexto
histórico da Revolução Francesa. Enamoramento, em Viseu, de Simão e Teresa de Albuquerque, e as
alterações positivas desencadeadas no comportamento de Simão. O ódio entre o pai de Teresa, Tadeu
de Albuquerque, e o pai de Simão, e a consequente oposição ao namoro. Afirmação da paixão por parte
dos dois enamorados e troca de cartas através de uma mendiga.

Intensificação do ódio entre as duas famílias, troca de injúrias entre os dois agentes do poder paternal e
intenção por parte de Tadeu de Albuquerque de casar a sua filha com o primo Baltasar Coutinho, mor-
gado de Castro Daire. Chegada deste a Viseu e declaração amorosa a Teresa. Recusa perentória de Teresa
e, perante esta rejeição, ameaça de entrada num convento.

Atribuição de características positivas a Teresa, como a força de caráter, o orgulho, a perspicácia, e


reflexão do narrador sobre a mulher na literatura (nos romances). Diálogo dramático entre Tadeu de
Albuquerque e sua filha com o objetivo de lhe impor, pela violência, o casamento com o primo. Com-
portamento defensivo, mas firme, de Teresa relativamente ao autoritarismo do pai. Troca de corres-
pondência entre Teresa e Simão, e chegada de Simão a Viseu após aplacar a sua fúria. Hospedagem
de Simão em casa do ferrador João da Cruz e marcação, por carta, de um encontro entre Simão e
Teresa, à noite, no quintal de Teresa, encontro ao qual Simão compareceu.
Comemoração do aniversário de Teresa com festa em sua casa e agitação desta pela perspetiva do en-
contro com Simão. Advertência de Teresa a Simão para que se retire e regresse no dia seguinte. Encontro
destemido e ameaçador entre Baltasar Coutinho e Simão, embora não se tenham identificado. Regresso
de Simão a casa de João da Cruz. Troca de cartas entre Teresa e Simão para marcação de novo encontro.
Apresentação de Mariana, filha do ferrador. Revelação da dívida de gratidão de João da Cruz em relação
ao pai de Simão, que o salvou da forca, e consequente explicação da ajuda que este pretende prestar a
Simão, ajuda que é aceite.

Emboscada noturna de Baltasar Coutinho e de dois criados a Simão. Proteção deste por João da Cruz e
pelo arrieiro, seu cunhado. Breve encontro de Simão com Teresa. Ferimento de Simão perpetrado pelos
criados de Baltazar e morte desses dois criados, assassinados por João da Cruz.

Tratamento da ferida de Simão em casa de João da Cruz. Troca de cartas com Teresa. Decisão por parte
de Tadeu de Albuquerque de encerrar a filha num convento. Instalação de Teresa num convento em Vi-
seu e aceitação do seu destino com alegria. Relato do ambiente de maledicência, hipocrisia e falsidade
no convento, observado por Teresa.

Recuperação do estado de saúde de Simão, tratado com toda a dedicação por Mariana, cujo pai a encar-
rega de ser a enfermeira do doente. Troca de cartas entre Teresa e Simão, através da habitual mendiga.
Escassez de dinheiro por parte de Simão e combinação, entre João da Cruz e Mariana, de uma estratégia
para que lhe seja entregue o dinheiro de Mariana como se lhe tivesse sido enviado por sua mãe.

Concretização com sucesso do plano de Mariana e João da Cruz. Continuação da troca de cartas entre
Teresa e Simão. Notícia sabida por Teresa da sua próxima deslocação para o convento de Monchique, no
Porto, e comunicação desta notícia a Simão pela mendiga~Reações exaltadas de Simão e interferência
de Mariana, que se oferece para entregar por mão própria uma carta de Simão a Teresa, propondo-lhe
a fuga.

Encontro de Mariana com Teresa, no convento de Viseu, para a entrega da carta e pedido de Teresa
para que Simão não aparecesse no convento no momento da sua partida para o Porto, dado que o
primo Baltazar e as irmãs iriam acompanhá-la e a situação apresentaria muitos perigos. Tristeza de
Mariana e tentativa de dissuasão, por parte de João da Cruz, da decisão tomada por Simão de com-
parecer no convento. Partida de Simão, sozinho e armado, perante o desespero de Mariana. Chegada
de Simão junto ao convento e espera pela hora da partida. Pedido de Tadeu de Albuquerque a Teresa
para que reconsiderasse e esquecesse Simão, pedido que foi rejeitado. Confronto agressivo entre
Baltasar Coutinho e Simão, e homicídio de Baltasar por Simão, que recusa fugir como lhe aconselha
João da Cruz e o próprio meirinho-geral. Entrega das armas e prisão de Simão.

Decisão de Domingos Botelho, após o conhecimento do crime praticado pelo seu filho, de que este
deverá ser tratado de acordo com a lei. Aceitação, com tranquilidade, por Simão, da reação do pai e da
restante família, e escolha de Mariana como único apoio.

Deslocação de Domingos Botelho e família para Vila Real. Transcrição de parte de uma carta de uma irmã
de Simão, recordando, cinquenta e sete anos depois, a reação da família à prisão deste e à sua condena-
ção à morte, e a intransigência de Domingos, só quebrada pela ameaça de suicídio de um tio-avô se ele
não salvasse o filho da forca. Julgamento de Simão, sua impassibilidade perante a sentença de morte
pela forca, e comentários que esse facto provoca na audiência. Reação psicológica de Mariana, próxima
da loucura.

Viagem de Teresa de Albuquerque para o Porto após a morte do primo, conhecimento da prisão de
Simão e entrada no convento de Monchique. Saúde débil de Teresa e perspetiva de morte breve. Troca
de cartas entre Teresa e Simão em que ambos expressam o desgosto pela separação e pela morte que
se aproxima. Revelação da alteração da sentença de Simão por interferência do pai, Domingos Botelho,
e da sua deslocação para a Cadeia da Relação no Porto.
Chegada de Tadeu de Albuquerque ao convento de Monchique, pretendendo salvar Teresa levando-a
• para Viseu. Recusa veemente de Teresa e da Madre Superiora à sua saída do convento. Diligências infru-
tíferas de Tadeu junto da polícia para conseguir os seus intentos.

Meditações de Simão Botelho, na Cadeia da Relação do Porto, sobre a sua vida e o seu cruel destino.
Visita de João da Cruz; Simão fica sabendo que Mariana recuperou o j uízo. Troca de cartas entre Simão
e Teresa através do ferrador. Informações a Simão sobre a presença de Mariana no Porto, sobre a sua
disponibilidade para cuidar dele e sobre a paixão que ela lhe dedica.

Relato da história de amor de Manuel Botelho, irmão de Simão, por urna açoriana que abandonara o
marido e fugira com ele para Espanha. Solução dada por Domingos Botelho à história do filho Manuel,
desertor de cavalaria, regressado a Vila Real. Devolução da açoriana à sua família, no Faial, e perdão e
mudança de regimento para o filho, em Lisboa .

Assassinato de João da Cruz pelo filho do homem que o ferrador matara dez anos antes, corno vingança


pelo crime do qual o corregedor Domingos Botelho o salvara da forca. Carta a Mariana informando-a da
morte do pai e reações de desgosto desta e de Simão.

Decisão de Mariana, após recolha da herança paterna e venda das terras, de partir para o degredo na
companhia de Simão. Bom acolhimento por Simão desta decisão, depois de ameaça de suicídio por
parte de Mariana. Preparação de Teresa para a separação, dada a preferência de Simão pelo degredo na
Índia à prisão em Vila Real.

Reflexões do narrador sobre a verdade, na literatura e no coração humano, e interpelações ao leitor


e a Simão sobre a justeza humana da atitude tomada por este de optar pela liberdade no degredo
em desfavor da prisão na sua terra. Desespero de Simão pela separação de Teresa e pela sua ânsia de
liberdade e impossibilidade de aceitar a prisão. Aceitação da morte por parte de Teresa. Intimação a
Simão para sair na primeira embarcação que levantasse âncora do Douro para a Índia.

Saída de Simão da prisão da Relação e embarque, no cais da Ribeira, na nau para a Índia. Rejeição por
Simão de dinheiro enviado por sua mãe. Avistamento de Teresa no mirante do convento de Monchique
onde esta se encontrava. Entrega a Simão, pela pobre de Viseu, das cartas que este escrevera a Teresa;
acenos de despedida entre Teresa e Simão. Passagem da nau diante do convento, no momento em que
Teresa desfalece e morre. Pedido de Simão ao capitão da nau para q ue proteja Mariana, no caso da sua
morte, corno se ela fosse sua irmã.

Leitura, em grande sofrimento, da carta de despedida escrita por Teresa a Simão; receio de um ato
de suicídio de Simão por parte do capitão e de Marianá. Doença súbita de Simão, com febre alta,
delírio e ânsias. Entrega por Simão a Mariana de todas as cartas trocadas entre ele e Teresa. Morte de
Simão, após nove dias de enfermidade, e primeiro beijo de Mariana. Lançamento, da amurada do na-
vio, do cadáver de Simão ao mar, seguido do suicídio de Mariana, que se lançou à água com o maço
das cartas de Simão e Teresa atadas em rolo no seu avental. Morte de Mariana abraçada ao cadáver
de Simão. Recolha, pelos marinheiros, do rolo de papéis, a correspondência de Teresa e Simão, que
ficara à superfície da água.
SUGESTÃO BIOGRÁFICA (SIMÃO E NARRADOR) E CONSTRUÇÃO DO
HERÓI ROMÂNTICO
Camilo escreveu a novela Amor de Perdição quando se encontrava preso por adultério na Cadeia da Relação
do Porto, no ano de 1861. Na Introdução desta novela, publicada em 1862, o narrador-autor revela que partiu
de um facto verídico registado num documento dessa Cadeia: «Folheando os livros de antigos assentamentos
no cartório das cadeias da Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805. a folhas 232, o
seguinte: Simão António Botelho. que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra,
natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho
de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda,
olhos castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, colete de fustão pintado e calça de
pano pedrês. E fiz este assento, que assinei - Filipe Moreira Dias.»
A partir destes elementos comprovados, o narrador-autor procedeu à narração da história de amor entre
Simão e Teresa e também da história da rivalidade entre duas famílias, a de Domingos Botelho e a de Tadeu de
Albuquerque. O subtítulo da obra, Memórias duma Família, remete para o passado de uma família e essa
família é a família do escritor Camilo Botelho Castelo Branco. Simão Botelho que, segundo uma nota escrita
na <(margem esquerda deste assento», «Foi para a índia em 17 de março de 1807.», portanto, condenado a de-
gredo, era tio paterno de Camilo.
Ao longo da novela, o narrador regista datas de nascimentos e de mortes, especifica os cargos que os
parentes desempenharam, os lugares onde viveram, os estudos que realizaram, procurando manter sempre a
aparência da rigorosa verdade histórica, a fim de que os leitores sé impressionem com esse testemunho de
autenticidade. Os escritores românticos cultivaram muitas vezes este procedimento. O narrador de Amor de
Perdição apoia-se em cartas, que transcreve, como as cartas de amor trocadas entre Simão e Teresa, que terão
sido resgatadas do mar quando Mariana se suicidou (conclusão) e também numa carta parcialmente transcri-
ta, no capítulo XII, atribuída a uma «senhora daquela família», que se percebe que será sua tia D. Rita Emília, a
irmã mais nova de Simão, com quem Camilo foi viver após a morte do pai. No último parágrafo da conclusão
da novela, pode ler-se: «Da família de Simão Botelho vive ainda, em Vila Real de Trás-os-Montes, a senhora
D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a irmã predileta dele. A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi
Manuel Botelho, pai do autor deste livro.». Assim, até ao final da novela, Camilo procura esbater a fronteira
entre a vida real e a ficção.
Entre Camilo e Simão Botelho existem experiências de vida com algumas semelhanças, o que terá mo-
tivado o interesse do escritor pela história deste seu tio. Camilo encontrava-se preso, por amor a Ana Plácido,
na mesma cadeia onde, cinquenta e alguns anos antes, estivera Simão. A situação desgraçada de Simão, afas-
tado da pátria e da família com apenas dezoito anos, levou Camilo a inventar a sua história amorosa e trágica:
«Amou, perdeu-se e morreu amando». A perdição, Camilo juntou o amor e a morte e, sendo o escritor conhe-
cido não só pelo seu talento como também pelo seu amor proibido que o levara à prisão como seu tio Simão,
isso constituiria, sem dúvida, um fator determinante para o sucesso desta novela romântica.
A construção do herói romântico em Amor de Perdição parte, portanto, de uma figura real que, por rebel-
dia e uma energia excecional, quebra as regras sociais impostas. A ficção transforma-o na personagem que
luta pelo amor em que acredita, que se revolta contra os preconceitos e as obrigações da sociedade, que, de
forma determinada e impulsiva, entra em conflito com as forças que se lhe opõem, mesmo que isso o possa
conduzir à morte.
Nos capítulos I e 11, Simão é caracterizado por uma rebeldia por vezes violenta. Quando descobre o amor,
com Teresa, Simão transforma-se, dedica-se aos estudos e aceita as regras sociais. No entanto, quando as re-
gras sociais impedem que o seu ideal do amor seja atingido, Simão, como herói romântico, enfrenta o conflito
até à sua destruição.
Teresa, a amada de Simão, caracteriza-se também por um temperamento forte, com maturidade, apesar
dos seus quinze anos, que a capacita para desobedecer à vontade do pai, Tadeu de Albuquerque, que a queria
obrigar a aceitar, como esposo, o seu primo Baltasar Coutinho. Pela sua coragem e rebeldia, ela corresponde
também à heroína romântica.

A OBRA COMO CRÓNICA DA MUDANÇA SOCIAL


As personagens de Amor de Perdição integram-se numa sociedade e num tempo histórico, cujos costu-
mes e leis condicionam e determinam, em grande medida, os seus comportamentos. A crónica social marca-
da pelos factos históricos do último quartel do século XVIII e do primeiro do século XIX, na Europa e em Por-
tugal, representa uma parte importante desta novela.
No capítulo Ida obra, encontram-se datas, narram-se acontecimentos e descrevem-se situações que inte-
gram a história ficcionada num tempo e numa sociedade que constituem a crónica da vida nessa época e
justificam os conflitos em que as personagens se irão envolver.
Os progenitores de Simão Botelho pertenciam a famílias antigas, da nobreza, embora não tivessem uma
fortuna considerável: «Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem e um dos
mais antigos solarengas de Vila Real de Trás-os-Montes, era, em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo
ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha
dum capitão de cavalos, neta de outro, António de Azevedo Castelo Branco Pereira da Silva, tão notável por
sua jerarguia, como por um, naquele tempo, precioso livro acerca da Arte da Guerra.»
Domingos Botelho formara-se em Coimbra em 1767, mudando-se depois para Lisboa onde conseguiu a
estima de D. Maria I e D. Pedro Ili, os reis de Portugal, frequentou o paço e iniciou a carreira da magistratura
como juiz de fora em Cascais. Embora os seus dotes físicos e de espírito não fossem grandes, casou com a
muito formosa D. Rita, acompanhante da rainha, tendo fixado residência em Lisboa, onde, em 1784, nasceu
Simão, o penúltimo dos seus filhos.
A mudança social começa a verificar-se quando Domingos Botelho conseguiu a sua transferência para Vila
Real e D. Rita Preciosa reagiu com desagrado ao atraso de costumes que encontrou em Trás-os-Montes:«- Em que
século estamos nós nesta montanha? - tornou a dama do paço.[ ... ] Cuidei que o tempo parara aqui no século
doze ... [ .. .] Dizia ela depois que os fidalgos de Vila Real eram muito menos limpos que os carvoeiras de Lisboa.».
D. Rita não se adaptou à vida em Vila Real nem em Lamego, para onde, posteriormente, a família foi viver,
ameaçando mudar-se para Lisboa com os filhos. Domingos Botelho empenhou-se, então, e conseguiu o lugar
de corregedor em Viseu, cidade onde se encontravam a viver em 1801 . Os dois filhos do casal estudavam em
Coimbra: Manuel, de vinte e dois anos, frequentava o segundo ano jurídico e Simão, de quinze anos, estudava
humanidades. De acordo com as regras sociais, o filho mais velho, o morgado, deveria seguir a carreira do pai
e seria ele que herdaria o património e os títulos da família. O outro filho homem deveria seguir a carreira
eclesiástica ou militar e as filhas casariam com homens da nobreza ou seguiriam a vida religiosa.
Entretanto, transformações históricas relevantes têm lugar na Europa e em Portugal. Em 1789, tem início
a Revolução Francesa 1, em 1792, o príncipe D. João assume a regência do Reino de Portugal por doença da
mãe, D. Maria 1, e, em 1799, Napoleão toma o poder em França. As ideias da Revolução Francesa vão-se infil-
trando em Portugal e Simão Botelho, por temperamento e, certamente também, por influências ideológicas
de companheiros de Coimbra, comporta-se de forma rebelde e conflituosa, afrontando as regras e as institui-
ções sociais: « [ ... ] Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com os mais famosos perturba-
dores da academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com assuadas.
[ ... ] Na plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que
faz, Simão zomba das genealogias[ ... ].»

1 Revolução Francesa: conjunto de acontecimentos que transformaram o panorama político e social da França, entre 5 de maio de 1789 e 9 de novembro de 1799. Esta
revolução acabou com os privilégios do clero e da nobreza instituídos pelo Antigo Regime, isto é, a monarquia absolutista, e proclamou os princípios universais de
Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A sua influência propagou se a toda a Europa, incluindo Portugal.
A história dos amores contrariados de Simão e Teresa, pelos respetivos pais, funda-se na revolta de ambos
contra a proibição do casamento, e a realização plena do sentimento amoroso e contra os poderes que as re-
gras sociais estabeleciam. Simão mata o primo de Teresa, Baltasar Coutinho, que o pai de Teresa exigia que
fosse seu marido, Teresa dá entrada no convento, coagida pelo pai, onde acaba por morrer e Simão é, primei-
ramente, condenado à morte e, posteriormente, condenado ao degredo na Índia, tendo morrido na viagem.
No ano em que Teresa morre e Simão parte para a Índia e morre também, 1807, tem lugar a primeira invasão
francesa em Portugal, comandada por Junot, e D. João VI e a corte portuguesa partem para o Brasil. A tragédia
da novela coincide com a grande instabilidade política em Portugal e com a consequente mudança social
que se ia instituindo.

AS PERSONAGENS E SUAS RELACÕES I

O tema predominante de Amor de Perdição é o amor, um amor que leva à perdição e à morte.
Relativamente ao recorte das personagens em Amor de Perdição, podem considerar-se como personagens
coletivas as famílias, pelas características que são comuns a todos os seus elementos. A família de Domin-
gos Botelho identifica-se pela sua linhagem, pelo orgulho da genealogia bem expresso na acumulação de
apelidos, pelo preconceito da superioridade da honra e da dignidade. A família de Tadeu de Albuquerque,
de que faz parte o seu sobrinho Baltasar Coutinho, identifica-se pela preocupação de manter o património (a
casa e as propriedades) na posse da família, pelo ódio e pelo desejo de vingança em relação à família Botelho
e pela tirania obsessiva de controlar o destino de Teresa. Estas famílias representam um extrato social elevado
da sociedade, a nobreza. As duas famílias opõem-se à relação amorosa entre Simão e Teresa e rejeitam a sua
união pelo casamento. A família do ferrador João da Cruz, a que pertence a sua filha Mariana, o seu cunhado
arrieiro e a sua cunhada Josefa, caracteriza-se pela fidelidade em relação à gratidão que devia a Domingos
Botelho, pela solidariedade incondicional em relação a Simão, bem como pela generosidade, simplicidade e
coragem dos seus membros. Esta família representa o extrato social mais baixo da sociedade, o povo. Funcio-
na como adjuvante em relação a Simão e a Teresa.
Destas três famílias destacam-se algumas personagens individuais.
Simão Botelho é o protagonista ou personagem principal da novela. Pelas suas características físicas, psico-
lógicas e comportamentais, encarna o herói romântico por excelência. No capítulo 1, o narrador descreve Simão
fisicamente como «forte de compleição», «belo homem» e corpulento como a mãe. Psicologicamente, o irmão
Manuel teme-o pelo seu «génio sanguinário» e descreve-o como perturbador e provocador. O pai, Domingos
Botelho, admira a sua bravura que considera hereditária. As irmãs também o temiam, à exceção da mais nova,
Rita, por quem ele nutria grande ternura. Assim, a rebeldia, a agressividade, a impulsividade e a determinação
caracterizavam o seu comportamento. Após a descoberta de Teresa e do amor, «fez-se maravilhosa mudança nos
costumes de Simão» (capítulo 11). Abandonou as companhias perniciosas, tornou-se recolhido e «cismador», es-
tudava com entusiasmo e foi premiado. Relativamente ao seu amor por Teresa, mostra-se fiel, constante, pronto
para vencer os obstáculos («A minha paixão não se conforma com a desgraça.», capítulo X). Assim, a sua nature-
za violenta e o seu amor-paixão levaram-no a cometer o homicídio do rival. Porém, aceitou a prisão, a condena-
ção à morte e, finalmente, ao degredo, sem revolta, como um destino fatal. O desembargador Mourão Mosquei-
ra considera-o «um doido desgraçado com sentimentos nobilíssimos» (capítulo XV). Em relação a Mariana, Simão
revela-se «enternecido» e infeliz por não poder fazê-la sua mulher. E, segundo o narrador diz no capítulo VIII, o
amor de Mariana não desagradava «ao amante apaixonado de Teresa». Antes de morrer, Simão expressa a Maria-
na todo o seu afeto e agradecimento («Tu virás ter connosco; ser-te-emos irmãos no Céu ... O mais puro anjo
serás tu ... se és deste mundo, irmã; se és deste mundo, Mariana ... », Conclusão).
Teresa de Albuquerque é uma segunda personagem principal. Teresa tinha quinze anos quando se apai-
xonou por Simão. Fisicamente, é descrita pelo narrador, no capítulo li, como «regularmente bonita» e, por
Mariana, no capítulo X, como «uma menina muito branca, alva como leite», linda como nunca viu outra. Psi-
cologicamente, revela, desde o início da novela, a sua força e determinação: «Meu pai diz que me vai encerrar
num convento. Sofrerei tudo por amor de ti.» (capítulo 11). O narrador faz dela, diretamente, o retrato psicoló-
gico: «É mulher varonil, tem força de caráter, orgulho fortalecido pelo amor, desapego das vulgares apreen-
sões [ ... ]. Não será aleive atribuir-lhe uma pouca de astúcia, ou hipocrisia [ ... ]; perspicácia seria mais correto
dizer.» (capítulo IV). De caráter vigoroso e orgulhoso, Teresa rejeita, de forma afirmativa e sem contemporiza-
ções, o casamento com o primo Baltasar Coutinho a que o pai a quer obrigar: «Meu pai. .. [ ... ] mate-me; mas
não me force a casar com meu primo. É escusada a violência, porque eu não caso!» (capítulo IV). A sua deter-
minação e irredutibilidade continua quando, já muito doente, o pai a quer retirar do convento de Monchique
no Porto e Teresa responde, intransigente:«- Não vou, meu pai.[ ... ] Enquanto, porém, eu puder dizer que não
vou, juro-lhe que não vou, meu pai.» (capítulo XIV). Estas características correspondem ao perfil da mulher-
-anjo2 e da heroína romântica.
Mariana é uma personagem de grande relevância que funciona como adjuvante. Apoia e ajuda Simão
desde que ele chega a casa de seu pai, o ferrador João da Cruz (capítulo V), até à sua morte. O narrador descre-
ve-a fisicamente, neste capítulo V, como uma «moça de vinte e quatro anos, formas bonitas, um rosto belo e
triste». O padre capelão do convento de Viseu fica admirado com a beleza de Mariana: «[. .. ] Mas repare bem
nos olhos, no feitio, naquele todo da rapariga!. .. » (capítulo X). O carcereiro de Simão, em Viseu, acha Mariana
«bem mais bonita» que Teresa (capítulo XI). Psicologicamente, Mariana caracteriza-se pela sua enorme gene-
rosidade e total dedicação a Simão. Muito sensível, acredita nos seus sonhos, nomeadamente naqueles que
considera maus presságios para a vida de Simão, e sofre com isso:«[. .. ] tinha tido um sonho, em que via mui-
to sangue, e eu estava a chorar porque via uma pessoa muito minha amiga a cair numa cova muito funda ... »
(capítulo VIII). O pai, João da Cruz, admira a capacidade de dedicação da filha e acha que ela vale mais que as
fidalgas de Viseu (capítulo IX). Apesar do seu amor secreto por Simão, o seu caráter humilde e abnegado per-
mite que Mariana entregue correspondência de Simão a Teresa. Lamenta que não seja amada como ela é, mas
isso não a impede de auxiliar o seu amado. Mariana quase enlouquece quando sabe que Simão foi condenado
à forca: «Agudíssima foi então a dor do académico ao compreender, como se instantaneamente lhe fulgurasse
a verdade, que Mariana o amava até ao extremo de morrer.» (capítulo XII). Quer na prisão em Viseu, quer na
Cadeia da Relação no Porto, é Mariana quem trata e ampara Simão. Sabe que a diferença de classe social em
relação a Simão nunca lhe permitiria casar com ele, mas isso não impede a sua dedicação. O pai, João da Cruz,
esclarece, no capítulo XV: «Eu sei que sou ferrador, e ela sabe que pode ser sua criada, e mais nada, senhor Si-
mão [ ... ]». No entanto, Simão aceita que Mariana o acompanhe no seu degredo para a Índia e o narrador
descreve a alegria do seu coração quando tal soube: «Desde esse dia, um secreto júbilo endoidecia o coração
de Mariana. Não inventemos maravilhas de abnegação. Era de mulher o coração de Mariana.[ ... ] Amava, e ti-
nha ciúmes de Teresa, não ciúmes que se refrigeram na expansão ou no despeito, mas infernos surdos [ ... ]»
(capítulo XVIII). No final da novela, Mariana suicida-se, atirando-se ao mar para se juntar ao cadáver de Simão.
Também Mariana encarna a mulher-anjo do Romantismo.
Domingos Botelho, pai de Simão, Tadeu de Albuquerque, pai de Teresa, Baltasar Coutinho, primo e
pretendente de Teresa, e João da Cruz, pai de Mariana, embora personagens secundárias, são também perso-
nagens que se individualizam e que têm um papel importante no desenrolar da narrativa.

2 A expressão mulher-anjo designa, no tempo do Romantismo, um tipo de personagem feminina que se caracterizava pela pureza e perfeição e que agia de forma
positiva em relação ao homem.
Relação entre as personagens

PERSONAGENS OPONENTES PERSONAGENS ADJUVANTES

Família de Domingos
Botelho

Desprezo / Rejeição
Cruz
Preconceito
Generosidade / Solidariedade /
Afeto

MARIANA
Família de Tadeu
de Albuquerque

Ódio / Violência

Preconceito

O AMOR-PAIXÃO
O amor tratado em Amor de Perdição é o amor-paixão, isto é, o amor vivido de forma tão intensa e impe-
tuosa que conduz à desgraça e à perdição. Simão, Teresa e Mariana foram vítimas desse sentimento exacer-
bado que só terminou na morte.
A epígrafe da obra, retirada da Epanáfora Amorosa, de D. Francisco Manuel de Melo3, associa o tema do amor
ao sofrimento: «Quem viu jamais vida amorosa, que não a visse afogada nas lágrimas do desastre ou do arrepen-
dimento?». O título da obra -Amor de Perdição - remete para um amor infeliz e de consequências funestas.
O facto de o amor de Teresa e Simão ser um amor contrariado propicia a luta assumida com determinação
das personagens nele envolvidas. As características psicológicas e comportamentais das três personagens,
Simão, Teresa e Mariana, isto é, a sua determinação, fidelidade e obstinação, originam a obsessão e o fascínio
da desgraça.
Em Simão Botelho, primeiramente; o amor e a paixão transformam positivamente o seu comportamento:
«No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão.» (capítulo 11). Depois disso,
quando os obstáculos se avolumam, Simão pratica atos desesperados: tenta raptar Teresa, mata Baltasar Cou-
tinho, revolta-se contra a família e a sociedade, e entrega-se à morte: «Eras a minha vida: tinha a certeza de que
as contrariedades me não privavam de ti. Só o receio de perder-te me mata» (capítulo X).
Teresa de Albuquerque apaixona-se por Simão com apenas quinze anos e aquele seu amor não era um
«pueril amor» (capítulo 111), como o seu pai pensava, mas um amor que «era verdadeiro e forte» (capítulo 11).
Tratava-se de um amor que não cedia perante as convenções sociais: «Por parte de Baltazar Coutinho a paixão
inflamou-se tão depressa, quanto o coração de Teresa se congelou de terror e repugnância.» (capítulo Ili).
Teresa aceita o sofrimento, a desgraça que a sua família lhe inflige, e o seu amor acaba por ser um amor-sofri-
mento, embora se indigne com o seu destino: «Que mal fariam a Deus os nossos inocentes desejos?!. •• Porque

3 D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) foi um escritor que cultivou o estilo barroco e que se dedicou à poesia, ao teatro, à história e â epistolografia. Publicou cerca
de duas dezenas de obras durante a sua vida, entre as quais Apó/ogos Dialogais, o cancioneiro FéniK Renascido, o texto moralista Carta de Guia de Casados e a peça de
teatro Auto do Fidalgo Aprendiz.
não merecemos nós o que tanta gente tem? ... » (capítulo Ili). A sua relação com Simão transforma-se numa
união espiritual: ela é a sua «esposa do céu», como revela na última carta que lhe escreve (Conclusão).
Mariana nutre por Simão um amor não correspondido, um amor-dedicação que não espera a recom-
pensa no casamento. Afasta-os a condição social e o amor-paixão de Simão por Teresa. Mariana deseja apenas
«dar alívio às dores» de Simão. É esse o seu «heroísmo» (capítulo IX). Simão aceita esse afeto e dedicação de
Mariana como se ela fosse sua «irmã». Agradece-lhe «estremecidamente» que ela queira acompanhá-lo para
o degredo: «- Irá, irá comigo minha irmã. Pense muito no infortúnio de nós ambos de ora em diante, que ele
é comum; é um veneno que havemos de tragar unidos[ ... ]» (capítulo XVIII). Simão nunca esquece que ela foi
a sua «providência»: «Porque ela me valeu, não senti a fome em dois anos e nove meses de cárcere. Tudo o que
tinha vendeu para me sustentar e vestir.» (capítulo XX). O amor-paixão de Mariana por Simão desvenda-se
apenas no final da novela, quando se suicida porque não quer sobreviver a Simão.

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA


A obra Amor de Perdição pode considerar-se, pelas suas características, uma novela. A ação desenrola-se
de forma rápida, encaminhando-se para um desfecho dramático; o tempo da narrativa avança de forma
veloz e linear, sem recuos nem demoras na narração; o protagonista, Simão Botelho, é uma figura fora do
comum, detentora de um caráter rebelde e impulsivo; o espaço é pouco relevante e os cenários em que se
passa a ação são descritos com pouco pormenor, e o narrador afirma a sua presença através de comentá-
rios, por vezes, dirigidos ao leitor e à leitora,

O narrador
O narrador é uma entidade fictícia que enuncia o discurso. Em Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco
constrói uma ambiguidade entre o narrador e o autor. Na Introdução e nas últimas linhas da Conclusão, o
narrador confunde-se intencionalmente com o autor: na Introdução, através da apresentação de docu-
mentos recolhidos num momento biográfico específico do autor (a sua prisão na Cadeia da Relação do Porto),
e, na conclusão, através de factos concretos da vida da sua família. As personagens desta ficção são inspira-
das em figuras reais, sendo, no entanto, figuras ficcionais e o próprio narrador, embora reivindique para si
próprio factos biográficos do autor, é também uma figura ficcional. Estes artifícios literários dão, ao narrador,
autoridade para relatar e comentar o que relata.
O narrador fala normalmente na primeira pessoa, assume uma 'posição pessoal e subjetiva, procurando
influenciar o leitor ou a leitora, os seus primeiros destinatários, e levá-los a comungar do seu espanto, da sua
emoção e das suas opiniões. Do ponto de vista do estilo, as exclamações e as interrogações retóricas ser-
vem este propósito («O coração de Teresa estava mentindo. Vão lá pedir sinceridade ao coração!», capítulo IV;
«O que é o coração, o coração dos dezoito anos, o coração sem remorsos, o espírito anelante de glórias, ao
cabo de dezoito anos de estagnação da vida?», capítulo XIX). Por vezes, o narrador exibe as suas reflexões
sobre a vida, sobre a sua construção ficcional, sobre os seus conhecimentos literários ou filosóficos. Fá-lo, por
exemplo, na Introdução, quando reflete sobre a história que vai contar, no início do capítulo IV, quando fala
sobre a sua personagem Teresa («a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta de que rezam os meus
apontamentos era distintíssima») e, no início do capítulo XIX, quando reflete sobre a verdade num romance
e a verdade do coração humano. Estilisticamente, as asserções, isto é, as afirmações feitas com grande cer-
teza, são frequentemente utilizadas para este fim.
No entanto, embora partindo dos documentos que consultou ou que lhe chegaram às mãos (as cartas de
Simão e de Teresa, por exemplo) o narrador é, em quase toda a narrativa, um narrador ausente, não identi-
ficado, que, por vezes, parece deter um conhecimento ilimitado do que está a narrar, outras vezes, não, tor-
nando o relato mais verosímil.
Os diálogos
Na novela Amor de Perdição, predomina a narração, as descrições são raras, sendo os diálogos introduzidos
em momentos fulcrais da ação, de forma a conceder realismo e intensidade dramática ao comportamento
das personagens, dando relevância a certos traços do seu caráter e às situações vividas.
Assim, no capítulo I, num breve diálogo entre Domingos Botelho e D. Rita Preciosa, sua mulher, apenas em
cinco falas, sobressai a arrogância e o completo desprezo de D. Rita pela maneira como se vivia então na pro-
víncia.
No capítulo IV, o diálogo entre Tadeu de Albuquerque e Teresa revela bem o caráter autoritário, prepoten-
te e violento do pai, a firmeza e a argúcia da filha, e a tensão vivida entre ambos.
No capítulo X, vários diálogos expressam de forma significativa a relação entre as personagens, bem como
as suas características psicológicas. Mariana em diálogo com o padre capelão mostra a sua esperteza, de-
sembaraço e conhecimento da corrupção moral dos costumes dos clérigos. O diálogo entre Mariana e Tere-
sa revela a coragem de Mariana e a sua dignidade pela forma como recusa o anel que Teresa lhe oferece como
pagamento do seu serviço. O diálogo entre Simão, João da Cruz e Mariana evidencia a impaciência e a
obstinação de Simão, o bom senso de Mariana e a sabedoria de João da Cruz, própria da gente do povo; no
diálogo entre Mariana e Simão, sobressai o afeto de Mariana por Simão, o seu caráter intuitivo através dos
seus vaticínios e o clima trágico que começa a adensar-se. O diálogo entre Teresa e Baltasar manifesta o seu
ódio pelo primo e a hipocrisia e arrogância deste. O diálogo final entre Simão e Baltazar, em que participam
também Tadeu de Albuquerque, Teresa, João da Cruz e o meirinho-geral, patenteia o crescendo das emoções
em que o ódio se expõe em insultos que conduzem ao homicídio de Baltasar por Simão, ao desespero e des-
falecimento de Teresa e à prisão de Simão.
As cartas constituem uma modalidade discursiva essencial no desenvolvimento da ação desta novela. Elas
estabelecem um diálogo à distância entre Simão e Teresa, dadas as proibições impostas a estas personagens
para terem um diálogo de proximidade. Através da comunicação epistolar, as duas personagens expressam a
sua subjetividade, confessam o seu amor, os seus pensamentos e o seu sofrimento.
A linguagem utilizada nos diálogos adequa-se às personagens que a utilizam e, portanto, varia entre a
linguagem cuidada, falada pelos elementos da nobreza, e a linguagem popular e rústica falada por João
da Cruz e pela sua filha Mariana: («[ ... ] Mas repara, minha querida filha, que a violência dum pai é sempre
amor. Amor tem sido a minha condescendência e brandura para contigo.[ ... ]» (fala de Tadeu de Albuquer-
que no capítulo IV};«[. .. ] Paixões ... que as leve o diabo, e mais quem com elas engorda. Por causa de uma
mulher, ainda que ela seja filha do rei, não se há de um homem botar a perder. [ ... ]» (fala de João da Cruz
no capítulo X}.
O estilo das cartas apresenta-se recheado de exclamações, de interrogações, de suspensões de frase,
de frases imperativas e de imagens de tristeza e de morte, evidenciando uma linguagem fortemente
emotiva e trágica: «Não esperes nada, mártir - escrevia-lhe ele. - A luta com a desgraça é inútil, e eu não
posso já lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo. Caminhemos ao encon-
tro da morte ... Há um segredo que só no sepulcro. Ver-nos-emos?[. .. ]» (carta de Simão no capítulo XIX};«[. .. ]
Oh! Simão, de que céu tão lindo caímos! À hora que te escrevo, estás tu para entrar na nau dos degredados, e
eu na sepultura. [ ... ]» (carta de Teresa na Conclusão}.

A concentração temporal da ação


O tempo narrativo em Amor de Perdição caracteriza-se pela concentração temporal da ação, como é
próprio de uma novela, isto é, a narração incide sobre os acontecimentos importantes da história.
A maior concentração temporal encontra-se no capítulo I, em que é narrada toda a história da família de
Simão Botelho desde 1767, ano em que Domingos Botelho termina o curso de Direito em Coimbra e vai para
Lisboa com a intenção de iniciar a carreira na magistratura, até 1801, ano em que a família está a viver em Vi-
seu e os dois filhos, Simão e Manuel, estão a estudar em Coimbra. Neste capítulo, estão concentrados trinta e
quatro anos. Deste modo, o tempo da história é longo, mas o discurso é breve.
A partir de 1801, começa a história de amor entre Simão e Teresa, que, dois anos depois, no mês de feve-
reiro de 1803, começa a ser contrariada, quando Tadeu de Albuquerque decide casar a filha com o primo Bal-
tasar Coutinho. Em 1804, Simão comete o assassinato de Baltasar e é condenado à morte (como prova a carta
de uma sua irmã, escrita cinquenta e sete anos depois, no capítulo XII). Em 1805, dá entrada na Cadeia da
Relação do Porto. Dois anos depois, em 1807, Teresa morre no convento, Simão embarca para o degredo na
Índia e morre na viagem, e Mariana, que o acompanha, suicida-se. Assim, entre o capítulo li e a Conclusão
estão concentrados seis anos. O tempo da história é breve, mas o discurso é longo.
Este desequilíbrio no tratamento do tempo deve-se ao facto de os acontecimentos mais importantes necessi-
tarem de um ritmo mais longo. Ainda assim, verifica-se a concentração do tempo em certos momentos da história,
como, por exemplo, no capítulo X, em que, numa tarde, noite e madrugada, são relatados múltiplos aconteci-
mentos: a ida de Mariana ao convento, a partida de Teresa para o Porto e o homicídio de Baltasar, entre outros.
A concentração temporal da ação permite a intensificação dos acontecimentos emocionantes e isso
correspondia ao gosto do público na época em que esta novela foi escrita.

Estrutura da obra
A estrutura interna da obra pode representar-se tendo em conta a frase com que o narrador-autor sinte-
tizou a história de Simão Botelho: «Amou, perdeu-se e morreu amando.» Assim, a novela pode ser dividida em:
• Introdução - «Amou» - apresentação da família de Simão Botelho e da família de Teresa de Albuquerque
e o desencadear do amor;
• Desenvolvimento - «perdeu-se» - desenrolar da ação com todas as peripécias envolvidas;
• Conclusão - «morreu amando» - desenlace trágico da ação.

A estrutura externa da obra apresenta uma introdução, vinte capítulos e uma conclusão.

Obras consultadas
Edição utilizada: CASTELO BRANCO, Camilo, Amor de Perdição, Introdução por Esther de Lemos, 1.ª ed., Lis-
boa, Editora Ulisseia, Biblioteca de Autores Portugueses, 2008

CASTRO, Isabel [Criação intelectual], Camilo Castelo Branco Amor de Perdição, Resumos, 1.ª ed., Porto, Porto
Editora, 2016
CHORÃO, João Bigotte, O essencial sobre Camilo, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998
COELHO, Jacinto do Prado, «O Amor de Perdição, novela de pundonor?» in A Letra e o Leitor, Lisboa, Portugália
Editora, 1968
REIS, Carlos; PIRES, Maria da Natividade, História Crítica da Literatura Portuguesa - O Romantismo, vol. V, 2.ª ed.,
Lisboa, Editorial Verbo, 1999
REIS, Carlos, Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco, 1.ª ed., Porto, Porto Editora, 2016
SARAIVA, António José; LOPES, Óscar, História da Literatura Portuguesa, 17.ª ed., Porto, Porto Editora, 201 O

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