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Campinas, 24 de outubro a 6 de novembro de 2016

Estudantes com autismo sofrem


menos preconceito na rede pública Fotos: Antonio Scarpinetti

Robson Celestino Prychodco, autor da tese: “Ainda há, por parte de algumas A professora Zélia Bittencourt, orientadora do estudo: “É uma questão cultural
escolas, dificuldade para a superação do modelo biomédico da deficiência” hoje você respeitar o diferente, é um sinal de mudança da própria sociedade”

PATRÍCIA LAURETTI
patricia.lauretti@reitoria.unicamp.br Apesar dos dados que o filho conviva com a criança com de-
ficiência. A orientadora da pesquisa, profes-
difíceis e muitas vezes só quem já passou
por aquilo sabe entender, sem julgamentos
sora Zélia Bittencourt, dá alguns exemplos ou preconceitos. Há uma similaridade de si-
s políticas públicas, leis e normas, positivos, exclusão desses mecanismos: quando há uma festa
ou um passeio, a escola exige que a famí-
tuações”, observa.
especialmente as mais recen- A interação nas redes sociais aumenta a
tes, impactaram positivamente
na inclusão escolar de alu-
perdura e aumenta à lia envie um acompanhante, a escola não
prepara material adequado para a criança,
sensação de suporte das famílias, até mes-
mo para questões práticas como a indicação
nos com deficiência. Jamais
houve, na história do país, tantos alunos
medida que avança ou permite que ela se mantenha à margem.
“É um panorama geral, é claro que existem
de medicamentos. A rede comporta uma he-
terogeneidade de gente que favorece as dis-
escolas particulares maravilhosas e escolas
com Transtorno do Espectro Autista (TEA)
matriculados no ensino fundamental. Mas a idade de estudantes públicas horríveis também”, complementa.
cussões e troca de informações. “São pessoas
com filhos já adultos e mães que acabaram
o preconceito aos alunos ainda existe e é Uma questão polêmica que repercute nos de receber o diagnóstico da criança. Todos
maior à medida que os anos escolares vão Alguns dos pontos negativos ressaltados resultados que diferenciam as redes públi- estão nas redes buscando conhecimento,
avançando, até o ensino médio. Outro dado por Robson se referem às famílias que soli- cas de ensino das escolas particulares, tem qualidade de vida e procurando entender as
é que as escolas particulares, em geral, são citaram vagas na escola após o diagnóstico relação com as leis 12764, de 2012 – que coisas que muitas vezes na escola, na socie-
as que mais excluem as crianças e adoles- de TEA. Nesse caso, dentre 53 participan- institui a Política Nacional de Proteção dos dade, nas terapias ou tratamentos, elas não
centes com TEA. Essas considerações estão tes, 21 alunos foram recusados, sendo que Direitos da Pessoa com Transtorno do Es- conseguem”. O pesquisador cita o exemplo
na pesquisa de mestrado desenvolvida por 8 tiveram que recorrer a outras instâncias pectro Autista – e a Lei Brasileira de Inclu- de um adolescente com TEA severo que pre-
Robson Celestino Prychodco na Faculdade para garantir a matrícula. A escola também são, de 2015. A lei 12764 reconhece o TEA cisa fazer a barba e sua mãe não sabe como
de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, não se preocupa tanto em informar sobre as como deficiência e prevê que, em casos em ajudar. Nesse caso, os/as mais experientes
no âmbito do programa “Saúde, Interdis- adequações de conteúdo, ou sobre a meto- que houver necessidade, o estudante terá postam vídeos de como constroem essa ati-
ciplinaridade e Reabilitação”. Todo o traba- dologia utilizada. Dezessete participantes direito a um acompanhante especializado. vidade com seus filhos.
lho foi feito a partir da coleta de dados de responderam que a escola vê o aluno com Nesse ponto é que as escolas particulares A consequência desse processo é o em-
entrevistas concedidas virtualmente, o que TEA “como um problema”, ou “como um por vezes tentam barrar o aluno, cobrando poderamento das famílias. O termo que já
ainda é relativamente novo na metodologia doente que não deveria estar naquele es- que o serviço seja pago pela família, enquan- ficou conhecido significa “mais poder” de
de pesquisas acadêmicas. paço”, segundo 12 responsáveis. “Isso de- to as públicas não oferecem resistência à lei. argumentação, sobretudo. As famílias dei-
“Nossa intenção foi elaborar um panora- monstra que ainda há, por parte de algumas “A família não pode ser cobrada em um cen- xam de ter posturas passivas, chegam na es-
ma do que está sendo a inclusão escolar para escolas, dificuldade para a superação do mo- tavo a mais na mensalidade e, se houver a cola e não querem que o filho seja excluído.
este grupo das crianças com TEA pelo olhar delo biomédico da deficiência. Este modelo recusa da matrícula, o diretor da escola pode Da mesma forma no posto de saúde, essa
da política pública, e tentar buscar dados so- entende a deficiência como uma experiência ser responsabilizado civil e administrativa- família questiona os medicamentos que são
bre o país inteiro. Ainda existem desafios e do corpo que deve ser enfrentada com trata- mente” enfatiza o pesquisador. indicados para a criança com TEA. “Não
barreiras. Mas os dados da inclusão são po- mentos médicos. A cura é entendida como Outro dado da pesquisa relaciona a per- significa que esta avaliação ou este conheci-
sitivos, especialmente para as crianças que condição necessária para que essas pessoas cepção de sucesso escolar à idade do aluno. mento esteja correto e que vá se sobrepor às
frequentam a educação infantil. Tomara que possam exercer seus direitos e a sociedade “Quanto mais velho é esse aluno, pior é a palavras dos profissionais. O conteúdo que
não haja retrocesso nesse sentido”, pondera estaria isenta de qualquer responsabilidade satisfação parental com relação à escola e à circula nas redes nem sempre é fidedigno.
Robson. Por meio de convites em três das por atos e processos de discriminação, e por inclusão. Isso acontece por vários motivos. A questão é ter condições de argumentar”,
maiores comunidades relacionadas ao autis- combatê-los, cabendo exclusivamente ao Um deles é a acomodação das expectativas. enfatiza. Robson destaca a ação efetiva das
mo no Facebook, o pesquisador conseguiu indivíduo a busca pela ‘normalização’ pelos Quando a criança é pequena, a família tem moderadoras dos três grupos pesquisados,
que mais de 200 mães, pais ou responsáveis meios médicos”, explica. uma expectativa sobre ela que vai se modifi- que não permite que o foco das discussões
se interessassem em responder a uma en- Os índices de satisfação são sempre mais cando conforme as manifestações do trans- seja desviado. De acordo com a pesquisa,
trevista com quase 50 questões. Desse nú- altos nas escolas públicas. Robson ressalta torno aparecem com mais intensidade”. hoje a internet e a participação nas redes
mero, 90 participantes seguiram até o final que os mecanismos de exclusão da escola Como na educação infantil, as escolas estão sociais virtuais são as principais fontes de
da pesquisa. particular são mais incisivos que os da es- mais preparadas e embasadas para atender informação sobre o TEA.
O primeiro dado que chamou a atenção cola pública muitas vezes até por questões a diversidade, conforme Robson apurou, as Mas se as políticas públicas avançaram,
do pesquisador foi que a maior parcela de alheias à criança. O preconceito pode vir coisas tendem a mudar no futuro, quando qual a razão de ainda haver grupos que não
estudantes, cujos responsáveis participaram também dos outros pais que não querem essas crianças alcançarem as próximas eta- reconhecem os avanços? “Ainda existe um
da pesquisa, se concentra na educação in- pas da escolarização, “uma vez que alunos descrédito pela percepção ruim das pesso-
fantil. Grande parte dos responsáveis decla- expostos à diferença por meio da deficiên- as em relação às políticas públicas, o que é
rou estar satisfeita com o trabalho da escola cia têm maiores chances de desenvolver um muito ruim, uma lacuna na percepção das
e relatou que suas crianças ou adolescentes Publicação olhar mais sensível às diferenças”. pessoas. Essa sensação, de fragilidade da
são tratados com respeito e igualdade de norma, é quebrada quando você olha no co-
oportunidades no espaço escolar. A maio- APOIO letivo, olha os dados do grupo e percebe que
ria também acredita que a escola é capaz Tese: “Inclusão escolar e políticas pú- As famílias das crianças mais velhas com muitas vezes a pessoa pode não estar enten-
de garantir a segurança do aluno com TEA, blicas na percepção de membros de TEA não tiveram a sorte que aquelas que dendo, mas foi beneficiada com a garantia
mostrando disponibilidade frente aos de- redes virtuais do Facebook, respon- descobriram o transtorno em tempos de de um direito”.
safios da inclusão, e oferecendo conteúdos sáveis por alunos com transtornos do rede social. A intensa busca por informação A orientadora da pesquisa, a professora
de utilidade para o estudante. Apenas doze espectro autista” nas redes sociais virtuais foi o que contri- Zélia Bittencourt, complementa que é pre-
responsáveis deixariam de levar a criança ou Autor: Robson Celestino Prychodco buiu, de acordo com Robson, para que a ciso dar crédito ao processo civilizatório. “É
adolescente à escola comum, caso não hou- Orientadora: Zélia Zilda Lourenço maior parcela de estudantes, cujos respon- uma questão cultural hoje você respeitar o
vesse determinação legal. de Camargo Bittencourt sáveis participaram da pesquisa, se concen- diferente, é um sinal de mudança da própria
Os números da pesquisa também in- Unidade: Faculdade de Ciências Mé- trasse na educação infantil. Além disso, a sociedade”. Segundo a docente, a deficiência
formam que, para a maioria dos responsá- dicas (FCM) rede favorece a construção de laços entre as traz a percepção da diferença tão importante
veis, o preconceito “nunca” ou “raramente” pessoas, reduzindo a sensação de isolamen- para gerar as mudanças no comportamento
acontece no espaço de aprendizagem. to. “Essas famílias vivem situações muito da sociedade.

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