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Copyright © 2012 by herdeiros de Caio Fernando Abreu

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A145v
Abreu, Caio Fernando 1948-1996
A vida gritando nos cantos : crônicas inéditas em livro (1986 – 1996) / Caio Fernando Abreu. – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2012.
ISBN 978-85-209-3571-2
1. Crônica brasileira. I. Título.
CDD: 869.98
CDU: 821.134.3(81)-8
Caio Fernando Abreu
A vida gritando
nos cantos
Crônicas inéditas em livro (1986-1996)

Apresentação Italo Moriconi


Pesquisa de originais Lara Souto Santana e Liana Farias
Sumário

Capa

Ficha catalográfica

Folha de Rosto

Nota editorial

Escrita vertiginosa

1986-1988
Pra machucar os corações
Meus amigos são um barato
Meu deus, são estrelas demais!
Ah, bossa-nova, new-bossa…
A vida é uma brasa, mora?
Cola-chata-da-sanguinha
Eu existo! Existo?
Amizade telefônica
Meu amigo Cláudia
Um remédio que dá alegria
Diário de bordo
Por falar em estrelas…
Uma semana-Fassbinder
Em nome dos dragões
Fragmentos de um domingo
Um sonho regado a gim
Lamúrias com chantili
Então vamos continuar dançando
Bye-bye, 10ª mostra
Sexo: mais ou menos?
O movimento do tempo
Palavras ao vento
Caetano, caetanagem
O girassol e a greve
Gente deve ser bom
Dezenas de obrigados
Com afeto e mau humor
São Paulo, 40 graus
Nem só de Aurelião…
Onde andará Lyris Castellani?
Beta, beta, Bethânia
Um prato de lentilhas
Anjos da barra pesada
Suspiros de domingo
No coração do Brasil
Diário de bordo II
Querem acabar comigo
Doris, Antonio e Vera
Nos trilhos do tempo
Pílulas calientes
Cenas na beira de um abismo
Me leva pro céu, Luni!
Verão de julho
A novela da novela
Para embalar John Cheever
Que depois de me ler
Caleidoscópio Rita
Adeus, agosto. Alô, setembro
Cenários em ruínas
Safra de abobrinhas
Felizes para sempre
Se eu quiser falar com Deus
Um cantinho, um violão, uma Narinha
Ninguém merece Jânio Quadros
Vamo comer Caetano?
Ao som de Suzanne Vega
Sem via de acesso
Vamos tirar o rodenir?
Despedida provisória
Nos amávamos tanto
Mas que tempo é esse?
Bancarrota blues
Anotações depois do Carnaval
Em todas as direções
Cine Brasil: sonho e romance
Venha ver os dragões
1993-1996
À nossa mais completa tradução
Reflexões à porta de um canil
Samba-enredo para um Carnaval de horror
Adivinhem quem vem para roubar
Um presente lindaço para São Paulo
Tese de mestrado à holandesa
Na cama por causa de Madonna
Levantando a cortina de papel vegetal
Sugestão para cair na real… e depois sair
1994: um ano para a literatura
Marina Lima enfrenta o Brasil-Barbie
Para Dulcineia, que nunca foi del Toboso
Pra cima com a câmera, moçada!
Viva o império das coroas magníficas!
De laços, seios, sábados e tormentas
Negro amor ao som de Bruce Springsteen
Confissões de um lusófobo enfurecido
Entre a Frau do mal e a “Jente” do bem
Afinal, quem era mesmo Lolita Torres?
Apresentando Álvaro Caldas, escritor
Lolita, Lisboa y otras cositas más
Na trilha dos mistérios de Clarice
Delírio eleitoral à beira do ridículo
Os onze sexos de um anjo terapeuta
Para Rita Lee, com amor e irritação
Ney Matogrosso, muito além do bustiê
Feliz em conhecê-la, Natália Lage
Reza forte para um egum maldespachado
Vamos voltar a falar em poesia?
Betty Crawford, Ph.D. em Najice Comparada
De volta ao avesso do avesso do avesso
Inútil pranto por Santa Teresa
Tentativa de sitiar uma esquisitice
Picadinho para aquecer o inverno
A vaia consagradora de Denise Stoklos
Para mãe Sonia de Oxum Apará
Entrevisão do trem que deve passar
A cara do Brasil em Terra estrangeira
Tirando o pó do velho 1995
Crônicas sem data
Cor-de-rosa, uma ova!
Muito além do bordô
Clarice Lispector ress... (sem título completo e sem data)
Por aquelas escadas subiu feito uma diva

Caio F.

Créditos
Nota editorial
Caio Fernando Abreu é considerado por muitos um dos autores de maior expressão
das décadas de 1970 a 1990. E não é para menos. Embora ele próprio tenha
exclamado, em carta ao amigo José Márcio Penido, “Meu Deus, como sou típico,
como sou estereótipo da minha geração”, o que escreveu não é absolutamente
datado. Seus contos, crônicas, romances, poemas e peças de teatro transitam por
temas altamente atuais, ao mesmo tempo que abordam questões universais,
atemporais. Não é à toa que a cada dia vêm ganhando novos fãs, das mais variadas
idades, seduzidos por suas ideias e ideais.
Pensando nesse público renovado, a Nova Fronteira apresenta agora este A vida
gritando nos cantos, uma coletânea de crônicas inéditas em livro, publicadas no
jornal O Estado de S. Paulo entre 1986 e 1996. Elas gravitam em torno de temas como
amor, morte, política, sexualidade e solidão, segundo a ótica e a dicção
inconfundíveis de Caio Fernando Abreu, ou apenas Caio F. — como ele assinava
esses seus textos.
As crônicas que compõem esta antologia foram garimpadas no periódico
paulista pelas pesquisadoras Liana Farias e Lara Souto Santana, a quem agradecemos
pela dedicação e pelo entusiasmo com que colaboraram para a realização deste
projeto editorial. A apresentação do volume ficou a cargo de outro estudioso do
escritor gaúcho, o professor Italo Moriconi, que prontamente aceitou nosso convite e
nos brindou com o belo texto de abertura.
Para dar unidade ao livro, só faltava então batizá-lo, dando-lhe um nome forte
e impactante como a literatura de Caio. E eis que em meio às crônicas lá estava,
gritando num canto de parágrafo — no texto intitulado “Querem acabar comigo” —,
esse período tão expressivo, tão revelador de uma angústia das mais contemporâneas
(a da falta de tempo), pronto para dar título a este volume que inaugura a reedição
das obras de Caio Fernando Abreu.
Escrita vertiginosa
Caio Fernando Abreu viveu a vida vertiginosa da linguagem do jornal, trabalhada
como carta ou comentário muito pessoal. Cronista da metrópole paulista, poeta da
frivolidade encenada, feito um dia praticara o João do Rio da metrópole carioca, Caio
identificou como público eterno o/a jovem adulto urbano brasileiro antenado. Suas
crônicas delimitam um território de sensibilidade que a cada geração reaparece em
nova roupagem, sempre buscando recolher os cacos de alguma experiência radical
vivida no passado. Tirando algumas mudanças nos repertórios de referência, no
interlocutor do Caio cronista de 25, de 20 anos atrás, encontramos as mesmas ética e
estética híbridas de hoje, frutos da assimilação visceral de um misto de cultura
literária e entretenimento pop.
Daí nasce a permanente comunicabilidade de sua literatura. Caio F., o
contemporâneo. Da relação extremamente pessoal que estabelece com o leitor, em
qualquer dos gêneros que pratica. Por mais que reclamasse do tempo precioso
roubado pelo trabalho do jornal, a eletricidade vertiginosa do tom pessoal, assim
como as metáforas implícitas e explícitas de seus contos e romances, sem dúvida
originavam-se da energia do cronista. O mesmo se pode dizer de sua
correspondência.
Sabemos porém que Caio tinha perfeita noção da diferença quase abissal entre a
escrita da crônica e a da literatura de ficção, campo no qual foi dos melhores de sua
geração. Pelas mãos dele, a crônica e a carta na verdade cediam completamente lugar
ao cuidadoso trabalho da metáfora. É por ocupar um plano mais detidamente
simbólico e poético que a ficção se distancia da crônica.
Sobra o quê para a crônica? Muito. A delícia, o humor, o misto de amargor,
sarcasmo, ternura, euforia no registro do cotidiano da sensibilidade. Não se trata aqui
daquele tipo de crônica feito da narração de pequenos fatos pitorescos ocorridos
pelas ruas. Mas sim do registro de como os nervos das pessoas estão sendo tocados
pelos estímulos da midiasfera. São crônicas em movimento, para quem está em
movimento. Falam mais de celebridades que de anônimos, dirigindo-se de maneira
franca a quem busca o lado faca só lâmina e tenha até mesmo se aventurado num
dark side de vez em quando.
A obra de Caio perdura por seu poder de atração, não por sustentação
institucional. Ela não pode ser estudada na escola, pois apela para o nosso lado
extraclasse: o que somos e fazemos quando estamos fora das molduras, mas ainda
sofrendo com elas e por causa delas. Imperdível.
Italo Moriconi
Pra machucar
os corações

Para quem tem mais de trinta, trinta e cinco anos, este disco pode ser uma tortura. Não, não é
que seja um mau disco. Eu explico. Ou tento
É que fatalmente eu/tu/ele/nós vamos lembrar. E não estou certo se essas
lembranças serão boas. Ou se seriam boas, lembradas hoje, você me entende? Porque
o tempo passado, filtrado pela memória e refletido no tempo presente — agora —,
parece sempre melhor. E terá mesmo sido?
Apenas, quem sabe, porque não havia fadiga lá. Aquela fadiga que se insinua,
persistente, entre o ruído das buzinas e das descargas abertas nos engarrafamentos
de trânsito, todo dia. Ou essa, de atravessar mais uma vez qualquer avenida às seis da
tarde para, de repente, olhar a multidão também fatigada e perguntar: mas que
cidade, afinal, é esta? E que vida? A quase amável, paciente fadiga de contemplar o
grande relógio das repartições e escritórios, quase imóvel na sua lentidão, a partir das
cinco e a caminho das seis da tarde. Para nos despejar, novamente, nas ruas
entupidas de fumaça e desejos bandidos nas esquinas, dentro de carros apertados
entre outros carros ou de ônibus apinhados — até o interior dos apartamentos, com
seus fantasmas emboscados, uns mortos, outros vivos. E então o acúmulo de contas
atrasadas, telefonemas ansiosos, telenovelas chatas, quem sabe algum plano, certas
fantasias. Outra cidade, outro país, outro planeta, outra vida que não esta — uma
memória de flores no cabelo e pés descalços, pouco antes de o ruído do despertador e
de o meu/teu/dele/nosso coração serem os únicos audíveis dentro da escuridão
onde afundamos na lama de nossos sonhos mortos.
Mas eu falava — tentava — de um disco. De John Lennon.
Ele foi gravado ao vivo, no Madison Square Garden, em 30 de agosto de 1972.
Há quase, portanto, catorze anos. Você tinha quantos — quinze, vinte, vinte e cinco?
E provavelmente também imaginava que, um dia, pudesse não haver mais guerras,
nem países, nem ódio entre as pessoas. Um mundo novo, não é isso? Depois houve
cinco tiros nas costas, e pouco antes, durante o depois, os muros das cidades pixados
com frases como “flower-power is dead”. E então uma invasão de cabelos muito
curtos, quase raspados, roupas negras, couro justo: a ridicularização de tudo em que
você acreditou durante tanto tempo — e largou faculdade, largou família, caiu em
bandos pelas estradas para sonhar com essa coisa que não aconteceu: um mundo
novo. O deboche das suas antigas — e perdidas — ilusões. Patrício Bisso só sobe no
palco para cantar qualquer coisa como “bolsa peruana? Sandália indiana? Hippie!
Mata”. Eu rio, você ri, ele ri — nós rimos todos juntos. E temos um sutil cuidado em
evitar, no vocabulário, no vestuário, qualquer detalhe capaz de nos identificar como
sobreviventes daquele tempo. Agora somos mais do que modernos: demi-darks. Não
temos fé, nem esperança, nem caridade. Bebemos vodca pura, cheiramos umas.
Nunca mais compramos uma caixinha de incenso. E a bad-trip pinta sem química.
Tudo isso dói tanto. Eu nunca mais tinha ouvido John Lennon. O tempo corre, a
gente vai descobrindo jeitos de se proteger. Elis? Nem pensar: põe aí a Paula Toller.
Marc (quem lembra?) Bolan? De jeito nenhum, melhor um Boy George, cara. Let’s
Roller. It’s only rock and roll. Só que eu nem sempre sei se gusto. Mas, por trás das
defesas, esse vinco no canto esquerdo da boca continua avançando, cada vez mais
fundo, cada vez mais longo. Você tenta reagir, sem dizer claramente não, pelo amor
de Deus, não me dá esse disco pra ouvir, eu não entendo nada de música, eu não
conheço John Lennon e nunca ouvi falar em Yoko Ono. Eu não tenho tempo. Não
posso parar, nem pensar, nem sentir. Nem lembrar. Eu preciso ganhar dinheiro.
Tenho pressa neste passo alucinado em direção ao buraco negro do futuro.
Mas você acaba aceitando. Agora somos profissionais. Coloca no toca-discos,
como quem não quer nada. Liga a TV, ao mesmo tempo. E, no meio dos sons que
vêm também da rua e dos outros apartamentos, de repente aquela voz tão antiga e
conhecida grita:
— Mother!
Aumente o volume. Ou desligue para sempre, você me entende?
O Estado de S. Paulo, 6/4/1986
Meus amigos
são um barato

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência


Se a Nara Leão, naquele velho disco, também achava — por que não poderia eu
também achá-lo? E se o Nirlando Beirão, tão chique, tem um vizinho yuppie — por
que não posso ter coisa semelhante em minha vida de retinas fatigadas? E confessá-lo
de público — atente na expressão —, assim: meus amigos são um barato. Um baratão.
Nos dois sentidos: o do insólito e o do inseto.
Meu amigo Pedro, por exemplo, é um barato no sentido mais tradicional da
expressão. Ou não? Fico um pouco confuso, e pensando bem talvez ele seja mesmo
uma curtição. O passatempo preferido dele é, nos fins de semana, fazer tremendas
vivências em Mauá. Fazer vivência vem a ser o quê? Ora, cara, tá por fora: qualquer
coisa pode ser uma vivência: um chá, um baseado, uma caminhada. Importante é que
seja em grupo. E que você vá fundo, entendeu? Com direito a nirvanas e iluminações.
Meu amigo Pedro é superfeliz. Detesta quem tem problemas: ele diz que é
baixo-astral. Ele está sempre numa ótima. Detalhe: mora num apartamento de andar
inteiro de frente para a praia, no Rio. Com os pais, claro — embora tenha trinta anos.
Mas tudo bem: para gozar de inteira liberdade, ele pode usar uma coberturazinha
absolutamente simples. Outro passatempo dele, embora adore pedir carona, é dirigir
o Monza zerinho de manhã. Daqueles que você aperta botões e acontecem coisas tipo
fontes luminosas, faróis de laser, show de mulatas etc. Mas ele, meu amigo Pedro, é
singelo e franciscano: anda sempre de camisetinha zurrapa e sandália havaiana. Tem
certeza de que, um dia, vamos todos viver em paz — na Era de Aquário. Confirmou
isso no último verão, passado na Bahia, com uma pá de gente de cabeça feita.
Já minha amiga Kate, um pouco mais moça, despreza meu amigo Pedro.
Comenta: “Ele acha que Woodstock foi ontem. E ainda nem desarrumou a mochila”.
Ele comenta sobre ela: “Quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou”. A
verdade é que não conheço ninguém mais moderno (ou pós, nos dois sentidos: o do
depois e o das carreiras) que minha amiga Kate. Coberta de negro, cabelo raspado de
um lado, vezenquando uma peruca rosa de náilon. Naturalmente é performática. E
faz cursos sen-sa-cio-nais: o último foi de vídeo-performance — um arraso. Minha
amiga Kate acha tudo meio antigo, mas concede ir ao Satã, ao Rose Bom-Bom, dá
umas bandas pelo Ritz e não pisa nem morta no Pirandello. Acha que tudo é uma
questão de pique-e-pá-e-crã, sabe como? Fico numas que só…
Meu amigo Betinho é radicalmente o oposto. Faz a linha subir-com-esforço-na-
vida. Quanto mais esforço, melhor. Tem visões futuristas com videocassetes, IBMs
elétricas, secretárias eletrônicas louras de olhos azuis, guarda-roupas completos para
as quatro estações comprados na Mr. Kitsch. Embora, no fundo, goste mesmo é de
Calvin Klein. Ou — em momentos de profunda verdade interior — de um sólido
Pierre Cardin. Naturalmente, ele veio de baixo. Muito baixo. Tem um problema
sério: quando bebe, tem paixão por ouvir Alcione. E por tudo isso, se você for a um
restaurante com meu amigo Betinho, pode estar certo de que a conta jamais será
dividida em partes iguais. Em alto e bom som, ele sempre dirá: “Mas eu não tomei
cafezinho!”
Minha amiga Joana — ex-atriz, ex-cantora, ex-traficante — há anos largou tudo,
pegou uns panos vermelhos, botou um mala no pescoço, com aquele 3X4 de
Rajneesh, e foi embora pra Floripa (leia-se Florianópolis). É conhecida por lá como
Bodhira, que em sânscrito quer dizer flor de não me lembro o quê. Será — haja —
lótus? Quando fui visitá-la, fizemos muita meditação caótica juntos. Supervivência,
se pintar, experimente. É um barato.
Enfim, esses são só alguns. Tem mais, talvez para uma Parte II. Mas, como todo
ficcionista, sempre procuro deixar muito claro que qualquer semelhança com pessoas
vivas ou mortas — bem, você sabe. E eu adoro meus amigos. Simplesmente adoro.
O Estado de S. Paulo, 8/4/1986
Meu deus, são
estrelas demais!

Imagine-se cercado de estrelas. Ali do lado, ao alcance da mão


É fácil enlouquecer durante a semana de cinema brasileiro, em Gramado. Sem falar
no choque cultural com a cidade europeizada, sem nordestinos nem mendigos; sem
falar na estranha neblina que desce de repente do pico das serras, a qualquer hora do
dia, para ir embora sem o menor aviso; sem falar no ar tão limpo e na luz tão clara
que chegam a doer nos pulmões e nos olhos acostumados ao cinza urbano. Mesmo
sem considerar isso tudo ajudando no processo de loucura — há as estrelas.
E estrelas, você sabe, não são de carne e osso. Pelo menos no meu coração de
guri criado no meio dos campos da fronteira com a Argentina, vendo estrelas só no
céu — o céu do Rio Grande é o mais belo do Brasil, sem bairrismos — e nas revistas.
As estrelas das revistas mais intocáveis até do que as do céu, que numa determinada
época do verão costumavam desabar aos montes em direção ao horizonte. Fazíamos
pedidos. As outras, as da terra, não víamos nunca. No máximo, Vicente Celestino e
— Jesus, como sou antigo! — Procópio Ferreira. Fiquei não só extasiado, mas, para
usar o adjetivo exato, estarrecido também.
Agora, imagine-se você cercado de estrelas durante uma semana inteira. Ali do
lado, ao alcance da mão. É pirante. Você sai do quarto e dá de cara com a moça do
quarto ao lado. E a moça do quarto ao lado é nada menos que Nicole Puzzi. Você
pega o elevador e uma lourinha simpática faz um comentário rápido sobre o tempo:
é Débora Bloch. Aí você vai tomar um café, e o gatão ao lado pede o açúcar: é Nuno
Leal Maia. No corredor, meio estonteado, você esbarra sem querer em Marieta
Severo. Enquanto pede mil desculpas, alguém esbarra em você: é Arnaldo Jabor.
Você resolve ir ao banheiro molhar os pulsos — e quem está fazendo xixi ali do lado,
como se fosse a coisa mais normal do mundo? Chico Buarque de Hollanda. Você
pensa, meu Deus, preciso sair urgente deste hotel, dar uma volta na rua, ver gente
comum, banal, mortal, normal.
Até conseguir chegar à rua, você já tropeçou em Cláudio Marzo, Bruna
Lombardi, Fernanda Torres, Riccelli, Roberto Bonfim, Miriam Rios e — socorro, assim
também é demais! — Tom Jobim. De cabeça baixa, para não ver mais ninguém,
porque chega! você corre para o bar mais fuleiro da esquina. Um bar onde estrelas
não entrariam. Mineral com gás, por piedade. O cara ao lado, um de bonezinho, acha
a ideia boa e pede uma também. Você olha para a cara ao lado. Embaixo do
bonezinho está Ney Latorraca. Você desiste da água, sai a mil pra rua. E choca-se com
uma senhora alta, elegantésima: Ilka Soares. Logo a tia Ilka, de quem eu colecionava
fotos recortadas de O Cruzeiro, Vida Doméstica e Cinelândia?
Não, eu não aguento. Não fui feito para essas alturas. Uma vez em que Caetano
me sorriu na praia, baixei os olhos e passei batido com o ar mais remoto que consegui
armar na cara. Tenho medo-pânico de estrelas. Do céu, da terra. Elas devem
permanecer no espaço, nas telas, nos palcos. Não andar se misturando por aí, nos
bares, nos balcões, nos elevadores, nos banheiros — feito fossem seres comuns.
Preciso — como o Molina, de O beijo da mulher-aranha — ter certeza de que as estrelas
são todas como a Leni Lamaison, de Sônia Braga, fumando com gestos largos,
cobertas por metros de tule negro, longe do insensato mundo.
Caso contrário, digo ao povo que piro. Não vou admitir de jeito nenhum que as
estrelas tenham um cotidiano assim pobrinho que nem o nosso. Como meu irmão
Felipe, quando tinha uns dez anos, que me perguntou:
— Caio, a Brigitte Bardot também faz cocô?
Até hoje, eu juro que não.
O Estado de S. Paulo, 15/4/1986
Ah, bossa-nova,
new-bossa…

Eliete chegou no meio do speed. No terceiro dia da paixão, virei tiete


Estou apaixonado.
Não se preocupem, não é por uma pessoa. Ou é, sim, por uma pessoa.
Mas só indiretamente. Estou apaixonado pelo trabalho dela, pela voz, pelo
clima, pela delicadeza e pela Arte (assim mesmo, com maiúscula) dela. Deixo de
mistério, entrego: Eliete Negreiros e seu último — segundo, ao que sei — LP, da
Copacabana.
E isso que ando difícil, ando torturado. Não tenho tempo, corro o dia todo, acho
tudo e todos barulhentos, exaustivos. Movido por esse horrível sentimento de
urgência paulistana que não me deixa olhar nada lentamente, sentir devagar.
Sufocado, ando apressado. Nos segundos roubados desse estrangulador ganhar-a-
vida, me alimento de joias raras: João Gilberto, sempre, um pouco de Sade, Billie,
Bassie, Nana Caymmi, Nara Leão, Schumann. Tudo o mais me parece atordoante.
Ando em busca do silêncio que a cidade não dá. Da paz que a cidade não dá. Da
suavidade zen que esta cidade não dá, nunca deu nem dará nunca. A ninguém.
Foi no meio do speed que chegou Eliete. Eu nunca tinha prestado atenção nela.
Mal nos conhecemos, mais através de um lindo amigo em comum — Milton
Hatoum, o Manaus. Mas tenho preconceitos. É feio, sei, mas tenho. Daí pensava: ai
meu Deus, mais esta Arriguete, com aquelas letras concretistoides geladas &
modernésimas… Nunca tive paciência para ouvir Eliete antes. Embora, nas poucas
vezes em que nos cruzamos, ficasse agradecido e contagiado pela paz dela.
Comecei pela versão de La vie en rose. Deu um clack! na cabeça, não sei explicar.
Fui arriscando outras faixas, uma por uma, medo de estar enganado. Não estava.
Primeiro veio uma letra lindíssima de Zé Miguel Wisnik, com música de Carlos
Rennó: Domingo longo (ah, conheço tantos); veio um samba de Elton Medeiros e
Eduardo Gudin, falando “às vezes se guarda o melhor caminho/ se oculta o desejo
pra não sofrer”.
Uns blues doloridos de Itamar Assumpção. O sax de Roberto Sion. No meio da
pressa, como eu ia dizendo, a voz mansa, afinadíssima, de Eliete dizendo sossega,
sossega, meu amigo, tudo é coisa de gente, tem um bonito in aparente por trás, tenta
ver.
No terceiro dia da paixão, virei tiete e liguei pra ela. Queria dizer obrigado,
menina, quando você canta, a vida para de girar tão rápido e até parece bonita. Ela
foi paciente com minha invasão. Desliguei agradecido, espantado com minha própria
ousadia. Agradecer é difícil. E a gente precisa aprender, a gente precisa. Aprender a
não ser só.
Eliete, new-bossa. Para que vocês compreendam: o primeiro LP que comprei na
vida foi de Sylvinha Telles. Tinha doze anos. Aos trinta e sete, só João Gilberto me
sereniza. Ou Astrud. Há um mês, só tiro para lavar uma camiseta escrita “Bossa-
Nova”, que o Pardal, lá da lojinha do mesmo nome, me deu. “Ah, bossa-nova, new-
bossa, olha eu aqui sem viver” — chora minha rainha Rita Lee. A vida então se
adoça. Gosto de mel, de flor, de azul. Não de avenida Paulista nem de Madame Satã.
Preciso manter a ilusão de que tudo pode ser doce. Preciso acreditar que a vida pode
ser como a voz de Eliete. E que em alguma esquina, um dia — por que não? —
encontrarei um amor bonito esperando por mim.
Quando saio, agora, fico impaciente. Quero voltar pra casa, colocar logo o disco
para que o mundo todo se reorganize em doçura. Gostar de ouvir Eliete é cuidar de
um certo jeito de olhar o mundo. Por trás do susto, perdão de olhos molhados, pegar
na mão devagarinho e repetir de verdade, do fundo, sem o menor pudor, sem ânsia
alguma:
— Gosto de você. Você existir me ajuda a viver.
Depois, acreditar que tudo vai dar certo. E deixar — como ela canta — que o
amor dê o que falar.
O Estado de S. Paulo, 29/4/1986
A vida é uma brasa, mora?

Uma esquizocrônica para Samuel Beckett


Na forma do caos
Nuvens radioativas, pacotes econômicos: nunca fomos tão felizes! Terroristas líbios,
uma colagem de Vicente Kutka, qualquer ponto do sensível, ah: resgates, punks no
metrô, copos de vinho tinto, um blues de Bessie Smith, sauna japa na Liberdade,
trocar lençóis na sexta, Anjelica Huston de chapéu negro, aquele olhar chiquérrimo
sobre o mundo, táxis, táxis, alguém no JB referindo-se aos “esfuziantes-anos-80” (?),
cortes na seleção, leves paranoias, mas eu sei onde estou metido, gangues juvenis, a
frase de Beckett dando voltas na cabeça: nenhuma dor, quase nenhuma dor — isso é que é
maravilhoso, velhinhos tocando Olhos negros no Brahma, cartão-postal de Paris na
cabeceira, tons dourados, folhas mortas, como te amei e não disse, Giovanni
guilhotinado por amor, imperceptivelmente chegar à próxima face depois desta,
talvez desprezível, graves paranoias, o relógio da Paulista marcando trágico, lento &
inexorável o começo do fim de domingo, sinto falta de você, hi-fi com Fanta: astral
Bukowski, geladas fotos sensuais de Pedro Fedrizzi, alguém me chamando de “tiete-
bem-pensante” (?), mas não pensem que não sei onde estou metido, pessoas
cirandando em torno de um poste, madrugada de sábado no Bexiga,
engarrafamentos de trânsito, pressa dentro dos táxis, dragão tatuado no braço, muito
busto, muita coxa, Hélio que vai para a Europa, yuppies na Oscar Freire, Bruna
Lombardi, Diadorim, homem-mulher, feijoada no Supremo, nenhuma importância,
só porque sei onde estou metido, outra vítima de aids, parem de me testar: sou legal,
cara, pizzarias entupidas de criancinhas, táxis, táxis, atriz argentina joga-se pela
janela, e se eu dissesse de repente e sem pudor eu-te-amo? Patricia em prantos ao
telefone, de pura transgressão beber litros de água mineral em pleno Madame Satã,
quem me seduz? Olhar com medo, olhar com perdão, olhar com interesse, olhar com
náusea e paixão, e de jeito nenhum compreender nada de onde se está
desgraçadamente metido, telefones que não param de tocar, Rê Bordosa minha
amada à beira do suicídio, não esquecer de comprar gilete G-II, que falta faz Ana C.,
meu Deus do céu, palavras lindas na letra M do Aurelião, repetir fascinado
metâmero, metasterno, metereoscópio, paranoias desenfreadas, tudo o que você
quiser, e táxis, táxis, monóxido de carbono, amigos solicitando estranhíssimas
cumplicidades, copos e copos de vinho tinto, ninguém dizendo meu-amor, suspeitas,
censura interna outra vez, palavrão não pode, esse filme que já vi e por isso mesmo
sei onde estou metido, uma carta que não chega nunca, nossa, como estou me
lixando, vela branca pro anjo da guarda, bate outra, sal de frutas, pó de guaraná,
candidatura de Gabeira, sen-si-bi-li-da-de-ex-ces-si-va não, meu caro: honestidade,
epidemias, vírus, pestes, dengues, devia vender mais caro minh’alminha inestimável,
Toninho ameaçado pelos skinheads, nenhuma solidariedade, azia na certa amanhã
de manhã, saudade, saudade inútil o tempo todo de qualquer coisa indefinida, de
alguém desconhecido, investigar preço de secretária eletrônica, ter certeza de que em
algum ponto do caminho se perdeu e ponto, e pronto, acabou, e para sempre,
querido e não tocado jamais, mobilizado pela raiva, por favor me leva daqui para que
eu me esqueça de onde sei que estou metido, corrompido até o último hímen, já
temos um passado, meu amor, me convida pra jantar na tua casa, bota Billie Holiday
baixinho, depois me dá um beijo na boca, bem molhado, irrecusável, um sonho com
Hilda Hilst, o texto, o texto, traí meu destino, companheira, empurrado pela
desordem, sobrevivendo ao naufrágio, agarrado mísero e adjetivoso a meu pedaço de
madeira flutuante, e agora chega, chega, let it be, let it be, baby, que la vie, em rose
ou em black no duro — é sempre uma brasa, mora: o caos é a forma.
Quanto a vocês, salve-se quem puder. Porque quanto a mim, querida, querido,
queridos — eu? Ah: eu juro por todos os santos que sei muitíssimo bem onde estou
metido.
O Estado de S. Paulo, 6/5/1986
Cola-chata-da-sanguinha

Na cidade mais punk do país, Porto Alegre, cola-chata-da-sanguinha é alguém pra lá de


vulgar
Toda vez que vou a Porto Alegre, confirmo um negócio um tanto óbvio, mas sempre
curioso: a loucura e a criatividade — de alguma forma não muito misteriosa — estão
sempre ligadas à decadência. Digo isso porque, como todo mundo sabe, o Rio Grande
do Sul atualmente é o estado mais decadente do país. Decadente economicamente,
ecologicamente (o mais devastado, com desertos enormes no interior — para ira
minha e do Dagomir Marquezi), politicamente, moralmente, etcteramente. Não falo
por maldade, não. Além de ser verdade, tão gaúcho quanto eu só a estátua do
Laçador ou chimarrão. O que em absoluto impede nem sequer nubla minha
virginiana visão crítica, certo?
Por estar tão decadente, Porto Alegre — ou Portinho, ou Gay Port, para os mais
maldosos — é também a cidade mais punk do país. Baixo Bexiga, Baixo Gávea,
Leblon ou outra baixaria qualquer perdem para o Baixo Bonfim — bairro judeu (?)
por tradição (corrompida, lógico), onde saltitam (ou melhor seria dizer rastejam?)
darks, punks, néos, pós e até mesmo prés — ou uma outra raça que só existe lá: seita.
“Fulano é seita” — a gente diz, referindo-se a alguém que anda coberto de negro,
cheio de cruzes e correntes penduradas. No meio disso, acontecem coisas ótimas:
rock como o dos Replicantes, teatro como o do grupo Balaio de Gatos ou bonecos do
Cem Modos, um movimento de cinema nada careta e em expansão. Com o sufoco e a
falta de condições — que mobilizam e estimulam a criatividade? Interrogação, cartas
para a Redação.
Entre esse pessoal, rolam certas expressões de gíria que só existem lá. (Pausa: a
partir daqui, passo a dedicar estas maltraçadas a Mônica Figueiredo, meu demônio
preferido e, para quem não sabe, a maior especialista do país nessa — digamos —
linguagem-off-Aurelião). E vamos lá: Mônica, você já ouviu falar em bicão prateado?
Pois é coisa muito frequente nesta Sampa de starlets onde vivemos. Assim: você
encontra em público uma pessoa conhecida. E essa pessoa conhecida faz um bico de
pouco-caso, vira a cara sem cumprimentar e — plim! —, se bater uma luz, o bico
brilha de indiferença & superioridade. Ela acabou de fazer bicão prateado pra você.
No próximo encontro, você pode se vingar armando um reluzentésimo bicão dourado.
E zero a zero.
Tem mais: quando uma coisa ou gente não tem graça mesmo, não tem sabor de
jeito nenhum — o que é que ela é? Anote: pera. Pera é comportadinho, limpinho,
inofensivo tipo alface ou chuchu. Pra mim, o máximo da perice é o E.T., do Spielberg.
Ou a Zizi Possi. Já alguém totalmente artificial, produzido, é tang — nome daquele
refresco sintético que a Dina Sfat e as filhinhas dela tanto adoravam antes de darem
um tempo em Portugal. Ainda nessa linha: sabe uma pessoa assim que mal você olha
e já viu tudo sobre ela? É uma pessoa carta — e o “aberta” está implícito: só olhar, e
você leu tudo. Fafá de Belém, por exemplo, cartésima. Com ou sem pombas.
Mas, pro meu gosto, o melhor é esta: quando alguém é vulgar, brega, várzea
mesmo — é cola chata. Se for mais, cola-chata-da-sanguinha (aquela aguazinha
barrenta). E, se conseguir ser absoluta e totalmente vulbrega (atenção, revisão:
neologismo), duma bagaceirice irremediável, aí é cola-chata-da-sanguinha — você faz
uma pausa dramática e acrescenta: depois-dos-trilhos. Gretchen, por exemplo, pode ser
mais cola-chata-da-sanguinha-depois-dos-trilhos? Five hundred miles depois dos
trilhos… Tem exemplos menos óbvios, me abstenho por medo de processo. Não vai
sobrar espaço pra explicar o que é lasanha nem figueira, mas continuo em contato com
meus informantes ao Sul, e de repente pinta até uma Part II. Mônica-demo, saudade
& kisses.
O Estado de S. Paulo, 13/5/1986
Eu existo! Existo?

Foi uma luta. Um inferno.


Uma barra. Afe!
Mas consegui: sou cidadão.
Não acredito. Repitam comigo, em coro, todo mundo: a-le-lu-i-a! Juntos, outra vez,
bem alto, com fé & emoção! A-LE-LU-I-A! Pois eis que meus documentos finalmente
ficaram prontos (não completamente, claro, mas tudo encaminhadinho, procot…
desculpem: protocolado e tal). Não serei mais um anônimo transeunte pelas ruas de
Sampa. Oh Deus, um RG! Um títuIo de eleitor! Um certificado de reservista! Não
canso de repetir: Aleluia, aleluia aos todo-poderosos orixás da burocracia brasileira!
O longo inverno da ilegalidade começou numa noite acho que de 1980. Fui
roubado, levaram os documentos. Naquele tempo, eu era jovem, cheio de vigor &
energia: mandei imediatamente fazer segundas vias de tudo. Deu relativamente
certo. Menos de um ano depois, fui roubado outra vez. Levaram — lógico — os
documentos. A juventude tinha gasto tanto da outra vez que falei assim: olha, quer
saber? danem-se, não faço mais e pronto. E não fiz. Tinha um velhíssimo passaporte
que quebrou alguns galhos e — naturalmente — serviu de chacota em vários bancos.
Pois imagine que, na foto, meu cabelo passava dos ombros.
Como fiquei sem trabalho fixo desde 1982, tudo bem. Qualquer free da vida
levava meu passaportezinho e rolava. Até que, certo dia deste ano, fui roubado.
Levaram os documentos — quero dizer, meu lindo passaporte. Não restava
alternativa. Noites de insônia, dias de desespero, unhas roídas, suor frio, tremor nas
mãos. Faço parte de uma geração que tem palpitações só de ouvir falar em delegacia.
Pois heroicamente fui a uma delegacia ver o RG. Certeza absoluta, entro lá e os caras
não me deixam sair mais, porque rabo preso — vocês sabem —, de uma ou de outra
forma, a gente sempre tem. E polícia adora descobrir.
Filas imensas, manhãs e manhãs. Ouvi coisas como — de uma funcionária para
uma velhinha: “Tem que ter certidão de nascimento, querida. Como é que a senhora
vai provar que nasceu?” Para uma moça: “Ah, minha filha. Esse selo é dificílimo. E,
sem ele, nada feito. Ouvi dizer que, para conseguir, só em Brasília”. Detalhe:
estávamos em Pinheiros.
Mas, passo a passo, uma vela pro santo aqui, uma novena ali (minha mãe
mandou uma fortíssima, de Nossa Senhora de Lourdes)… Certificado de reservista
tinha mandado fazer quando daquele primeiro roubo, só que nunca fui pegar. Tinha
que ir lá às sete (eu disse SETE) da manhã e cantar o Hino Nacional. E isso que
naquela época a Fafá ainda nem tinha gravado o Hino. Lógico que não fui. Voltei
agora: o certificado — chique — tinha sido incinerado. Mas já tenho protoc…, digo:
pro-to-co-lo, para pegar dia 15 de junho. Imagino que sem Hino. Do título de eleitor
fui poupado, rolou essa história dos títulos novos. Meu santo é forte: a prova de que
eu tinha me apresentado na última eleição (a que deu Jânio) dançou junto com o
passaporte, naquele último roubo.
E carteira de trabalho, que a gente fica sentado numa fila que anda, em cadeiras
umas em frente às outras, com uma senhora comandando? Descolei uma provisória:
para a definitiva, só levando o certificado que, como já disse, só fica pronto etc.
Agora, de tudo mesmo, o que ficou de mais agradável foi a lembrança das moças e
rapazes que tratam dessas coisas: tão prestimosos! E a maneira rápida como tudo
acontece… É inacreditável. Talvez no Equador seja um pouco mais complicado. Eu
lembro tanto de ter ouvido falar numa coisa chamada des-bu-ro-cra-ti-za-ção.
Faz pouco, o que queria mesmo dizer?
Mas, enfim, como Deus é justo — se dançar agora, posso pelo menos provar que
existo. Posso? Bom, isso já é outra história.
O Estado de S. Paulo, 20/5/1986
Amizade telefônica

Palavras, sentido e lógica ganham novos sentidos quando se fala sem se ver
Amigos telefônicos são preciosos. E, por isso mesmo, raros. Eu tenho três ou quatro, e
bastam. Amigo telefônico é assim: você só fala com ele por telefone. Ou fala
pessoalmente também, mas é completamente diferente. Quando você encontra
muito seguido um amigo telefônico, a amizade se divide em duas amizades
paralelas: a que acontece cara a cara e a que acontece telefonicamente. Esta, sempre
mais funda. Há coisas que só se diz por telefone: telefone elimina rosto, gesto,
movimento: a voz fica absoluta. O que a voz diz, ao telefone, é tudo, porque por trás
dela não acontece nada como um franzir de sobrancelhas, um riso no canto da boca.
E, se acontece, você não vê. O que você não vê praticamente não acontece. Ou
acontece tão vagamente que é como se não.
A gente recorre a amigo telefônico quando alguma coisa não cabe por dentro.
Não apenas dor — assim, tipo CVV —, porque, se fosse isso, virava neurose braba,
feia. Depois de um certo ponto de aluguel, toda vez que você ligasse, então, seu
amigo telefônico ia mandar dizer que não estava. Com toda a razão. A gente recorre
a ele também quando alguma coisa boa não cabe dentro sozinha: tem que ser dita.
Você liga pra dizer que está feliz. Teve uma iluminação, pressentimento, uma
fantasia, desejo. As pautas desenvolvidas na amizade telefônica podem ser muito
abstratas, entende? E essa é outra das grandes diferenças entre a amizade telefônica e
a outra: poder falar de coisas que quase aconteceram. Ou que deviam acontecer. Um
pouco como em carta. Antigamente, a carta era o equivalente do telefone. Quando
não tinha telefone — há muitos, muitos anos —, eu tive vários amigos-por-carta.
Porque na carta, também, você diz coisas que, cara a cara, nunca seriam dizíveis.
Amigo telefônico é noturno. A vontade de falar com ele costuma acontecer
quando não há mais nada interessante na TV, quando todos os livros e todos os discos
do mundo não matariam a sede de ouvir uma voz humana dizendo coisas que
respondam ou complementem ou rebatam outras coisas que a sua voz vai dizendo. E
vai dizendo sem preocupação de ordem, de lógica, de senso. Com amigo telefônico,
toda a obrigação de parecer lúcido, consciente & equilibrado é inteiramente
desnecessária. Se uma terceira pessoa ouvisse um papo entre dois velhos amigos
telefônicos, provavelmente acharia completamente louco. Na amizade telefônica, a
lógica é tão sutil que parece não existir. Mas existe.
Há também os silêncios. Silêncio de amizade cara a cara quase sempre soa (?)
constrangedor. As pessoas desviam os olhos, acendem cigarros, fazem comentários
tipo nada a ver, só pra quebrar o silêncio. Em amizade telefônica, nunca: um fica
ouvindo a respiração do outro durante muito tempo. E não precisa dizer nada. A
respiração do outro fala: Olha, estou aqui, está tudo bem, seja o que for, vai dar certo,
estou atento ao seu coração, você está atento ao meu, e, por estarmos atentos ao
coração um do outro, só por isso — ele fica mais leve, o coração.
Agora são sete horas da manhã, estou pensando em meus amigos telefônicos.
Mas não telefono. Amigo telefônico costuma dormir até tarde, principalmente às
segundas-feiras — porque as noites de domingo — ah, essas, são particularmente
telefônicas. E eles são solitários, esses amigos meio estranhos: ouvem vozes. Por isso
mesmo, ponho um disco de João Gilberto bem baixinho e dou um beijo a distância na
testa de cada um deles. Envio pelo espaço a voz de João para embalá-los nesse sono
da manhã feriada e chuvosa. Que nem canção de ninar — me liga, tá?
O Estado de S. Paulo, 27/5/1986
Meu amigo Cláudia

Maravilha, prodígio, espanto: no palco e na vida, meu amigo Cláudia é bem assim
Meu amigo Cláudia é uma das pessoas mais dignas que conheço. E aqui preciso me
deter um pouco para explicar o que significa, para mim, “digno” ou “dignidade”.
Nem é tão complicado: dignidade acontece quando se é inteiro. Mas que quer dizer
ser “inteiro”? Talvez quando se faz exatamente o que se quer fazer, do jeito que se
quer fazer e da melhor maneira possível. A opinião alheia, então, torna-se detalhe
desimportante. O que pode resultar — e geralmente resulta mesmo — numa enorme
solidão. Dignidade é quando a solidão de ter escolhido ser, tão exatamente quanto
possível, aquilo que se é dói muito menos do que ter escolhido a falsa solidão de ser o
que não se é, apenas para não sofrer a rejeição tristíssima dos outros.
Bem, assim é meu amigo Cláudia. Eu não o/a conhecia pessoalmente. Ou
melhor: conhecia do palco, onde Cláudia enlouquece cantando, falando e mostrando-
se de uma maneira tão atrevidamente escancarada que fica linda, lindo. Só
conversamos face a face, pela primeira vez, há três semanas. Parece não ter nada a
ver, mas tem tudo: eu adoro Marina, Marina Lima. Há três anos, no Rio, conheci
Sérgio Luz, que atualmente dirige Marina. Éramos amigos de (ah! os bordados da
vida…!) Ana Cristina César, e foi através dela que cruzamos caminhos. Mas isso é
outra história. Ou nem tanto. Há três semanas, Sérgio me convidou para jantar com
ele, Marina, Antônio Cícero e outras pessoas. Lógico que fui. E lá estava também
Cláudia, no meio de uma mesa enorme. Não havia lugar para todo mundo. Sentamos
numa mesa próxima. Pouco depois, Cláudia veio sentar-se conosco, porque havia um
senhor na outra mesa — um senhor poderoso — que não parava de agredir Cláudia.
Começamos a conversar. Acabamos no Madame Satã, onde raramente ou nunca,
felizmente, existem senhores como aquele, agredindo pessoas como Cláudia. Por não
existirem interferências assim no mundo particular do Satã foi que Cláudia e eu,
naquela noite, nos tornamos amigos.
Para aquele senhor e para a maioria de todos os outros senhores do mundo, a
presença de Cláudia deve representar a suprema transgressão, a mais perigosa das
ameaças. Tanto que andam matando pessoas como Cláudia, na noite negra e
luminosa de Sampa. É que meu amigo Cláudia incorporou, no cotidiano, a mais
desafiadora das ambiguidades: ela (ou ele?) movimentava-se o tempo todo naquela
fronteira sutilíssima entre o “macho” e a “fêmea”. Isso numa sociedade em que
principalmente o genital é que determina o papel que você vai assumir. Porque, se
você é homem, você tem de fazer isso e isso e isso — não aquilo e aquilo e aquilo —,
não isso.
Movendo-se entre isso e aquilo, meu amigo Cláudia conquista o direito interno-
subjetivo de fazer isso e também aquilo. Tomamos vodca juntos, na madrugada,
falando da solidão, essa grande amiga em comum de todos nós. Trocamos telefones,
nos encontramos outra vez. Gosto tanto de seus olhos muito abertos, atentos a tudo,
contemplando diretamente o mais de dentro de cada um.
Agora virei seu fã. Hoje, às 23 horas, Cláudia apresenta-se no Teatro do Bexiga.
Se você quiser, também pode conhecer meu amigo Cláudia. A propósito, ela (ou ele
— que importa, afinal, um “e” ou “o” ou “a” no artigo ou pronome que precede o
nome de uma pessoa?) autobatizou-se com o sobrenome Wonder. Que em inglês,
você sabe, quer dizer “milagre”, ou “prodígio”, ou ainda “maravilha”, “surpresa”,
“espanto”. Todas essas sensações são justamente as que meu amigo Cláudia Wonder
passa, no palco e na vida. E por tudo isso me sinto muito orgulhoso!
O Estado de S. Paulo, 17/6/1986
Um remédio
que dá alegria

Nos discos de João Gilberto e Caetano Veloso, uma gota de mel derramada sobre nós
Semana passada, falei assim: “Deus é bom demais! Além de João Gilberto, manda
Caetano junto!” Até ponto de exclamação usei — coisa que, por sobriedade
congênita, não costumo. Esses dias todos, fiquei meio babaca. Fiquei, não: geralmente
sou mesmo meio babaca. Porque, mais que em “Deus” (e as aspas aqui são para que
não me imaginem, injustamente, indo à missa ou rezando terços), acredito é na gota
de mel que essa coisa-deus-destino-orixá vezenquando derrama sobre nossa cabeça.
Bem verdade que acontece de ele derramar a gota e enquanto você, todo melado,
espera por mais — ele retira subitamente o pote. Ou, sacanamente, substitui o pote
de mel pelo de sal. Volta, então, a secura nossa de cada dia. Como volta o mel, pra
quem tiver paciência de esperar sem desfraldar a bandeira escandalosa da espera.
Que afasta o mel.
Sou também tiete, e não me envergonho. Como trabalho-pra-ganhar-a-vida,
pago todas as minhas contas e — vejam quanta delicadeza — ainda por cima tenho
um analista (aliás, ótimo) para não alugar amigos com tormentos —, por tudo isso,
me sinto com todo o direito de deitar e rolar no ser-tiete. Eu me deixo encher de
felicidade e admiração, quando gosto — música, livro, filme, principalmente pessoa.
Chafurdo, chapinho, me encharco naquela gota de mel. O que me deixa mais forte,
ou no mínimo menos áspero, quando vem o sal. E sempre vem. Faz parte: ciclo. Tão
certo quanto o hexagrama A suavidade precede A alegria.
Semana que passou, minha vida navegou em bossa-nova. Primeiro, nas orações
de João Gilberto, alongando as sílabas das palavras até transformá-las em mantras.
João é zen, além da emoção: todo misturado nela, consegue pairar acima. Na dor,
João contempla a dor. Sem dor, e eu também não compreendo isso. Só agradeço,
porque João ajuda a sentir minhas mágoas imensas ou miudinhas assim, sem farpas.
Com João, o Havaí foi aqui, a dois passos da Paulista. Então veio Caetano.
Certa vez, dediquei um livro — Morangos mofados — a Caetano. Só porque ele
existe, e por todas as dicas de comportamento, de ideologia e sei lá mais o quê, por
fazer o que faz, ele me deu sem saber nesses quase vinte anos. Não me lembro de,
logo na primeira audição, ter gostado tanto de um disco dele como deste Totalmente
demais. Mais perto de João (e portanto da perfeição), Caetano reduziu tudo ao
essencial: voz e violão. Feito um ator dispensando cenário, figurino, luz, música. O
primeiro arrepio chegou com “Quereres” — uma letra que, por muitas razões, me
lembra Eu sei que vou te amar, de Arnaldo Jabor. No filme de Jabor, e na letra de
Caetano, essa antropologia do amor feito do mel e do sal, que vêm juntos, e, se às
vezes pendem totalmente para o doce ou depois desequilibram totalmente para o
amargo, na maior parte do tempo caminham misturados, intrincadamente fundidos
num terceiro elemento/sentimento. Que rasga quando acaricia, mata quando dá
vida, sufoca ao respirar mais fundo, procurando ar. Mas faz a vida brilhar,
incendiada.
Vem então o milagre de fundir tango e bossa-nova, em “Cuesta abajo”, encosta
a portuguesa louca de “Estranha forma de vida” e chega a garantia luminosa de que
amanhã, certamente, será um lindo dia. Na voz de Caetano, habitam Dalva de
Oliveira, Orlando Silva, João Gilberto, Nat King Cole, Carmen Miranda, Tom Jobim,
Noel Rosa — e, quando surgem os versos endemoninhados de Cazuza, com os discos
de João e Caetano nas mãos, compreendo perfeitamente o que significa a expressão
“algum remédio que dê alegria”. Enquanto o som deles enche o apartamento, esse
remédio escorre no meu sangue. Me cura de todos os males.
Inclusive a gripe, a derrota do Brasil. E outros, mais secretos. Indizíveis.
O Estado de S. Paulo, 24/6/1986
Diário de bordo

Nos limites de skinhead, na segunda, a Sade Adu no final de domingo. Marte tão perto
Segunda-feira:
Distraído na cadeira do barbeiro, corto o cabelo — ou o que resta dele — até quase os
limites do skinhead. Mais de uma hora atrás de um táxi para mergulhar na violência
de O Ano do Dragão, sub-blade-runner. Do outro lado do balcão do Longchamp, quase
meia-noite — quem é você? Outro dia, talvez, por acaso, quem sabe. Furar o astral
pesado da Augusta. Apoiar um segundo a cabeça no poste do cruzamento com a
Paulista. Nenhuma carta por baixo da porta.
Terça-feira:
Insana insônia cheia de poços frios de sono. Longa cama, telefone que toca e toca ao
longe. Eu, mudo. Cidade. SBAT. Um monólogo? Bem, de certa forma. São João,
Ipiranga. Certo, nunca foi Viena. Mas também nunca a vi tão feia, a cidade. Será
Mahler, em Prénom Carmen? Baixa outro capítulo do romance. Passo mal, quase
vomito: Pedro se foi para sempre. A sala do apartamento é o interior de um aquário.
Estrelinha vermelha no diário astrológico, ao lado da quadratura Sol Ascendente.
Quarta-feira:
Ronaldo, manhã bem cedo. Tanta luz. Maçãs na praça da curva perto da Angélica.
Sala de espera, outro capítulo de A separação dos amantes. Decisão súbita: volto a
dançar. Ronaldo localiza o sal, no centro da ilha de Itamaracá. As palmas das mãos
ardem. O menino perdido continua doendo, onde? Três dry-martinis com meu
amigo dark (ele, só dois).
Quinta-feira:
Direto na veia. Nana Caymmi e Ricardo Reis: “Rega tuas plantas/ama as tuas rosas”.
Rego, amo, tento — sim. Itália Fausta com Marco Flávio. Não rio tanto quanto
pretendia. Ou gostaria. Precisava? O motoqueiro português não me vê, nem eu me
mostro. Comida japa depois, yuppies rancorosos. Marte bola vermelha de fogo em
Capricórnio, muito próximo. E então o astrólogo gaúcho inesperado e trânsitos de
Saturno madrugada adentro. Quem sabe a direção da Lua pela casa 8, em outubro?
Sexta-feira:
Fechamento exaustivo. Falta doida de Rosa e Luísa. Riso de cristal de Luísa. De
repente, não tem mais. Performances: sustos. Poluição horrível na cidade atrás dos
vidros. Casamento do príncipe Andrew. Despenco a mil para rever Possessão,
Antonio Augusto na fila do CineSesc. Isabelle Adjani se contorce no metrô até quase
amanhecer, mais de meia garrafa de conhaque embalando Pessoa. Tontura, carência,
não faz bem.
Sábado
A cabeça estala. Encaro o tanque, pia, chão sujo ao som de Eliete Negreiros. Mãos
ásperas de detergente. À noite, Brahma e Desde L’alma. Saudade bruta do meu pai.
Mar de neon, veneno das ruas. Me afogo pela terceira vez em Era uma vez na América,
nunca vi tão lindo. Choro no sorriso apoiado de Robert De Niro, ao final. Sim, David
Noodless: a vida é sonho. Passar reto pelo Ritz, não ir ao Satã. Escolho goiabas com
chantili no Frevinho. Quatro da manhã, Sônia Braga nua. E dê-lhe Tom Waits pra dor
ficar ainda mais rouca.
Domingo
Telefonema de Paris às oito da manhã. Bato o fone. Sono aos trancos. Derretidas, as
velas formam dois quartos minguantes. Ogum, Oxum, axé! Tel me deixa poemas de
tardezinha. O vento corre por dentro do apartamento, janelas abertas. Pizza com
manjericão. No meio da rua, Lua quase cheia. Aflição de não ser outro lugar, outro
tempo. Sade Adu na reta final. Picasso espia apoiado no vaso sem flores. Energia zero
indo embora pelas teclas da máquina, livros para Around. Nenhum remédio que dê
alegria: a seco, amanhã continuo. A ausência também. Ou não? Pode ser.
O Estado de S. Paulo, 22/7/1986
Por falar em estrelas…

Se astrologia fosse idiotice, será que Fernando Pessoa teria sido astrólogo? E Anaïs Nin?
Astrologia é assunto controvertido. Tão controvertido e mal compreendido que já
posso imaginar os risinhos depois de lida esta palavra — astrologia — que dá margem
a equívocos do tipo ah, essa pseudociência, superstição, escapismo, sub-religião. Não
vou me esforçar para provar que não é nada disso. Mas, com mais ou menos quinze
anos de estudo, praticamente diário, do assunto — e sem me considerar um astrólogo
—, de repente acho que talvez tenha alguma base para reafirmar: não é nada disso.
O que seria, então? Bom, se a astrologia fosse pura idiotice, você acha que
Fernando Pessoa teria sido astrólogo? Aliás, a chave — ou uma das — para a
compreensão de seus heterônimos está justamente nos mapas astrais que o danado
levantou dos próprios. Para quem entende do negócio, faz muito sentido saber que
Ricardo Reis tinha Mercúrio, Urano, Lua e Júpiter na casa 8 — a casa das
transformações, da transcendência. Ainda nessa linha: Anaïs Nin, escritora brilhante,
também era astróloga (e psicóloga). E Milan Kundera, veja só, é outro.
O problema é que as pessoas confundem astrologia com horóscopo de jornal. E
não há nada mais pessoal que um mapa astral, o retrato do céu no momento em que
nascemos. O horóscopo de jornal considera apenas a posição em que estava o Sol, ou
o ascendente (a constelação do Zodíaco que subia no horizonte no momento do
nascimento), e isso é vago demais. Em certos casos — como no horóscopo do
Caderno 2, o de Hollander, na Folha, ou o de Pedro Tornaghi, no Around — as
informações são mais sérias. E, mesmo assim, vagas. Para fazer uma previsão
astrológica, é preciso considerar trânsitos, progressões, revoluções, direções. Mas,
bom lembrar, astrologia serve muito menos como método de predição do que de
autoconhecimento, com toda a sua carga infinita de combinações de significados
míticos e psicológicos. Ou, no mínimo, como jogo poético. Quem sabe por isso
mesmo é que escritores e poetas costumam ser tão chegados aos astros?
O material escrito sobre o assunto, no Brasil, geralmente é miserável. Se você
quiser algo realmente bom, vai ter que batalhar as escassas traduções (ou os originais)
de astrólogos como Stephen Arroyo, Dane Rudhyar, Zipporah Dobyns. Caso
contrário, cairá no pequeno círculo vicioso dos enganadores grosseiros. Por tudo isso,
acho muito oportuno um lançamento da editora Guanabara: Toques astrais, da ex-
Frenética Leiloca. Para os mais aprofundados, não vai ajudar muito: são informações
para principiantes, embora honestíssimas e com aquele toque de sacação que os bons
astrólogos têm. Pode-se também achar no mínimo estranha a mistura que Leiloca faz,
no final do livro, com as teorias e práticas de Thomas G. Morton (Rá!). Mas, antes,
tem coisa boa. Quem estiver disposto a conhecer o esboço desse vasto e riquíssimo
caminho de autoconhecimento pode chegar sem susto no livro. Pelo menos, até que
os novos astrólogos brasileiros como Antonio Carlos Harres (o Bola), Graça Medeiros
ou Claudia Lisboa comecem a escrever seus próprios textos. E, para quem quiser ficar
atento, deixo de saideira este trecho (citado de memória) de Doris Lessing, em
Shikasta: “Todos nós fazemos parte das estrelas. Elas nos fazem, nós as fazemos.
Somos parte de uma estranha coreografia da qual nunca, de maneira alguma,
podemos pensar em nos separar”. Também vale observar Marte, ponto vermelho no
céu, muito próximo da Terra, em Capricórnio, botando fogo em toda essa loucura
social de fim de século.
O Estado de S. Paulo, 14/8/1986
Uma semana-Fassbinder

Qualquer coisa entre o belo e o horrível. Exatamente ali onde você é o meu raio de sol
Certamente foi meu Ph.D. de cinemaníaco. Não pensei que conseguisse. Mas, na
manhã da segunda-feira seguinte, estou aqui relativamente inteiro depois de uma
semana mergulhado nos tormentos de Franz Biberkopf. Curioso é que não tenho
nada nas mãos. Tenho na alma, será? Mas o que se leva na alma é tão impalpável e
tão invisível que é sempre como se não se levasse nada. De qualquer forma, deve
restar alguma sombra nos olhos, qualquer coisa assim, fugidia.
Quando decidi que ia assistir às quinze horas e vinte e um minutos de Berlin
Alexanderplatz, de Rainer Werner Fassbinder, sabia que a semana inteira seria uma
semana-Fassbinder. E uma semana-Fassbinder — meu caro Caio F. —, fui me
dizendo devagar, não é exatamente o mesmo que uma semana-Disney, por exemplo.
Lembrei de uma casinha muito velha onde morei, numa vila da Mello Alves, em que
o banheiro era tão úmido e estragado, com a pintura tão descascada, e por isso
mesmo de uma estranha beleza, que Jacqueline e eu o chamávamos de “Fassbinder”.
No meu/nosso repertório estético, Fassbinder ficou assim, essa coisa entre o sórdido
e o lírico, entre o inocente e o corrompido, entre o belo e o horrível.
Até talvez a quarta parte, Um punhado de pessoas sob um profundo silêncio, assisti
ao filme com a razão: queria compreender, refletir, tirar conclusões — vejam que
aplicado. Depois fui escorregando para uma espécie de estado hipnótico. Um pouco
provocado pelos poemas tristíssimos que cortam a narrativa, um pouco pela
fotografia, pelo efeito das luzes de neon sempre piscando na rua e invadindo os
interiores (no quarto de Franz, o neon aceso do lado de fora da janela), pelos
movimentos sinuosos da câmera, enquadrando o rosto dos personagens por trás de
grades (encarcerados, todos eles), pelas reverberações e cintilâncias nos objetos de
metal, simulacros de estrelas.
Algumas imagens e falas foram ficando gravadas: o monólogo de Franz sendo
levado para o hospital, depois de ter sido empurrado sob um carro por Reinhold, em
O preço do amor é sempre muito alto. Ele sangra e sangra e fala do tamanho da Terra em
relação ao Sol, do tamanho do Sol em relação ao Universo, e do nosso próprio
tamanho em relação ao todo, e da pequenez absurda das nossas dores humanas. A
dor, portanto, não existe — conclui. Cheio de dor. E é sem um braço que se apaixona
por Mieze: “Você fez com que o sol saísse de trás das nuvens para mim” — ele diz.
Como na história que lera para Lina, o velho repetia para o rapaz: “Você é meu raio
de sol”.
No domingo, depois que o realismo explode e o delírio se instaura, eu não sabia
mais nada. Jantando com Andréa, sabia só que tinha visto um filme sobre a inocência
e sobre a punição da inocência. Assassino, aleijado e louco, cheio de fantasmas, sem
nenhum amigo, Franz Biberkopf ainda pode viver. As imagens do matadouro
humano ainda pesam na memória: o ser humano é o pior dos animais. Aos poucos,
vão nos arrancando pedaços enquanto vivemos, e, mesmo sem um braço, ou sem
sonhos nem esperanças, ainda assim sobrevivemos? Crucificado na frente de um
enorme painel de O Jardim das Delícias, de Bosch, Franz Biberkopf agoniza. Atrás,
uma explosão nuclear. E rompe a tocar Glenn Miller.
Mas na manhã bem cedo de segunda-feira, esta é uma semana sem Fassbinder.
Atrás das janelas, um pouco menos inocente, o mundo aguarda. Vou tomar banho,
fazer a barba. Talvez compre uma camisa nova. Ou escreva uma carta. Hoje é um
bom dia para continuar insistindo.
O Estado de S. Paulo, 3/9/1986
Em nome dos dragões

Eles não sabem de nada:


no outro lado da gorda realidade habitam dragões flamejantes
Nos últimos tempos, dera para dormir e sonhar demais. Mas não conseguia ir adiante
nesse pensamento, porque quando pensava “nos-últimos-tempos” outra parte da
cabeça imediatamente perguntava — quando? Então, um pouco hesitante,
respondendo à própria pergunta, dizia-se assim: desde — ai, que dor! —, desde que a
realidade começara a engordar. A realidade ficando cada vez mais inchada, repleta
de copos de plástico transbordantes de refrigerantes, compotas de figo e pêssegos e
goiabas boiando em calda espessa, rubras talhadas de goiabada, carnes gordurosas
em molhos condimentados, doces bombons licorosos.
(Ah, como sentia medo desse obeso real a invadir as tardes, quando a gordura
vinda de fora pesava os movimentos a ponto de dificultar gestos tradicionalmente
leves, como levar e tirar o cigarro da boca, suspirar ou pensar qualquer coisa olhando
as ruas da cidade ao longe e embaixo. Atos e pensamentos eram pedaços de pêssego,
goiabada, nacos de carne de porco ou carneiro boiando no molho informe do
cérebro.)
Mas depois que conseguia ir adiante — e era tão penoso, bracejando náufrago
exausto na gordurenta calda-molho das tardes —, completava: nos últimos tempos,
como ia dizendo, costumava dormir e sonhar demais. Talvez porque apenas no sono
e no sonho aquela graxa do cotidiano dissolvia-se pouco a pouco até o
completamente, para dar passagem aos dragões. Porque era com dragões que
sonhava, e sonhava muito desde que dera para dormir tanto quando, nos últimos
tempos, a realidade começara a engordar. Com dragões, preservava magreza e
nobreza.
E os dragões — que lindos dragões eles eram — flutuavam em sua mente a
noite toda e durante as manhãs cada vez mais frequentes em que não conseguia sair
da cama para enfrentar a graxenta realidade de dentro e de fora do apartamento —
mas ah, que belos dragões eles eram, dançando em sua mente nas noites e nas
manhãs de sono. Alguns alados, línguas bífidas como a das serpentes, escamas de
cristal, caudas reluzentes. Outros de papel, alaranjados, e dragões noturnos
vagamente melancólicos no lusco-fusco fosforescente dos olhos esbraseados no
escuro. Dragões brancos angelicais, dragões negros mansos como panteras novas,
dragões roxo-púrpura (seus preferidos) estranhamente sofisticados, como de neon,
semáforos. Dragões de São Jorge Ogum guerreiro, sem guerra nem lança, dragões
raptores de donzelas sem donzelas raptadas, dragões guardadores de princesas e
princesas prisioneiras. Dragões amáveis, dragões serenos, dragões elegantes e — mas
como, como eram delicados — sobretudo dragões magros, esguios, esbeltos, afilados.
Levíssimos e sensuais, movendo-se como que ao som de Laurie Anderson.
Dormia cada vez mais cedo, acordava cada vez mais tarde. A única forma de
eliminar a insustentável gordura do real seria enchê-la de dragões em tempo
integral? Era tão perigoso. Porque aquela outra pane da cabeça, aquela parte
cúmplice da gordura, de coque e minissaia, entre o professoral e o perua,
aconselhava: “Meu bem, se você continuar a se distanciar assim do real-objetivo, você
vai mais é se f…” Não dava ouvidos: acordava cada vez mais tarde, e mais feliz.
Embora soubesse — como eu sei e você, suponho, também (eles não, eles não sabem
nada) — que dragões nunca existiram na realidade. Mas que importância tem afinal a
realidade — ele repete todos os dias antes e depois de dormir e sonhar — se o outro
lado, o verdadeiro, está sempre tão habitado por flamejantes dragões movendo-se
como que ao som de Laurie Anderson?
P.S. — E por tudo isso, dedico esta ao severo, Ricardo.
O Estado de S. Paulo, 10/9/1986
Fragmentos
de um domingo

Entre poços de sono, colheres de mel e cápsulas de alho, pedaços do sonho e do real
Entre a febre e a gripe, cápsulas de alho e colheres de mel, um domingo quase inteiro
na cama. Nos poços súbitos de sono misturam-se alguns dragões (parecia chorar, o
dragão púrpura), algumas faces, algumas frases. Violette Leduc, na província, trafica
alimentos para Paris durante a Segunda Guerra, enquanto Fernando Pessoa,
travestido como o ajudante de guarda-livros Bernardo Soares, que costuma “baixar”
momentos antes do sono, guarda folhas rabiscadas dentro de um envelope, depois
joga o envelope num baú. Um baú negro, como o de um pirata.
Escolho A pastoral, de Beethoven, como Karajan é a Orquestra de Berlim, para
acompanhar o ritmo das teclas. Junto com a pizza, vêm umas panquecas
delicadamente esquisitas, vou provando o recheio, doce de leite vagamente plástico.
No allegro ma non troppo do “despertar dos sentimentos alegres ao chegar ao
campo”, os violinos saltam feito cabritinhos. Chá de menta, quem sabe? Encontro um
papelzinho dobrado — uma ideia, uma frase, uma personagem: “Aos sábados pela
manhã, houvesse sol ou não, tudo com que ela sonhava era um conversível amarelo”.
Semana passada, fez exatamente três anos que vi Ana C. pela última vez.
Chovia no alto do morro de Santa Teresa, no Rio. Era noite de meu aniversário. Ela
tocou um por um todos os objetos de meu quarto, sem dizer nada. Depois se foi, para
sempre. Abro ao acaso Inéditos e dispersos, leio assim: “Alguém disse que é para você
que escrevo, hipócrita, fã, cônjuge, craque, de raça, transvestindo a minha pele,
enquanto gozas?” Padeço agora de umas fragilidades de que não padecia antes, de
umas preocupações com o tempo, com os sustos que o tempo prega. De repente,
passaram-se dez anos. Ou vinte.
Célere é o adjetivo, célere. As asas dos pés de Hermes podiam pertencer aos de
Cronos, e seriam de ferro então. Pelas frestas das janelas entram farrapos lá de fora:
uma buzina que dispara durante muito tempo, uma voz de mãe repetindo “Foi o
Rodrigo que te bateu? Vai lá e bate nele”. Pedagógica, ela. E a voz meio aguda, não
demais, gemida, com guitarras ao fundo — serão os Smiths?
Entre dois poços de sono, no apartamento ao lado do Homem Que Vê Dragões,
desenha-se o apartamento da Moça Que Vê Unicórnios. Posso ver as rosas meio
abertas, envelhecendo na sala onde certamente deve haver algum biscuit sobre renda
branca. E no quarto, no aparente silêncio do quarto onde ela dorme, distraída da
tarde que já vai virando noite, esvoaçam alvos unicórnios. E é possível que no
apartamento acima do da Moça Que Vê Unicórnios more o Velho que Vê Sereias,
entre o da Mulher Que Vê Harpias e o do Jovem Que Vê Esfinges. Mal se
cumprimentam no elevador, para não dar bandeira. Mas quem prestasse atenção a
seus movimentos veria que acompanham o ritmo de Laurie Anderson, cantando em
“Smoke rings”: “Ah desire! Ah desire! Ah desire! So random, so rare”.
Sonhando com um conversível amarelo nas manhãs de sábado, certamente
loura a moça. Mais dois ou três poços de sono, de sombra fria, de água parada: do
fundo dela, o ruído do telefone. Vou nadando com dificuldade até lá. Não, não eram
lágrimas nos olhos do dragão púrpura. Era só uma distração, feito nuvem que passa
no momento exato em que você olha para cima. Volto à tona em braçadas rápidas,
afastando ágil as raízes que prendem os donzelos. Espalhadas entre os papéis sobre a
mesa, asinhas transparentes de insetos. Dessas que, olhadas contra a luz, guardam
reflexos roxos e dourados. Dizem que é um sinal inconfundível de primavera. Não
acredito em tudo o que dizem, mas acredito sempre em sinais.
O Estado de S. Paulo, 17/9/1986
Um sonho regado a gim

Essas garotas acham que podem fazer tudo e ficar impunes?


Nem Zelda Fitzgerald ficou…
Era uma vez o começo deste século. Era uma vez, no começo deste século — que
ainda não era tão pobre nem tão vil —, uma pequena cidade norte-americana,
chamada Montgomery, em Alabama, sul dos Estados Unidos. Era uma vez, no
começo do século dessa pequena cidade, a moça mais interessante do lugar, a rainha
da beleza de Montgomery. Loura, sarcástica, cheia de frases e comportamentos
atrevidos demais para aquele tempo e aquele lugar exatos — no começo do século, na
cidade de Montgomery, onde vivia a moça. Nas tardes poeirentas de céu sem
nuvens, ela sonha com uma vida cheia de aventuras, longe dali, daquela detestável
cidadezinha perdida no sul dos Estados Unidos. Rainha de um rei provinciano
demais para a sua realeza, a moça abana-se entediada na janela aberta, pequeno
demais esse reino para o excesso de beleza e ambição da moça de ombros nus, a
abanar-se naquela janela da cidadezinha horrível, numa tarde perdida para sempre
lá no começo deste século. Zelda Sayre era o nome da moça.
Foi num baile — e tudo, quase tudo, ou pelo menos essas coisas do amor,
acontecia nos bailes naquele tempo — que o Destino, pela primeira vez, provou que
existia. Ela ainda não tinha dezoito anos. Ele tinha vinte e um, e era lindo também.
De certa forma um rei, como ela. E todos os casais, os pais, as mães e as outras moças
que estavam naquela noite no salão de baile daquela melancólica cidadezinha
perceberam isso quando ele a tirou para dançar. Que eram dois eleitos dos deuses se
defrontando, cada um com sua nobreza, com sua coroa invisível, mas nítida. Ela deve
ter sentido assim como um estremecimento premonitório quando, peIa primeira vez,
ele a tomou nos braços e encostou seu rosto de face bem barbeada no rosto bem
maquiado dela. Em ritmo de valsa, o futuro começou a chegar para levá-la embora
daquelas tardes poeirentas e sem emoção da cidadezinha odiosa. Zelda deve tê-lo
apertado mais forte, então. Ele chamava-se Francis Scott.
Ele tinha Fitzgerald no sobrenome que ela adotou quando casaram, em 1920, e
passou a ser Zelda Fitzgerald. Ele transformou-se no escritor mais lido, mais amado,
mais mimado de seu tempo. Festas, muitas festas, champanha, vestidos, joias, sedas,
hotéis, viagens. A Grécia, a Riviera Francesa, uma filha: Scottie. Um sonho regado a
gim, embalado a jazz. Até que o dinheiro começou a ir embora, e os excessos de
álcool a fazer efeito. Zelda tinha-se tornado uma mulher cara. Scott precisou começar
a vender sua literatura para sobreviver. Ela ficou estranha, obcecada pela dança.
Fazia aulas o dia todo, até que enlouqueceu e foi internada. Ele afundou no álcool,
vendeu-se a Hollywood.
Foi na clínica, em 1932, em apenas seis semanas, que Zelda escreveu o romance
Save me the waltz (Reserve-me a valsa, ou Esta valsa é minha, na tradução da editora
Companhia das Letras, de Luiz Schwarcz, a ser lançado no final de outubro). É um
romance autobiográfico, em que Zelda se chama Alabama e Scott, David. Alabama-
Zelda quase tem de amputar um pé, de tanto dançar. A juventude vai embora, o
talento se perde, as ilusões se gastam. Tudo isso se concentra, se anuncia, na epígrafe
que Zelda escolheu para sua Valsa, retirada do Édipo Rei. Já cego, Édipo lamenta-se,
referindo-se ao céu de Tebas: “Oh, se fosses de novo possível, / Céu azul, céu azul…”
Pois, como eu ia dizendo, era uma vez uma moça que acabou escrevendo um
romance meio desconjuntado, nervoso e perturbador, em que conseguiu deixar
duramente claro que os deuses costumam cobrar um alto preço de seus favoritos. Na
primeira frase do livro, alguém diz: “Essas garotas acham que podem fazer qualquer
coisa e ficar impunes”. Não podem. A moça Zelda-Alabama, por exemplo, não ficou.
Ninguém fica. Nem nós.
O Estado de S. Paulo, 1/10/1986
Lamúrias com chantili

Só mesmo as mães são felizes.


Ou: caretas de Paris e New York, sem mágoas estamos aí
Recebo muitas cartas de leitores. Nem sempre — ou quase nunca — respondo. Fico
contente e grato, mas não tenho tempo. Também porque a maioria é tão legal que
nem pede resposta. Só dizem coisas boas, dão força. Ter leitores me espanta, não
consigo acreditar muito nisso. As cartas, alguns telefonemas também, desmentem
essa sensação. E é aí que sinto medo, porque vem o peso da responsabilidade sobre o
que dizer. Mas, se deixo o medo baixar, eu travo e não escrevo nada. Então, quando
sento para escrever, é como se não tivesse leitor algum em parte alguma do mundo.
Fico só preocupado em dizer alguma coisa em que eu mesmo realmente acredite. Que
seja verdade dentro de mim, e assim será muito amplo: porque eu sou todo mundo,
entende? Quem é da mesma família entende sem muita explicação. Quem não é,
fazer o quê? Dar detalhe cansa.
Mas eis que, semana passada, chegou uma carta irada. Um senhor lá das Minas
Gerais dizia-se cansado das minhas “lamúrias”. Falava coisas como “pessimismo
mórbido e doentio” (oh Deus, estes oito anos de análise e uma alta servem pra quê?)
e — medo! — dizia-se temeroso de que eu “influenciasse os jovens a cometer
suicídio”. Nefasto Caio F.: seria eu tão poderoso e fatal assim? Uma espécie de Jim
Jones da crônica?
Isola, rápido. Ô meu senhor, não quero isso não. Queria outro mundo, outra
ordem social, outras relações humanas — e me sinto um tanto idiota tentando
explicar o que me parece óbvio. Mais carinho, mais beleza, mais justiça, mais alegria.
Qualquer coisa que qualquer pessoa razoavelmente normal (mas “de perto ninguém
é normal”, lembra?) quer. Mesmo um punk, só que o jeito de querer do punk é do
avesso. E o avesso é um jeito tão bom quanto qualquer outro. Além disso, não tem só
cara e coroa. Tem cara, coroa — e quina também.
E é aí que não entendo certas pessoas. Principalmente essas que chamo de “as
trolhas do Apocalipse”. Sabe aquelas bem-intencionadérrimas? Sabe aquela linha o-
que-será-do-futuro-de-nossas-criancinhas? Sabe aquela linha vamos-valorizar-o-
sorriso-de-uma-criança-o-voo-de-uma-borboleta-e-o-azul-do-firmamento? Viver é
barra, meu senhor, Deus é naja e o amor — com licença de Maria Rita Kehl — é uma
droga pesada. E nada tenho contra barras, najas ou drogas pesadas. Só não acho que
fazer aquele cretiníssimo “jogo-do-contente” de Pollyanna seja a melhor maneira de
enfrentar e compreender o real. Todo mundo é médico e monstro. A vida também.
Você deve ficar ao lado do médico, mas encarar o monstro quando ele pinta. Senão,
meu caro, um dia ele te devora.
Acho que todo mundo interessado em situar-se um pouco nestes anos 80
deveria ouvir pelo menos uma vez “Só as mães são felizes”, de Cazuza. Tá tudo lá.
Amargura não existe, quando se tenta compreender. E pessimismo, pra mim, é
palavra sem sentido quando penso em Chernobyl ou Cubatão. Nem sempre o que é
fácil é bom — me dizia um dragão, naquele domingo de chuva no aeroporto.
Autoconhecimento, e por extensão inevitável o conhecimento dos outros e do
mundo, não é exatamente um mar de rosas. Mas nunca tive medo de nada — de
dentro ou de fora — que pudesse ampliar minha consciência. Acho que esse é o
único jeito digno de ser. Por isso mesmo, durmo em paz toda noite. Muitas vezes só,
confuso, angustiado, assustado — mas absolutamente certo de que sou uma pessoa
legal. Ainda não nasceu a trolha do Apocalipse capaz de me provar o contrário.
Metade luz, metade treva. E esse fio de navalha entre os dois, corda bamba
afiada onde você, sombrinha aberta na mão, pé ante pé se equilibra. Ou tenta. Sem
rede de segurança, mas com um sorriso nos lábios e um grande, enorme e sonoro axé!
no coração. Pra todos nós.
O Estado de S. Paulo, 9/10/1986
Então vamos
continuar dançando

Alegria não é montanha nem é fogo, não é vento nem trovão.


Lago sobre lago, boca também.
Ia saindo do cinema, meio aflito com a viagem paranoica de Martin Scorsese, em
After hours. Um rapaz desconhecido passou e perguntou se eu era o Caio. Quis
responder suponho-que-sim, ou estou-tentando-ser, ou o-que-é-que-você-quer-dizer-
com-isso? Melhor não complicar, falei que sim. E como vai sua namorada? — ele
perguntou. Que namorada? — perguntei de volta, sem conseguir — ai! — lembrar de
nenhuma. São Paulo, ele falou. Não precisei pensar muito para dizer: “Ela está
ótima”.
Saí lembrando de algo que escrevi aqui faz algum tempo, sobre a feiura desta
heavy and lovely Sampa. Pelas escadarias e corredores da Galeria Metrópole,
apinhados de darks-culturais, comecei a pensar nesses dois olhos abstratos e
invisíveis que temos, além dos dois reais-palpáveis. E que são assim: um olho de ver-
feio, outro de ver-bonito. No frio inesperado de quase novembro, de repente estavam
certas as ruas sujas de propaganda eleitoral, o eterno engarrafamento e todas as
outras feiuras objetivas que tenho preguiça de enumerar agora. Mas meu olho de
ver-bonito, percebi, tinha voltado.
Comecei a pensar na alegria. Fazia tempo que eu não pensava na alegria. E,
porque as coisas vão sempre se juntando de maneira aparentemente aleatória
(atenção: eu disse aparentemente), lembrei do Mickey de Woody Allen, em Hannah e
suas irmãs: Deus e o prazer começando a existir no escurinho do cinema, num filme
dos irmãos Marx. E o canal certo em que Mickey entra — o do prazer mesmo
modesto, mesmo pequenino — depois de gastar-se em angústias do tipo se-vou-
morrer-um-dia-de-que-serve-isso-agora? Lembrei do alucinado Paul, no filme de
Scorsese, que coloca sua última moeda na jukebox e tira uma coroa pra dançar Peggy
Lee: Is that all there is? — “Se a vida é só isso/ então vamos continuar dançando”.
Como as coisas continuam se juntando aparentemente ao acaso, cheguei em
casa e fui ouvir Bebel Gilberto cantar com sua voz limpinha a letra de Cazuza (de
onde o Cazuza tira essas coisas?) para “Mais feliz”: “Como uma pedra que divide o
rio/ me diga coisas bonitas”. Me disse várias, lindas, e saí dançando sozinho pela
sala. Lembrei de Oswald de Andrade: “Alegria é a prova dos nove”. Fui deitar com o
I Ching e o hexagrama 58, Tui, Alegria. A alegria não é fogo, não é vento, não é
montanha nem trovão: Alegria é lago sobre lago, Tui é lago e também é boca —
“Quando os homens alegram uns aos outros através de seus sentimentos, isso se
manifesta pela boca”. Não é a euforia descontrolada: lago fundo, mas sereno. Quase
nem se move.
Na cozinha tem mel de maçã, trazido de Monte Verde. Flashback: no balcão do
restaurante, esperando mesa, teus olhos encontraram outro dia os meus e ficaram
cheios de lágrimas de pura alegria. Por um segundo, os meus-teus-nossos olhos de
ver-bonito não seguraram as lágrimas, e quase não conseguimos falar, para repetir
palavras atordoadas, engasgadas como sim, sempre, obrigado, que bom, eu também.
Para com isso, quero gritar para a Legião de Amigos Desesperados: tira esse dedo do
espinho, cara! Antes de dormir, procuro aquele poema de Cummings que Michael
Caine descobre em Hannah. E porque tudo continua a se juntar, não encontro aquele,
mas encontro este, cujos versos finais fico relendo com o I Ching aberto em Tui: “…
listen: there’s a hell of good universe next door; let’s go”. Na próxima sexta, vou sair outra
vez só pra dançar. Vem comigo, o ano está quase no fim e eu quero é mais.
O Estado de S. Paulo, 29/10/1986
Bye-bye, 10ª mostra

Não, esta semana não tem mais doces encontros, conhaque no Eldorado, sessão no Metrópole
Acabou-se o que era doce. Quem gostou regalou-se. Quem não gostou danou-se. E
não sabe o que perdeu. Quanto a mim, deitei e rolei na Mostra de Cinema. Já
comecei a sentir falta. Esta semana não tem mais conhaque no Eldorado e sessão no
Metrópole, nem bloody mary no Longchamps e sessão no Majestic. Não tem mais as
luzes apagadas e aquela adrenalina toda se soltando na musiquinha dos Claps, de
Marc-Henri Wajnberg, o Chaplin performático. Não tem mais Sérgio, Rosa, Samuca
Jagger, Eva, Paulo, Lucienne, Nelson Pujol, Cidinha, Bivar e aquelas outras caras
amigas boas e raras de se ver. Nem aquelas caras desconhecidas aos poucos se
tornando conhecidas, até pintar um cumprimento meio encabulado.
Pausa: como as pessoas não se olham em São Paulo. Se veem, mas não se olham.
Como as pessoas são ariscas em São Paulo, e como tem gente bonita em São Paulo.
Atrás do pretexto dos filmes, a festa aonde a maioria vai para ver e ser visto.
Cuidadosa produção: por trás do marketing dos modelinhos e dos papos, a ansiedade
de descobrir o mais novo, o mais in — marketing também. Metade ridículo, mas tão
humano. Jeca e chique: circo total. Uma delícia, coisa de gente urbana. Nosotros,
macaquitos informáticos. Coração, pastiche de neon. Então os filmes. Não vi tudo.
Por falta de tempo, perdi coisas imperdíveis e imperdoáveis. Me escaparam Tokyo-Ga,
de Wim Wenders, todos os escandinavos (será que um dia cruzo Twist & Shout?),
todos os checos, espanhóis e latino-americanos (à exceção daquele brega-gay
argentino: Outra história de amor). Decepções: não consegui achar o menor interesse
em Mona Lisa, apesar daquela negra linda e bandida, a cara de Deise Nunes, Miss
Brasil, e quase dormi em My beautiful Laundrette. Mas, numa noite de domingo, saí
trêmulo da bad trip de Sid e Nancy e a beleza sórdida do casal tão junkie, mas tão
junkie que não percebe a fronteira onde o amor começa a se transformar em morte.
Madame Satã, perto, é puro Disneyworld. E teve aquela gorda maravilhosa de
Sugarbaby, do alemão Percy Adlon, o simples com uma câmara pirada, e a descoberta
de Jean-Jacques Beineix, com Betty Blue me deixando uma pergunta inquietante na
cabeça: será que você precisa realmente matar o que ama para poder criar? E
Tarkovsky, Fellini — antes de mais nada e acima de tudo Fellini —, Scorsese, Stelling.
Não, esta semana não tem mais vento esvoaçando os cabelos de Nastassja
Kinski, nem os arrotos de Sid Vicious, não tem mais Fred dizendo no escuro para
Ginger: fui parar no manicômio quando você me deixou, nem a garota doidinha
pelos Monkees, não tem mais o rock and roll da Gorda com o pateta Hüber, nem os
olhos vidrados de Video Record, nem aquela seca e triste cena de sexo de manso
horror em O homem da linha, nem o clap se transformando — que nem nós — em
chinês, superman, mágico, palhaço, roqueiro, atleta, mexicano.
Para onde vão os filmes, dentro da gente, depois que você sai do cinema? Ficam
misturados na vida, na emoção, na memória. Te esperei tanto na saída de Sid e Nancy,
acho que foi ali que comecei a perceber que não tinha mesmo jeito, você estava tão
diferente na Lua na sarjeta, perdão não ter te dado aquele abraço que você pediu no
fim de Betty Blue, e quem era, afinal, aquele cara do seu lado na fila do The
Pretenders? Ah, meu bem, tudo já rolou. Como eu ia dizendo, acabou-se o que era
doce. E eu, que nem sequer como açúcar, me empapucei tanto que me sinto no
direito, embora não os conheça, de mandar um beijo bem estalado para Iara Lee e
Leon Cakoff. Assim: smack! Quero dizer: clap!
O Estado de S. Paulo, 6/11/1986
Sexo: mais ou menos?

As novas gerações transam menos. Você já parou e pensou sobre essa terrível verdade?
Me telefona uma repórter. Está fazendo uma matéria sobre comportamento-sexual-
das-novas-gerações. Quer minha opinião. Diz: “As novas gerações transam menos.
Você, que escreve para jovens, o que acha disso?” Fico atordoado. Pera lá, digo, não
escrevo para jovens. Não ponho um papel na máquina, determino “isto é para
menores de vinte, ou isto é para maiores de quarenta” — e começo a escrever. Não
existe escrever para.
A moça suspira. Eu também. Certo, certo: somos pacientes um com o outro.
Esclarecido esse ponto, voltamos à primeira parte da pergunta. Que não é uma
pergunta, mas uma afirmação: as novas gerações transam menos. Fico me
perguntando: as novas gerações transam mesmo menos? Será que as novas gerações
realmente transam menos?Pergunto a ela: quem garante? A moça fala de pesquisas,
es-ta-tís-ti-cas, meu bem. Quem sou eu para duvidar? Certo, continuamos pacientes,
por favor não me enlouqueça. E vamos tomar isso como dado posto, indiscutível,
irrefutável, inabalável. As novas gerações — oh! — transam menos.
Aí eu piro um pouco: o que é que você quer dizer com novas gerações? As
novas gerações da zona sul do Rio, ou dos Jardins de São Paulo, comportam-se da
mesma maneira que as novas gerações de, digamos, Quixeramobim, interior do
Ceará? Ah, sim: a aldeia global, os meios de comunicação, a novela das oito ou das
sete, as letras de rock. Então você pega esse monstro sem face, soma, diminui, divide,
faz a média e resulta numa face mais ou menos definida. Essa, a das novas-gerações.
Que, afirma-se — com base em ESTATÍSTICAS — transam menos.
Vamos em frente? Transam — o que é mesmo que você quer dizer com transam?
Ah, não vai me dizer que você não sabe. Bem, suponho que sei, só queria confirmar
se o que eu suponho que sei será exatamente o mesmo que você está supondo que
sabe. Transar seria — digamos — fazer amor, namorar? Isso, isso. Nove semanas e
meia de amor, império dos sentidos, o côncavo, o convexo, último tango no Ritz —
por aí? Ah, finalmente vejo que começamos a nos entender: sexo, falou?
Médio, porque tem o menos. Como assim, menos? O que é mais, o que é menos?
Sete vezes por semana seria mais ou menos? Bom, não sei, tem gente que — imagino
— transa até vinte vezes por semana. Não, isso é exceção. Como, exceção? Se houver
alguém disposto a transar com, porque suponho que sozinho não vale, caso contrário
sua matéria seria sobre masturbação, certo? Certo, certo. Mas menos em relação a
quê? A uma média predeterminada de mais e de menos? Menos em relação às
gerações-anteriores? Menos em relação a uma quantidade considerada “normal &
saudável”? Mas não tenho a menor ideia do que seria normal & saudável, cara
senhora. Espera aí, precisa considerar o novo moralismo. Ah, existe um novo
moralismo? Evidente que sim. Basta pensar em Ronald Reagan, no papa e em
Margaret Thatcher, sem falar no vírus da aids. Penso — três da tarde, todas essas
máquinas batendo, dez pessoas em volta falando ao mesmo tempo, meia dúzia de
telefones tocando e esta vontade de viver em Java —, o pânico cada vez menos lento
começando a desabar.
Confesso que estou abismado com o fato de que as novas gerações transam
menos. Eu nunca tinha imaginado que as novas gerações ousassem transar menos.
Como é que vou sobreviver agora, depois de ter certeza de que as novas gerações
transam menos? Amanhã você lerá no jornal essa verdade terrível, capaz de
modificar todo o rumo da civilização contemporânea, e, pertença às novas ou às
velhas gerações, também passará a transar menos. No mínimo, para não ficar por
fora. Tudo — menos ficar por fora. Leia no jornal como você deve se comportar. E
faça o possível para transar menos: é super-in, cara. Até que eles decidam — já
pensou? — que as novas gerações transam é mais.
O Estado de S. Paulo, 12/11/1986
O movimento do tempo

Jovem, velho: essas palavras perdem o sentido quando ambas se encontram no ponto vivo
Novo, antigo: não sei mais o que é isso. E andava pensando nessas coisas quando de
repente, como se fosse por acaso, me cai nas mãos um artigo do Jornal do Brasil da
última sexta-feira, escrito pelo Paulo César Coutinho, e exatamente sobre o mesmo
assunto. (A propósito: foi das mãos de Paulo César, há quinze anos, que recebi aquele
primeiro sonho dourado. De mãos melhores, impossível.)
Jovem, velho: não, não sei mais o que é isso. Gosto de música, por exemplo, e
atualmente, no hit-parade lá de casa, os dois primeiros colocados (empatados) são
“Me chama de Lobão”, com João Gilberto, e “Luz negra”, de Nelson Cavaquinho,
com Cazuza — entendeu? Cazuza, o “jovem” roqueiro (o melhor deles, e faço
questão de repetir uma vez mais: na minha modestíssima opinião, Cazuza é o que de
melhor aconteceu à MPB depois de Caetano) cantando lindamente o “velho” Nelson
Cavaquinho. E o “velho” João Gilberto cantando — mais lindamente, difícil imaginar
— o “jovem” Lobão. Jovem, velho, novo, antigo — deixam de ter qualquer
significado quando ambos se encontram nesse ponto justo. O ponto vital, o ponto
belo, o ponto vivo.
Em seu artigo, falando da passagem (inevitável) do tempo, Paulo César diz:
“Mas é possível fazer essa viagem escolhendo o presente como região ideal de
moradia”. Sim: lembrar do que passou é perfeitamente humano e natural, mas, se
você começa a querer que o tempo volte, e em consequência a fechar-se para o
presente, aí começa também a correr o risco de sentir errado, começa a cair fundo e
sem volta no círculo da frustração. Porque o que passou já rolou, não tem volta. Falo
o óbvio tão óbvio que nem todo mundo vê. Ou se recusa a ver — tão mais confortável
manter-se hipoteticamente nesse plano estável onde nada muda — e é então que
começa a envelhecer. Envelhecer do mal, envelhecer na treva, sem esperança nem
paciência para o “novo”. Que existe.
O velho também existe, sim, mas só quando se recusa a ver o novo, porque é se
alimentando do novo que o velho consegue deter a sua esclerose. Como o novo: que
precisa alimentar-se do “velho” para não permanecer eternamente com aquele gosto
ácido de maçã verde. Repuxenta, dizia minha irmã Márcia quando era criança: o novo
que se supõe o primeiro novo sobre a face da Terra e ignora tudo o que veio antes,
tem sempre esse sabor repuxento. Eu mesmo fui muito repuxento.
E eu também tinha tanto medo dos quarenta anos — como aos vinte tinha
pânico dos trinta, e eles chegaram, passaram, e eu resisti, e você e ele resistiram
também, e vamos ultrapassar os quarenta, e quem sabe os cinquenta, e depois os
sessenta, e assim por diante. É que ninguém me/nos preparou para ir envelhecendo,
somos educados para a eterna juventude — e, na eterna juventude dos vinte anos, a
velhice é uma coisa que só acontece aos outros. Apenas aos trinta, na primeira volta
de Saturno (cronos), é que vem a primeira percepção de que o tempo existe.
O tempo existe, sim, e não congela — feito Plano Cruzado. Ou, se você supõe
que congela (sempre há formas artificiais, científicas ou neuróticas, de fingir que
sim), corre o risco de ver tudo desabar de um dia para o outro. Mas dentro do
movimento do tempo, e desses pequenos acidentes meio lamentáveis e totalmente
inevitáveis que acontecem no nosso corpo, há qualquer coisa que resiste sempre, tão
novinha e fresca como a pele de um bebê. As almas atentas nunca deixam de cheirar
a talco — como a do Juvenal Pereira, por exemplo, que hoje (segunda) faz quarenta
anos. Ele está sentindo a maior firmeza. Eu também, colega. Agora é que vai começar
a valorizar. Cada vez mais.
O Estado de S. Paulo, 26/11/1986
Palavras ao vento

Segunda esquizocrônica, para ler ao som de Jim Morrison cantando, por exemplo, “The end”
No domingo em que não há nada para dizer ou fazer, ouvindo The Doors às cinco da
tarde: C’mon baby, light my fire. Era uma guia de candomblé que Jim Morrison usava?
Pergunto se ele esteve no Brasil um dia, ninguém sabe responder. Talvez na África,
arriscam. Coloco o pêndulo sobre essa foto em preto e branco — fosse colorida, daria
para ver os orixás, há um Oxalá nítido, quem sabe Oxóssi? — e pergunto se ele está
vivo. O pêndulo gira afirmativamente. Haverá algum corpo naquele cemitério de
Paris onde dizem que o sepultaram? Senão, onde andará Jim Morrison? Como um
fantasma da ópera, como um fantasma do rock, com outro rosto, quem saberá — mas
onde? Do outro lado da mesa, Jacqueline come gelatina enquanto conta de seu fim de
semana on the road, em Santos, com a Plebe Rude e Siouxsie and the Banshees. Foi
legal? Foi legal, e você? Fiquei ouvindo The Doors. “Eu também, bem, tenho escrito”
— dizia Ana C. Vou indo assim, pelo escuro. E hoje é aquele domingo em que não há
nada para dizer. Tudo muito pessoal, tudo sempre excessivamente pessoal, desculpe.
Posso te contar de Morgana das Fadas, que desapareceu — serve? Posso reclamar
daquela carta boba que chegou terça-feira passada. Não, não devo. Melhor evitar
esses caminhos. Os outros também. E se não de repente, mas pouco a pouco, você
começar a evitar todos os caminhos? Chega o dia, então, em que não há caminhos.
Chegará o dia em que o não caminho será o próprio caminho. Não procurar é
encontrar? Falando francamente, não creio que um forno de micro-ondas ou uma
bateria eletrônica possam resolver o(s) seu(s) problema(s). Jogo as ervas mágicas na
água cuja superfície não se agita quando pergunto, leve ansiedade, se não há mesmo
nada que eu possa fazer. Na véspera da lua nova, perdi a Visão. E quando você
caminhar pelas ruas de Berlim, com a negra capa marroquina, pensará em mim? E
quando você correr, de manhã cedo, pela areia branca de Ubatuba, pensará em mim?
E quando, lá no sul, por acaso ouvir Linda Ronstadt cantando Forgetting, de repente e
sem querer, pensará em mim? Ah, c’mon baby, light my fire. Brasília em chamas, e eu
não votei no PMDB. Posso te contar também de Kyotara, a cidade africana onde 50%
da população está contaminada com aids. Afinal, hoje é aquele domingo em que não
há nada para dizer, precisamos enchê-lo de palavras. Ao vento, tanto faz. Ou de
coisas horríveis, mas não quero encher o papel de coisas horríveis neste domingo sem
nada para dizer. Melhor espalhar pistas ao acaso — palavras ao vento: era o nome de
um filme onde as palavras se perdiam no ar, assim como estas? Não, você não merece
ouvir nem ler coisas horríveis neste domingo onde não há nada para dizer. Me
convida pra ir ao cinema, me traz o JB com Tutty Vasques, me apresenta uma Coca-
Cola bem gelada. Diz que me ama, qualquer bobagem. “É agora, nesta contramão” —
dizia Ana C. Não me reduza, não escreva meu nome no microcomputador, não me
dilua como quem coloca água num café forte demais. Tenho um fraco por quem bebe
café forte, e sem açúcar. A chuva desaba, enquanto acendo a vela: eparrê, Iansã!
Dezembro costuma trazer esses t(r)emores, renúncia, palavra brega, sabor pelmex.
This is the end, beautiful friend, my only friend, the end. Sim, às vezes também me
passa pela cabeça: aquele salto, o outro lado de uma vez por todas. C’mon baby, light
my fire: ouvindo sem parar The Doors às cinco da tarde, no domingo em que não há
nada para dizer ou fazer. O que me consola é que — não, nada me consola hoje. Na
véspera da lua nova em que perdi a Visão. Toma da minha mão e promete baixinho,
para me enganar — que importa ? —, assim: amanhã, quem sabe? “E cante. Puro
açúcar branco e blue” — dizia Ana C. É para você, para você que escrevo — dizia ela
também, um instante antes de. Ausência assimilada, tentação contínua.
O Estado de S. Paulo, 3/12/1986
Caetano, caetanagem

O problema de Caetano são as tietes. E as antitietes. Mas eu, tu, ele: todos caetaneiam
Faz tempo que desconfio. Na última sexta-feira, tive certeza: devo mesmo estar
enlouquecendo. Fui ver o filme de Caetano — e gostei. Mais inquietante ainda — não
achei chato. Isso que fazia um calor senegalesco no Cine Metrópole tomado por tietes
frenéticas, eu tinha acabado de sair de um fechamento, estava com fome e sede. Do
ponto de vista do conforto físico, não havia clima para tolerar, por exemplo, dez ou
quinze minutos de Hamilton Vaz Pereira recitando páginas e páginas de Grande
sertão: veredas. Mas de repente eu tinha relaxado, e foi ficando gostoso estar lá, atento
à música da palavra de Guimarães, o Rosa, enquanto via a cara boa de Hamilton.
Preciso reler Guimarães, pensei. E achei bom pensar — mais que pensar: querer isso.
Por que não?
Falei em tietes. O problema de Caetano, coitado, são as tietes. As tietes e
antitietes. Caetano faz ou diz uma coisa — qualquer coisa — e imediatamente as
tietes caem de joelhos em adoração profunda, enquanto as antitietes correm em
busca dos seus mais fétidos tomates & pútrefos ovos para jogar no ícone. O que é,
também, uma forma de tietagem. Só que às avessas. Odiar Caetano, adorar Caetano
— não há meio-termo. Nesses extremos, perde-se o centro, perde-se a quina da cara e
da coroa, perde-se o ponto exato da junção/fusão entre ying e yang, ou seja: o
próprio Caetano. Sua sensibilidade especialíssima, tudo o que ele tem para dar de
toque ou dica. Preste atenção. Por que não?
Presto sempre atenção no que Caetano diz e faz: ele me interessa. Como
prestava atenção no que Clarice Lispector escrevia, como presto atenção na cabeça de
Augusto de Campos, como presto atenção nos filmes de Arnaldo Jabor (quem reviu
O casamento, na Globo, há duas semanas, sabe que vale a pena), como presto atenção
nos desenhos de Mira Schendel. Então, assistindo a O cinema falado, quando minha
cabeção esquizo sobre o corpo cansado queria escapar pelo lado fácil do “ô, que saco
essa falação!”, uma outra coisa se dividia e — sem razão, além da razão — ia fluindo
e se encantando. Por que não?
Se encantando com Rodrigo Veloso dançando Águas de março, deixando um
arrepio correr na pele com Dona Canô cantando Noel Rosa, pensando “que bonito”
naquela composição em preto e branco, um corpo feminino branco, outro masculino
negro, com o próprio Caetano e a igreja de Santo Amaro da Purificação ao fundo,
com Mário Peixoto explicando a onda que quebra, a voz luminosa de Nana Caymmi
sobre a cidade do Rio, o pavão-Caetano quase no final, a criança-Caetano na última
cena, tentando fazer direito uma coisa que ele não sabe: cinema. Se é que existe jeito
certo, pois jeito errado é jeito como qualquer outro. Por que não?
Se você for ver com espírito de tiete, vai dar pulinhos de alegria. Se for ver com
espírito de antitiete, vai dar pulinhos de ódio. Mas se você conseguir “pegar” O
cinema falado como quem pega, digamos, um livro de poesia e folheia ao acaso — que
bonito este verso, que chato isto aqui, que fecho criativo, este ritmo não tem nada a
ver — e deslizar, só deslizar, com alguns solavancos inevitáveis, sem a menor
preocupação de tirar qualquer conclusão, que bom pode ser. Quem criticar O cinema
falado vai se ferrar. Quem discutir O cinema falado vai se ferrar. O sexo dos anjos não
importa. Mas os anjos em si são tão interessantes com suas asas, percebe? E por que
não?
Saí cheio de ideias. Algumas bobas, outras quem sabe não. Uma baita vontade
de viver. Cheguei em casa, ouvi vários Caetanos, fiquei dançando sozinho. Não, não
é pecado apostar na alegria. Que bom Caetano existir: o leite mau na cara dos caretas.
Eu quero mais é caetanear o que há de bom. Com mil Suzanas Amarais — por que
não?
O Estado de S. Paulo, 10/12/1986
O girassol e a greve

A greve geral não aconteceu. Nem o filme francês. Mas há um girassol na avenida Paulista
Vi um girassol na avenida Paulista. Se você quiser conferir, ele ainda deve estar lá,
quase na esquina da Consolação. Venha da Bela Cintra pela calçada ali da livraria
Belas Artes, como quem vai para o cine Belas Artes também. Antes de dobrar a
esquina — juro —, você vai encontrar um girassol. Quero dizer, uma daquelas flores
parecidas com as margaridas. Só que maior, bem maior. Ela é redonda. Quero dizer,
o centro é redondo. As pétalas, não. As pétalas são… bem, são pétalas, né? Uma
porção. E aberto, o girassol que eu vi na avenida Paulista estava todo aberto. Isso que
nem sol tinha. E o gira precisa do sol para ser.
Foi na manhã da última sexta-feira, bem cedo. Não muito cedo — ah, os hábitos
vampirescos —, aí pelas 9h30 da manhã. Naquela sexta-feira da greve geral. Saí de
casa animado: ah, enfim vou ver um tanque autêntico na rua, e metralhadoras,
chamas, saques, gritos, linchamentos, estupros. Mais, muito mais sangue &
ferocidade que no mais radical dos grupos de rock de porão. Ao vivo, em cores.
Qualquer coisa que me fizesse sentir dentro de um filme, de preferência francês, um
filme ou um livro daqueles do tipo Simone de Beauvoir ou Violette Leduc contando
da resistência francesa. Tanques nazistas invadem Paris. E eu meio Jean-CIaude
Brialy, meio Jean-Pierre Léaud (nos bons tempos), razoavelmente sensível,
medianamente pirado e perdido em meio ao povo enfurecido clamando por justiça
social. Levaria no bolso um exemplar em farrapos de Une saison en enfer (Mallarmé
seria mais adequado? De qualquer forma, Rimbaud estaria no peito — não na camisa,
que naquele tempo não havia silk-screen — no peito por dentro, entende?) e os olhos
cheios de inquietação & rebeldia. Oh, sweet colonialismo lítero-político-
cinematográfico!
Na manhã da sexta-feira passada, ia indo assim, nesse delicioso (de certo ponto
de vista) ou preocupante (de outro ponto de vista) humor fútil, subindo a rua da
Consolação e me espantando a cada passo. As padarias? Abertas. As bancas de
revistas? Abertas. O Mãe Terra, entreposto natural? Abertíssimo. A rósea Giovanna
Baby? Escancarada. Quem sabe na próxima esquina, pensava o iludido rapaz,
enquanto as alamedas passavam e passavam: Lorena, Tietê, Franca, Itu, Jaú. Nada.
Porteiros bocejantes molhavam aquelas plantas sintéticas da frente dos edifícios.
Domésticas apressadas, com suas sacolas de plástico. A fila do açougue com aquele
simpático ágio explícito. Normal, normalíssimo, normalésimo. Normal demais,
suspeitei. Quieto demais. Limpo demais. Quem sabe na avenida Paulista, então,
aqueles estonteantes tanques de guerra avançariam em lenta fila indiana, com a torre
da TV Globo ao fundo, em perspectiva. Talvez um zoom de aproximação? Devo ter
começado a assobiar algo como Grandola, Vila Morena, enquanto contemplava os
cravos vermelhos nas vitrines das lojas de flores.
Foi então que vi um girassol na avenida Paulista. Um girassol recém-nascido,
titubeante. Assim mais para Twiggy do que para Fafá de Belém. Mas,
inconfundivelmente, um girassol. Irrecusavelmente, um girassol. Lembrei de um
outro girassol que tive, chamado Desdêmona. De Augusto, que nunca mais voltou da
Noruega. De brotos de girassol que plantei e meu pai arrancou do jardim, certo de
que era maconha. De uma reportagem sobre as propriedades miraculosas dos
girassóis. De um poema de Hilda Hilst: “O girassol no muro /enlouquecendo”. Só
um pouco mais tarde, já atravessando o sub-subway da Consolação, foi que lembrei
também daqueles versos de Drummond sobre a flor que nasceu no asfalto: “É feia,
mas é flor”. Nem um tanque nas ruas. Nem uma metralhadorazinha. Meu delicioso
humor fútil fez puf! e foi-se. O filme francês acabou, sem happy end: fui ao banco
conferir meu saldo negativo. Fazer o quê, neste país? Mas o girassol — ah, esse
continua lá. Duvida? É verdade, pelo menos eu vi.
O Estado de S. Paulo, 17/12/1986
Gente deve ser bom

Pouco a pouco, sutilmente, ela foi morganamente enfeitiçando o prédio inteiro


Foi quando, numa tarde de março, entrei pela primeira vez na redação aqui do
Caderno 2. Lá estava ela, quietinha numa mesa. Alta, magra, olhos negros-
penetrantes por baixo das sobrancelhas onde existe (na direita) apenas um fio branco.
Mas isso eu só vi depois. No dia seguinte, nos mandaram fazer juntos uma entrevista
com Hector Babenco. Virginianos ambos (descobri depois), chegamos antes da hora
marcada: pontualésimos. Suco de frutas, café e cigarros no balcão de uma quitanda
da Nove de Julho. E revelações, magias, cumplicidades. Assim: click. Ligou.
Isso que escrevo hoje é uma homenagem. Porque, de todas as pessoas novas que
conheci este ano — e foram muitas, e muito boas, graças a Deus —, tem esta que.
Como dizer, cara? Texto escrito não tem close, não tem zoom-lento-de-aproximação,
não tem trilha sonora para introduzir a revelação com algo ao fundo como “A
sagração da primavera” (no caso dela, talvez um heavy metal fosse mais adequado),
não tem spotlight para acender no momento exato, no centro do palco.
Minha amiga Marion Frank é demais.
A partir daquele click inicial, desgovernou. Telefonando às vezes para casa,
ficou conhecida como “A Deusa”, ou “a estonteante Fanny Ardant”. Porque Marion
é a cara de Fanny Ardant — Edmur Pereira, outro fã ardente, que o diga. Aos poucos,
sutil, com todos os seus planetas na Casa XII, ela foi morganamente enfeitiçando a
redação inteira, o jornal inteiro, o prédio inteiro. Aquela moça alta, magra, quase
sempre de preto. Ela finge que nem vê. Especialista em matérias do tipo brega,
arrasou com o concurso de Rambos, da SBT, ou com o concurso de Miss Brasil,
quando lançou nas paradas Deise Nunes, aquela devastadora mulata.
Minha amiga Marion Frank é do Povo das Fadas.
E pós-feminista. Não se dá ao trabalho de lutar-para-impor-seus-direitos-de-
mulher, porque ela não se sente inferiorizada como mulher: está sempre na mesma
altura, seja de quem for. Homem, mulher, patrão, figurão ou figurinha. Não é
arrogante: é igual. Aliás, ela acha que não devia haver sexo nas pessoas. Ou, então,
que houvesse pelo menos meia dúzia de sexos. No que concordo. Rainha
insubstituível do Comando Heavy — e entre os súditos (dos quais sou o mais
submisso) incluem-se demônios do quilate de René Decol, Dagomir Marquezi,
Ricardo Soares (com vagas recém-abertas para Maurício Stycer e Ademir Assunção)
—, para quem ela passará a faixa, o cetro e a coroa quando for embora, agora em
janeiro, para Berlim?
Minha amiga Marion F. vai visitar nossa prima Christiane.
Também conhecida como Strecker (líder do grupo hardcore Dead Streckers),
Marion Frank vai embora. Eu não consigo imaginar como serão essas futuras tardes
sem a velha e boa F. infernizando o cotidiano. Baixou uma saia-justa por aqui, desde
que todos soubemos. E ficamos contentes, porque somos legais, somos do bem, e
queremos que ela seja feliz, aqui ou lá. Mas. Pois é: más.
Mas — tudo bem, por que os anos e a vida são feitos de perdas. Chega, vem, vai:
esse é o ritmo. Normal. Uns vão e não voltam, outros cruzam na próxima esquina. De
Ipanema ou High Street Kensington. É assim que as coisas são. Ou devem ser: sem
pressa nem dor. Por tudo isso — e por muito mais, Marion F. — hoje me deu esta
vontade incontrolável de escrever pra todo mundo saber, porque todo mundo
precisa saber que você existe, escrever assim, agora, em caixa alta:
MARION FRANK, VOCÊ É DEMAIS.
O Estado de S. Paulo, 24/12/1986
Dezenas de obrigados

A quem empurrou pra frente, e deu vontade de viver: 365 axés, um para cada dia de 87
Fim de ano sem lista de melhores não é fim de ano. Lista de melhores é feito peru de
Natal, champanha de réveillon, confete de carnaval: indispensável. Por essas, por
outras, também tenho meus melhores deste ano. Que — eu mesmo pasmei, outro dia
de repente, meio distraído — apesar de tudo foi. Ia dizer “ótimo”, mas não foi
exatamente ótimo. Ia dizer “bom”, mas não foi precisamente bom. Foi vivo? Foi:
vivíssimo. Foi forte? Foi: fortésimo. Empurrou pra frente, deu vontade de viver. E o
que ou quem deu vontade na gente de viver é que são os meus melhores.
Agradeço antes de mais nada a Ronaldo Pamplona, que teve a santa paciência
de me ajudar a manter a cabeça naquele lugarzinho ao sol, quando a mardita queria
escorregar pro lado do sofrer. Falar nisso, obrigado a Woody Allen, que com Hannah e
suas irmãs ensinou que a gente — se quiser, se souber — pode tirar da vida o mel, não
o fel. A cor, não a dor. No mesmo tom, obrigado a Caetano Veloso pelo disco
Totalmente demais e pelo filme O cinema falado, com palavras, sons e agora imagens
mostrando a doçura escondida por trás tanto de um velho tango de Gardel quanto de
um texto de Gertrude Stein, tanto num poema de Augusto de Campos (obrigado
pelo Anticrítico) quanto naquela vontade de ter a sorte de um amor tranquilo, do
Cazuza. E obrigado ao Cazuza, pelas letras para Bebel Gilberto e pela “Luz negra”, de
Nelson Cavaquinho. Obrigado, João Gilberto: que este século saiba manter a
delicadeza suficiente para virar o ano 2000 com você cantarolando “O pato” sobre as
cinzas radioativas. Deus nos livre. Das cinzas, não do pato — claro.
Obrigado a Tom Waits pelos roucos blues que acompanharam certas noites
molhadas de vodca, feridas da ausência de alguém que fugiu — que também tenho
minhas Tristes Histórias Inconsoláveis (como diria Sonia Coutinho). E obrigado,
então, a Laurie Anderson por tantas coisas — o disco, o filme, o papo, o autógrafo no
meu Mr. Heartbreak —, mas principalmente por “Forgetting”, letra para Philip Glass.
Obrigado, de viés, a Cecília Meireles, esteja onde estiver, por ter deixado todos esses
versos aos quais recorro quando o coração está esturricado da sede insaciável que ela
sacia. De raspão, obrigado a Mário Quintana pelo telefonema, e a quem prometo
sério, compenetrado: “Não, tio Mário, no que depender de mim, juro não perder essa
aflição de que você gosta”.
Obrigado, e tanto, ao Ricardo Severo, que me chegou de repente, falando de
estrelas reais e dragões científicos, e trouxe o som espacial de seus teclados e as
palavras cibernéticas de suas letras para embalar os agudos de Annie Peréc.
Obrigado, então, ao Celso Curi, por ter aberto o seu Espaço Off para pessoas como as
Harpias, Marcelo Mansfield, XPTO, Laurinha Finokiaro, Luni, Cláudia Wonder, Lala
Deheinzelin, Denilton Gomes — e a todos os que lá passaram e que ajudam a cerzir
os buracos da camada de ozônio sobre esta cidade. Obrigado às garotas da cidade:
Eliete Negreiros (quero outro disco lindo como este!), Vânia Bastos, Ná Ozzetti e
Suzana Salles. Vocês são lindas.
Obrigado a Patife Band, a Cida Moreira, aos Titãs, ao Wagner pelo Ritz, ao
George Freire pelo sax em Lillith, ao Paulo Francis pelos artigos, na Folha, a Bivar e
Rita Lee pelo Radioamador, a Nelson Pujol Yamamoto e a Cida de Assis pela Around
cada vez melhor, a Márcia Denser (incluindo Isaura, viu?), João Gilberto Noll, Sérgio
Sant’Anna, Antonio Torres e Maria Adelaide Amaral, pela literatura, e ao Luiz
Schwarcz pela Companhia das Letras, a Marildinha Assunção pelos discos da WEA e
pelo astral, a Marina, às garotas que fazem o underground do Divirta-se das sextas no
JT, e a Cecília Thompson pela alegria imbatível nas tardes.
A quem me lê agora: obrigado. Pra mim, pra você, pra todos nós, meus votos de
Feliz 87 neste verso meio antigo de Caetano: “Nada dessa cica de palavra triste em
mim na boca”. E 365 axés, um por dia.
O Estado de S. Paulo, 31/12/1986
Com afeto e mau humor

É só de mentirinha. E na boa. Pois como já dizia o Marcelo Paiva: feliz ano velho…
Muito bem, parabéns: você não queria um novo ano? Reclamou tanto do velho,
coitado, que assim não dá, pô, é uma atrás da outra, tomara que mude logo. Então
mudou, o champanha explodiu, inaugurou: taí o tal de 87. Nas bocas, nas portas, nas
datas. Tudo pura formalidade e ti-ti-ti, porque, você sabe, o novo ano só começa
mesmo com o Sol a zero grau de Áries, a 22 de março. Primeiro rápidos, normais
enganos, os talões de cheques, as datas das cartas (alguém ainda escreve cartas?),
depois vai virando arroz de festa. É ele, o novo ano: introjetado até o limite do
automatismo.
Seja como for: novo. E sabe o que você vai fazer? Primeiro, você paga o aluguel,
que em fevereiro descongela, e este talvez seja o último. Depois você tenta dar uma
ordem nas gavetas, e cartas, meu Deus, tantas cartas atrasadas. Aí vem o imposto de
renda. Vai rolando, passa uma semana, duas, três. Em fevereiro, você talvez mude de
casa, em março pensa em ir até a Bahia, no Carnaval, quem sabe Olinda? Mas não há
voos, nunca há voos. E São Paulo vazia até que tudo bem. Dói um pouco, mas a gente
aguenta. E esse ano, que não acontece?
Em março você toma um porre e incomoda todo mundo, suja um pouco no
edifício, falta ao trabalho. Uma semana paranoica, esperando consequências. Então
você emerge, e tudo igual, meu Deus, tudo, tudo igual. Você pensa em voltar à
terapia, fazer musculação, cooper, ioga, converter-se ao budismo ou usar um
daqueles aparelhos nos dentes que mudam totalmente a personalidade (para melhor,
evidente). A crise passa: em abril você se apaixona. Abril não, melhor maio, poesia
fácil. Em abril você, severo, se recolhe. Nada de bares, nada de noites: entrega-se a
uma daquelas Leituras Que Modificam a Vida. Digamos Duna, de Frank Herbert,
digamos A divina comédia, digamos Dom Quixote — qualquer coisa assim: que
modifique tudo.
Aí chega maio. E maio é aquele mês em que você se apaixona. Nunca foi assim,
nunca desse jeito, nunca. Os olhos brilham, o coração bate taquicárdico. Desta vez vai
dar certo, embora ninguém saiba exatamente o que seria dar-certo. Mas desta vez —
ah, desta vez — vai dar. Em junho ou julho, alguém te abandona e você quase-quase
desmorona. Fazer o que com a poupança reservada pras passagens (duas, só de ida)
para as ilhas gregas? Mas você é duro, José: redecorar o apartamento, por que não?
Aquela orgia de tapetes, quadros (uma Mira Shendel, enfim!), videocassete, micro-
ondas, freezer. Delícia de delírio yuppie.
Em agosto você não aguenta mais. Sempre os agostos. E morre alguém: ai, o
tempo, a morte, o ser, o nada. Você geme e geme, mas consegue se arrastar até
setembro. Em setembro, nasce alguém. E é tão bonitinho e tão vivinho e cheirosinho
com aquele jeitinho de quem nunca viveu picas, o idiota. Quem sabe na mesma
época, você começa a se interessar por plantas, ervas, chás, homeopatias. Em outubro
você está tão reciclado que decide mudar de vida — e porque este país não dá mais,
já que vai mudar de vida, muda também de país. Escreve cartas, dá telefonemas,
batalha bolsas. Em novembro, ai, baixa uma preguiça: verão chegando, chope gelado
& mulatas. Além do mais, você acaba de conhecer alguém — e desta vez, ah, desta
vez, desta vez. Então volta aquela tonteira doce dos dezembros, e, pensando bem,
lembrando tudo, até que não foi um mau ano, você reconhece entre vinhos,
champanhas e panetones. Falar em champanha, está chegando a hora de abrir mais
um. Você suspira, agita a garrafa, pressiona a rolha. Muito bem, parabéns: você não
queria um ano novinho em folha? Pois aí está.

P.S. — Andei num astral tão bom que hoje me deu esta vontade incontrolável de ser um
pouco ruim. Sorry: foi incontrolável. Isola!
O Estado de S. Paulo, 7/1/1987
São Paulo, 40 graus

Ai, quem me dera uma palmeira, um mico na bananeira. Quem me dera um marzão azul e
besta…
Domingo de sol, céu azul em Sampa, verão explícito no ar. Apartamento-jaula para
quem não saiu da cidade, nem tem piscina ou banheira. Não há disco, nem livro ou
papo telefônico que satisfaça. Não há Tutty Vasques que refresque. Moleza baiana no
corpo, janelas escancaradas para aquela estupidez de saúde lá fora. Inútil chamar aos
quatro ventos radicalidades do tipo “nunca tive um temperamento tropical”. Trópico
ardente (Câncer ou — raios! — Capricórnio?) na cabeça, rua Augusta afora.
Fantasia impossível: por que não desapropriam Santo Amaro, por exemplo, e
fazem um mar? Eu disse: um MAR, que nem Chica da Silva. Vou escrever uma carta
para o prefeito, levantar abaixo-assinado, desaproprie Santo Amaro, a avenida Santo
Amaro só vai fazer falta pra quem mora lá. Brisa fresca de repente numa esquina da
Oscar Freire, cheiro ilusório de sal. Os darks foram varridos das ruas — e agora,
(Wilson) José? Passam blusinhas vermelhas, bermudas amarelas, minissaias verdes,
frentes-únicas roxas e laranja. Vontade de a vida ser igual à capa daquele velho disco
de Cat Stevens, lembra? Vontade de estar dentro de um filme de David Neves, não
de Carlos Reichenbach. Vontade de ser uma letra de música de Evandro Mesquita,
não de Itamar Assumpção. Horror supremo: ser um pagode com Beth Carvalho. Mas
COM MAR. A paulistanice adotiva, mas orgulhosa, balança e dança no suspiro: ah, o
Rio de Janeiro!
Invocado o Rio de Janeiro, dois amigos meio-cariocas me arrastam para o teatro.
E eu tenho medo: não, por favor, teatro — teatro com texto, com marcação, drama &
muita emoção rolando solta —, pelo amor da sacerdotisa Viviane, ainda por cima
neste calor, N-Ã-O. São irrecusáveis: A síndrome do Super-Homem, puro bobajol. Me
deixe seduzir, além do mais, adoro a Iara Jamra. Táxis sofridos, suarentas corridas,
malhados taxímetros: não está mais em cartaz. Por que, com mil graus Fahrenheit, os
grupos teatrais só avisam os jornais quando entram em, e não quando saem de
cartaz? Iara Jamra, preciso ver A síndrome!
Estonteados pelas vielas do Harlem — digo, Bixiga. Voltar pra casa? Nem
pensar. Então, a cilada. Não posso citar nomes, não insistam, de saída já deixo claro
que não vou entregar ninguém. Afinal, fazer teatro aqui é barra pesada, o pessoal tá
cheio de boas intenções, mas não tem grana, Brasil, você sabe, tudo na raça, brava
gente. Vamos assistir a uma, digamos, unanimidade de underground. Ai, como eles
gritam. Por que ator brasileiro precisa dar o texto tão gritado e rápido? Por que, com
dez mil fornos micro-ondas, o ator brasileiro fica tão preocupado em atuar? Meu
guia, me manda uma Maria Adelaide Amaral, um Naum Alves de Souza, uma
Marilia Pêra na próxima temporada, porque eu não suporto mais teatro feito como se
nunca tivessem existido os Sex Pistols, o Plano Cruzado, a Laurie Anderson, o
Reinaldo Moraes, o Pod Minoga, a aids ou o Olhar Eletrônico. Cadê o contemporâneo
no teatro brasileiro? Me avisem, que eu não encontro.
Chopes no Longchamps, lua de neon nessa inutilidade de céu limpo estrelando
sobre Sampa. Ai, quem me dera uma palmeira, um palmo de areia. Ai, quem me
dera um sagui na bananeira. Ai, quem me dera um horizonte de marzão besta pra
gente deitar olho na linha do horizonte e não pensar nada. Nada de nádaras, horas a
fio. Ai, que preguiça.
Carma de paulistano é imaginar o Rio de Janeiro em janeiro. Fevereiro também.
Mas logo chega março, e ficaremos inteligentes, criativos & vanguardistas outra vez.
Questão apenas de competência, companheiros, como diria o Piva. Resista daí, você
que também não tem férias, que eu resisto daqui. Amanhã de manhã bem cedo passo
numa agência de turismo e pego uns folhetos turísticos do Havaí. Só pra me abanar.
E não me exijam profundidades abissais com este calorão. Este singelo canteirinho de
abóboras é o máximo que consigo hoje. Quero meu leque.
O Estado de S. Paulo, 14/1/1987
Nem só de Aurelião…

Nem cheirando. A Darkira dá release o tempo todo. Prefiro fazer meditação ocidental
Sou leitor assíduo e fã confesso da última página do “Divirta-se”, no Jornal da Tarde
das sextas. No último, Cristina Iori organizou um glossário de palavras e expressões
de gíria usadas pela moçada urbana. Como nem só de Aureliões a gente vive, passei
o fim de semana fazendo uma minipesquisa — e aqui vai minha colaboração à lista
de Cristina:
Dar muita explicação. Você vai a um lugar onde não conhece ninguém e tem
Release —
que ficar contando se trabalha, se estuda, e onde, e qual o seu signo, e de que filme
você gosta: “A festa tava média. Fiquei dando release o tempo todo”.
Situação meio hippie. Acampar em Mauá é o paroxismo da vivência. Tomar
Vivência —
ácido, fumar maconha e fazer macrobiótica é supervivência.
Vem de saia-justa, situação constrangedora, que tolhe os movimentos: “Rolou a
Saia —
maior saia lá em casa”. Quando muito justa, a saia fica egípcia, ou seja: tão justa que
só pode ser usada de perfil.
Sapateado — Clima lésbico. Maria Bethânia cantando junto com Rita Lee, no Chico &
Caetano, foi um sapateado.
Figueira — Rapaz grande, musculoso, tipo Rambo, que ocupa espaço.
Jacira —Homossexual afetado, afeminado, estridente: é uma Jacira. Tem variações:
Darkira (uma Jacira dark); Japira (uma Jacira japonesa); Yupira (uma Jacira yuppie);
Uspira (uma Jacira que estuda na USP) etc.
Xotele — Garota biscatinha, que só pensa em sexo.
Dinossaura —Pessoa antiga, por fora, não necessariamente velha de idade, mas
velhíssima de cabeça. Exemplos abundam, mas dá processo.
Pessoa ou coisa devagar, que atrasa os lances. Fazer pós-graduação é carroça.
Carroça —
Ver filme de Lelouch é carroça.
Xuxa — Ficar bonita ou bonito (homem também pode usar), limpo, saudável, gostoso:
“Fui à sauna e saí uma xuxa”; “Jacqueline tá uma xuxa”.
Pessoa chata, alugante, que fica andando atrás de você, não desgruda e puxa
Encosto —
papo o tempo todo: é um encosto.
Naja — Pessoa que diz maldades com charme, graça e inteligência. Exemplo máximo:
Telmo Martino, Tutty Vasques, Paulo Francis e Fanny Abramovich são najíssimas. As
najas dizem najices — um exemplo, do Telmo: “Zezé Motta é uma Leci Brandão que
foi às compras”.
Relação amorosa passageira. Vem da linguagem jornalística — fazer
Duas de catorze —
um título em duas linhas de no máximo catorze toques: “Nosso amor não passou de
duas de catorze”.
Musgo —Relação amorosa neurótica, densa, longa, cheia de discussões, ciúmes, cenas e
cobranças: “Tava indo tão bem, de repente virou musgo”.
Sandálias femininas de verão, meio punks, fechadas na frente da
Coturno-frente-única —
perna e abertas atrás.
Quando termina ou acontece alguma coisa. Tem que dizer rapidinho, três
Inaugurou —
vezes: “Inaugurou-inaugurou-inaugurou”. Uma coisa ou pessoa estonteantes
também podem ser uma inauguração: “A torta de galinha do Ritz é uma
inauguração”; “Lala Deheinzelin é uma inauguração”.
Karatê boliviano — Cheirar cocaína: “Pedro é faixa-preta em karatê boliviano”.
Meditação ocidental — Ver TV: “Hoje não tô a fim. Vou ficar em casa fazendo meditação
ocidental”.
Programa de índio. Não querer fazer alguma coisa de jeito nenhum:
Nem cheirando —
“Show do Beto Guedes? Nem cheirando”.
Situação ou pessoa barra, mas legal: “Márcia Denser é metal; Cláudia Wonder
Metal —
é metal; Lobão é metal; acabar a noite no Vai Improviso é metal puro”.
Pessoa tão linda, mas tão linda que sua existência é uma prova da existência
Prova —
de Deus: “Mariana de Moraes é uma prova; Christopher Lambert é outra”.
O Estado de S. Paulo, 21/1/1987
Onde andará Lyris Castellani?

Tinha olhos verdes profundos, abissais. E aquelas coxas morenas feitas de mel e mal
Jamais esquecerei Lyris Castellani. Mas eu tinha esquecido que jamais esqueceria
Lyris Castellani. Só há umas duas semanas comecei a lembrar outra vez. Deve ter
sido provocado por uma crônica de Marcos Rey, perguntando por Elvira Pagã, mas
certamente continuou com um encontro casual com Wladir Dupont. Há alguns anos,
num jantar, conversando sobre essas deusas misteriosamente desaparecidas — entre
mais de dez pessoas (todas versadas nesse ramo da cultura inútil), só o velho e bom
Wladir lembrava dela. A minha deusa para sempre preferida: Lyris Castellani.
Não que tivéssemos tocado no assunto, Wladir e eu. Nem uma palavra. Deixei-o
na chuva e saí pensando em Lyris — onde andará? onde andará? — assim, numa
voragem vertiginosa. Eu precisava saber se havia algo no arquivo do jornal sobre ela:
ridículo escrever sobre Lyris sem uma foto. E havia: nem uma linha de texto, mas
quatro fotos preciosas [...], embora nenhuma delas seja daquelas que eu recortava e
colecionava, com paixão e estranheza, entre os doze e os quinze anos. E lá se vão
tantos, tantos. De roldão, sem Lyris.
Jamais vou lembrar exatamente da primeira vez que a vi. Mas deve ter sido nas
páginas de O Cruzeiro ou Cinelândia. O que Lyris tinha para me enlouquecer tanto?
Eu conto, embora doa: tinha olhos verdes profundos-abissais. Tinha lábios carnudos
de pecado, tinha a cintura fina de vespa e — acima de tudo, antes de nada — Lyris
tinha COXAS. Ah, que coxas! Tão grossas e sólidas que merecem este detestável
ponto de exclamação que acabo de usar. As coxas de Lyris eram tão monumentais
que, aos poucos, consegui iniciar e seduzir meu irmão Gringo e meu primo Beco nos
mistérios de Lyris. E Lyris deixou de ser nome próprio para se tornar substantivo,
sinônimo de: coxas. Quando a gente espiava um par especial delas, nos
comunicávamos em código: “Que Lyris, hein?”
Aos poucos, descobri tudo sobre ela: Lyris era bailarina de O Beco, em São
Paulo (e eu lá, nos cafundós da fronteira com a Argentina!), depois foi lançada por
Walter Hugo Khouri como atriz séria em A ilha, ao lado de Eva Vilma e Luigi Picchi,
filmado em Bertioga. Andei à cata do filme durante anos. E valeu o encontro: guardo
gravada a fogo na memória a imagem de Lyris encostada numa rocha áspera. Com as
coxas à mostra. Aquelas coxas. Lembro dela num pequeno papel, em Fronteiras do
inferno, tropical e demoníaca, e de uma cena forte de estupro num filme de cangaço
(seria A morte comanda o cangaço?). Em todos eles: olhos verdes fundos como o mar,
cintura que se podia fechar numa mão. E coxas. Coxas de coluna grega, coxas
morenas de mel e mal, coxas alucinantes onde qualquer um, fácil, poderia perder-se
para sempre. Como Ulisses perdeu-se entre as sereias. Como eu me perdi até hoje.
Nunca mais soube dela. Nem Abelardo ou Laurinha Figueiredo souberam
informar. Posso imaginá-la casada com um conde austríaco, morando em Viena. Ou
numa casinha com quintal, quem sabe em Vila Mariana, entre roseiras. Se quero me
doer, penso nela empapuçando-se de gim pelas bocas da vida, com um recorte
amarelado de jornal na bolsa, entre vidros de Dienpax. Que morta não estará, pois
Lyris é imortal. Mas prefiro imaginá-la feliz: as coxas de Lyris eram a garantia mais
segura de um futuro daqueles do tipo feliz para sempre. Que certamente ela teve.
Mas eu a quero de volta. De alguma forma irracional, como se quer o tempo que
se foi. Por favor — como Drummond procurava Luísa Porto, eu procuro Lyris
Castellani. Procurem, procurem. Até achar. Só não me digam nada se, porventura,
ela teve um destino infeliz. Então prefiro não saber. Melhor guardá-la até o momento
de minha morte para sempre assim como a tive, tantas vergonhosas vezes, na minha
adolescência. Me escrevam, me telefonem, me deem notícias de Lyris Castellani. Se
por acaso cruzarem com ela na feira, no elevador, no bar da esquina ou no Gallery,
digam a Lyris que mando meu mais carinhoso beijo. E que jamais a esquecerei.
Domingo último, enlouquecido, casei com ela no altar criado por Mira Haar, em A
trama do gosto. Casei três vezes. Casaria dez, casaria cem, casaria mil.
O Estado de S. Paulo, 28/1/1987
Beta, beta, Bethânia

Então ela chega e diz: “Dá licença, rock and roll, que a tia vai cantar o amor”
Os muito darks que me perdoem, mas Maria Bethânia é fundamental. Sei, vocês vão
dizer que ela é brega, careta, exagerada, melodramática. Pode ser. Mas essa coisa
chamada vida, onde estamos metidos até o pescoço, às vezes também não é brega,
careta, melodramática? A vida é mais Nelson Rodrigues ou mais Clarice Lispector?
Mais Augusto dos Anjos ou Emily Dickinson? Fassbinder ou Jacques Demy? Philip
Glass ou Dead Kennedys? Mais Sex Pistols ou mais Cecília Meireles? Bukowski ou
Bergman?
Tudo isso, sim, e muito mais. O engarrafamento às seis da tarde de uma sexta-
feira de chuva, na marginal do Tietê, pode ser uma emoção-Titãs (tipo “Bichos
escrotos”). Transar com a garota prostituta da rua Augusta, de minissaia de couro e
correntinha no tornozelo, pode ser uma emoção-Dalton Trevisan. Dar um espirro
bem na hora de dizer eu-te-amo pode ser uma emoção-Woody Allen. Assim por
diante, cada coisa sendo uma coisa diferente. Porque o que vai sendo vivido e sentido
por cada um é tão particular que, mesmo lugar-comum ou já cantado em prosa e
verso, é para sempre também único. Infinitiva e indivizivelmente subjetivo.
Nossa, como estou me dispersando… o que quero dizer é muito simples —
adoro Maria Bethânia. Por um tempo, aposentei Eurythmics, The Cure, Talking
Heads, Legião Urbana, Sting, Paul Simon — só consigo Bethânia.
Ando tomado por emoções-Bethânia. Essas, que estão morrendo à míngua,
porque não é moderno ter emoções. Não é in sentir amor, envolver-se. Ficou out
dizer coisas como “quero ficar com você/ e é tão fundo que eu posso dizer/ que o
fim do mundo não vai chegar mais” ou “quando os caminhos se separam/ não tem
razão que dê mais jeito” ou “é tão difícil ficar sem você/ o teu amor é gostoso
demais”. É burro cantar coisas que eu, tu, ele, nós sentimos? É brega ter desejos e
carências e dores e suspiros assim, de gente?
Sentir não é brega: ao contrário, não existe nada mais chique. Emocione-se, e
seja rei da sua insensatez. Seja nobre, seja divino, no desconcerto das emoções. Maria
Bethânia é muito chique, e quase ninguém está vendo isso. Em “Dezembros”, sem
querer fazer nenhuma revolução, ela chega e diz “Dá licença, rock and roll, que a tia
vai cantar o amor”. E eu peço: Crianças, cessem as guitarras, os teclados, os
sintetizadores — um minuto só — e prestem atenção na voz quente dessa mulher
linda do jeito inverso da beleza, cantando (que ousadia!) amor.
Sei: a aids está solta, e o que era possibilidade de amor agora é possibilidade de
morte. Nem por isso é possível parar de amar. Você consegue? Eu não. E não tenho
medo. Sem platonismos, nem zen-budismos: quero que pinte o amor-Bethânia,
dançar de rosto colado, pegar na mão, à meia-luz, desenhar com a ponta dos dedos
cada um dos teus traços, ficar de olho molhado só de te ver, de repente, e, se for
preciso, também virar a mesa, dar tapa na cara, escândalo na esquina, encher a cara
de gim, te expulsar de casa e te pedir pra voltar.
Darks, pós-modernos, minimalistas, glitters, apocalípticos, concretistas,
skinheads, me perdoem. Na noite de sábado, caminhando sozinho pela avenida
Paulista, o quarto-crescente brilhando sobre a torre da TV Globo, uma vontade
desesperada de ter alguém — as únicas canções que me vieram à mente para cantar
baixinho foram canções de Bethânia. Doía fundo estar perdido na grande cidade, era
completamente sem remédio ser só uma pessoazinha machucada. Mas brotou então
um orgulho tão grande de ser ainda capaz de sentir o coração cheio de emoções-
Bethânia que era quase como uma felicidade. Sagrada, do avesso — que importa? Era
real, era vivo. Isso é muito, e Bethânia canta.
O Estado de S. Paulo, 11/2/1987
Um prato de lentilhas

Queremos nossos direitos, nossos futuros, nossos sonhos. Nosso ridículo votinho…
Parem o mundo que eu quero descer. Só um pouquinho, não vai atrapalhar ninguém.
Deixa eu descer do mundo, que tá duro demais. Ou pelo menos descer do Brasil, que,
se o mundo tá duro assim, este país então tá insuportável. Ministro Celso Furtado,
me arruma uma bolsa de estudos. Pode ser pra Assumpción, Paraguai — estudar
culinária, por exemplo, ou botânica. Não me importo com o curso, nem com o país.
Não precisa ser chique, não, nem do primeiro mundo: África, Oriente Médio,
América Lat(r)ina, qualquer coisa serve. Desde que eu saia daqui. E quando digo
aqui, digo São Paulo, digo Brasil, digo fevereiro de 1987. Digo agora, digo já. Para,
por favor, que eu quero descer.
Seu Zé Sarney, senhores poderosos — sempre tive nojo de política, de poder, de
economia. Até hoje, não tenho a menor ideia do que raios seja uma OTN, e me
sentiria muito mais à vontade dentro de um OVNI (hmmmm, tentação!) do que
diante de um formulário de imposto de renda. Mas senhores comandantes desta
coisa pobre, louca, doente e suja que nem sei mais se posso chamar “Brasil”, vossas
excelências sabem o que anda acontecendo nesta terra? Parece que não. Os senhores
nunca andam nas ruas? Não veem a cara das pessoas? Senhores donos do poder dos
nossos míseros destinos: apenas parem um pouquinho numa esquina qualquer, de
qualquer cidade, e olhem a cara da gente que passa. Por uns cinco minutos, e basta:
vai ser mais eficiente que um Ph.D. em Sociologia.
Vai doer, se é que alguma coisa dói nos senhores (nem sequer a consciência?).
Está escrito na cara dessas pessoas brasileiras que elas não têm um futuro, não têm
onde morar. (A propósito, semana passada fui a uma imobiliária, tentar arranjar meu
aluguel — não sou dado a rogar pragas, porque elas pegam, mas um dos senhores
bem merecia passar uma tarde como a que eu passei.) Em qualquer país decente (eu
disse: decente), um ser humano já nasce com sua segurança garantida, é só viver.
Aqui, a gente tem que arrancar — no braço, no dia a dia — o mínimo essencial para
não morrer. Depois te roubam na esquina, no restaurante, no supermercado. E a
gente ainda querendo ser feliz…
Nunca fui fiscal de Sarney, jamais acreditei naquela versão em economês de
Pollyanna chamada Plano Cruzado, como também não acredito nesta ou em qualquer
outra que venha dos senhores. Mas suponho que alguém (alguns) deve ser
responsável pelo que acontece na vida prática do povo, na vida objetiva material. São
os senhores? Então eu tô cobrando meus direitos: porque não tá dando nem pra
comer, nem pra vestir, nem pra morar, e muito menos pra sonhar. Aí fica mais grave,
porque os senhores não têm o direito de matar sonhos. E não venham nos pedir mais
paciência. Estamos muito machucados, muito explorados e enganados para ter essa
coisa mansa chamada paciência. Era Brecht que dizia: “Trazei primeiro um prato de
lentilhas/ porque moral, somente após comer”. Era, sim. Pois é.
Tem mais: QUERO escolher meu presidente. Exijo. Não fui eu nem ninguém
quem escolheu esses senhores que estão aí em cima arrebentando a vida da gente.
Estamos zerados no banco, despejados, assaltados, e precisamos comer amanhã. E
falo no plural porque sou só um brasileirozinho igual a milhões de outros,
certamente — eu sei — com muito mais privilégios do que a desgraçada maioria.
Com ou sem privilégios, quero os meus direitos. Quero meu futuro. Quero meus
sonhos. Quero pelo menos meu ridículo votinho. Quero, não; queremos. Quem me
dá? Pra quem — desde que roubaram a minha juventude, em 1964 — eu posso
reclamar?
Fico com ódio, e no meio do ódio me voltam à cabeça aqueles versos de Mário
Quintana: “Eu nada entendo da questão social/ eu faço parte dela, simplesmente…”
Que bom que a gente ainda pode lembrar de versos. Até querer trocá-los por uma
metralhadora?
O Estado de S. Paulo, 18/2/1987
Anjos da barra pesada

Uma viagem, um show, um amigo, um filme: aqui e lá, perguntas e respostas ainda são as
mesmas
Semana passada, fui ao Rio. Estava exausto, sem energia. Tempos atrás, quando você
andava assim (exausto; sem energia), ia ao Rio. Costumava dar certo. Desta vez, não
deu. Chovia, não tinha sol. Pior, e mais insidioso que isso, havia pelo ar esse mesmo
tipo de medo e desamparo que deixam ainda mais cinza o ar de São Paulo. O que
está havendo com este país? — continuei a perguntar lá, como pergunto aqui. E
todos respondiam, lá, o mesmo que respondem aqui: dengue, meningite, aids, caos
econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro.
Mas insisti. Umas noites, uns bares. Fora o belo e incompreensível Electra com
Creta, de Gerald Thomas, o melhor — ou pelo menos o mais vital, o mais cheio de
pique — vinha de São Paulo mesmo: Cláudia Wonder e a banda Jardim das Delícias.
Não consigo compreender como uma gravadora ainda não contratou Cláudia para
gravar um álbum chamado Vem pra barra pesada, meu, título da versão que ela canta
de “Take a walk on the wild side”, de Lou Reed. Assistindo Cláudia, de repente:
Cazuza. Que vem aí, de disco novo pela Polygram, chama-se Só se for a dois. Mas tem
de esperar até março. A gente espera.
De volta a Sampa, o Rio veio atrás: primeiro, com Pedro Paulo de Sena
Madureira, atualmente editor da Guanabara (que vai publicar aquela biografia de
Virginia Woolf, escrita por Quentin Bell). Pedro Paulo é a mais completa tradução de
Vem pra barra pesada, meu — versão chique. Não conheço quem resista a ele, à
conversa brilhante e ao agito: drinques, jantar, dançar, varar a noite, cafés da manhã
e, se você facilitar, almoço e drinques e jantar — tudo de novo. Fiquei de cama um
dia inteiro. Liguei a secretária eletrônica e deixei dançar trabalho, terapia, matérias,
telefonemas. As pessoas perguntavam: que-que houve com você ontem? Como pra
bom entendedor, meia palavra — você sabe —, respondia cheio de culpa, mas com
um argumento imbatível: Pedro Paulo.
Quando saí da cama, querendo me recuperar do Rio, o Rio chegou novamente.
Desta vez, pelo correio, na forma de Paissandu Hotel, livro de Armando Freitas Filho.
Armando é poeta, e do mesmo nível de Rubens Rodrigues Torres Filho, e Antonio
Fernando de Franceschi. Folheio ao acaso o livro de Armando, encontro os versos
que apunhalam: “Um verão passa atrás do outro/ no corredor — ninguém/ está de
férias no espelho:/ somos só sentinelas/ até a morte”.
Fora do poema, o verão continua passando. Para exorcizar o Rio, resolvo ver
Anjos do arrabalde, filme de Carlos Reichenbach. O primeiro filme de Carlão que vi foi
Filme demência, no último festival de Gramado. Não gostei, escrevi falando mal. Ele
chegou e perguntou: “Por que você detesta a vanguarda?” (eu também tinha falado
mal de Brás Cubas, de Júlio Bressane). Falei qualquer coisa como: “Não detesto a
vanguarda. Detesto o que é chato”. Era o que eu achava do filme: chatíssimo.
Mas Anjos do arrabalde me ganhou. Por trás do perfil de três professoras de
subúrbio (com uma Betty Faria sensacional: se Elza Soares é a nossa Tina Turner,
Betty Faria é a nossa Jane Fonda), rola um dos retratos do Brasil mais atuais e cruéis
que vi nos últimos tempos. Cruel e realista: cheio de violência, miséria, machismo,
preconceito. Saí abalado. Na noite abafada de Sampa, aqueles anjos estavam soltos
em cada esquina, em cada cara que passava atrás das vidraças dos ônibus em direção
aos arrabaldes. Nenhuma alegria, neles ou em mim. E em você?
Na noite abafada de Sampa, de volta a Sampa, depois de uma semana tentando
negá-la, os jornais exibindo manchete sobre a moratória, continuei a me perguntar: O
que está havendo com este país? E todos respondem, com esse desinteresse trágico
que também ando sentindo: Ora, dengue, meningite, aids, caos econômico, falta de
amor, falta de esperança, falta de futuro. Se alguém acrescentar “normal”, eu grito.
O Estado de S. Paulo, 25/2/1987
Suspiros de domingo

Por trás das palavras gordas, às vezes tem coisas bonitas acontecendo bem devagarinho
Minha amiga Márcia Denser vezenquando suspira baixinho e diz: “Ah, o amor —
essa palavra tão esbelta…” Pois meu último fim de semana começou, na sexta à noite,
com uma rajada de palavras gordas. Honra, Pátria, Família, Dever, Sociedade, Justiça,
Verdade, Moral, Ética. Estética não, nem espírito, afeto ou carinho. Nem qualquer
outra palavra assim, esbelta como la Denser garante que o amor é, e eu acredito.
Intoxicado da gordura açucarada daquelas palavras (e eu não como açúcar
desde que li Sugar blues, há quase dez anos), volto para casa e encontro a primeira
carta de Marion Frank, de Berlim. Ela escreve enquanto ouve rádio: “Estou certa de
que cheguei ao inferno” — conta. Heavy como é, logo acrescenta: “Em sua melhor
tradução, claro”. Lá na Schwerinstrasse, Marion gira o botão do rádio e — creiam —
encontra a voz de Maysa. Aqui, na mesa do Ritz, peço outro conhaque (os primeiros
desta temporada outono-inverno) enquanto me pergunto se a moça que olha
ostensiva do balcão quer me namorar ou me bater. Não descobri.
Meu fim de semana continua com a reprise de O beijo da mulher-aranha. Viajo
nos mínimos movimentos de William Hurt e o discretíssimo processo de
desveadização de seu personagem Molina. Desde sua primeira aparição — enrolando
uma toalha nos cabelos e jogando a cabeça para trás, num simulacro de Rita
Hayworth, em Gilda — à medida que vai tomando consciência da realidade, sua
afetação vai desaparecendo. O Molina assassinado por Aninha Braga na Praça da Sé
deixou de ser apenas uma bicha cheia de esgares e trejeitos: tornou-se uma pessoa
triste, quase solene na maneira como escolhe a solidariedade — mesmo mortal —
para destino. O amor — essa palavra tão esbelta — humaniza? E Molina aceita
morrer pela palavra esbelta, não pelas palavras gordas.
Saio do Cinesesc atrapalhado com o trottoir tipo família da rua Augusta, no
sábado à noite. Acabo no Espaço Off, assistindo a Tangos & tragédias, com Nico
Nicolaiewsky, Hique Gomez e Dilmar Messias. A seriedade gorda das palavras e dos
sentimentos aqui é pulverizada pela sátira brilhante, na recriação das canções
melodramáticas de Vicente Celestino e outros. Resta um riso ainda solto no ar,
quando entra Sandra Pêra — e acerta em cheio no blues dilacerado de “Medo de
voar”. Mas a plateia não reage à lembrança de Dancin’ days, das Frenéticas (saudade
dos tempos de Julia Matos!). Caia na gandaia, entre nessa festa: não há mais festa no
ar e, se você cair de boca na gandaia, corre o risco de cruzar aquele vírus. Ela canta “há
uma crise lá fora/ mas meu caminho é feliz”. E enche o pequeno espaço de energia,
enquanto se transforma em espanhola, sambista, rumbeira, travesti, mulher da vida,
Cyndi Lauper, roqueira à beira da overdose. Faz pensar. Sandra Pêra é uma atriz-
cantora-bailarina poderosa. Só está procurando um caminho, e, quando encontrar,
senhores e senhoras, saiam da frente.
O sábado vira domingo, Cida Moreira embala a madrugada cantando “Mais que
a lei da gravidade”, de Paulinho da Viola. Antes de dormir me empapuço das najices
requintadas de Gore Vidal. E a Telesp informa — são seis horas e cinquenta e nove
minutos. Enquanto os governadores tomam posse pelas capitais, meu fim de semana
vai terminando com Marco Breda à minha frente, na mesa do almoço. Ele espia a
tarde Blade Runner derramada no playground do edifício ao lado. Depois diz: “O
domingo é um suspiro”. Sim, e amanhã é segunda-feira.
Fico olhando a fotografia colorida de um enorme girassol amarelo contra um
muro branco, que Gina Oliveira me mandou. Tem coisas bonitas que às vezes
acontecem devagarinho por trás das palavras gordas, não tem? Ou, como diria Tutty
Vasques, “Wim wenders e aprenders”…
O Estado de S. Paulo, 18/3/1987
No coração do Brasil

Lá, onde a vida é mágica. E Estocolmo pode ficar bem ao lado da ilha do Bananal
Há uns três meses me convidaram para ir a Uberaba, conversar com os alunos de
Comunicação. Na confusão de fechamento do jornal, no telefone não ouvi sequer o
nome da cidade. Quis dizer não, mas, porque a vida é mágica e eu tinha esquecido,
sem saber por que disse sim. Não guardei o nome do rapaz que telefonava, e voltou a
telefonar. Quem, de onde? Nélson Bertoni, de Uberaba, você vem? Sim, eu vou.
Semana passada, nesta Antena, falei em Markito. Que não conheci, nunca soube
onde nasceu. Um dia depois da Antena, um dia antes de ir para Uberaba, recebi um
bilhete. Patrícia Zaidan me falava que conhecera Markito na adolescência, na cidade
deles. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, porque a vida é mágica: a cidade
chamava-se Uberaba. Tonto de saudade súbita, sem a menor lógica, ligo para Sandra
Laporta, em Niterói. Ao som de Jim Morrison, um dia ela me levou para a Suécia.
Sandra me lembra que, embora a gente esqueça, a vida é mágica.
Desço em Uberaba quase às oito horas da noite de sexta. No aeroporto, alguém
acena de longe: Nélson. Entramos no carro e, como se fosse a coisa mais natural do
mundo, ele coloca uma fita. De repente, lá estamos nós, perto do selvagem coração
do Brasil, falando de Clarice Lispector ao som de Jim Morrison, que canta “The
ending”.
Corta. Estou parado no corredor da universidade em greve quando se aproxima
um rapaz, louro como um viking, com um exemplar de O ovo apunhalado. Seu nome,
pergunto. Christer Nilsson, ele diz. Alemão? Como se fosse a coisa mais natural do
mundo, ele responde: sou sueco. De repente, ali estou ao lado de Christer, de volta a
Estocolmo — aquela cidade onde comecei a aprender que a vida pode ser mágica —,
lembrando das fogueiras do Midsummer, dos bosques de Kungshrambra. Longe
como numa vida que não fosse mais a minha, dentro e vivo como nesta vida que é
exatamente a minha, divido memórias até agora indivisíveis, no coração do Brasil.
Com Christer, que aos nove anos veio da Suécia para o Rio Grande do Sul,
justamente no ano em que saí: do Rio Grande para a Suécia.
Presto atenção nos olhos puxadinhos de Ivonete (que adora Lou Reed, Velvet
Underground e Bukowski), pergunto se tem sangue índio. Sim: sua mãe, na ilha do
Bananal, onde nasceu. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, me convida
para ir até lá, em julho, quando a ilha é mais bonita. De repente, aqui estou eu,
sozinho num quarto de motel que é puro Sam Shepard, em plena estrada para Araxá,
Sertãozinho e Xororó no rádio, misturando na insônia as aves em extinção da ilha do
Bananal, Goiás, Brasil com as águas geladas do fiorde de Freskati, Estocolmo, Sverige.
Não, nunca compreendi o que quer dizer “colonização cultural”. Sincretismo, repito
morto de sono. Sim-cretismo: Xangô e Thor.
Na tarde de sábado, sem saber por quê, no meio de uma praça, começo a falar
compulsivamente sobre Alex Vallauri. Abraço uma árvore (angico, diz Ivonete;
castanheiro, diz Nélson; jacarandá, penso eu), encosto a cabeça em seu tronco espesso
e, pela terra onde se cruzam todas as raízes, envio meu pensamento mais forte e mais
bonito para Alex. Na hora de voltar, tem um céu muito azul em Uberaba. Nélson fala
em James Joyce. No avião, anoto assim: Eu retribuo o sorriso. Eu correspondo ao
abraço. Eu digo sim. Eu quero sim. Eu sinto sins. Só porque estou vivo. E tudo isso,
que parece mágico, é a coisa mais natural do mundo.
Depois o sangue de Sampa. Na noite da véspera do eclipse em Áries — entre o
susto da morte outra vez batendo à porta ao lado e o espanto dos encontros com as
pessoas do mundo (elas estão por aí: lindas) — volta a certeza ilógica e inabalável de
que, aqui ou lá, longe ou perto do coração do Brasil, a vida é mesmo mágica. Isso é
simples. Feito uma velha canção dos Mutantes, eu me sinto enfeitiçado. Ô yeah, digo,
yeah e axé.
O Estado de S. Paulo, 1/4/1987
Diário de bordo II

Alex rasgou o céu, encheu de estrelas. Mas chove sem parar além do Monte Olimpo
Segunda:
Muito tempo olhando a capa da nova edição de Morangos mofados. Antes de morrer,
Alex rasgou o céu. Por trás há outro céu, cheio de estrelas. E um duende solto no
espaço. Na esquina da Augusta com a Paulista, um cruzamento prenuncia o fim de
semana. Só percebo vagamente. Até de madrugada vendo a festa do Oscar, é sempre
muito engraçado. Quase não consigo dormir de medo, pensando qualquer coisa
assim “Como será que a gente se sente quando chega aonde Bette Davis chegou?”
Terça:
Sol na quadratura de Netuno — e Mercúrio. Não, não me drogo nem bebo. Tento
controlar as palavras. Elas quase não saem, ou saem ásperas demais. O dia inteiro de
verão extemporâneo, como se houvesse uma bolha à minha volta. Ninguém se
aproxima muito. Nem permito. Debruço na máquina de escrever, olho as colinas ao
longe. Parecem as do morro da TV, em Porto Alegre. Só parecem.
Quarta:
A irritação persiste. Atravesso o dia me debatendo como uma baleia encalhada.
Quem me salva é Antônio Bivar: rolo de rir, à noite: Alice. Que delícia! Saio com a
música de Rita Lee e Roberto de Carvalho na cabeça. Voltando a pé para casa, muito
tarde da noite, lembro de Luiz Carlos Góes, há muitos anos, dizendo “Bivar é um
bálsamo”. Na época, não compreendi. Agora, perfeitamente. Na frente do
Longchamps, Hugo Prata acelera a moto, Giovanna Gold na garupa. Depois Maurício
Villaça conta histórias duras no balcão. Eu compreendo.
Quinta:
Querendo desesperadamente escrever uma história, antes que fuja para sempre.
Corro de um lado para outro — trabalho, correio, telefones, bancos. Consigo anotar
algumas frases no caderninho. (A mãe não mostra surpresa. Fuma muito. Paredes
descascadas. Um sorriso para o espelho, as manchas nas costas.) Preciso de tempo, preciso
parar com o jornal, senão as histórias continuarão sendo devoradas. Sem elas não
vivo. Ou vivo assim, a seco, sempre esta coisa atravessada na garganta.
Sexta:
Fumo demais, das onze da manhã às nove da noite, acorrentado no jornal. Fujo
correndo, ao menor sinal de liberdade. Menos uma sessão maldita. Na batalha dos
táxis, lembro que há mais de mês não vou ao cinema. Enumero todos os filmes na
cabeça. Nem sequer Rumble fish. Assim não dá, assim não dá mesmo. Gil me apanha e
saímos para o Réquiem das harpias. No banquete do Olimpo, divido uvas com Teté
Darkinha. E se tivesse mesmo sido ator? As garotas brilham. E Marisa Orth continua
sendo A Melhor: é um Zeus nos acuda. Chove sem parar além do Monte Olimpo.
Sábado:
Gil treme de febre, não consegue ir embora. Nem eu permito. Um mar de chuva lá
fora, um mar de Novalgina em gotas aqui dentro: impossível sair. E todos aqueles
filmes… Alex Flemming me chama para ver os quadros novos, só segunda. Ainda são
dragões? — esqueço de perguntar. Viro o botão da TV, não acredito no concurso de
Miss Brasil. A cor foge dos músculos de Schwarzenegger. De noite, na cama, eu fico
pensando — lembra? Imaginava que nunca mais. Prazer misturado com susto.
Domingo:
Guilherme Almeida Prado inventa histórias sem parar. Alberto Veiga, LiIian Lara.
Onde andará? Com Jacqueline, Hugo e Giovanna, procuramos pizzas pelos jardins.
Penso em Gil, sozinho em seu apartamento de Santa Cecília. Copio um verso de
Wallace Stevens, que Luiz Schwarcz mandou: “E no entanto nada mudou além do
que é irreal”. O sono, então, é um poço.
O Estado de S. Paulo, 8/4/1987
Querem acabar comigo

A gente corre. Para ganhar ou perder a vida? Resta cantar aquele velho Roberto Carlos
São nove horas da manhã de segunda-feira. Estou sentado aqui na escrivaninha, mas
hoje não tenho nada a dizer. Quase nada. Ou o que teria a dizer são as coisas que só
interessam a mim, não a quem lê. Então, hoje vocês vão ter paciência comigo. Hoje
tem sessão queixa.

Andei fazendo contas: há treze meses escrevo aqui, uma vez por semana. São
pelo menos cinquenta e duas semanas, pelo menos cinquenta e duas crônicas como
esta. Eu acho muito. É que nem sempre consigo escrever sem sofrer um pouco.
Mesmo quando até me divirto, sempre é necessário remexer um pouco mais fundo, e
remexer mais fundo cansa. Ando cansado. Porque não é muito simples escrever, não
é assim: você senta, põe papel na máquina e escreve. Às vezes não vem nada. Outras,
vem confusamente. Só depois de escrever três ou quatro laudas aparece uma frase —
e essa frase é a coisa, o resto não interessa.
Escrevo geralmente aos domingos, ou às segundas de manhã. Mas desde a
quinta ou sexta-feira começo a sofrer vagamente. Nos últimos tempos tem sido mais
grave. Porque ando muito — digamos — espantado com o mundo, daquele jeito que
só dá vontade de olhar para ele (às vezes nem isso), sem nenhum comentário a fazer.
Escrevo lento demais, preciso de tempo para pensar, reler, reescrever. Um domingo
inteiro nem sempre basta. Há treze meses não tenho domingos — aquele dia em que
os outros vão ao cinema, namoram, visitam amigos. Os outros, não eu. Eu fico em
casa, escrevendo. O mais complicado é que, para escrever, é preciso ver o mundo.
Aos domingos ou nos outros dias. Ir ao cinema, namorar, visitar amigos — essas
coisas. Não se arrancam palavras do nada: as palavras brotam de coisas e seres
viventes. Há cinquenta e duas semanas, vivo muito pouco. Porque, além desta
crônica, fico no mínimo seis horas diárias dentro do jornal. E jornal — quem não
sabia fique sabendo — acaba com a cabeça (e o corpo) de qualquer um.
Essa escassez de tempo está clara agora, pouco mais de nove horas da manhã de
segunda-feira, na desordem absoluta sobre a escrivaninha. Pilhas de cartas não
respondidas, livros que só comecei a ler e não consigo terminar (uma Susan Sontag
aqui, um Edmund Wilson ali), se olhar para o lado, há também pilhas de discos não
ouvidos (conseguisse alguns segundos para aquele U2, aquele Raul Seixas…). E a vida
gritando nos cantos.
Os amigos se queixam: você não telefona, não aparece. Tem gente que pede
release, reportagens, textos os mais diversos, apresentações para exposições, ler
originais, e os que exigem coisas do tipo: você não vem ver minha peça? Como bom
ascendente Libra, não sei dizer não. Digo sempre sim, depois não consigo cumprir.
Cobram, cobram. Ultimamente, toda vez que o telefone toca, já sei: é alguém
pedindo alguma coisa. Têm me pedido muito, ultimamente. E dado pouco. Normal:
gente é assim mesmo.
Agora você me pergunta: bom, e daí? Daí que ando cansado. Hoje estou me
permitindo escrever sobre este cansaço indivisível, sobre minha falta de tempo, sobre
a desordem que se instaurou em minha vida. Por trás disso tudo, o mais perigoso
espreita: a grande traição que estou cometendo, todo dia, comigo mesmo. Porque
escrevendo assim, para sobreviver, não escrevo o que me mantém vivo — outras
coisas que não estas.
O relógio avançou. Já cheguei às minhas cinquenta linhas semanais. Amanhã
vamos embrulhar peixe na feira. Tomo um café, acendo um cigarro. Durante um
minuto, fico pensando em parar.
Parar como param os monges budistas. Parar e olhar. Só um minuto. Pronto:
agora tenho que sair correndo outra vez para ganhar a vida. Ganhar ou perder? Eu
sei a resposta. Mas posso cantar baixinho um velho Roberto Carlos, aquele assim:
“Querem acabar comigo/ isso eu não vou deixar”. Juro que não.
O Estado de S. Paulo, 29/4/1987
Doris, Antonio e Vera

Na janela do 21° andar, ela parecia dizer: “Sim, você pode conquistar seu destino”
Concordo — sim, às vezes, no meio da cidade, a vida apronta algumas coisas bonitas.
Semana passada, aconteceram pelo menos três. Em plena segunda-feira, de repente
eu estava naquele elevador do Maksoud Plaza, ao lado de uma senhora de aparência
extremamente simples e claros olhos serenos, desses que mudam de cor conforme a
luz. Ela espiou a imensidão do hotel pela parede de vidro, olhou para mim atenta,
curiosa, sorriu e comentou: “Mas este hotel é uma cidade. Se eu morasse aqui, acho
que não saía nunca”. A senhora de 68 anos chamava-se Doris Lessing.
Conversando com ela, depois, talvez pela primeira vez na vida senti vontade de
ser velho. Um velho igual a Doris Lessing, com todas aquelas características
(conquistadas, você sente) e que são assim, com maiúsculas mesmo (como na canção
de Philip Glass e Laurie Anderson): Honestidade, Decência, Sabedoria, Dignidade,
Integridade, Inteligência. Quando saí, ela ficou parada na janela do 21o andar, muito
quieta em seu vestido meio amassado, olhando a cidade. Alguma coisa — nela, no ar
ou em mim mesmo? — parecia dizer: “Você pode. Se quiser, você pode conquistar o
seu destino, inventar a sua verdadeira vida. Sim, você pode”.
A semana continuou com um livro, entregue na portaria de meu edifício. Que
peguei correndo e fui abrindo na rua mesmo. Uma capa linda: toda branca e, no alto,
o desenho de um navio sobre o recorte de um texto antigo manuscrito. Você percebe
que o texto é antigo pela caligrafia, daquele tempo em que a escrita manual era quase
arte. Claro, Caminho das águas é um livro de poesia, de Antonio Fernando de
Franceschi. Este é só o segundo livro dele (o primeiro chama-se Tarde revelada), mas,
sempre quando pergunto a mim mesmo qualquer coisa como “O que existe na poesia
brasileira mais recente depois que Ana Cristina se foi?”, respondo: “Ora, existem
Rubens Rodrigues Torres, Armando Freitas Filho e Antonio Fernando”. O poeta da
exatidão, da emoção tão medida pela justeza da palavra que, num primeiro
momento, pode até parecer frio. Não é — como ele mesmo diz, “todo poema
verdadeiro tem algo oculto/ entrelinhas”. Os poemas de Antonio Fernando têm esse
oculto, cheio de riquezas.
A terceira coisa linda da semana teve nome de moça: Vera. Embora, se eu a
chamasse assim, ela provavelmente reagiria e diria, arrumando a gravata: “Meu
nome é Bauer, cara”. Estou falando do filme de Sérgio Toledo, que acho
decididamente um dos melhores filmes nacionais dos últimos tempos. Mesmo
quando, ao dizer isso, lembro de dois fracos que tenho: Arnaldo Jabor e Hector
Babenco. Antes de mais nada, Vera é um filme muito bem acabado, e quem conhece
um pouco do cinema brasileiro sabe como isso é raro. Desde as sequências iniciais,
você percebe que o diretor está tendo um profundo amor pelo que faz. Esse amor
aparece na fotografia (iluminada, de Rodolfo Sanchez), na música (pequenas facadas,
de Arrigo Barnabé), na cenografia (desesperadamente vazia, de Naum Alves de
Souza), no trabalho dos atores (sim, Ana Beatriz Nogueira é espantosa e comovente
na sua contensão). O olhar de Sérgio Toledo sobre o moderno vai além do folclore
modernoso, da mitificação gratuita do urbano — está cheio de uma desolação árida,
como a de Wim Wenders. A contraposição de vídeos, armas e foguetes sugere um
paradoxo inquietante: no meio da tecnologia mais desenvolvida, o humano mais
primário ainda não foi resolvido. O olhar de medo de Vera/Bauer/Ana
Beatriz/Sérgio no final — dói. Porque ninguém pode ajudar o humano que deu
errado quando o social está errado, e para resolver o de dentro seria necessário
corrigir o de fora. E então quem somos nós, tão impotentes e arrogantes?
Loucos, diz Doris Lessing. Enclausurados, diz Antonio Fernando. “Sou outra
coisa”, diz a Vera de Sérgio. Somos todos Veras, eu mesmo digo. Mas você pode —
dizia também Mrs. Lessing. Sim, você pode.
O Estado de S. Paulo, 6/5/1987
Nos trilhos do tempo

Além dos enganos, pairam os poetas que não querem faca nem queijo. Preferem a fome
Outro dia, uma amiga se queixou ao telefone: “Tenho vinte e sete anos e descobri
que, até agora, tenho me alimentado de migalhas”. Falei qualquer coisa banal &
consoladora, como “a vida é assim mesmo, paciência” — e desliguei. Só não desliguei
a cabeça: a frase ficou dias dando voltas dentro dela. Até que, não lembro bem como,
de algum lugar de dentro de mim veio a resposta que não cheguei a dar à minha
amiga: “Mas será que isso que você chama de migalhas não será, afinal, o próprio
pão?”
Fiquei todo enredado num pensamento mais ou menos assim: aos quinze anos,
você espera um bolo coberto de chocolate, recheado de frutas; aos vinte e cinco, você
até dispensa o recheio de frutas, mas ainda espera a cobertura de chocolate; aos trinta
e cinco — ah, um pão doce mesmo serve; aos quarenta e cinco, pode ser pão comum,
desses de água e sal, desde que fresquinho; aos cinquenta e cinco, o mesmo pão, só
que não tem muita importância se for amanhecido — e assim por diante, até
chegarmos às migalhas. Que, se você tiver uma boa cabeça, pode receber como se
fosse uma daquelas tortas Martha Rocha (uma fatia para quem lembrar das tortas
Martha Rocha, famosas nos anos 50).
A passagem do tempo traz humildade e reduz o apetite? Não afirmo nada, só
pergunto, porque não tenho certezas. Talvez por ter andado lendo os dois romances
que Doris Lessing escreveu sob o pseudônimo de Jane Somers (O diário de uma boa
vizinha e Se os velhos pudessem) andei pensando também na velhice. Neste jornal não
se pode escrever palavrão — mas você já percebeu que muitos jovens dizem velha
como se dissessem, desculpem, mulher de vida airada ou ladra? Como se a velhice fosse
um crime e uma vergonha.
Os dias passaram, eu pensei em Rita Lee. Não ouvi o disco novo de Rita, não
tenho nada a dizer sobre ele. Mas Rita ficou furiosa com uma crítica escrita sobre o
disco e, ao que parece, especialmente com uma maldadezinha sobre sua suposta
“menopausa criativa”. Fica assim: quem acusa coloca-se na posição de “jovem-por-
dentro-de-tudo”, e coloca o acusado na posição de “velho-por-fora-de-tudo”. Acaba
virando um joguinho meio lamentável de bom & mau, mocinho & bandido, inocente
& culpado. Por trás de tudo, a suprema ofensa: ser chamado de VELHO.
Então morre Rita Hayworth (maravilhosa Rita, sem a qual Marilyn Monroe
talvez não tivesse existido), há anos esquecida. Em todos os arquivos rebuscam-se
fotos e trechos de filmes da flamejante Gilda — e fotos da mulher esplêndida de
vinte, vinte e cinco anos, são colocadas lado a lado de fotos da velha horrenda de
sessenta, doente e decadente. O subtexto é: o jovem é belo, o velho é feio. O jovem
está perto da vida, o velho está perto da morte. E a velhice, como a morte, é feia e
suja. Será?
Enquanto isso, a vida de cada um corre sobre os trilhos do tempo,
separadamente mas em direção a um destino igual para todos, e no mesmo ritmo
implacável daquele poema de Manuel Bandeira: café-com-pão, café-com-pão. Penso
nos velhinhos como Mário Quintana, cheios do poder discreto de conseguir
contemplar de longe a juvenil palhaçada nossa de cada dia, à espera desses
resplandecentes bolos cobertos de chocolate, recheados de frutas. E que só existem no
sonho. No real, são as migalhas.
Rita, a Hayworth, gira no ar sua luva negra e canta: “Put the blame on mame,
boy” — porque ela não preparou você para a velhice, eu acrescento. Seguro devagar
o novo livro de Adélia Prado, O pelicano, leio e releio um poema chamado “Objeto de
amor” (que não posso transcrever aqui: este jornal não publica palavrão), e acho que
compreendo quando ela diz: “Quanto a mim dou graças/ pelo que agora sei/ e, mais
que perdoo, eu amo”. Foi Adélia, mulher do povo, quem afirmou também num
poema mais antigo: “Quarenta anos: não quero a faca nem o queijo/ quero a fome”.
Eu também: bem-vindas as migalhas que, se Deus quiser, virão.
O Estado de S. Paulo, 20/5/1987
Pílulas calientes

Hoje, de despedida, deixo estas pílulas tipo crônica (anti)social avançadinha


Acontece que ganhei (?) férias: f-é-r-i-a-s, phérias, FÉRIAS. Ótimo para todos nós,
senão vocês iam ter de acabar me internando. Ou eu terminaria estrangulando
alguém na repartição. Minhas férias, jecamente, são juninas. Não vou a Nova York
nem a Paris, nem sequer a Cuba ou mesmo à Bahia. Não vou fazer nada. Nada de
nádaras, nem escrever esta coluna. Para alegria geral, será pelo menos um mês sem
lamúrias com chantili. Digo pelo menos porque, se pintar algum ET no meu quintal,
vou direto pra Canopus e não volto mais. Enquanto isso, de despedida deixo estas
pílulas assim tipo crônica (anti)ssocial avançadinha.
› Prepare-se para o dia 11 de junho. Além de ser aniversário de meu pai, Zaél
Abreu, e da buliçosa Maria Ester Teté Darkinha Martinho (queremos fest a!) — é dia
principalmente da vernissage de Alex Flemming, na Montesanti Galeria. Você pode
achar impossível, mas, depois dos dragões do ano passado, o medievo e perturbador
germânico Flemming está ainda melhor. Anote na agenda: imperdível.
› Sônia Goldfeder, a sensível crítica teatral da Isto É, foi ver Prepare seus pés para
o verão (de Martha Góes, no Espaço Off) e revela para o Brasil: a atriz Grace
Giannoukas é gênio. Confira: a pequena grande Grace é assim tipo uma neo-Regina
Casé. Com sotaque gaúcho, anos 80.
› Falar na peça da Martha: Marisa Orth, sua marvada, você me roubou o sono
desde que te vi fazendo a garota da Cosmopolitan.
› Mudei de canal. De TV. Tirei da Globo: viciei em Helena, na Manchete, a
adaptação de Machado de Assis feita pelo brejeiro Mário Prata, pelo junk-
machadiano Reinaldo Moraes e pelo ecológico Dagô Marquezi. Texto, direção,
iluminação, atuação, figurino, cenografia: bom gosto total.
› Geraldão está solto na cidade. Glauco lançou ontem a Revista do Geraldão; Teve
um tempo em que eu era a Rebordosa, do Angeli. Agora virei Geraldão: só penso em
sexo.
Dia 1o de junho, chega ali na Brasiliense da Oscar Freire. Você vai conhecer uma
poeta encantadora: Flora Figueiredo. Ela lança seu primeiro livro — Florescência.
Lindo, delicado e simples.
› Hoje à noite? Vai lá no Espaço Off ver a eletrizante Laurinha Finokiaro. Com
os quadris preparados para o rock rolando quente.
› Tem nova versão do Madame Satã dos velhos bons tempos na city: o Espaço
Mambembe, na rua do Paraíso. Um lugar onde acontecem Coisas. Por exemplo,
Estúdio Nagasaki, que saiu de cartaz domingo. Hamilton Vaz Pereira, volte logo: eu
preciso de pessoas animadas.
› Descobri por que gosto do Ritz. Além de ter os garçons e garçonetes mais
educados e bonitos de Sampa, de repente toca João Gilberto, Astrud e o sax de Stan
Getz. Até os skinheads relaxam.
› Se você prefere ficar em casa, fique com Linguaviagem. Poemas de Mallarmé,
Valéry, Keats, Yeats e Blok traduzidos por Augusto de Campos. Tanto Augusto como
a Companhia das Letras são garantia de qualidade.
› Rita Lee, ouvi seu disco: não consigo tirar da vitrola. Você é melhor que o
Tutty Vasques. Você atiça minha vontade de viver, amar e ser feliz. Acordo com
“Para com isso”, pra pegar um pique. Depois fico cantando “Picola Marina” (já
aprendi a letra do Bivar). E sabe que conheço o próprio “Músico problema”? A Annie
Peréc, que faz o backing, também…
› Joyce Pascowitch, Nelson Pujol Yamamoto e Cida de Assis: parabéns. A
Around com o Bisso na capa está tão gostosa quanto a Marisa Orth.
› Marildinha Assunção, da WEA, pelo amor de Deus, me manda o disco da
Patife Band. Tenho um mês de FÉRIAS inteirinho pra ouvir e gostar.
› Avenida Paulista, meu amor: please, não incendeie mais. Ô Jânio, ô Quércia:
deem verba pros bombeiros, pô. Cuidem melhor da nossa cidade, senão a ratoeira
pega fogo. E a gente quer é viver (não é, Cláudia Wonder?). Ainda mais em FÉRIAS.
Sete vezes Axé. E bye-bye. Tô por aí.
› Lobão, você é o máximo.
O Estado de S. Paulo, 27/5/1987
Cenas na beira de um abismo

Na manhã do Rio, crescia o tumulto. Era o povo ferido exigindo seus direitos
Rio de Janeiro. Onze horas da manhã de terça-feira, 30 de junho de 1987.
Exterior/Dia:
Manhã de céu alucinadamente carioca. Azul, azul. Névoa transparente sobre a baía,
o mar e os morros, que se vai diluindo aos poucos. A névoa vira nuvem, a nuvem vira
azul. Ar tão limpo que quase dói nos pulmões paulistanos. Na janela do carro, pelo
aterro, uma velha letra de Caetano volta como trilha sonora: “Olhos abertos em
verde/ sobre o espaço do aterro/ sobre o espaço, sobre o mar/ o mar vai longe do
Flamengo/ o céu vai longe e suspenso”.
Quase meio-dia. Biblioteca Nacional, Cinelândia. Cheiro gostoso de livro,
Interior/Dia:
paz. Estudantes, professoras. Tudo quieto, organizado. Estou debruçado com Lúcia
Villares sobre microfilmes de jornais do século passado. Dezesseis de julho de 1889: o
dia em que tentaram matar dom Pedro II. Um ruído — buzinas, gritos —, vindo de
fora, entra pelas janelas abertas, misturado ao azul, e começa a crescer. Comento:
“Eta, Brasil. Biblioteca precisa de silêncio, e toda essa zona aí fora…” Algumas
pessoas começam a levantar das mesas, espiam pelas janelas. Deixo de lado os
microfilmes, resolvo também dar a minha espiadinha. Me debruço numa janela. E
vejo.
Cinelândia, avenida Rio Branco, Teatro Municipal. Cerca de dez pessoas
Exterior/Dia:
estão paradas em frente a um ônibus. Gritam coisas tipo “Abaixo o aumento!”. O
ônibus não pode seguir em frente. Os ônibus e carros que estão atrás, também não. O
engarrafamento aumenta. Lembro de ter lido nos jornais que o preço das passagens
de ônibus foi aumentado. É que pensei assim — ué, não estava tudo congelado? O
tumulto cresce.

Começa a juntar mais povo. Povo-povo: trabalhadores do Brasil — eu, você, nós.
Estão furiosos. De longe, pode-se ler no rosto deles que estão cansados, com fome,
sem dinheiro. O grupo duplica, quadriplica.
No grande salão da Biblioteca, não há mais ninguém nas mesas. Todos na
Interior/Dia:
janela olham o povo, que aumenta e grita e aumenta e grita mais. Impossível
concentrar-se. O barulho de coisa viva, tensa, prestes a explodir, impede qualquer
concentração.
O povo que estava dentro dos ônibus engarrafados desceu para a rua,
Exterior/Dia:
juntou-se ao outro povo. Agora sacodem violentamente os ônibus. Chegam alguns
carros de polícia. Sirenes uivam. O povo joga pedras e vaia. Saia-justa: a polícia tira o
time. Ou finge que tira: pela janela de um carro, o policial joga no ar algo parecido
com um foguete de São João. Quando o foguete bate no asfalto, ouve-se um ruído
igual ao de um tiro. Fumaça, gente com as mãos nos olhos: gás lacrimogêneo. Da
janela, dá quase para ouvir, por trás dos gritos, o coração das pessoas batendo forte.
Inclusive o meu. E o coração do povo, mais forte ainda. Exausto, humilhado,
atrevido, corajoso.
As moças da Biblioteca resolvem fechar o prédio. Estão apavoradas. As
Interior/Dia:
pessoas se entreolham: medo. Com as janelas fechadas, entre os livros, o rugido do
povo que chega lá de fora fica ainda mais assustador. Um funcionário nos leva pelos
corredores até uma saída lateral. Saída discreta pelos fundos.
Exterior/Dia:Zona na rua. Praça de guerra. Gente caminha apressada. Polícia chegando.
Bancos e lojas fecham. Convido Lúcia: “Vamos dar o fora já daqui?” Vamos para o
Largo do Machado: Marrocos perde. O povo brasileiro nunca esteve tão pobre, tão
feio, tão triste. E com tanto ódio, com toda a razão. Congela e corta num mendigo.
São Paulo, três dias depois. Meu quarto. Não consigo dormir. Penso no
Interior/Noite:
que vi, penso no Brasil. Abro o Caderno Ideias do JB. Uma pequena entrevista de
Mário Quintana me alivia a alma. Ele diz: “O Brasil não pode cair no abismo porque
ele é maior do que o abismo”. Amém, velho, bom e sábio tio Mário. Deus te ouça.

O Estado de S. Paulo, 8/7/1987


Me leva pro céu, Luni!

Oito pessoas lindas, com um som irresistível: é o Luni, a melhor banda desta cidade
Assumi, definitivo. Venci minha monolítica timidez: sou tiete do grupo Luni. Aquele
que está em todos os shows, na primeira fila, grita bis, grita bravô! (com acento
francês, em homenagem aos dois saxofonistas), dança, sua, aplaude em pé, depois vai
aos camarins dar beijinhos arfantes de prazer. Cada nova vez, confirmo: o Luni é o
melhor grupo da cidade, do estado, do país. Calma, Caio F., vamos por partes.
No último sábado, a lua cheia, e naquele lugar cada vez melhor que é o Espaço
Mambembe, o show do Luni deixou claro que todo esse deslumbramento é mais que
justificado. Por exemplo: o Luni, graças a Deus, não é (mais) um grupo de rock. A
gastíssima expressão pós-tudo nunca se encaixou tão bem quanto aqui. O Luni
incorpora blues, ritmos afros, caribenhos, new age, samba e tudo o mais que você
lembrar, passa por dentro e por cima do túnel das influências para desembocar num
trabalho que, por lembrar tudo, não lembra nada parecido. São originalíssimos e
cheios de clichês sarcásticos, bem-humorados.
Não, o Luni não gravou nem tem gravadora. Sem citar nomes, um dos
integrantes contou que um famoso produtor disse que o som deles era “eclético
demais”. Pode? Outro argumentou que tinha medo de que o Luni virasse uma cult-
band. Sem sacar que o Luni já é uma cult-band — ou seja, uma banda para os
adoradores dispostos a persegui-los pelo circuito alternativo da cidade (Off, Satã,
Mambembe, o bem-vindo Bodega Bay). Eles não apareceram na Globo, não estão
programados para o Canecão nem à venda na Hi-Fi. Porque este país é burro, mas
isso é outra história.
O Luni não tem estrelas, é uma banda comunitária, aquariana. Eles são oito: os
franceses Gilles Eduar e Lloyd Bonnemaison (que, acreditem, nasceu em Java, viveu
na Etiópia e estudou em Berkeley), o artista plástico Theo Werneck (capaz de receber
James Brown ou Louis Armstrong, em vocalizes arrepiantes de soul e negritude), a
guitarrista Lelena, o trio fundador Fernando, André e Natália, a bela (que faz parte
do grupo de bonecos XPTO, também o melhor da cidade) — mais uma special guest
star, a mulher maravilha Marisa Orth (quem a viu atuando em Criança enterrada, de
Sam Sheppard, ou Prepare seus pés para o verão, de Martha Góes, sabe do que ela é
capaz). Se Marisona, a deusa, enlouquece a plateia cantando “A melhor” (“eu sou a
melhor/ eu sempre fui a melhor”) ou gemendo os versos de Boris Vian na pele de
uma francesa sadomasô (“me machuca, Johnny, me leva pro céu/ eu gosto do amor
que dói”), de repente pode dividir um backing com Natália e tocar modestamente
sua maraca, enquanto chega a vez de Fernando ou Theo ou qualquer outro brilhar. E
como brilham!
O Luni é elegante sem ser afetado, culto sem ser pedante, engraçado sem ser
bobo, bonito sem ser vaidoso, ensaiado à perfeição, sem ser mecânico, chique sem ser
esnobe, brega sem ser cafona. E principalmente música, naturalmente música.
Porque é um som que você pode dançar, o ritmo é irresistível, cantar (seja em iorubá,
espanhol, português, inglês, francês) (Pour quoi, monsieur? é uma miniobra-prima) e
também ver: eles são teatrais, performáticos. Marinheiros, prostitutas, mariachis,
astronautas, brazilianistas, robôs, crianças: fazem número. Passam alegria (que raro),
saúde (oba!), vontade de viver (wow!). Quer maior luxo?
Por tudo isso, repito: o Luni é o melhor grupo da cidade, do estado, do país.
Dou o toque às WEA, Polygrams, CBSs, RCAs da vida: ô, gravadoras, cêis tão de
bobeira, gente! Por falar nisso, prestem atenção também em Os Mulheres Negras e
no Nouvelle Cuisine: depois disso, quem disser que a música brasileira tá em crise, eu
grito. Como vou gritar neste fim de semana, no Circo Voador, quando o Luni, as
Harpias, Marcelo Manifeld, o Mazzipan e outras gentes vão mostrar aos cariocas o
que é que São Paulo tem. Muito além de Jânio ou Quércia, tenho dito.
O Estado de S. Paulo, 15/7/1987
Verão de julho

Permitido se apaixonar, pular corda, votar para presidente, dançar valsa e rock and roll
Você já ouviu falar em “verão de maio”? Claro que sim. Até eu, lá pelos meus treze
anos, fiquei tão fascinado por essa poesia fácil que cheguei a cometer uma novela
com esse título. Escrita na fronteira da Argentina, passava-se não ali, mas na Suíça.
Que nada para mim, naquele tempo, capaz de ser “artístico” ou “literário” podia
passar em outro lugar que não a Europa. Burrices e frescuras à parte, a novela era
péssima. Graças a Deus, perdeu-se. A expressão ficou. E voltou com força nestes dias
paulistanos bêbados de luz.
Como o tempo desta cidade é louco, e escrevo isto na sexta, para sair na quarta,
pode ser que tudo tenha mudado e hoje esteja cinza como só São Paulo sabe ser. Sabe
ser azul também, e, galopando na crista descabelada destas duas últimas semanas de
cores e de cheiros, me peguei pensando no verão de julho, não de maio. Como um
presente que alguém mandou pra gente. Seguinte, ó, a barra tá tão pesada lá
embaixo, vamos providenciar rápido um veranico pra essa gente, antes que venha
agosto.
Sopro de energia, dose de guaraná em pó, beijo na boca — de agora em diante,
a partir deste ano (sem) graça de 87, fica decretado que todo mês de julho (mas pode
ser junho, agosto, pode ser sempre, quando as almas andarem escuras e as pessoas
não se amarem mais) haverá dez ou quinze dias de sol (dependendo do peso da barra
a ser aliviado) e luz para que todos enlouqueçam um pouco de prazer. Se possível
que esses dias coincidam com a lua cheia, e, se possível ainda, em trânsito por signos
doces como Câncer, musicais como Libra, afetuosos como Touro ou divertidos como
Sagitário. Nesse período, ficam intimados os humanos a interromper as dores, a
esquecer as mágoas, a adiar as dívidas, a perdoar os outros. Ficam intimados os
humanos a se tornar cancerianamente suaves, a cantarolar quaisquer canções, mesmo
as tolas, mesmo desafinadas, como librianos. A se apaixonar feito taurinos e a falar
abobrinhas hilariantes, feito sagitarianos.
Fica autorizado aos humanos, principalmente aos paulistanos, relaxar um
pouco nas suas obrigações (é permitido faltar um dia ou pelo menos uma tarde ao
serviço). A ser mais complacente com os outros e consigo próprio. A deixar pelo
menos um dia a barba e a cama por fazer. Certa preguiça fica autorizada. Mas não a
ponto de o sono ultrapassar as manhãs, porque grandes energias estarão
concentradas no primeiro raio de sol, no primeiro canto de pássaro. Abusar um
pouco da cerveja e do vinho branco gelados, é permitido. E dos sorvetes, dos
morangos com chantilli, das peras d’agua. Aconselhável ver e rever qualquer filme
de Woody Allen, preferir Branca de Neve a O declínio do império americano, Rita Lee a
Nana Caymmi, Fred Astaire a Tom Waits, a telenovela Helena a O outro, Fellini a
Bergman — e tudo, tudo o que for mais dia que noite, mais açúcar que sal, mais azul-
clarinho que roxo ou preto.
O vírus da aids será enjaulado: permitidas as paixões devastadoras, os suspiros
amorosos, permitidos os amassos, as cantadas, as paqueras e todas as suas
consequências — desde que gostosas. Aconselhável vadiar pelas praças, respirar o
cheiro de pipoca das esquinas, olhar vitrinas, acreditar em Deus, sorrir para
desconhecidos, acender todas as luzes da casa à noite, dar interurbanos repentinos
(as tarifas serão mais baixas) para Nova York, Berlim ou Júpiter. Dançar valsa e rock.
Dançar valsa e rock and roll, andar de bicicleta, pular corda, girar o bambolê,
procurar óvnis no céu, alimentar cachorros vagabundos. Tudo isso e muito mais será
permitido e recomendável nesses dias em que palavras como crise, inflação e recessão
serão sumariamente riscadas dos dicionários, bem como demitidos seus proferidores.
Votar para presidente é permitido.
Serão assim os verões de julho, de agora em diante. Que fique registrado em
ata. Que se cumpra, que dure fora e dentro de cada um. Amém.
O Estado de S. Paulo, 22/7/1987
A novela da novela

Ou como, depois de quase seis meses, uma história não chegou nem mesmo a nascer
Esta crônica poderia se chamar qualquer coisa do tipo “De como não escrevi uma
novela para a televisão”. Começou em junho último, quando Mário Prata, velho e fiel
amigo, me chamou. Trabalhando para a TV Manchete, ele, Reinaldo Moraes e
Dagomir Marquezi estavam escrevendo a novela Helena, adaptação de Machado de
Assis. Prata queria formar uma nova equipe, para preparar uma nova novela, que
substituiria Helena, no horário das 19h30. Topei na hora. Conosco, começou a
trabalhar Lúcia Villares — mais boa gente impossível. Nessa companhia deliciosa —
Prata, Rei, Dagô e Lu —, com a chefia de José Wilker, do Departamento de
Telenovelas da Manchete, a coisa foi andando. Saí do jornal, disposto a mergulhar no
trabalho, aprender essa outra linguagem.
Primeiro, a Manchete queria uma novela de época, sobre a libertação dos
escravos. Reunimos um material precioso: Lu descobriu um atentado ao imperador
D. Pedro II, em 1889, feito por um jovem estudante chamado Adriano do Valle.
Lemos pilhas de livros sobre o assunto (aproveito para recomendar Retrato em branco
e negro, de Lilia Moritz Schwarcz, publicado este ano pela Companhia das Letras),
fizemos pesquisas em bibliotecas, jornais da época. Lilia, Haroldo Maranhão e
Antonio Candido nos deram umas boas aulas de História do Brasil. Através de
Antonio Candido, chegamos a um romance de Bernardo Guimarães (o mesmo autor
de A escrava Isaura), com o título inacreditável de Rosaura, a enjeitada.
Aos poucos, definiu. Rosaura, mais toda a pesquisa histórica, mais o atentado ao
imperador, resultou numa sinopse chamada Anos 80: uma novela que se passaria em
São Paulo, na década de 80 do século passado. Ambição: remexer no passado deste
pobre país quem sabe ajudaria a compreender melhor seu presente e também seu
futuro (existe, nas mãos de Zé Sarney?). A Manchete aprovou, alguns nomes
começaram a ser pensados para o elenco. Pra cima com a viga, moçada.
Então os planos mudaram. Anos 80 era considerada “boa” demais para o
horário. Foi adiada, para talvez substituir Carmem. Devíamos escrever, para o horário
das 19h30, uma comédia contemporânea, cuja ação transcorresse em São Paulo. Mãos
à obra: deixa Rosaura dormir um tempo. Outra vez Lu se lembrou de uma história
absurda sobre uma herança enorme deixada por um milionário paulistano. A coisa
foi crescendo, algumas personagens foram nascendo espontaneamente, muito vivas.
Então nos avisaram de que o horário devia ser mudado para vinte e duas e trinta
(oba, a censura é mais branda) e a estreia adiada para janeiro.
Começamos a escrever. O tom da novela apareceu: era ao mesmo tempo muito
engraçado e muito bandido. As personagens foram ganhando voz própria. O elenco
já estava quase todo definido. Às vésperas de uma viagem ao Rio para uma reunião
sobre cenografia e figurinos, o aviso de “parem as máquinas!” Em seguida, a bomba
que saiu nos jornais a semana passada: a Manchete decidia cancelar suas telenovelas.
Ou, mais suavemente, adiar ou suspender os projetos em curso. Sensações
misturadas: primeiro a frustração de ver quase seis meses de trabalho desperdiçados.
Aquela melancolia de pensar: pô, mas essas criaturas não vão nascer? Nada mais
triste do que personagens que não chegam a nascer. Tudo isso misturado à revolta
com a situação social do país: falência total.
Terceiro, menos doloroso mas infelizmente mais grave: aquela palavrinha bem
brasileira chamada desemprego. As mãos abanando, sem contrato, um grupo de
escritores não me atrevo a dizer que talentosos, mas pelo menos competentes,
disciplinados, esforçados. E, agora, o que se faz? Ninguém faz nada. Fica assim
mesmo.
Estou escrevendo sobre isso porque minha cabeça está ocupada com isso e
porque outros jornais estão dando versões confusas sobre toda a história. O que
aconteceu foi exatamente o que contei. Estou escrevendo também para pedir
emprego publicamente. Porque não vivo de brisa nem de poesia. Não tenho mesada,
pago aluguel, moro sozinho. Como na velha música de Caetano, “Quem me dá sou
eu”. Resulta que estou em pânico e até peço desculpas por, tão despudoramente,
encerrar pedindo assim: Socorro.
O Estado de S. Paulo, 29/7/1987
Para embalar
John Cheever

Pode ser o som do Nouvelle Cuisine, no meio da noite, repetindo palavras douradas
Mais ou menos um ano atrás, me apaixonei por um disco. Ou melhor: por uma
música de um disco: “Forgetting”, letra de Laurie Anderson para uma melodia de
Philip Glass, em Songs from liquid days. Uma letra muito simples: com o som da
chuva, um homem acorda de repente, no meio da noite, depois de ter sonhado com
antigos amores. Ele não consegue voltar a dormir. Sozinho no escuro de seu quarto,
lembrando aqueles velhos amores, repete muitas vezes palavras como: Bravura,
Gentileza, Claridade, Honestidade, Compaixão, Generosidade, Dignidade.
Um ano depois, agora, me apaixonei por um livro. Fazia tempo que não
acontecia. Noutros tempos, já me apaixonei por um dos livros de J.D. Salinger, me
apaixonei por Clarice, por Fome, de Knut Hamsum, Pergunte ao pó, de John Fante, por
Adélia Prado, pela Metamorfose, de Kafka, por A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, Belos e
malditos, de Scott Fitzgerald, ou Los Premios, de Cortázar. São livros (mas podem ser
canções, filmes, quadros, peças e, antigamente, até pessoas) que você ama tanto que
quer ficar mofando dentro deles, delas. Quer ver toda hora. Absorve o jeito do outro,
e esse jeito absorvido da coisa pela qual você está apaixonado, você fica aplicando no
cotidiano, feito você fosse aquela própria coisa apaixonante. Que nos tira de nós,
alarga.
Estou perdido de paixão por O mundo das maçãs, de John Cheever, uma seleção
de contos que Sérgio Augusto fez, Paulo Henrique Britto traduziu e a Companhia
das Letras editou. Leio em algum lugar que Cheever, morto em 82, era alcoólatra,
drogado e, além do mais, tinha um caso com um de seus assistentes. O que mais
justifica e incendeia minha paixão: felizmente, ele não era “normal”. Não era médio,
não tinha medo. Esse não medo de Cheever transparece no que escreve: tudo tem
uma grande piedade pelo humano. Seja esse humano bêbado, drogado, homossexual,
ou apenas mediamente suburbano, como a maioria de suas personagens, inclusive
nós (eu, pelo menos, sou tão suburbano neste cosmopolitismo brega). Você lê e sofre.
Você lê e ri. Você lê e engasga. Você lê e tem arrepios. Você lê, e a sua vida vai-se
misturando no que está sendo lido.
Ler Cheever desse jeito, tão tomado de paixão, durante uma semana que
comportou umas barras de morte, umas barras de medo, tão pesadas, trouxe também
uma força assim: não, Caio F., você vai segurar, porque esse tal de Cheever aí não só
segurou como criou sobre. E vamos lá. Então, lendo Uma visão do mundo, um dos
contos do livro, ao chegar ao fim encontrei — adivinhem — nada menos que aquela
letra de Laurie Anderson para Philip Glass. No conto, depois de pensar em seus
amores passados, ouvindo a chuva um homem acorda no meio da noite — “então me
sento na cama e exclamo bem alto, para mim mesmo: — Bravura! Amor! Virtude!
Compaixão! Esplendor! Bondade! Sabedoria! Beleza!” No disco brasileiro Laurie não
dá o crédito “inspirado em John Cheever”. No original, quem sabe. Mas a canção está
lá, para quem quiser conferir, mais que mera coincidência.
Tudo isso só me prova que minhas paixões são semelhantes. Amo tudo que
afunda a cara na lama da vida crua e consegue arrancar o belo desse mergulho. Todo
temeroso, machucado, denso por dentro e cético por fora, saio de casa no sábado à
noite para assistir ao Nouvelle Cuisine, no Espaço Off. E o som absolutamente cool
desses cinco meninos de repente é justamente o som que eu escolheria para embalar
as histórias de John Cheever. Tudo fecha, então, porque tudo é fechado, não deve
haver espanto. Enquanto eles tocam “My funny Valentine”, eu penso que continua
chovendo. Acordo no meio da noite, assombrado por sonhos com velhos amores, e
fico repetindo no escuro palavras como: Gentileza, Perdão, Sabedoria, Bondade,
Paciência. O dia começa a amanhecer, quando sento aqui e começo a escrever todas
estas coisas que também amanhecem.
Depois abro Adélia Prado e leio: “a vida é tão bonita/ basta um beijo/ e a
delicada engrenagem movimenta-se/ uma necessidade cósmica nos protege”. Depois
durmo, certo de que ainda há muitas histórias para serem lidas, para serem escritas,
para serem lembradas. Até para serem vividas, quem sabe?

O Estado de S. Paulo, 5/8/1987


Que depois de me ler

Você fique feliz, compre uma metralhadora, embarque para Paris, boceje. E me perdoe
Hoje quero escrever qualquer coisa tão iluminada e otimista que, logo depois de ler,
você sinta como uma descarga de adrenalina por todo o corpo, uma urgência
inadiável de ser feliz. Ser feliz agora, já, imediatamente. E saia correndo para dar
aquele telefonema, marcar um encontro, armar um jantar, quem sabe um beijo; para
comprar aquela passagem de avião, embarcar hoje mesmo para Nova York, Paris,
Honolulu. Tão revigorado e seguro — depois de me ler — que nada, absolutamente
nada, dará errado: ela (ou ele) atenderá com prazer (em todos os sentidos) ao seu
chamado, haverá saldo no banco para a passagem e muitos dólares. Tudo se
organizará rápida e meio magicamente, como se todos os astros e todos os deuses só
esperassem por um movimento seu para derramar sobre sua cabeça, digamos, uma
cornucópia de bem-aventuranças.
Só não sei bem que palavras usaria. Por não sabê-las, penso: se não conseguir
escrever nada tão desvairadamente feliz, talvez consiga o contrário. Um texto
terrivelmente melancólico, então. Que, depois de ler, você chore lágrimas sentidas
(chorar é bom, libera energia escura, expulsa venenos que não sairiam do corpo de
outra forma). Que você rememore todas as perdas, uma por uma, e pense também na
dor física, na solidão sem remédio, na morte inevitável. Para piorar tudo, pense
também nisso que chamam de “os destinos do país”.
Por falar em “destinos do país”, posso tentar, quem sabe, uma coisa mais social.
Totalmente social, tão social quanto comício com a Lucélia Santos. Descrever com
minúcias odiosas famílias inteiras morando embaixo das marquises do Conjunto
Nacional. Falar naquele mendigo com quem cruzei ontem na cidade e, sem querer, vi
remexendo nos sacos de lixo da calçada, enfiando as mãos de unhas imundas em
restos de arroz azedo. Seria esse um texto cheio de piedade e ira, de náusea e revolta.
Que, depois de ler, você ficasse tanto com os olhos marejados de lágrimas quanto
com o coração fervilhante de ódio. E saísse correndo para fazer alguma coisa (tão
abstrato “fazer alguma coisa”). Pegar em armas, por exemplo. Dar seu dinheiro (você
tem algum? parabéns) para A Causa do Povo.
Talvez não consiga. Não, decididamente não vou conseguir: quem sabe tento o
hermetismo? Com palavras sonoras, milimetradas. Que você ao lê-las tenha vontade
de escandi-las (nunca pensei que fosse capaz desta sintaxe janista…), batendo os
dedos no tampo da mesa. Palavras frementes de climas, a mata amazônica ao lado de
um deserto marciano e, logo a seguir, um coração em chamas junto de uma frígida
reflexão cibernética. Não haveria emoção: só ritmo. Não haveria sentido: só forma.
Dá vontade de escrever carta, dizendo coisas que as pessoas não dizem mais,
porque seriam coisas que só se dizem por carta, não por telefone, e ninguém escreve
mais carta, só telefona, e portanto há coisas que não são mais ditas entre as pessoas.
Que coisas, não sei ao certo. Que hoje não consigo quase nada, além de pensar vadio.
Isso, aquilo: perdoe.

Como você consegue, como você consegue?, perguntariam. Acontece que


também não consigo. É que hoje estou suspenso. O dia deu em chuvoso, como no
poema de Fernando Pessoa. Meio-dia em ponto, a mala para arrumar (viver é sempre
meio Pessoa) e visitar o baú (meu terapeuta descobriu que Porto Alegre para mim é
um baú), sentado em frente à janela, a cabeça fica borboleta. Lembro de coisas
inesperadas como os pés de meu pai, de repente sou tomado por louca compaixão
pelos pés de meu pai, pés cansados de homem de quase setenta anos, pés que devem
sentir muito frio em agosto. Quando começo a considerar a possibilidade de dar um
par de meias a ele (nunca fui muito bom em presentes) no Dia dos Pais, a cabeça
dispara e lembro que preciso encontrar urgente aquela Nana Caymmi cantando
“Copacabana”, se não morro. E prometi levar o Bukowsky em quadrinhos para meu
irmão Felipe (o mais bukowskiano de todos os irmãos), e preciso dar uns dez
telefonemas, inclusive para Silvia Simas, que me abandonou, então não ligo. Pronto,
acabou: não preciso ligar para ninguém, já que ninguém liga para mim. Então vem
na memória Maria Julieta Drummond de Andrade, vem uma dor fininha junto.
Linda, ela.
O Estado de S. Paulo, 12/8/1987
Caleidoscópio Rita

Que linda e vária que você é, Rita Lee, roqueira brasileira cada vez mais doida varrida
De cara, foi mágico. Sonhei com minha velha amiga Cecília Assef, que não via havia
muito tempo. Toda de branco, linda. À tarde, toca o telefone. Era Cecília. Se eu
queria, além de matar saudades, assistir no sábado ao ensaio geral do novo show de
Rita Lee (Cecília é produtora de Rita). Coração disparado, boca seca, palmas das mãos
molhadas: ô yeah!
Acontece que adoro Rita. Quando saiu meu livro O ovo apunhalado, num
depoimento que dei à revista Escrita (alô, bravo Wladyr Nader!) falei que
considerava Rita Lee uma influência tão ou mais importante que Dostoievsky.
Escândalo. Isso foi lá por 1976, no auge daquela latino-americanidade babaca. A
revista recebeu várias cartas iradas: eu era um “burguês alienado”, e Rita, que entrou
na história como Pilatos, uma “gringa colonizada”. A esquerda de Neanderthal
sempre achou que o prazer é de direita…
Fui ver o show. Lindo: Rita canta, dança, voa pelo palco vestida de duende, com
asinhas nos pés, toca castanholas, flauta transversa, rebola ao ritmo de “La bamba”,
ironiza a si própria com “Orra, meu”. E deixa claro para público e crítica (hum…
como diria Paulo Francis) que é uma das artistas mais completas deste país. Este
mesmo, que maltrata suas pessoas mais talentosas (vide Caetano, Elis, Hilda Hilst,
Hélio Oiticica) e incensa cretinos que o decoro me impede de citar. Rita tem uma
obra tão importante quanto a de Caetano, Chico ou Gil. Com um detalhe invisível
para os xenófobos do pagode: ela é roqueira. A mais completa do país, a mais íntegra,
a mais coerente. Ninguém percebeu ainda: nada mais brasileiro que o rock-rumba,
rock-frevo, rock-marchinha-de-carnaval de seu trabalho. Rock, esse ritmo de gringos.
E do povo de Alfa-Centauro…
Não conheço Rita fora do palco. Infelizmente, não estou escrevendo sobre uma
amiga, mas sobre uma artista que admiro profundamente. Que mexe com meus
quadris, meu coração, minha cabeça. Mais de uma vez, com sua música, Rita me
salvou de pirações brabas. Eu é que sei de que barra desencarnei ao ouvir “Saúde”
pela primeira vez; da caída fora salvadora que dei de um lance ao ouvir “Música
problema”; do quanto me entendi e me gostei mais ouvindo “Ovelha negra”; de
como me apaixonei e namorei ao som de “Caso sério”. Rita me ajuda a viver: sua
música pontua a minha própria história. Feito um contraponto de alegria, jogando
para cima e para a frente.
Em meio à emoção de reencontrar outros ritólogos como eu (Telmo Martino,
Antônio Bivar, Denise Barroso, Joyce Pascowitch, Regina Echeverría), saí do show
com aquele tipo de sensação que Marília Pêra me dá: não há frustração quando o
artista é absolutamente profissional, ama aquilo que faz e nunca para de se
aperfeiçoar. Rita é assim. E são muitas Ritas.
O erotismo de Rita tem aquele sabor sacaninha da adolescência, pura pureza. O
humor de Rita inclui meninas sapecas, duendes, moleques, fadas e, também, peruas,
solteironas, darks metidos. O rock de Rita cheira a asfalto e a lança-perfume. Ela é
densa, sem ser nunca pesada. Pode ser dolorida e colorida (“Glória Frankenstein”),
najamente cáustica (“Noviças do vício”), cronista urbana (“Vítima”), atrevida,
desacatando feministas (“Bwana”), romântica descabelada (“Molambo souvenir”).
Tanta coisa mais. Vê-la é girar um caleidoscópio vertiginoso. Muitas Ritas, uma só: a
única.
Não que seja perfeita. Pode falhar, errar, voltar atrás, fazer besteira, dançar,
entrar noutra, dar mancada, explodir, pirar. Só que, do alto dos altíssimos saltos de
seus lindos quarenta anos, conquistou o direito de. Isso: o direito de. Sua obra
riquíssima (pensem: de Mutantes, lá por 67, até este Flerte fatal de 87, são pelo menos
vinte anos de e na batalha). Então, muito respeito: a batalha de Rita já foi ganha com o
garbo da própria Greta. Rita mulher com filhos, Rita locutora de rádio, Rita garotona,
alegria nossa de cada dia, Rita mulher madura, militante ecológica, Rita bossa-nova,
gatona, heavy-metal, trovadora, saltimbanca: que linha que você é, sopro doce de
vida rolando sempre viva.
Canto junto com você: “Eu to ficando velho/ cada vez mais doido varrido/
roqueiro brasileiro/ sempre teve cara de bandido”. E pra estreia do show,ontem em
Vitória no Espírito Santo, queria mandar para todos os ritomaníacos do Brasil meu
(nosso) mais sonoro Ô YEAH!
O Estado de S. Paulo, 19/8/1987
Adeus, agosto.
Alô, setembro

Mesmo aqui no País Bandido, agosto sempre vai embora. E setembro sempre volta, sim
Agosto, todo mundo sabe, nunca foi fácil. Este: que nos deixou à meia-noite de
ontem e pareceu durar uns seis meses, cumpriu a tradição. Levou Drummond, levou
John Huston. Gilberto Freyre. O mais patético: levou Pixote. Ao saber do assassinato
(é as-sassi-na-to mesmo que eu quero dizer) dele, além de sentir uma vergonha
viscosa de ser brasileiro, fiquei pensando assim — Deus, o que é que está
acontecendo com este país? Imagino a praça de guerra (Líbano perde) em que se
transformou o Rio de Janeiro e, na trilha sonora, fico ouvindo Lobão berrar “vida,
vida, vida bandida”. Em 1987, Lobão tornou-se a mais perfeita tradução de Brasil.
Um país invadido pela corrupção, pela barbárie, pela violência policial, pela
bandidagem. Você vai até a esquina comprar cigarros e não sabe se volta vivo.
Falei disso a um motorista de táxi. Sobre Pixote, ele disse: “Pau que nasce torto,
não tem jeito, morre torto”. Sobre a guerra da polícia com os traficantes, no Rio:
“Bandido tem mais é que morrer”. Fiquei pensando: e, se tivesse educação, tinha
bandido? Se tivesse comida, tinha bandido? E se tivesse uma perspectiva qualquer de
futuro no ar, tinha bandido? Se houvesse um mínimo de alguma coisa levemente
parecida com “felicidade”, “dignidade”, “justiça”? Quem inventou essa violência
desenfreada que tomou conta do país não foram os marginais — foram os poderosos.
Se eu desculpo bandido? Desculpo, sim. Não desculpo é marajá. Não desculpo Zé
Sarney, no comando desta barca da Medusa, navegando em mar de sangue — em
direção a que abismo? Ninguém sabe, temos medo.
Passadas as águas de agosto, ontem inaugurou setembro. E por não apostar no
país, aposto em setembro (“se o mundo é um lixo, eu não sou”). De saída, tem uma
coisa linda, que eu vou contar pra vocês. É assim: tenho quatro irmãos de sangue em
Porto Alegre, e — graças a Deus — talvez uns vinte irmãos de alma soltos pelo
mundo. Esta semana, dois deles estão aqui, vindos de Porto Alegre para apresentar
no Madame Satã (dias 3, 4, 5 e 6 de setembro) um trabalho chamado Lenta valsa de
morrer.
Eles se chamam Ivan Mattos e Eliane Steinmetz (Eliane é “a Gorda” —
emagreceu, mas o apelido ficou), atualmente também conhecidos como “os loiros”,
porque, como diz o Bivar, oxigenaram um pouco. Ivan e Gorda são das pessoas mais
engraçadas que conheço, e mais talentosas. Não estão mais cabendo em Porto Alegre,
a cidade-carroça, e vieram mostrar esse trabalho para quem quiser ver. São textos de
Clarice Lispector, do alemão Heiner Müller, do gaúcho Renato Campão — e também
meus. Tudo isso embalado pela voz de Adriana Calcanhoto, uma supercantora
(quem perdeu o show dela no Off, semana passada, dançou), com participação de
Adriane Mottola, uma moça muito chique, e figurinos de Zé Adão Barbosa, um moço
também muito chique. Na direção, outro irmão de alma: Luciano Alabarse. Pinta lá
pra ver. Eles vão gostar, você também.
Se estou fazendo propaganda dos meus amigos? Lógico, meu bem, você acha
que eu ia fazer propaganda dos meus inimigos? Sinto/sei que, de cada vez que o
horror arreganha os dentes — assassinam Pixote, o Rio vira Líbano —, se a gente
estiver atento, no minuto seguinte a velha Dona Vida, essa senhora imprevisível e
nem sempre respeitável, faz uma pirueta no trapézio para mostrar a outra face. Não
a de megera medonha, sanguinária, mas seu avesso: a fada suave, revelando o talento
de gente moça. Ivan, Eliane, Adriana, moçada que já nasceu com os militares no
poder, sem esperança nem fé, rolando de rir de tudo, com um jeito insólito de captar
o sério das coisas. Não o sério clichê, o sério careta — mas um olho novo de pegar o
mundo. Esse jeito existe, eu já vi. Cada vez que olho para Ivan e Gorda, cada vez que
ouço Adriana, ele está lá.
Como setembro. Mesmo aqui, no País Bandido, agosto vai sempre embora, e
setembro sempre chega. Se você quiser, claro. Porque, como aquele motorista de táxi,
você também pode achar que bandido é bandido, tem que ser morto. Quanto a mim,
acho que todo mundo tem mais é que viver. Ser feliz. Agora, dá licença, vou
escancarar a janela, tomar um banho e me preparar para este setembro que ninguém
vai sujar. Em mim, não mesmo.
O Estado de S. Paulo, 2/9/1987
Cenários em ruínas

Mais que um livro: eu, você, ele. Espelho cúmplice, entre as sombras e a desolação
Um homem acorda no meio da tarde de domingo, seus passos de pés nus não fazem
ruído algum no carpete do quarto. O quarto cheira a uísque, a cigarro, a cerveja, a
maconha. Ainda restam copos vazios pelos cantos, líquidos derramados, mas já secos,
fundidos na cor neutra do tapete. Há um espelho na mesinha de cabeceira da direita.
Vidro baço, manchado de branco, alguns grãos, uma gilete. Ele lambe a gilete.
Enquanto lambe a gilete, em pé e nu em frente à janela, que por enquanto não se
atreve a abrir, ele lembra sem querer de um filme de Carlos Reichenbach. A memória
dormente não traz o nome do filme, só a cara de Ênio Gonçalves em dose, uma gilete
na boca. Lentamente. Tudo lentamente, assim ao despertar, nessas tardes de
domingo. E, no pisar forte do chão, anota mentalmente — a imagem de Jane Fonda
bêbada interrompendo a corrida, as duas mãos na cabeça. Tanta dor na cabeça, the
morning after.
Ele tem muitos filmes na cabeça. Ele tem muitos livros na cabeça. Há pistas pelo
quarto, que não recolhe. Ele não é um detetive, embora às vezes possa
deliberadamente compor um visual assim, tipo Humphrey Bogart, capa de
gabardine, barba de dois dias, cigarro sem filtro no canto da boca. Mas isso também é
filme, livro. Imagens, palavras: ilusão. Netuno. As pistas do real-acontecido de uma
suposta noite anterior a essa tarde de domingo em que ele desperta — não
interessam. Ele é aquele que busca o que se perdeu. Para sempre.
Nenhuma câmera o acompanha, em plano médio ou geral, enquanto ele se
encaminha para o banheiro. Mas caminha — lento, nu, para que a cabeça não doa —
colocado (emocionalmente equalizado), ombros retos. Certa nobreza nesse porte de
homem à beira dos quarenta anos. Absolutamente solitário, senhor do espaço que
ocupa: um apartamento cravado no meio da cidade de sombras e desolação. Igual a
um alfinete no centro carnudo de uma borboleta viva. De asas negras? Não há
nenhum sax gemendo quando ele para em frente ao espelho do banheiro. Hesita
entre acender um cigarro, assim em jejum, para compor melhor o noir no meio da
tarde — fazer a barba, tomar um copo de leite e vestir-se todo de branco, ou deixar a
barba, vestir-se todo de preto e beber um Jack Daniel’s em jejum? Números, ah.
Dentro do filme que não acontece no meio da tarde — este também é um
homem sem identidade nem lugar. Tudo está mergulhado na obscuridade cinza do
apartamento cravado no meio da cidade viva, numa tarde de domingo. Até o
telefone tocar, mesmo sendo engano, não será inteiramente uma pessoa com
identidade real neste espaço. Apenas ficção, sombra. Cabeça pesada de álcool,
cigarros e drogas. Algumas fantasias, farrapos da noite anterior, desbotados como
papel crepom na chuva. Que talvez tenha ousado toques, palavras — mansos?
sensuais? — nesse anterior agora mergulhado em sombras. Para que a vida, de
repente, se tornasse carne viva. Não apenas reflexo de filme, livro. Mesmo assim, e
há tanto tempo, nesta manhã, como nas outras, entre os vestígios da noite não há
nenhuma mancha roxa de beijo apaixonado em seu pescoço de homem só. Todas as
mulheres o traíram, e o amor entre homens é torturado, você sabe. Finalmente,
porque a paixão que ele sonha é a paixão de Ana Karenina, de Adele H., de Werther
ou Tristão. Livro, filme, lenda: a vida não supre, amigo. Um homem caminha por um
apartamento escuro, desolado. Sozinho, vulnerável. Não há nenhuma armadilha
pelos cantos. A não ser as que ele mesmo armou, e foram muitas. Anda atrás de um
sonho, um homem de quase quarenta anos. Mas um sonho que ele — maduro ou
idiota? — sabe que não existe. O sonho de amor (assim mesmo, nome de bombom)
de livros, em filmes. O mundo se tornou complexo demais, corrido demais, tenso
demais. Doente demais, confere, olhando os jornais do dia com notícias do
assassinato de Peter Tosh, de Henfil e seus irmãos com aids. Lembra de Elis — ele
pensa no amor, ele pensa na morte, ele pensa no mundo. Não acredita. Por não
acreditar, acredita ainda mais: essa fantasia é que o empurra para a frente.
Por tudo isso, por nada disso, sem fazer nada do que pretendia, ele abre
Cenários em Ruínas, de Nelson Brissac Peixoto. E começa a ler. Não é leitura: eu, você,
ele. Espelho lindo, cúmplice. Agora: now.
O Estado de S. Paulo, 16/9/1987
Safra de abobrinhas

Não me magoa com papo franco que eu faço a etrusca, fico frontal e digo ahuahuah já
De malas prontas (com uma boa meia dúzia de saias justas), pronto a embarcar para
Beirute — digo, Rio de Janeiro. Como groupie ou tiete assumido, vou atrás do Luni,
que vai invadir aquela praia com duas apresentações no teatro Cândido Mendes.
Escrevo na sexta, a invasão se dará (se deu) na segunda e terça. Se voltar vivo — pois
resistir quem há de aos olhinhos brejeiros de Natália Barros, ao soul cada vez mais
rouco de Theo Werneck e ao gingado olímpico da deusa Marisa Orth? —, depois eu
conto.
Deixo para vocês mais uma safra de abobrinhas. Daquelas, estilo pós-Aurelião.
É que recebi visita de Ivan Mattos e Eliane Steinmetz — dois Ph.D.s nesse assunto.
Claro, com a convivência outras nasceram. Lá vão, em forma de verbete para
parecerem — digamos — mais sérias.
Peruca — Pessoa famosa ou, pelo menos, que está em todos os lugares da moda.
Pessoa peruca é supervisível, logo que você entra dá de cara com ela, nos lugares
mais inesperados. Não é pejorativo, portanto posso dar exemplos: Bronie, Mário
Mendes, Bruna Lombardi, pessoal do vídeo.
Frontal — Pessoa (pode ser também estado de espirito) que diz, franca e
abertamente, o que realmente pensa dos outros e da vida. Está, assim, digamos,
frontal com o mundo. Exemplo: Vânia Toledo.
Papo franco — Uma pessoa frontal sempre tem papos francos. Mas alguém não
muito frontal pode resolver ter um, também. É assim: você está jantando no
restaurante e o casal ao lado não para de discutir. Lá pelas tantas, você se vira
subitamente e diz: “Escuta, vocês já se deram conta de como vocês são chatos?” Etc.
& etc. Parabéns, você estará tendo um bom e saudável papo franco, bem frontal.
Telma — Aquele rapaz que todo mundo sabe que é gay, menos ele. Exemplo não
posso dar, mas tem tanto por aí. Olhe pro lado: lá vai uma Telma.
Juarez — Aquela moça que todo mundo sabe que é sapato, menos ela. Vale o
exemplo anterior.
Irmã — Mulher distinta, discreta, geralmente com mais de trinta anos. Mas que num
detalhe entrega que está louca pra transar com quem pintar — pode ser uma fenda
na saia, uma pulseirona dourada, coisas assim. Exemplo: e eu sou louco de falar?
Platinar — Não quer dizer necessariamente descolorir os cabelos. Significa mais uma
súbita e radical mudança no visual. Digamos, colocar um brinco (para rapazes),
cortar o cabelo só de um lado, fazer uma mecha verde. “Ah, tava tudo um bode
mesmo. Daí platinei”.
Gestos — Essa é ótima. Tem vários gestos. Quando alguém convida você pra ir ao
cinema, no sábado, e você diz: “Ah, não sei. Tá tão frio. Acho que vou ficar em casa
vendo TV” — cuidado, você está tendo gestos de velha. Beber gim todas as noites da
semana? Cuidado: você está tendo gestos de alcoólatra. Os gestos podem ser resumidos
a siglas: GV (gestos de velha), GT (gestos de tarado), GF (gestos de freira), GN (gestos
de naja).
Etrusca — Diz-se de pessoa meio misteriosa, da qual ninguém nunca soube de um
caso ou paixão mais forte. Pessoa que não dá bandeira de seus amores. Ex.: Teté
Martinho, George Freire. Eu mesmo faço a etrusca.
Ahuahuah — Tem que ser pronunciado com a boca bem solta, voz rouca e um tanto
arfante. Dizem que, no Havaí, quer dizer “que tesão”. Você pode dizer logo ao
cumprimentar alguém. Existem pessoas ahuahuah (Fernanda Abujamra, Patrícia Casé,
Alan Salles), situações ahuahuah, lances ahuahuah. Podia ter mais: ahuahuah é a solução
do bode brasileiro.
Não me magoa! — É o que você exclama (a exclamação é fundamental) quando algo
ou alguém está se tornando extremamente chato. Música de Milton Nascimento
(qualquer uma) é super-não-me-magoa. Comer em restaurante natural não pode ser
mais. Você pode dizer, também, antes de começar um bom papo franco. Mas, antes,
você tem que estar frontal.

É isso aí. Para aterrissar o mais macio possível deste setembro hard-core. Para
adentrar suavemente pelas doçuras do signo de Libra, que começa hoje a ascender
com o Sol. Para rir um pouco, falar bobagem, passar o tempo. Relaxa, baby, que daqui
a pouco chega o ano 2000 e, como diziam Jacqueline Cantore e Marcos Breda:
“Ahuahuah já!”
O Estado de S. Paulo, 23/9/1987
Felizes para sempre

Uma mulher está à beira do inferno. A seu lado, um homem escreve uma carta de amor
Andar sozinho, sem apoio, transformou-se numa prova difícil demais. Há dois meses
você anda cada vez com mais dificuldade, você se agarra aos móveis, a mim. Os
efeitos do álcool se tornam visíveis, terríveis.
Essas frases acima — e as demais, em negrito, intercalando este texto —
pertencem a M.D., livro de Yann Andréa que a editora Marco Zero acaba de publicar.
Quem ou o que significa essa sigla, esse M, esse D? Quem é esse Yann Andréa? O
livro não dá pistas. Uma capa inteiramente branca, com aquelas iniciais, discretas, em
azul-claro. Nenhuma foto, nenhuma informação na contracapa. Um pequeno
mistério: M.D.
Nas lágrimas, Trouville, o verão, a primeira garrafa de vinho comprada por sua
ordem, a obediência a tudo, até as lágrimas também, e eu diante de você, olhos
fechados, suplico que você me ame.
M.D., a orelha ou um folhear rápido no livro revela, são as iniciais da escritora e
cineasta francesa Marguerite Duras. Yann Andréa, o nome de seu companheiro,
também cineasta, que de agosto a novembro de 1982 registrou num caderninho, em
forma de diário, o processo de desintoxicação alcoólica de sua amiga? amada?
cúmplice? Depois de ler o livro (curtinho, 105 páginas), fica difícil encontrar uma
palavra para definir a relação de Yann com Marguerite. Enfermeiro? amante?
biógrafo? Todas essas tentativas, e mais algumas. O que Yann sente por Marguerite é
imenso. Respeito, fascinação, carinho (o carinho que se tem por algo que é frágil
como nós, não por uma coisa boba), piedade (a piedade que se tem pelo que é
humano e carente como nós, não por alguém incapaz) e, quem sabe?, isso que
chamam de amor? Nunca em minha vida li uma carta de amor tão linda quanto a
que Yann Andréa escreveu para Marguerite Duras.
Ponho a colcha branca sobre seus joelhos, recubro as pernas, não deixo nenhum
espaço exposto ao frescor do ar, abraço você, guardo você, você não sabe, você
dorme.
Internada em Neuilly, Hospital Americano de Paris, por vontade própria,
Marguerite Duras — aquela Duras, que inicia O amante, um dos livros mais belos
deste século, descrevendo a devastação do álcool e do tempo no próprio rosto —
tenta emergir de um inferno de álcool e ansiolíticos. Dienpax, Mogadon, Valium,
Aldactone. Ela quer terminar seu livro, A doença da morte. Deitada na cama do
hospital, num raro momento de lucidez, entre visões e tremores, Marguerite diz: “A
única coisa que importa é a loucura, não ter medo de se perder de si mesmo”. Mas
ela mesma não quer se perder de si. E, todos os dias, Yann está a seu lado. Até a
noite. Depois ele volta para o apartamento onde ela não está mais.
O carro avança, as lágrimas vêm. Não quero chorar. O motorista se cala, põe um
cassete: Billie Holiday canta “My man”.
Ele esquece todo o resto. Ele está voltado apenas para ela, que, numa cama de
hospital, luta contra si mesma. Ele não se importa de não ter mais uma vida, desde
que possa ficar ao lado dela. Por algumas horas, todo dia. Ela o acusa de coisas que
ele não fez, ela fala coisas duras. Ele faz que não ouve. Ele a ajuda a lavar-se, ele a
tranquiliza. Ele observa cada movimento dela em direção à luz ou à treva. Então se
alegra, ou se entristece. Porque ele também tem problemas.
Estou diante do telefone, sem poder falar. E depois, finalmente, as lágrimas.
Esta vontade de álcool não passa.
Mas ela acaba por vencer. Os escritores são mestres em criar seus próprios
infernos, só para descobrir formas de se ver livres deles. Em todas as esquinas desse
labirinto infernal, Yann permanece ao lado de Marguerite, mão a mão. Continuam
juntos?, me pergunto na noite tardia de sábado, ouvindo Thelonious Monk. De
alguma forma, certamente sim, me respondo. Porque aprendi que esses amores
capazes de superar o primeiro impulso que determina o próprio amor — a atração
física — ah, esses amores não terminam nunca. (E nós aqui, vivendo essa coisa tão
assustada e média…)
Não ouço nada, você deve estar no seu quarto à sua mesa, você deve estar não
olhando, através da cortina branca, como de hábito.
Yann e Marguerite foram felizes para sempre, eu invento. Preciso.
O Estado de S. Paulo, 30/9/1987
Se eu quiser
falar com Deus

Tenho que aceitar a dor. E contemplar a miséria de fora fundida à miséria de dentro
1 Tarde de chuva nesta primavera que chegou de saia justa. Caminho pela cidade,
bancos, contas. Entro num bar. Parada no balcão, uma velhinha. Uma velhinha muito
velha, talvez a velha mais velha que já vi. Pequenina, molhada de chuva, coberta de
trapos. Limpinhos, mas trapos. Ela olha para mim através daquela névoa azulada que
os velhos têm nos olhos. Voz sumida, pede: “Moço, me ajuda. Eu tenho muita fome”.
Dou dinheiro a ela. Ela diz: “Moço, eu sou tão velha, eu sou tão pobre, eu tenho tanta
fome”. Acrescenta: “Deus que lhe guarde um lugarzinho no céu”. Sai caminhando
miudinha pela chuva. Tanta lama. Peço uma Coca-Cola, não consigo engolir.
2 Madrugada alta. Depois de uma grande confusão — digamos — afetiva, saio de um
bar. Deprimido: detesto esses climas tipo declínio-do-império-americano. Pego um
táxi, fusquinha. Suspiro, peço licença para acender um cigarro. Ruas molhadas, neon
nas poças. Digo: “Viver é tão complicado, o senhor não acha?”. O motorista ri,
amargo: “Acho. Cada vez mais. Eu mesmo não tenho dinheiro pra pagar o aluguel,
estou morando no táxi”. Fico chocado, ele torna a rir: “E isso que ainda tô legal. Tem
um colega meu que faz duas semanas tá morando debaixo de um viaduto”.
3 Converso com Adélia Prado, seu ar iluminado, uma Jeanne Moreau mais jovem,
mais bonita. Falamos do país, tudo muito pobre, feio, triste. Adélia diz: “É preciso
preservar o território interior”. Eu digo sim, mas penso: como? Adélia conta: “Sabe
que no tempo do Plano Cruzado, lá em Divinópolis, notei que diminuiu muito
aquele monte de gente batendo na porta, pedindo comida. Agora é toda hora, muita
gente. Eu sempre ajudo. Mas adianta?”. Não digo nada, ela é tão linda.
4 Meio-dia de trânsito infernal num cruzamento da Paulista. No táxi trancado,
distraio-me lendo qualquer indiscrição de Paulo Francis sobre E. M. Forster. De
repente, na janela aberta a meu lado, a cara de um rapaz. Tão súbita que, primeiro,
acho que deve ser algum amigo. Ou um ladrão. Mas a cara é boa, jovem, forte, limpa.
Ele pede uma esmola. Percebo que usa muletas, tem as duas pernas completamente
atrofiadas. Procuro a carteira, o motorista pergunta, duro: “Por que você não
trabalha?”. O rapaz responde mais duro ainda (e tão triste): “Você acha que alguém
neste país dá emprego pra aleijado?”. O sinal abre.
5 Cruzo com um rapaz que circulava aqui pela vizinhança. For volta de 25 anos, pinta
de surfista. Fazia uns servicinhos no prédio, volta e meia pedia cigarro, bebia cerveja
na padaria da esquina. Quase não o reconheço. A barba bate no peito, cabelos nos
ombros. Coberto de trapos imundos, saco de papéis nas costas. Remexe na lata de
lixo. Faz frio, ele está descalço. Não me reconhece, procura comida no lixo, aquele
antigo rapaz com pinta de surfista: virou mendigo. E segue o baile.
6 Saudade. Ligo para Rosa Webster, que sempre me manda recortes sobre quasars,
pulsars, anãs brancas, buracos negros. Rosa conta: soube no hospital que as mães
muito pobres, na hora do parto, precisam tomar uma injeção de glicose. São
subalimentadas, sem forças para parir.
7 Ando pelas ruas, todo dia. Quilômetros: Jardins, Consolação, Paulista, Augusta,
Angélica, Centro, Bela Vista, Santa Cecília, Higienópolis. Olho, olho. Pelo menos
nisso, igual a Fernando Pessoa: vejo como um danado. E quase não acredito na
danação que vejo. Biafra (lembra?), Etiópia, Moçambique, Índia, Alagados: é São
Paulo, Brasil 87, Nova República, José Sarney, Plano Bresser. Regiões ricas da cidade
mais rica do país: pura miséria. Vida infra-humana, fome. Dor.
8 Sábado. Não saio de casa, não sonho mais. Cuido das plantas, lavo pratos, falo
sozinho, penso em Gastão, que morreu. Ouço Nana Caymmi: “Eu não gosto de quem
me arruína em pedaços”. Bebo um conhaque, tenho medo, sinto pena, estou à
margem, bebo outro conhaque. Habito uma bolha. Você não toca na minha mão.
Nem eu na sua. Olhamos horrorizados. Não dividimos nem mesmo esse olhar: the
horror, the horror. Me sinto tão mal, my little wild thing, tão mal que vou ouvir Elis até
de manhã.
9 Lembro um poema de Mário Quintana: “Eu nada entendo da questão social/ eu
faço parte dela simplesmente”. Oxalá nos guarde: axé, axé.
O Estado de S. Paulo, 7/10/1987
Um cantinho, um violão,
uma Narinha

Me abraça, vem mais pra perto, desliga a TV, põe o disco da Nara Leão, me olha nos olhos
É verdade, andei pesado. Pesado de olhar para fora, pesado de olhar social sem
poesia, você sabe. Aí falei assim, Caio F., você precisa se dar um presente. Quando
penso em presente, penso em coisa gostosa, quando penso em coisa gostosa, na
maioria das vezes penso em música. Então fui até a Wop-Bop, a lojinha de discos
mais agradável da cidade, entrei e não precisei olhar muito em volta. Tinha um disco
de capa meio dourada, com a foto de uma moça de maiô. Era ela. Trouxe para casa.
Há uma semana, estou encantado. Tomo banho de doçura de duas em duas
horas. Fico deitado no sofá, olhando pela janela, esquecido até de fumar.
Completamente apaixonado. Não sei direito se por essa moça, se pelo tempo e o
clima que ela consegue criar, não sei se por qualquer outra pessoa, que não seria
qualquer, ao contrário, mas isso é outra história. Eu fico bobo, o disco rodando,
suspiros, molezas, preguiças, saudades — aquelas coisas, você sabe. Você sabe, sim.
Não minta para mim: se você acha que não sabe do que estou falando, ouça esse
disco, essa moça.
É a Nara Leão, Meus sonhos dourados. E o meus é pura modéstia dela, narices,
porque esses sonhos são teus, nossos, do país inteiro, quem sabe do mundo? Nara
pegou aquelas canções americanas tipo “Moonlight serenade”, “Over the rainbow”,
“Tea for two”, “As time goes by” — todas aquelas que você já ouviu em algum lugar,
num piano, num fim de noite, nem sabe onde, nem sabe quando — e regravou, em
português, algumas versões dela, outras de outras pessoas. Regravou com produção
de Menescal, em ritmo de pura bossa-nova. O cantinho, o violão, o jeito manso de
olhar o mundo, sem rancor nenhum, achando tudo bonito. Sem se importar em
classificar como brega ou chique, antiquado ou moderno. Um barquinho a deslizar,
no macio azul do mar. E a vontade de cantar — tão simples: ternura, palavra ousada.
Fiquei lembrando, fiquei viajando. Quando vi Nara pela primeira vez, em 1967, num
negócio chamado Arquisamba, em Porto Alegre, economizei um mês para comprar a
entrada. Valeu: vestido de lamê prateado, trazido por Danuza de Paris (deu no
jornal), os joelhos (ah, os joelhos!) de fora, ela cantou “Funeral de um lavrador”.
Ela estava meio comunista, na época. Eu também, você sabe. Faculdade de
filosofia, AI-5, grupos de trabalho, aquelas coisas. Deu tudo certo: fiquei apaixonado.
E nos anos seguintes viajei em todas as viagens dela, pelo samba do morro, pelas
músicas de Roberto Carlos, até mesmo pela dispersão meio nordestina. Mas a Nara
que reencontro e amo é a Nara que eu mesmo sou: inteiramente bossa-nova, sem
ruído. Voz baixa, por favor, me diga coisas bonitas, te digo coisas bonitas. Me faz
sonhar, te faço sonhar. Me conta coisas com gosto de mel e girassóis. Eu, você, nós
dois, sozinhos nesse bar, à meia-luz. Nara voltou à bossa, isso ajuda tanto a viver, céu
azul. Por favor, ponha na eletrola (Nara e eu somos do tempo da eletrola, imagina),
deite no sofá. Acredite que lá, além do arco-íris, existe um lugar. Lembre de um
outro corpo no seu, faça de conta que você é Judy Garland ou Fred Astaire, e dance
dance dance. Rosto colado, bebendo uísque on the rocks, Copacabana é aqui — todas
essas coisas que o Tom já cantou e a voz macia do João Gilberto não cansa de repetir.
Viver é tão bonito, creia. E toque na primeira mão que estiver a seu alcance. Diga
assim, que bom te encontrar, aqui no mesmo bar, quero saber de você depois do que
se passou. Suspire: ah, é tão bom te ver outra vez. Alô, chega mais perto de mim.
Memória dos beijos teus, eu não esqueci.
Viver é tão bonito quando a gente aprendeu a ouvir Nara Leão. Essa moça de
maiô, sentada na areia, agora mãe de filhos, formada em psicologia, mais de quarenta
anos, saída de uma batalha com a morte — e inteiramente fiel à cor dourada dos seus
sonhos. Sem amargura, nem rancor ou saudosismo. Porque nada mais político
lembrar o que foi bom e ameaça se perder neste tempo presente. Recuperar o som da
tua voz ao telefone, pensar com carinho nos bons momentos que você me deu. Não
querer possuir, não querer compreender nem dar nome: rodar sobre uma nuvem
branca suspensa sobre tudo, ao som de Nara Leão. Se não bastar, assistir ao show de
Caetano. Meu mel: vai ser tão lindo. Me peça a lua, te dou. Eu juro.
O Estado de S. Paulo, 14/10/1987
Ninguém merece
Jânio Quadros

Tanta coisa boa: Down By Law, Fanny, Cazuza, família Boyle, Hilda Hilst, Mulheres
Negras, A-Z, Paula Dip…
Semana passada, me deu uma vergonha tão grande de morar numa cidade que tem
como prefeito essa figura lamentável do sr. Jânio Quadros, que até pensei: bom, no
domingo sento e escrevo sobre isso. Uma crônica/carta irada, reclamando da sujeira
das ruas, da violência solta, do barulho, da poluição, do lixo. Uma carta raivosa, cheia
de cobranças. Lamentando a burrice deste povo que elegeu o sr. Jânio como prefeito
e é bem capaz de, nas próximas (cadê?) eleições diretas para presidente, votar
naquele outro senhor — o João Baptista Figueiredo. Uma carta sugerindo o
internamento imediato do sr. Jânio (como ele fez com a própria filha) para uma boa
— digamos — faxina mental. Com muito detergente.
Mas o domingo chegou, a chuva passou, o ar restou tão limpo e leve.
Aconteceram coisas boas, até enumero: aquele filme irresistível chamado Down by
law; os trabalhos da família Boyle, na Bienal; o show de Os Mulheres Negras (que
seria ainda melhor se eles parassem com as abobrinhas pueris e investissem na
música mesmo); um bilhete de Nara Leão; a A-Z com Paulinha Toller na capa e um
artigo de Bivar sobre Dadá; certa tarde no Ritz quase vazio, com a voz de Gal Costa
de repente cantando “Todo amor que houver nessa vida”, de Cazuza (axé!); esse livro
atrevido chamado Maria Ruth, de Ruth Escobar; um telefonema de Hilda Hilst; Paula
Dip voltando de Londres; Nelson Brissac Peixoto me trazendo uma maquetezinha de
papelão de Nova York, com King Kong e tudo; um sonho com Fanny Abramovich;
um chá com Jacqueline Cantore e Hugo Prata. Tanta coisa boa, bonita, gostosa, que
pensei: não, o leitor não merece Jânio Quadros.
Pensando no leitor, lembrei das cartas, Ai, as cartas… Então vou falar delas.
Recebo muitas cartas aqui no jornal. Tem nada que eu goste mais do que receber
cartas. São lindas, sempre. Algumas pessoas dizem coisas como “você me ajuda a
viver” ou “você alegra as minhas quartas-feiras”. Me desejam coisas boas. Leio,
releio, agradeço mentalmente, penso “vocês me ajudam a viver”. E guardo, guardo
tudo. Quando vem telefone junto, telefono, é mais fácil. Mas não posso responder,
queria que vocês compreendessem: falta tempo. Mesmo que pudesse sentar e
escrever umas linhas, cadê o tempo para esperar no mínimo uma hora nas filas do
Correio, com todos aqueles office boys e seus três quilos de mala-direta? Não dá. Não
é arrogância: é que eu teria que viver só para isso.
Então fica combinado assim: respondo por aqui. Muita gente quer saber se
tenho livros publicados. Tenho seis. Os dois primeiros — Inventário do ir-remediável
(contos, editora Movimento) e Limite branco (romance, editora Expressão & Cultura)
— estão esgotados, não adianta procurar. Depois tem O ovo apunhalado, de contos
também, uma terceira edição da editora Salamandra, que faliu (não por minha causa,
suponho), e o livro continua a ser distribuído pela Globo. Mais fáceis de encontrar
são os dois últimos: Morangos mofados (contos, editora Brasiliense) e Triângulo das
águas (novelas, Editora Nova Fronteira).
Publicados, esses. Vem mais por aí (e essa é outra das razões por que não tenho
tempo para quase mais nada). No final deste ano ou começo do próximo, a Globo
publica As frangas, novela infantil com belas ilustrações de Rui de Oliveira. E estou
dando a última versão em Os dragões não conhecem o paraíso — uma espécie assim de
romance-móbile (?) — que deve sair lá por abril-maio de 1988. Tudo isso mais a
telenovela Salada paulista, que escrevo com Mário Prata e Lúcia Villares, para estrear
na Manchete em janeiro. E um longa-metragem dirigido por Guilherme Almeida
Prato, Onde andará Dulce Veiga?
Resulta, amigos, que tenho escrito cerca de doze horas por dia. Aí penso: se os
leitores me escrevem porque gostam do que escrevo, então tenho é que escrever
mais. Apesar dos Jânios da vida. Para fazer isso, tenho deixado de ver amigos, certos
filmes, peças, shows — de escrever cartas, também. Mas gostaria que, apesar desse
aparente silêncio ou indiferença, não parassem de me escrever cartas. Alimenta
tanto, faz bem, situa. Você compreende e perdoa? Então fica combinado assim: vai
ser legal. Porque você — nem eu, nem ninguém — não merece Jânio. Merece mais.
O Estado de S. Paulo, 28/10/1987
Vamo comer Caetano?

Umbigo do Brasil, cravado no centro da barriga da miséria. Vamo comer, vamo comer poesia
“Animal arisco!”— eu caminhava pela rua quando ouvi o grito. No meio do barulho,
do torpor desse calor viscoso que andou fazendo. Claro, agudo, relâmpago no meio
da lua da tarde, aquele gemido. Parei, sem entender. O grito foi sendo levado para
longe — “me senti sozinho/ tropeçando em meu caminho/ à procura de abrigo, uma
ajuda, um lugar, um amigo” —, enquanto eu compreendia. Era Caetano Veloso
cantando “Fera ferida”, de Roberto e Erasmo Carlos, provavelmente num rádio de
carro que se afastava.
O gemido rasgou a tarde em duas. Fiquei ali parado no meio da dor, assim
(deus, quem disse isso uma vez?) “ferido de mortal beleza”. Provavelmente com
aquela “expressão amarga” — como diz o Osmar Freitas Jr. — de quem “tivesse
acabado de chupar (?) uma crônica do Caio Fernando Abreu”. Olhei em volta:
ninguém mais tinha ouvido. Estavam todos com uma expressão de… — bom, deixa
pra lá. Não consigo entender essa pressa em rotular, carimbar, colocar em prateleira:
é assim, doce, amargo, leve, pesado. Ideias feitas, congeladas, mortas. Safári no
cemitério, preconceito. Fiquei ali parado, o grito vivo de Caetano na cabeça.
Então pensei: Caetano não dá mais entrevista. Tá certo. Não há nada a dizer,
não há nada para explicar. Ou você entende, através da música e até do silêncio, e
estamos conversados (e enriquecidos). Ou você não entende nada, porque seu
repertório é outro. Então, numa gestalt, também estamos conversados. Ninguém
enche o saco de ninguém, você me deixa em paz, eu te deixo em paz — certo? Fica
combinado assim: se não te atrapalho, você me dá licença de ser assim do jeito que eu
sou? Fui pra casa ouvir mais Caetano. Deitei, aquele calor paulistano, de cimento.
Peguei o release de Maria Clara Jorge — ela diz “Caetano é o umbigo do Brasil”. Sim,
em vários sentidos. Aí li o que diz Renato Costa, coordenador do departamento
internacional da Polygram: “Há anos Caetano dá todos os toques sem cobrar nada e o
Brasil não saca. Azar do Brasil”. Azarésimo. E azar o seu, se não ouvir.
Pega o disco, tá tudo lá. O Brasil negro, já na foto (linda) de Flávio Colker (sobre
concepção de Luiz Zerbini), na capa, no candomblé que passeia seus axés por
“Depois que o ilê passar” e “Ia omin bum”, ou em “Eu sou neguinha?” Tá lá o
discurso político em “Vamo comer”: “Quem vai equacionar as pressões/ do PT, da
UDR/ e fazer dessa vergonha uma nação?” Tem o cinema falado de “Giulietta
Masina” — “ah, minha vida sozinha/ ah, tela de uma outra luz” —, tem a solidão das
estradas em “Noite de hotel”: “Estou a zero, sempre o grande otário”. E aquela que
deve ser uma das mais belas letras (e músicas) feitas nos últimos anos neste país, “O
ciúme”. Numa tarde cheia de luz, no rio São Francisco, sobre toda a paisagem “paira,
monstruosa, a sombra do ciúme”. O humano torturado projeta sua imagem interior
sobre a paisagem indiferente, alheia à dor individual. Mas de dentro dessa tortura,
que nada alivia e ninguém pode perceber, é que o ser olha e suspeita: “Tudo é perda,
tudo quer buscar — cadê?”
Porque tem luz e sombra. Uma engendra a outra, uma nasce de dentro da
outra. Tem amor e ódio, tem encontro e perda, tem identificação e indiferença. Tem
dias em que tudo se encaixa, como no momento das peças finais dos quebra-cabeças,
e tem aqueles em que tudo se desencaixa numa aflição tonta de não haver sentido
nem paz, amor, futuro ou coisa alguma. Tem dias que nenhum beijo mata a fome
enorme de outra coisa que seria mais (e sempre menos) que um beijo. Mas tem
aqueles outros, quando um vento súbito e simples entrando pela janela aberta do
carro para bater nos teus cabelos parece melhor que o mais demorado e sincero dos
beijos. Precisamos dos beijos, precisamos dos ventos. Tem dias de abençoar, dias de
amaldiçoar. E cada um é tantos dentro do um só que vê e adjetiva o de fora que
escapa, tão completamente só no seu jeito intransferível de ver: “E eu sou só eu só eu
só eu”.
A voz e a poesia de Caetano passeiam nesse limiar — Limiar é tão bonito,
parece limite, parece ar, um limite no ar? — entre os opostos. Umbigo do Brasil,
como diz Maria Clara/Cacaia. Cravado no centro, origem, raiz, verdade. Vamo
comer, vamo comer Caetano: bom apetite.
O Estado de S. Paulo, 4/11/1987
Ao som de
Suzanne Vega

Meu nome é Caio F. Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você nas escadas
Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas
carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira
desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só
nesta hora tardia — eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e
farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy metal —, só sei falar dessas
ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.
Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a
contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um
grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o
astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta
saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão
devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta
como — eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha
ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te
estendo a minha mão.
No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto
— preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não
adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede,
meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois
de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro
olhar que não o meu próprio — tão cansado, tão causado — qualquer coisa vasta e
abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de
tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de
encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi de boca luminosa
de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes
enganosos transitórios — que importa?
(Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias,
responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio —
viria? virá? — e minto não, já não preciso.) Preciso sim, preciso tanto. Alguém que
aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto
meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukowskiano. Que me
desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer
nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como: eu sou o outro ser conjunto ao teu,
mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca
de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão.
Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte
e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego
do outro e misturar coxas e espírito no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-
igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu
tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que
não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.
Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim
mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza de que
inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso
amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes de estas
palavras todas caírem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no
lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste:
preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como
se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.
O Estado de S. Paulo, 11/11/1987
Sem via de acesso

Zero grau. Porque hoje, como dizem os motoristas de táxi, hoje não tem mesmo condição
Você sabe, não seria justo culpá-los. O problema — ou não “o problema”, porque não
há problema, digamos então assim: “O conflito”. Repetir: o conflito é que também
não seria justo culpar-se. Duvido que você me entenda, e hoje não vou fazer esforço
algum. Tudo isso deveria vir entre parênteses. Ou com alguma espécie de sinalização
gráfica que permitisse — digamos — o acesso? Sem via de acesso, tão bom dizer
digamos. Digamos é quando você mesmo não diria desse jeito. Quando esse jeito é só
uma tentativa de aproximação que, a priori, você mesmo reconhece falha. Digamos
então, digamos que, que sim, que não, que pode ser. Ou não.
Paciência, você tem? Hoje vamos ficar por aqui mesmo — assim, nas palavras,
nos espaços entre elas, nos por trás delas, nos digamos que elas significam. Porque
hoje, como dizem os motoristas de táxi, não tem condição. Tão radical quanto acabar
o conhaque e você tomar uma vodca: radical-Faulkner, porque sempre procuramos
os melhores parâmetros, claro. Somos muito chiques. Hoje você não vai entender
nada, porque eu também não estou entendendo nada, e vou te levar comigo. Ah (por
favor, revisão: não põe vírgula depois do meu ah nem ponto de exclamação — meu
ah é seco assim deliberado, sem expectativa nem admiração). Repito. Ah que poder
inútil esse de levar você comigo. Que poder gelado. Que poder que tem me dolorido
porque não suporto me sentir responsável por quem não conheço. Assim, tão
rapidinho. No banheiro, ônibus, sala de espera. Assim, bem assim, alimento urbano
descartável. Eu, às quartas.
Se pelo menos você estivesse aqui comigo ouvindo esta Billie Holiday, às três
horas da manhã. E eu visse a tua barra na tua cara. Mas tá tudo bem assim. Podeixar
(revisão, uma palavra só: podeixar), eu seguro. Claro. Sim. Naturalmente. Também
acho. É isso mesmo! O quê? Ah. É como o quê? Não tenho usado tantas negativas —
é como nada. Só que não seria justo culpá-los, nem seria justo culpar-se.
Aquele pântano de negações e tentativas de formas de onde brotam os textos
obrigatórios como este. Tudo isto está me fazendo muito mal — but I’m very glad to be
unhappy, it’s a pleasure to be sad. Me traz um sal de frutas?

Muito simples: quero tirar o time. Fiquei olhando, do outro lado da mesa. O
resto todo não importava muito, mas tinha mãos de criança. Só que era tudo tão
arrumado. Eu não podia dizer: escuta, quero tirar o time. Para o rosto que segurava
— sem muita convicção, mas segurava — a bola do outro lado da rede, eu não podia
dizer uma coisa drástica feito “quero tirar o time”. Tenho ascendente Libra,
compreende? Para as mãos de criança eu podia dizer. Mas mãos de criança estão
proibidas de se manifestar em jantares sociais, formais, chatamente gentis. Então fica
tudo assim: educadésimo. Zero grau, solidão medonha.
Escuta, não tá dando. E eu que tinha pensado em escrever sobre o zero grau de
Sagitário. Nem com gelo ou açúcar consegui levantar o cabinho da rosa murcha. Eu
tentei, você não sabe. Ninguém sabe. Será esse o problema — ninguém sabe? Como a
necessidade neurótica de uma câmera — um pouco por trás, um pouco por cima, um
pouco por baixo, enquadradando assim, quem sabe? Te queria de ouro. E eu queria
dizer: me interna. Eu queria dizer: me tira daqui. Queria dizer: não tenho nada a ver
com isso. Dizer: não faço parte de nenhuma turma. Sou cúmplice de ninguém, me
deixa ir pra casa ler Marguerite Duras, depois de conferir se a luzinha vermelha da
secretária eletrônica está piscando. Dormir muito, eu queria.
Nem culpá-los, nem culpar-se. Antena louca, disparando sinais em código
indecifrável para todas as direções. Adele H escrevendo seu diário, louca de hospício,
numa língua que até hoje ninguém decifrou. Onde foi o enguiço? Não, hoje não
estou para jantar-nos-Jardins. Hoje não estou pra boate-gay. Hoje não estou pra free-
lance-in. Hoje não estou pra vídeo-pós na casa de fulaninho. Hoje, não estou. Fui
atropelado na esquina como Roland Barthes (sempre os melhores parâmetros). Yann
Andréa me internou para uma desintoxicação de infelicidade generalizada. Hoje —
digamos — não tá dando. Hoje eu vou bater a última frase e encerrar assim: ah. Como
num suspiro, como num pedido. Você tem paciência? Eu, não.
O Estado de S. Paulo, 25/11/1987
Vamos tirar o rodenir?

Cai fora, coisa cinza. E deixa entrar a alegria, o ar puro e o sol da manhã
Mais de uma vez, aqui mesmo, falei naqueles meus amigos gaúchos — Ivan e Gorda
— que adoram inventar ou/e recolher novas expressões. É o comando pós-Aurelião.
De um grupinho pequeno, essas palavras novas vão se espalhando, de repente estão
soltas pelo Brasil. Todo mundo querendo saber o-que-é-o-que-é? A papisa do pós-
Aurelião, Mônica Figueiredo (foi ela quem inventou ou pelo menos divulgou os hoje
consagrados perua, saia-justa, modelão), foi dar um tempo em Portugal. Mas não nos
deixou ao desamparo. Lá na revista A-Z, o Nelson Pujol Yamamoto criou uma seção
chamada “O que É, O que É” justamente para botar na vida essas novidades: já saiu O
que é naja, por Nadja de Lemos; O que é lhama, por Sérgio Keuchgerian; e, na última
(com o Riccelli na capa), a deliciosa O que é periquita, do Antônio Bivar. Como tenho
boas fontes, sei que já estão programados O que é nigrinha, O que é lasanha e O que é
jacira — tudo escrito por gente que entende do assunto.
Hoje eu vou furar a Mônica — que infelizmente está longe, e o Nelson, que
felizmente está perto — para entregar a vocês, em primeiríssima mão: o que é
rodenir. A primeira vez que ouvi, claro, foi nas bocas irreverentes de Ivan e Gorda. A
primeira vez que repeti, as pessoas perguntaram: quem é esse cara? Porque parece
nome de gente, tipo jogador de futebol — e na meia-direita: Rodenir. Nada disso.
Rodenir não é gente (até pode ser) nem tem maiúscula. Rodenir é mais feeling, clima,
astral. Só que não é bom. Rodenir é assim uma coisa chata, meio azeda, viscosinha,
que fica rondando e não sai de cima. Não é desesperado, ao contrário: o desespero é
vermelho, o rodenir é cinzentinho, cinza-ratazana. Rodenir não tem humor, rodenir
não tem vontade, rodenir é atrolhante, pra baixo. Um tédio sem charme nenhum.
Exemplos? Vamos lá.
Você trabalhou o dia inteiro e tem que sair direto do trabalho para,
suponhamos, um aniversário. Aí você arma um jeito de dar uma passadinha em casa
ou ficar pelo menos meia hora no banheiro para — para quê? Para tirar o rodenir,
ora. Entendeu? Caso de amor daqueles que já caíram de maduros e descambaram
para a obrigação monótona — virou o quê? virou rodenir. Deve-se combater com
férias na Bahia, acessórios pornôs, separação provisória para — para tirar o rodenir.
Porque rodenir se tira, sim. Isso se a pessoa tem jogo de cintura, se não entranha até a
alma. Sarney, por exemplo, é a encarnação do rodenir. Talvez nem fosse tanto, mas
foi rodenirzando, rodenirzando até que ninguém aguentou mais (nem ele, acho) e
vêm aí (enfim!) diretas para — tirar o rodenir. Oba!
Porque um dos maiores prazeres desta vida é justamente esse: tirar o rodenir.
Tipo faxina. Exige janela e esforço, porque a tendência é chafurdar. Por natureza,
rodenir é pantanoso, estagnado, repetitivo. A repetição (de gestos, hábitos, papos,
comportamentos) vai criando aquela camada grossa — e perigosa — que, se a pessoa
não acender a periquita a tempo, dança. Para tirar o rodenir, às vezes tem que ser
drástico como em quadratura de Plutão: se curativo não der jeito, precisa amputar.
Dói, mas é saudabilíssimo: evita a morte. E o rodenir insidioso se parece muito a uma
mortezinha que não chega a matar, mas aporrinha.
Rodenir vem muito de dentro pra fora, mas também pode vir de fora pra
dentro. Quem contesta que a situação do Brasil atualmente virou rodenir do grosso?
E engarrafamento na Marginal? E agência bancária em véspera de feriadão? Puro
rodenir urbano. Claro que, se souber lidar zen com as coisas, você pode manipular,
atenuar e até se divertir com o rodenir-social-objetivo. Cada um descobre os próprios
jeitos de tirar o seu.
Comecei a dedicar dezembro para tirar o meu. Vale tudo: trocar Billie Holiday
por Little Richard, dançar horas sozinho, comprar uma camiseta Mr. Wonderful em
vez de pagar a conta de luz, dar presentes inesperados. Coisas assim, sem medo.
Como amar sem mentir, não é? Achar graça é importante. Não era Oswald de
Andrade que dizia que alegria é a prova dos nove? O cara sabia das coisas, gente.
Rodenir detesta prazer. Odeia felicidade. Você também? Não acredito: tira o rodenir
e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã. Com muito axé.
O Estado de S. Paulo, 2/12/1987
Despedida provisória

Dentro da manhã branca. Para dar um tempo, aterrissar de um livro e de alguns sonhos
Escrevendo na manhã de segunda-feira. Céu muito azul. As moças da loja de
bicicleta lavam as vitrinas. Eu bebo café, abro janelas. Como uma carta para vários
remetentes, para nenhum remetente. Despedida rápida, provisória: vou ficar algum
tempo sem escrever aqui, pelo menos até dia 6 de janeiro. Um pouco porque vou
viajar, tenho um trabalho a fazer no Rio de Janeiro. Mas principalmente porque
preciso de tempo — me dar um tempo, sabe como? Ando meio esvaziado. Nos
últimos tempos, investi todas as energias para terminar um livro — chama-se Os
dragões não conhecem o paraíso. Não me sinto capaz de falar sobre ele. Está pronto,
entregue. Foi demorado, foi difícil, talvez mais difícil que qualquer outro dos
anteriores. Às vezes, escreve-se um livro como se fosse para não morrer. Eu disse às
vezes, mas me pergunto se não será quase sempre assim. De qualquer forma, este foi.
E não que seja um livro “triste”. Ao contrário: acho que é cheio de vida. Também não
sei se tudo que é assim, cheio de vida, não será sempre também um pouco triste. Em
abril, estará nas livrarias. Então conversamos.
Quando penso abril parece tão longe. Meu pensamento não alcança até lá.
Tanto tempo pela frente, e o que acontecerá? Ando achando muito difícil sobreviver
— essa coisa aparentemente simples, você dorme hoje, acorda amanhã, come,
trabalha, faz coisas, depois dorme amanhã, acorda depois de amanhã, assim por
diante. Esse encadeamento tão natural que deveria ser quase automático, e portanto
sem emoção nem sustos, eu ando achando cheio de solavancos, derrapagens e, sim,
cheio de sustos. Por isso preciso de tempo, dizem que tempo resolve.
Está sendo difícil escrever hoje. Escrever de manhã é difícil. As manhãs são
brancas, parecem feitas mais para se olhar as coisas do que para se dizer algo sobre
elas. Além disso, preciso ter cuidado. Um amigo me avisou que exponho demais
fragilidades, fiquei preocupado. Talvez expor fragilidades seja o único jeito de ser
que eu tenho, então não sei se isso tem solução.
Andei sonhando um pouco, também. Ainda não é proibido, mas tem um preço.
Depois andei tentando não sonhar, mas isso também tem um preço. Não tenha
expectativas, me disseram. Fiquei tentando não ter expectativas — essa coisa que
amolda e desenha o futuro? Me pareceu tão seco. Estou tentando me mexer, agora,
dentro desta manhã branca, no meio desse branco que não dá forma nem cor ao
futuro. Tive vontade de deixar na secretária eletrônica um recado mais ou menos
assim: “Fui viajar. Não vou voltar”. Só para preocupar um pouco os outros. Melhor
não. Não estou fazendo nada preocupante: só vou dar um tempo.
Nos últimos dias, não vi nenhum filme, não ouvi nenhuma música. Foi um
tempo branco, também. Mas recebi um poema de Renata Pallottini, e dois versos dele
ficaram dando voltas na minha cabeça: “Olha garoto fica combinado assim: /
perdemos só esta batalha, e não a guerra”. Às vezes fico parado repetindo:
“Perdemos só esta batalha, e não a guerra”.
Acho que com o ano terminando e tudo isto aqui com este sabor de despedida,
mesmo provisória, eu deveria dizer uma porção de coisas pelo menos um pouco
animadoras, essas coisas que se dizem nos finais de ano. Desculpa, não estou
conseguindo. Depois de terminado o livro, depois de ter sonhado um pouco e estar
tentando não ter expectativa, resulta que fiquei meio esvaziado. Vou viajar, dar um
tempo. O tempo resolve, dizem. Preciso que esse tempo passe e me leve dentro dele,
porque até lá, honestamente e sem nenhuma espécie de modéstia, estou mesmo meio
burro.
E tão assustado no meio desta manhã branca. As moças continuam lavando as
vitrines da loja. Todo desocupado, depois de bater o ponto final aqui, preciso
arrumar qualquer coisa para fazer que seja assim como lavar vitrines ao sol. Pode ser
que consiga repetir os versos de Renata: “olha garoto fica combinado assim:
perdemos só esta batalha, e não a guerra”. E esse ficará sendo o recado final, nesta
despedida provisória. Fique feliz, eu também vou tentar. Prometo.
O Estado de S. Paulo, 16/12/1987
Nos amávamos tanto

Luiz Antônio Martinez Corrêa, Cacaso, Henfil: para onde foram aqueles sonhos dourados?
Entre minhas muitas obsessões, existe um poema. Curtinho, absolutamente simples,
chama-se “Idade madura” e tem apenas estes quatro versos: “Meu coração anda
inquieto e sufocado/ como na infância, nas noites de tempestade. / É risonho o meu
futuro?/ Minha solidão é indescritível”. Seu autor: Cacaso. Final do ano passado,
aparentemente por razão nenhuma, como acontece com as obsessões grandes ou
pequenas, poéticas ou não, o poema voltou com toda a força. Eu passava os dias a
recitá-lo, debruçado sobre o microcomputador do astrólogo Pedro Tornaghi, no Rio
de Janeiro, conscientemente me recusando a ler jornais, ver televisão ou entrar em
contato com qualquer meio de comunicação capaz de tornar mais presente esta coisa
difícil — o mundo real. Até que não aguentei, arrumei um rádio.
A primeira notícia que o rádio trouxe foi: o diretor teatral Luiz Antônio
Martinez Corrêa (era ótimo, dele vi Theatro Musical Brasileiro 1914-1945, talvez o
melhor espetáculo em cartaz atualmente no Rio), 37 anos, tinha sido assassinado com
oitenta facadas. Desliguei o rádio. E só saí de casa no dia 30 de dezembro, para uma
manifestação na praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Além da missa de sétimo
dia em memória de Luiz Antônio, artistas, intelectuais e nem artistas nem
intelectuais, mas apenas pessoas preocupadas com a justiça, pediam providências à
polícia contra o assassinato, entre 1984 e 1987, de cerca de 300 homossexuais no país.
Sob o sol de quase quarenta graus, muita gente chorava.
O mais irônico naquela pracinha de Ipanema era lembrar de quinze ou vinte
anos atrás, com aquele espaço tomado por centenas de pessoas (algumas delas
estavam lá) coloridas e cheias de vida, acreditando nos novos tempos de paz e amor.
Cabeça baixa, a gente lembrava. E nem Chico e Caetano cantando, nem Fernanda
Montenegro recitando linduras de Adélia Prado, nem a dignidade de Marieta
Severo, nem mesmo o sol, o céu azul de verão, nem mesmo a enorme ciranda da
multidão cantando de mãos dadas “Aquarela do Brasil” ou a chuva de papel picado
dos edifícios na Visconde de Pirajá eram capazes de esconder que o horror está solto
na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil. Aos gritos ou em silêncio, pediam-se
providências para todos esses crimes com características semelhantes (cordas, facadas
e asfixia) demais para serem mera coincidência.
Voltei para o microcomputador de Pedro disposto a manter o mundo real a
distância, pelo menos até terminar nosso trabalho. E consegui. Caminhar de
tardezinha na praia, ao mesmo tempo em que trazia de volta aqueles versos
assustados de Cacaso, trazia também os de Adélia, que Fernanda Montenegro disse
na praça: “A vida é tão bonita/ basta um beijo/ e o universo se recompõe/ uma
necessidade cósmica nos protege”. Pois — eu repetia olhando o horizonte do mar —
o Senhor não há de abandonar quem, nestes tempos, ainda ousar o beijo e quiser
beber dessa beleza da vida. A necessidade é cósmica e nos protege. Mas, entre as
iluminações de fé, voltavam também, obsessivos, aqueles quatro versos de Cacaso e
seu clima de desamparo. E agora, o que vai acontecer?
Dia de voltar, no aeroporto, comprei uma revista. Lá estava: dias antes, Cacaso
tinha morrido de um enfarte fulminante, e eu nem sabia. Então retomar São Paulo,
dura Sampa estranhamente deserta, as chuvas de verão, certos dias como estar
dentro de um oco cheio de espinhos, depois a morte de Henfil, com todo o horror
voltando à tona. No caderno “Ideias” do Jornal do Brasil, no último sábado, numa
matéria chamada “Nós que nos amávamos tanto”, Wilson Coutinho, Zuenir Ventura
e Tárik de Souza fazem um balanço melancólico da geração que viveu aqueles anos
dourados de 68. E agora tenta seguir em frente, entre aids, assassinatos, suicídios,
mortes precoces, secas desilusões e escassas esperanças.
Não sei dizer nada cegantemente luminoso para encerrar. Perdoe eu não voltar
como quem traz um sorriso nos lábios e flores e frutas nas mãos. Mas imagino que
você sinta algo semelhante àquele susto manso do poema de Cacaso e acho que
sempre podemos nos olhar nos olhos ao perguntar: “É risonho o nosso futuro?”
Então, mesmo sem convicção nem certeza, responder que sim, que sim, que sim.
Porque não há de ser inútil, mente.
O Estado de S. Paulo, 13/1/1988
Mas que tempo é esse?

É preciso continuar atento e forte: a neocaretice está morando na casa ali do lado
Fui ver Atração fatal, filme de Adrian Lyne (o mesmo daquele idiotíssimo Nove
semanas e meia de amor). Saí aterrorizado. Não com os sustos de thriller, que sou
daqueles adoradores do Brian de Palma dos bons tempos: abro bem os olhos na hora
do medo e raramente me choco. Desta vez, meu susto foi porque poucas vezes vi um
filme com uma ideologia tão canalha. Não sou aquele desmancha-prazeres que conta
o filme para quem não viu, mas a moral (?) da história pode ser resumida em
qualquer coisa como: “Para salvar a família, vale qualquer atitude, mesmo o
assassinato”. Ou: “Quem vive um amor ilícito merece os piores castigos”. Ou ainda:
“A salvação é daqueles que aceitarem a mediocridade bem-comportada”.
O filme é tão canalha, mas tão canalha que é também eficientíssimo. Tem um
pique irresistível, envolve, quase impede o distanciamento crítico. Em nome dos
“bons sentimentos”, do “equilíbrio”, da “decência”, da “saúde”, o espectador
também começa a desejar que a pobre Alex (Glenn Close), a louca apaixonada,
também se ferre. Não há aqui aquela ironia com as ridículas moralidades e
normalidades estabelecidas, de Veludo azul, de David Lynch, nem a delicada
investigação dessa zona-limite entre a paixão e a loucura, de A história de Adele H, de
François Truffaut — dois filmes decentes. Atração fatal é indecente e grosseiro. Não
ficam claras as razões da psicose de Alex, é como se o diretor afirmasse que todas as
mulheres independentes, que não escolheram casar para serem mães e esposas
amantíssimas, fossem monstros de ressentimento, amargura, frustração e — como se
não bastasse — assassinas em potencial. Perigosíssimas à sagrada família, essas
mulheres liberadas e apaixonadas que matam coelhinhos, sequestram menininhas
inocentes e, completamente piradas, saem armadas de faca pelas ruas. Tubarão perde.
Saí do cinema pensando: é preciso estar atento e forte, colega, a Idade Média
está de volta. Discretamente, todo dia, de muitas formas estamos sendo
bombardeados por mensagens tipo: não saia da linha, não cometa nenhuma
transgressão, não se apaixone. Caso contrário, você será punido por isso. O vírus da
aids materializou nas cabeças burras aquela velha suspeita de que toda nudez, um
dia, seria inevitavelmente castigada. O que confirma a culposa lenga-lenga judaico-
cristã de que este planeta não passa mesmo de um sofrido vale de lágrimas, onde
todo prazer é sinônimo de pecado. Para quem acompanhou a luta das minorias nos
anos 60 e 70, resta um espanto no ar: o que está acontecendo? É um retrocesso? Foi
tudo inútil? Como se entrássemos coletivamente numa máquina do tempo moral e
mental, para negar a História e ignorar todos aqueles vislumbres de felicidade
individual conquistados nas últimas décadas. Tentar ser feliz agora, saindo fora do
esquema, é crime. Homossexuais, mulheres independentes, homens descasados,
rebeldes de todo tipo, artistas, loucos mansos e varridos: a nova moral está no seu
encalço.
A neocaretice está solta pelas ruas. Ela mora no apartamento ao lado, na casa da
esquina e anda muito preocupada com a possibilidade de Jocasta e Édipo
consumarem seu colorido incesto às oito da noite. Ela quer que o sexo que não se
destina exclusivamente à procriação seja varrido da face da Terra. Ela sorri amável no
elevador, dá bons-dias, boas-tardes, boas-noites, depois fica prestando atenção na sua
vida para ver se você está andando direitinho dentro da linha. E, se não estiver, tome
cuidado, porque de alguma forma você pode ser punido. Despejo, desemprego —
você sabe, essas pequenas tragédias que acontecem com quem ainda é capaz de não
só acreditar em um pouco de prazer, mas até de lutar por isso. Embora, concordo,
ninguém saiba mais direito o que seria “o prazer” a estas alturas da década de 80.
Quanto a nós — meio gauches, meio bandidos, dinossauros sobreviventes
daquele tempo em que tudo parecia que ia mudar —, não resta muito mais a fazer
senão resistir. Movidos, no mínimo, pela curiosidade de onde vai dar tudo isso. E
sempre se pode cantarolar baixinho aquele velho blues (“Milagres”) de Cazuza, que
diz assim: “Mas que tempo mais vagabundo é esse/ que escolheram pra gente
viver?”
O Estado de S. Paulo, 20/1/1988
Bancarrota blues

Será que as ruínas dos cenários foram transpostas para a alma das pessoas?
Eu tinha jurado: vou ficar neste sofá, me abanando com aquele leque japonês que o
Mário Prata me trouxe da Disneyworld, até o verão acabar. Verão, vocês sabem, é
uma forma amena de se chamar este implacável desequilíbrio ecológico que se
abateu sobre nós, e faz pensar em rombos na camada de ozônio, aumento do nível
das águas dos mares, degelo das calotas polares… Sete pragas, fim dos tempos —
melhor não pensar nisso. Melhor ficar mesmo jogado neste sofá, o telefone ao lado,
ouvindo Nana Caymmi cantar “Bancarrota blues”, Dorothy Parker, Edmund Wilson
e Peter Handke bem ao alcance da mão, esperando o verão passar.
Esse era o meu plano. Aí o telefone tocava, vamos aqui, vamos ali, pô, você não
sai mais de casa, vamos dançar, vamos jantar, vamos passear, ver as pessoas. Tá bom,
vamos. Um pouco em honra da firma (afinal, não é possível permitir que cada janeiro
ou fevereiro façam a gente sentir-se com no mínimo noventa anos), um pouco para
reapresentar “a noite paulistana” (aspas indispensáveis) à trepidante Marion Frank,
que veio de Berlim para dar uma olhadinha na taba — quebrei o juramento.
Desliguei o gravador, contei os trocados, esqueci o medo do goleiro diante do pênalti
e fui à luta. Antes não fosse.
A pergunta é banal e previsível, mas também inevitável: o que é que está
acontecendo? Primeiro, a cidade. Que eu lembre, nunca esteve tão suja, feia e
destruída. Parece o título (só o título) daquele lindo livro de Nelson Brissac Peixoto:
Cenários em ruínas. Calçadas em pedaços, lixo nas ruas, um certo ar assim de Sudoeste
Asiático. Não vou falar nos preços: a esta altura, você já deve ter lido as manchetes de
primeira página do jornal. Mas — os preços e feira urbana à parte — e as pessoas?
Aqueles cenários arruinados de que fala o Nelson parecem transpostos para o
interior das pessoas. Um ano fora, Marion F. se espanta: mas todo mundo só pixa o
Brasil e fala em ir embora. Ninguém tem esperanças, ninguém tem amor, ninguém
tem saco. Pior: ninguém se fala, ou fala apenas para trocar queixas e desânimos. Fui
emergindo daquela anestesia de verão, olhando em volta até ficar quase aterrorizado.
Porque o mais doloroso nisso tudo não é sequer a crise social, mas a crise na
alma das pessoas. Fui até a uma festa. Festa agora é esquisito. Antigamente, festa ou
dar uma saidinha no fim de semana era sinônimo de namorar um pouco, fazer umas
caras, uns charmes. Agora, em plena era da aids, sexo acabou — mas isso não é o
mais terrível. O mais terrível é que acabou também o impulso do olho, do toque. O
desejo está bloqueado. Com o bloqueio do desejo, vem junto o bloqueio do sonho, da
fantasia, da mera curiosidade. Os impulsos vitais mais básicos estão lesados — Eros
algemado —, e o que sobrou no rosto das pessoas pelos bares, pelas festas, pelas ruas
é uma inacreditável tristeza.
Recolho notícias aqui e ali: a atriz (talentosíssima) que abriu uma lanchonete, o
bailarino que agora trabalha numa confecção, o jornalista que vai embora pro
interior, o músico que virou caixa de banco, a cantora que vai embora pra Portugal
(não faz isso, Rita Lee!). Com meu terapeuta em férias, fico meio confuso — será que
assim, sem assistência técnica, pirei além da conta e é só meu olhar, sozinho e pirado,
que está vendo tudo desse jeito? Aí chega uma carta do Ignácio de Loyola Brandão,
me tranquiliza: “… a caretice vem dominando tudo, do jovem ao velhusco, ninguém
está escapando. E de que forma reagir, protestar contra tudo isso? Ou o tempo das
contestações saiu de moda? (…) ausência de planos, vazio, tédio, abandono, falta de
projetos. Não é isso o que eu quero, nem para mim — que tenho cinquenta e um anos
— nem para meus filhos adolescentes”.
Nem eu, Ignácio, que tenho trinta e nove anos e nem sequer filhos. Mas
também não quero este país destroçado nem para as pessoas que amo, nem para as
outras que nem sequer conheço, e nunca estiveram tão tristes. Suspiro. Sete da noite,
desaba uma chuva de Sudoeste Asiático. Volto para meu sofá, ligo o gravador, Nana
repete “uma fazenda, um casarão, imensa varanda…”. Ah, é preciso ficar mais feliz,
urgente. Vou rezar pra chuva passar e sair um arco-íris bem luminoso pra gente fazer
três pedidos.
O Estado de S. Paulo, 3/2/1988
Anotações depois
do Carnaval

A vida está solta, certos poemas ferem como setas. Rosas vermelhas brilham no escuro
Venho vindo pela rua, quase noite. Começa a chover, levanto a gola do paletó. Os
neons começam a acender, brilham refletidos nas poças d’água das calçadas.
Ninguém pensa em mim, penso. Na portaria, o zelador me entrega um cartão de
Nova York. Espio o remetente: Marlui Miranda, que está lá como bolsista, fazendo
um trabalho sobre música do Xingu (metáfora irônica de Brasil: uma
cantora/compositora como Marlui tem que ir a NY para fazer seu trabalho sobre
música brasileira). Abro o envelope. Dentro dum enorme sobretudo negro, cigarro
molhado no canto da boca, mãos nos bolsos, James Dean caminha por uma rua
deserta.
*
Ligo para amigos no Rio de Janeiro. Tudo bem aí? Deslizamentos,
desabamentos, mortes, temporais. Jacqueline Cantore diz: “Até aqui, tudo bem. Por
enquanto estou trancada no quarto andar, à espera da grande onda. Aí então viro
anfíbia”. Vocês já ouviram falar na grande onda? Não? Então deixa para lá, melhor
parar por aqui: here comes the sun.
*
E falar com aquela pessoa inteiramente desconhecida, sentada ao lado no balcão
do Longchamps — você já falou? Experimente. Mas não fique só naquele papinho
sobre tempo, crise, inflação. Vá mais fundo, não dói. Pergunte e responda
atrevimentos como: você anda feliz? Saiam juntos, tomem uma saideira em outro
bar. Contem coisas, troquem queixas e fés, recitem o primeiro poema de Drummond
(que tal: “Por que amou/ por que amou?/ proibido passear sentimentos
desesperados”?) ou Adélia Prado (que tal: “Quarenta anos/ não quero a faca nem o
queijo/ quero a fome”?) que vier à cabeça. Redescubra o óbvio: pessoas existem.
*
Redescobrindo o óbvio, caminhe pela avenida Paulista quase deserta, quase de
madrugada, solado grosso do sapato meio punk batendo forte no asfalto, ponta de
cigarro meio apagada no canto da boca, formule assim, mais óbvio que nunca: a vida
está solta. Por trás da crise, da falta de amor e consolo, alheia a tudo, mais que alheia,
alienada dos que tentam prendê-la — ela, a vida, continua solta. Na esquina. Vai até
lá, baby.
*
Sublinhar com tinta vermelha esta frase de Machado de Assis: “Bem-
aventurados os que se possuem, porque eles possuirão a terra”.
*
Agudo e súbito como uma seta, cravado na memória este poema: “Eu sou um
homem sozinho/ a vida me tornou egoísta e mau/ e a minha poesia é um vício
triste/ que eu faço tudo por evitar”. Deus, que medo, quem teria dito isso? Depois de
minutos, espantado: foi Mário Quintana. Que os anjos velhinhos, lindos, também
têm seus momentos de amargura.
*
De repente uma garota vira com estrondo a cadeira e sai do bar. Um rapaz sai
atrás. Outra garota fica na mesa. Chora, diz palavrões. Todos olham. Resta um
cheeseburger abandonado, um copo com dois dedos de chope. Todos olham. Você
continua a falar do diário dos últimos dias de Joe Orton, eu respondo com Peter
Handke. De que planeta chegamos?
Juliana Carneiro da Cunha me ensina a rezar Salve Rainha. Não consigo
aprender. Profano, fico pensando o tempo todo: rainha é ela, com esse ar trágico e
esse porte nobre de princesa moura. Ave, Juliana!
Ouvir muitas vezes “Berlim, Bonfim”, de Nei Lisboa e Hique Gomez. Dançar
sozinho no apartamento, prestar atenção nos toques, recados, chamados. Um dia
quem sabe, numa esquina de Friedbergstrasse, naquela padaria de Seelingstrasse,
“digitando em frente ao Metropol”. Saudade do que nunca vi, de quem ainda não
amei: os caminhos são muitos e nós estamos vivos. Se os caminhos estiverem
fechados, abrimos no braço. Se quiserem nos matar, não morreremos. Em riste, em
guarda, a lança de Ogum arrebenta o baixo-astral. Aumento o som: quero ver
Christiane F.
*
Um dragão vermelho, dourado e rosa risca o céu e treme a terra.
*
Tardes de domingo são pedras jogadas nágua. Não gosto de jogar, mas depois
que a pedra cai e afunda os círculos concêntricos vão se ampliando, até chegarem à
margem onde você está. Ruído algum: o telefone toca como se estivesse também
dentro dágua.
*
Na fita da secretária eletrônica, deixar só um recado. Ouvir de novo, acreditar.
Nem precisa ser verdade. Rosas vermelhas brilham no escuro da sala quase toda
branca. Quando teu pensamento me chamou foi bonito.
O Estado de S. Paulo, 24/2/1988
Em todas as direções

Batalhar um rock na FM, tomar banho gelado de manhã cedo, domar as feras. Feridas ou não
Hoje não tem tema. Mais grave: hoje quase não tem crônica. Hoje tem janela aberta
de domingo sobre a rua morna — pra fora, pra dentro. Tem rádio ligado com locutor
afirmando entusiástico “março-taí-a-semana-que-vem-vai-ficar-tudo-melhor”.
(Hmmm … como diz o Paulo Francis.) Tem fresta de sol batendo naquele cinzeiro
roubado do Albamar, no Rio de Janeiro, tem ruído de skate, aquelas travadas bruscas,
no jardim quase todo de pedra aqui de baixo, tem bicicletas verdes, azuis e amarelas
(acho que vermelhas também, mas não consigo ver) na vitrine da loja em frente. Isso
pra fora. E pra dentro — o que tem?
Marcelo liga espantado com a morte, a morte dos outros, não a dele. Eu digo
mas acontece a todos nós, é praticamente a única coisa certa com que você pode
contar. Praticamente não: é mesmo a única coisa certa. Eu digo não se espante, ele
continua espantado. E diz que eu pareço tão equilibrado, mas tão equilibrado que
estou até seco demais. Assim, uma lixa? Não, assim não quero. Tanto assim? Não
pergunto nada.
Agora tem Coca-Cola gelada e em lata na geladeira. Pequena bênção, as
pequenas bênçãos dos domingos. A tampinha faz clack sensual, a lata eu acho linda,
sempre tenho dificuldade de jogar fora. Agora tem também Chico Buarque no rádio.
“Eu gosto um pouco de chorar”, ele diz. Eu também. Agora tem duas moças lá fora
descendo a ladeira, as duas de ray-bans bem pretos. Para onde vão as moças de ray-
bans tão pretos, nas tardes de domingo desta cidade? E esses rapazes de barba por
fazer, que descem e sobem a rua Augusta, com jornais embaixo do braço e jeans
desbotados? Agora tem telefone calado e eu sentado em frente à janela.
Marion volta para Berlim — e como viver numa cidade sem Marion F.?
Trocaremos cartas, sim, te mando O homem do castelo alto, de Philip K. Dick, você me
manda o brinco punk? Combinado, mas não é a mesma coisa. Fernanda vai para
Portugal — e como viver numa cidade sem Fernanda Abu? Não te encontrarei mais
por mero acaso na Oscar Freire, de tardezinha, para olharmos as liquidações e
comermos salada de frutas no Frevinho? Marcelo continua espantado com as perdas
e as mortes. E reage quando tento dizer que, sendo bem mais velho, é lógico que,
digamos assim, eu fatalmente também tenha mais experiência desse tipo de coisa.
Mortes e perdas aconteceram muito mais para homens de quase quarenta anos do
que para rapazes de pouco mais de vinte, por uma questão de tempo mesmo.
Escrever uma novela tão curta e densa quanto Olhos azuis, cabelos pretos, de
Marguerite Duras. Batalhar uma bolsa pra qualquer lugar. Procurar o centro do
furacão. E conseguir sobreviver a noites de solidão como aquela nos bosques de
Kungshambra, em Estocolmo, o crepúsculo interminável do midsummer e ninguém
num raio de cinco quilômetros para falar uma palavra sequer em português. Evitar
viajar nos vincos ao lado da boca, na frente do espelho. Não pensar se você disser x,
respondo y, mas se você fizer w aí então eu faço k. Procurar Deus no céu de starfix do
teto do quarto. Aumentar o rádio quando tocar The Cure, tocará? Procurar qualquer
motivo além da janela aberta, mas encontrar só esse ar parado e morno de pré-
tempestade. Lembrar aquela linha do I Ching: “Uma jarra de vinho, uma tigela de
arroz,/ louça de barro, simplesmente entregues pela janela./ Isso por certo não
implica em culpa”.
O casal de moto desce a rua, fotografo. Será de John Donne aquele poema de
Nunca te vi, sempre te amei? Aquele, você sabe qual, aquele que diz mais ou menos
assim: “Toma cuidado ao pisares, porque pisas sobre os meus sonhos”. Controlar os
sonhos. Deixar exposta na sala a capa da The Face, com Isabella Rossellini em Blue
Velvet, pontinha do incisivo quebrado. Limitar, limitar. Domar as feras, feridas ou
não. Evitar o drama, deixar fluir — meio lhama, mas que se há de fazer? — e não
perguntar: até quando. Acordar cedo, tomar banho gelado, usar shampoo de alecrim,
vestir a camiseta com a cara de Woody Allen (muito a propósito).
Fechar a janela, mesmo sem chuva. Palavras em todas as direções, polvo
espástico. Reagir quase violentamente quando você perguntar mas você não anda
meio triste demais? Batalhar um rock na FM, deixa pra lá.
O Estado de S. Paulo, 2/3/1988
Cine Brasil:
sonho e romance

Nos filmes de Ana Carolina e de Sérgio Bianchi, dois retratos do Brasil de hoje
No Brasil, artista costuma se queixar muito. Atores dizem: “Queria fazer
Shakespeare, mas faço comercial de chicletes”. Escritores dizem: “Queria escrever
algo como Os Buddenbrooks, mas tenho que fazer reportagem policial”. Cantores
dizem: “Queria gravar Kurt Weill, mas a gravadora quer rock ou brega pra tocar na
FM”. Por aí vai. Os mais queixosos — com toda a razão — são os cineastas. Fazer um
filme, além de ser caríssimo, envolve muita gente, tem pouco público, não encontra
salas etc. etc. Por tudo isso, filme nacional é sempre uma vitória — contra a crise
econômica, as tempestades emocionais e ego trips, o preconceito do público, o baixo-
astral da Embrafilme (ou INC). Semana passada, assisti a duas belas vitórias.
A primeira chama-se Sonho de valsa, de Ana Carolina, que completa a trilogia
composta de Mar de rosas e Das tripas coração. Pode-se dizer da moça que ela é
excessivamente pessoal, obsessiva, hermética, discursiva, até mesmo um pouco
pedante. E tudo isso — perfeitamente assumido em seus filmes e entrevistas — na
verdade só serve para reforçar algo que eu já suspeitava: de todos os cineastas
brasileiros pós-Cinema Novo, Ana Carolina é a que tem o estilo mais inconfundível.
Ou simplesmente: ela, coisa muito rara, tem estilo.
Sonho de valsa radicaliza todos esses detalhes que, para alguns, seriam os
“defeitos” de Ana Carolina, mas para mim são apenas características. Uma delas,
atrevida: ela rompe completamente com o realismo. Durante os dez primeiros
minutos do filme pode ser um tanto difícil para o espectador compreender o que está
rolando. Soa artificial porque, embora seja uma história comum, não está sendo
narrada de uma maneira comum. Realidade, delírio, simbolismo, fantasia são uma
coisa só na cabeça da personagem Teresa (que maravilha de atriz é Xuxa Lopes) e na
concepção da diretora. Literalmente, Carolina dá forma concreta a expressões
populares: Teresa mergulha de cabeça, entra pelo cano, engole sapos, dá nome aos
bois, carrega a sua cruz e cai no fundo do poço. São lugares-comuns na vida de uma
mulher à procura do amor (mas o filme não é restritamente feminino, qualquer um
pode se identificar com essa viagem), a que (com delicadeza, bom humor e muito,
muito talento) Ana Carolina vai dando forma. Pela beleza plástica que molda um
mar de projeções, carências, desejos, alguns diálogos geniais e o pulso firme da
diretora, Sonho de valsa é um dos filmes brasileiros mais ricos e inquietantes dos
últimos anos.
O outro filme — a outra vitória — é quase o reverso de Sonho de valsa: Romance,
de Sérgio Bianchi, do qual sou um tanto suspeito para falar porque participei do
roteiro. Enquanto, de certa forma, Sonho de valsa traça um retrato da corrupção
interior do emocional deste país movido a absurdas fantasias, Romance parte para o
retrato exterior dessa mesma corrupção. A de fora, a dos podres poderes. Na forma,
são completamente distintos: Ana Carolina procura — e consegue — a harmonia
(mesmo nos momentos mais duros, seu filme é belo); Sérgio Bianchi, a desarmonia.
Romance é irregular, sujo, cínico, saturado. Na tentativa de recompor a memória e a
obra de um intelectual misteriosamente morto (Rodrigo Santiago), cruzam-se outras
pessoas ligadas a ele — e nenhuma tem saída. Ao lado do poder safado, o ex-amante
(Hugo Della Santa) tem aids, a amiga (uma comovente Isa Kopelman) afunda na
loucura e no suicídio, a repórter (Imara Reis), à procura da “verdade”, da “decência”
e da “justiça”, acaba cooptada pelo poder que pretendia denunciar. Todos dançam.
Os problemas técnicos se diluem no vigor do filme, assustadoramente atual pela
carga quase histérica de denúncia e desespero. Romance é um filme incômodo que,
nesse sentido, também se parece a Sonho de valsa; se este deixa de saia justa os
amáveis temerosos de mergulhar na viagem interior para quebrar o próprio espelho,
aquele assusta os que não estão vendo o desabamento, em todos os níveis, do país.
Sonho de valsa está em cartaz, Romance só entra em abril. Para os dois, e para o Brasil, a
música-tema bem podia ser “José”, de Caetano: “Estou no fundo do poço/ meu grito
lixa o céu seco/ (…) enquanto espero/ só comigo e mal comigo/ no umbigo do
universo”.
O Estado de S. Paulo, 9/3/1988
Venha ver os dragões

Eles não conhecem o paraíso. Desprezam o poder. Têm asas, querem voar. Como os anjos
Os escritores brasileiros andam meio em transe. Há um mês, em entrevista amarga
ao JB, Ignácio de Loyola Brandão anunciava que está parando de escrever e acusava a
nova geração literária de não contestar as anteriores. De Campinas, Hilda Hilst
também avisa que, após a publicação do novo livro (O caderno rosa de Lori Lamb),
também para de escrever: está desiludida. A decisão de Hilda, ela garante — pena
pra nós —, não é provisória. Parênteses: Ignácio e Hilda são dois de nossos melhores
escritores. Tem mais: em entrevista a Norma Couri, também do JB, Marilene Felinto
(autora do ótimo As mulheres de Tijucopapo) abriu a boca e falou mal de todo mundo.
A história rendeu: leitores escrevendo ao jornal para rebater as iconoclastias de La
Felinto, e a própria moça desmentindo tudo na Folha. Segundo ela, a repórter
distorceu suas palavras, com a intenção de criar polêmica (eufemismo brega, mas
metido a chique, para a velha lavação-de-roupa). Enfim, no meio da paradeza geral,
uma verdadeira coleção de saias-justas para todas as ocasiões. Dramas, mágoas,
renúncias e denúncias.
Outro dia, falando em cinema, eu dizia aqui mesmo que cada filme brasileiro
representa uma vitória. Contra o baixo-astral, a incompetência, a piração não
criativa, a dureza, esse terceiro-mundismo que nos enleia. Literatura, não menos.
Escrever (e publicar) também é uma vitória. Às vezes, de Pirro. Porque não acontece
nada, ou vêm os críticos — essa raça em extinção, cada vez mais dedicada ao culto da
najice pela najice (mais vale uma frase mordaz que o possível talento de alguém) — e
descem a lenha, os coleguinhas de profissão arrastam seu nome na l(h)ama. Todos
insatisfeitos, cobrando a produção de uma grande obra. Como se fosse possível, neste
país onde, para (sobre)viver, o escritor precisa também ser jornalista, tradutor,
bancário, roteirista, revisor, publicitário, e arrancar de míseros feriados, fins de
semana e noites escassas algo “do porte”, digamos, de Os Buddenbrooks ou Crime e
castigo. Pode?
Não, escritor brasileiro não existe. Ele é um personagem inventado por si
próprio, ao qual, fora ele mesmo, e ainda assim nem sempre, pouca gente dá crédito.
Apesar disso, escritores escrevem e publicam. Estou dizendo tudo isso para, do fundo
da minha não existência, anunciar que: escrevi um livro. Um, não: este é o sétimo,
escrito como os outros. Assim: você trabalha uns dois anos, pede pra ser demitido,
levanta uma grana, mergulha no livro, escreve reescreve treescreve, fica duro,
apronta o livro, arruma trabalho, o livro sai, você já tá com outro na cabeça, mas
precisa trabalhar mais uns dois anos, então pede pra ser demitido etc. Ad infinitum.
Comigo sempre foi assim. E deve continuar sendo.
Sim, porque não adianta virem com najices: não vou parar de escrever. É o que
mantém o homem vivo, compreende? Mesmo que não seja “de porte”, foi tão denso
escrever Os dragões não conhecem o paraíso (Companhia das Letras, capa de Guto
Lacaz) que, se não escrevesse, acho que morria. De muitas formas, amigos ajudaram:
Nelson Brissac Peixoto, Jacqueline Cantore, Marco Antônio de Lacerda, Fanny
Abramovich, Luiz Schwarcz, Silvia Simas, Guilherme de Almeida Prado, Ronaldo
Pamplona, Marcos Breda. Consegui, estou feliz. O livro fala de dragões, claro.
Dragões, você sabe, são animais mitológicos. Dragões não existem. Como escritores,
músicos, pintores, filósofos, ou todas essas pessoas que — loucas — querem sentir
num mundo em que é ridículo sentir. Você tem é que ganhar, conquistar poder e
glória. Os dragões desprezam esse paraíso. Têm asas, querem voar. Como os anjos.
Daí vou sentar e autografar. Com aquela mesma paranoia de Lygia Fagundes
Telles: ela sempre imagina que, em dia de lançamento, vai ficar plantada numa mesa
durante horas, completamente só, feito Godot à espera de um leitor que nunca
chega. Como não sou in-te-lec-tu-al, o lançamento não será numa livraria, mas no
Ritz, aquele bar com ar inglês, ali na alameda Franca (quase esquina com a Augusta),
a partir das cinco da tarde de amanhã, sábado, dia 26. O Wagner Serra promete tocar
blues, rocks, funks, bossa-nova, vai ter bebidinhas e tudo. Tenho medo, então estou te
convidando pra dar uma força. Se você não aparecer, vou ter certeza absoluta de que
não existo mesmo. E aí não sei como é que fica. Vai lá? Jura? Então tá, tô esperando.
O Estado de S. Paulo, 25/3/1988
À nossa mais
completa tradução

Partir é bom, voltar é melhor. Partir é de avião, mesmo não sendo. Você louco pra ver
pelas costas o que fica: mulher, amigo, trabalho, cidade, picuinha cotidiana. Voltar é
de trem, mesmo não sendo também. E você louco pra crescer devagar, na curva do
monte, a cara desse pão nosso de cada dia. Pela frente. Voltar é de frente, partir de
costas. Ficar eu não sei. Talvez perfil, assim um tanto egípcio?
Mesmo de avião, voltei de trem. Cinco anos longe deste Caderno 2, dez meses
fora de Sampa. Até posso, mas não quero viver sem. Voltando ressabiado, reticente e
escaldado, dei de cara com Ela — de quem Caetano uma vez disse, e a tudo o que ele
diz eu fico atento, sei a nossa mais perfeita tradução. Bracejando no mar de
adrenalina da Paulista, comprei o disco de Rita Lee. E meu velho sangue roqueiro de
dinossauro pop tornou a ferver. A velha senhora indigna, dessa geração que
descobriu um poço de desejos debaixo do travesseiro no Reino das Águas Claras,
continua com seu humor diabolicamente inteligente. Wow!
Não posso viver sem Sampa, não posso viver sem Rita. Nem sequer, najas
queridas e já a postos, nos conhecemos direito. Fora do palco-plateia só nos vimos
uma vez, na casa de Vânia Toledo, logo depois que eu a defendera aqui mesmo de
certo, digamos, Notório Jovem Crítico de Maus Bofes. Ele a acusara de estar na
“menopausa (sic!) criativa”. Estavas, perguntaram? Rita já rolou (e eu? e eu?) por
todo o tobogã do baixo-astral tupiniquim — um dia deusa, noutro cadela — e sempre
foi melhor que tudo o que disseram, inclusive elogios.
Rita é São Paulo. Pauleira, barulheira, gritaria: high-speed. E sem que ninguém
espere, um interior bossa-nova, de luz baixa e som mansinho. Oh paulistanos de
nervos repuxados como a cara das atrizes que se recusam a envelhecer, ouçam Rita
Lee. Ela nos ensina o jeito de lidar com esta cidade onde você às vezes vegeta, às
vezes é canibal. Audaciosa, perniciosa, tinhosa e hórrorosa como a Drag Queen de
Antônio Bivar; necessitada de mais tempo, dinheiro e amor para matar o dragão;
erótica e violentamente zen na sabedoria que só pterodáctilos feitos ela (e eu? e eu?)
estão cansados de saber que “nada tem fim, as coisas só se transformam”; mãe de
família, filósofa desbundada sobrevivente mutante: preciso de Rita como preciso
desta cidade. Espelhos, paradisíaco inferno refletindo meu avesso.
Tenho razões, ora se não. Sozinho feito uma Laika, já ouvi Rita no walkman,
dezessete abaixo de zero, neve batendo na cara, entre os junkies de Camden Town. Já
ouvi Rita num TGV a mil por hora — eu ia ser feliz, não tinha tempo a perder. Já
ouvi Rita de porre, fazendo amor, picando cenoura, pedindo carona, de saia-justa,
deprê e piradão. Todas as vezes, me senti até o resto dos cabelos que me resta metido
nesta “coisa” paulistana: metrópole Gremlim distendendo seus tentáculos de neon e
cólera em direção ao Terceiro Milênio. Identidade, Rita nos dá.
Me arrepio quando a ouço receber a Brigitte Bardot anos 60, quando o Brasil era
chique, cantando “Maria Ninguém”. Me arrepio mais quando a ouço berrar feito
doida homenageando “Todas as mulheres do mundo”. E ainda mais quando cita
Lonita Renaux (Denise Barroso) — aquela que, segundo Telmo Martino, interceptava
todos os drinques. Nos tempos da gang 90… Todos morreram, menos nós. Pós-
absurdetes sobreviventes, Bebetes Indartes da esquina, segurai bem alto nosso nobre
facho (já) histórico.
Quando penso que voltei e isso é bom, penso em Rita Lee. Quero cantar São
Paulo, quero cantar nosso tempo. Mais fundo e mais simples, quero cantar e mais
nada. Cinquentões adolescentes ganhando no braço do baixo-astral do Brasil, se
nossa “menopausa (sic!) criativa” for assim, welcome seja! Para sempre teu,
eternamente F.
O Estado de S. Paulo, 22/8/1993
Reflexões à porta
de um canil

Nos tempos da revista A-Z, de saudosa memória, o editor Nelson Pujol Yamamoto,
de saudosa memória (de certa forma, tudo neste país parece de-saudosa-memória,
mas isso é outra história), inventou uma seção. Inspirada pela coleção da Brasiliense
Primeiros Passos, criada por Caio Graco (de saudosa etc.), chamava-se “O Que É, O
Que É”. Cada mês, alguém dissecava alguma forma ainda não catalogada — e
contemporânea — de comportamento. Alguns exemplos: o que é naja (Dorothy
Parker), lhama (Lucélia Santos) ou gentalha (Collor & Rosane). Sacou?
A A-Z passou, o Nelson passou, o Caio Graco também. Mas a piração continua.
Hoje tento explicar “O Que É, O Que É Cadela”. Não, não se trata apenas da fêmea
do cão, meu bem. Cadelas são gente que sofre muito. Amores não correspondidos,
cheques sem fundo, desvio na coluna — a cadelice é sobretudo falta de. Inclusive de
algo chamado enfrentatividade, mas “O Que É, O Que É Enfrentativa” fica pra outra,
prometo.
Exemplos famosos de cadelas: Marilyn Monroe, um ícone de cadela; Adele H., a
filha de Victor Hugo que enlouqueceu por amor, era cadelérrima; Camille Claudel
idem, o que me faz supor — e quem a conhece confirma — que Isabelle Adjani
também é. Janis Joplin, outro ícone, Elis Regina, Jean Seberg. Aliás, todos os que
morreram de overdose: Fassbinder, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Raul Seixas. Porque
não pensem, machistamente, que só mulheres têm a grandeza de ser cadelas. Pensem
no Werther, de Goethe, ganindo seu impossível amor; em Cazuza, rasgando o
coração em público; em Fernando Pessoa, solitário e bêbado, tropeçando em
heterônimos pelos becos de Lisboa. Em Reinaldo Arenas, Rimbaud e Lupicínio.
Imagino que a expressão tenha relação com a Laika, lembra? Aquela cadelinha
viralatíssima que, lá pelo fim dos anos 50, os russos jogaram dentro de uma cápsula
espacial. Depois não conseguiram trazer de volta, numa cadelice literal e cósmica, e
Laika ficou girando no espaço, completamente só. Até — até hoje, será? Gosto de
pensar que Laika, a verdadeira, foi parar num planeta habitado somente por cadelas
perdidas feito ela. Mas isso também é outra história, outro dia eu conto.
Existem três tipos básicos de cadela. O primeiro, mais trágico e um tanto
metafísico, é justamente a pobre Laika, uivando para o infinito sem que ninguém
possa socorrê-la. Estou certo de que Nietzsche foi uma laikona. Katherine Mansfield,
outra. Como Clarice Lispector, e Hölderlin, e Ana Cristina César, e Jesus Cristo,
amém.
Mas há um segundo tipo, bem mais soft — a Fifi. Fifis sofrem tanto quanto as
laikas, mas geralmente têm mais dinheiro, ou são salvas (em termos, porque cadelice
autêntica é a cármica) pela divina futilidade. Fifis viajam muito, adoram perfumes
franceses, frequentam. A Dama das Camélias é a fifi arquetípica, mas Truman
Capote, Tennessee Williams e Scott Fitzgerald também foram (Zelda começou fifi,
terminou laika). Sinéad O’Connor, no seu retiro em Dublin, anda me parecendo
fifizíssima. E Lady Di? Mas, ao lado de Miguel Falabella, Stella Miranda, Déa Martins
e Liz Taylor, minha fifi preferida é Danuza Leão.
Um terceiro e último tipo, sem tanta dor, talvez, é a Lassie. Esta tenta aplicar
nos esportes e hábitos saudáveis sua rematada cadelice. Não fuma, não bebe:
transpira. Exemplos, Magic Johnson, Jane Fonda, Luiz Fernando Guimarães, J. C.
Viola. E a Xuxa, nossa lassie-mor.
Nos dias que correm, ser cadela é fundamental. Laika, Fifi ou Lassie, ela
conhece o seu lugar: sabe que do canil veio e ao canil tornará. Tudo o que uma cadela
sensata e inteligente espera da vida é um bom osso. Às vezes cravejado de brilhantes,
mas no fundo puro osso. Duro de roer. E, se vocês estão achando tudo isso um tanto
ofensivo, quero deixar bem claro que, desde criança, eu mesmo nunca passei de uma
laika.
O Estado de S. Paulo, 29/8/1993
Samba-enredo para
um Carnaval de horror

Carandiru, Candelária, Haximu. Sonoro, hein? Até parece refrão de samba-enredo


triunfalista… Quem dera: esse é o trágico refrão de um país onde a palavra chacina se
tornou a mais in. E nem vou me dar ao trabalho de somar os mortos todos.
Matemática nunca foi meu forte, e além do mais até hoje ninguém sabe ao certo
quantos assassinatos foram. Quem se importa? Eram homens e crianças quase todos
pretos, e ianomâmis, todos índios. Para onde galopa célere todo esse horror nacional?
Sarajevo, Mogadíscio, qualquer coisa assim, muito além do Haiti.
Minha primeira impressão de São Paulo foi que uma bomba explodira e todos
corriam sem saber pra onde. Suspirei fundo, fui espiar Porto Alegre, Rio de Janeiro.
Porto Alegre, vá lá, ainda guarda certo ar de segundo mundo, graças a um prefeito
decente. Mas o Rio — ai como dói aquela cidade em quem a conheceu nos anos 60 ou
antes… Papo ouvido entre camareiras de um hotel no Leme: “Hoje quando saí tinha
um presunto na porta de casa. Com a garganta cortada”. A outra, superior: “Só um,
meu bem? Ah, isso não é nada. Outro dia lá em casa tinha três”.
Acendo incenso, disponho cristais. E sei, nem todos axés e ebós do Gantois a
Calcutá seriam suficientes para exorcizar o horror que desabou sobre o Brasil. Sonia
de Oxum Apará, ialorixá amiga minha há doze anos, avisa: “Não tem orixá que dê
jeito neste país, meu filho. Vem aí revolução com muito sangue derramado e até
golpe militar”. De novo? Meio zumbi, recito Carandiru-Candelária-Haximu, mantra
sinistro, e o mais remoto horror fica possível aqui, onde não deveria ser o Haiti,
Sarajevo ou Mogadíscio. Em que espécie de inferno eles querem nos jogar, hein?
Voam boatos, internacionalizar a Amazônia. Tem ouro, urânio, tem bauxita por
lá. Bueno, isso seria apenas oficializar o já feito. Se não, responda: para onde foi o
ouro de Serra Pelada? Presto atenção nos jornais: há um milico todo assanhadinho
para um replay de 64… Observo a televisão: tudo e todos completamente histéricos.
Ninguém fala nada sério — o sério é “baixo-astral”. O “alto-astral” brasileiro do
momento é todos gritarem e rirem feito hienas com trocadilhos infames sobre uma
realidade social ainda mais infame. Fico repetindo a reza fúnebre: Carandiru-
Candelária-Haximu, o que será que vem mais por aí? Não é só isso. E esse IPMF
anticonstitucional. E esses candidatos sem nenhuma credibilidade às próximas
eleições presidenciais. E o saldo da falta de ética, moral, honestidade e bota etc. nisso
deixado por psicopatas como Collor. E nós, e nós? Teus filhos que não podem sair de
tênis; a gangue de adolescentes que vi na Paulista, armados de navalha, em plena
noite de sábado; essas revistas sórdidas vendendo intimidades sexuais da gentalha
supostamente chique; inflação demente e aquele apresentador naja do mal na TV.
Tudo medonho. Chacina neles? Carandiru-Candelária-Haximu, versejo. Desde que
voltei, sinto náusea. Desde que voltei não me saem da cabeça os versos de Brecht e
Kurt Weill, em A ópera dos três vinténs: “Oh vós que nos dizeis e às vossas filhas/ que
é feio abrir as pernas pra viver,/ trazei primeiro um prato de lentilhas/ porque
moral, somente após comer”.
Durmo às vinte e três horas, acordo às sete. Todo atento, todo dia. Fico confuso,
e também pondero se não serei eu o louco furioso, não o Brasil. Treze anos de
psicanálise mais Sol e Lua em terra me serenizam: o que vejo está fora, não dentro. O
problema é que o de--fora acaba sempre por transformar-se no de-dentro (e vice-
versa, espero). Oxum Apará insiste: “Estou avisando meus filhos para avisarem seus
amigos. Saia daqui”. Mas quero ficar, quero que Carandiru-Candelária-Haximu não
se repitam nunca mais. Nem aqui, nem na Venezuela, nem em Togo.

P.S. — E eu já tinha dado este texto por pronto quando vejo na TV a matança de
Vigário Geral…

O Estado de S. Paulo, 5/9/1993


Adivinhem quem
vem para roubar

Fiquem atentos, ele quer voltar. Nas últimas semanas, aqui e ali pelos jornais,
encontro notas sobre a mudança para São Paulo, sobre o livro que está escrevendo e
até mesmo algum artigo estofado de palavras gordas tipo justiça, pátria, dignidade. Em
fotos recentes, continua com aquele ar entre o pinguim de geladeira e ator canastrão
de melodrama chicano, agora acrescido de certa aura estudadamente humilde. Como
se quisesse deixar bem claro que sofreu-e-aprendeu-com-o-sofrimento. Atenção, a
cilada está se armando. Como antes, tão lenta que mal se percebe.
Porque ele é espertíssimo. E não digo que volte direto por cima (embora seja
essa a meta), mas passo a passo. Deputado, senador. No começo, não recusará os mais
insignificantes espaços da mídia — e esta, o que é horrível, lhe dará espaços cada vez
maiores, mais nobres. (Se é que se pode usar a pobre palavra “nobre” em situações
desse tipo.) Também porque virá o livro, e haverá o pretexto de divulgá-lo e
naturalmente vendê-lo. Aos quilos, lógico. Tudo é business, aqui e no Haiti.
Até que, num final de semana, você vai tropeçar na cara dele na capa das
principais revistas do país. Humílimo, sofridérrimo, luzes acentuando certas rugas
amargas, certas sombras, quase santo. E enquanto rolarem inimagináveis conchavos
políticos por trás, a imagem começará a nos bombardear de novo. Já imagino os
sentimentos coletivos a serem utilizados em slogans autopunitivos e maquiavélicos:
erramos, fomos injustos, nunca é tarde para corrigir um erro. Ele vai declarar que
tinha certeza de que não o deixariam só, como pedira, que o povo brasileiro, minha
gente, não o trairia, que agora sim vamos retomar o crescimento e a arrancada em
direção ao século XXI e patati-patatá, lembra?
Quando chegar o momento, virão votos em pencas das regiões mais medonhas
do país. Como da outra vez. Haverá fraudes, acidentes providenciais em caminhões
que conduziriam eleitores do outro candidato — e isso, y otras cositas, jamais será
esclarecido. Em seguida estonteantes viagens internacionais, superjatos,
transatlânticos, jet skis, talvez um novo casamento (o anterior, convenhamos, é difícil
reabilitar). Sugiro: lady Di, após o divórcio, ou Madonna (já que ela vem aí, não custa
tentar). No caso de elas não toparem, quem sabe Sula Miranda (aquela porção
sertaneja)? E por que não Xuxa, tão solitária e combalida sob o peso insuportável
daquela estressante montanha de dólares?
Calma, também não precisa delirar… mas que ele quer voltar, do fundo mais
lodoso de minha paranoia congênita — acho claríssimo. Ele sabe que, das muitas
doenças graves que afligem o Brasil, a mais grave é talvez não suportar a própria
cara. Como da outra vez, quando em vez da rude cara operária do outro preferiram a
empoada dele, simulacro estúpido dos galãs de TV. Como se votando nele se
tornassem ele.
E os caras-pintadas, meus Deus, vão ficar com as caras no chão! Aprenderão na
carne aquilo que sempre ouviram dizer: o Brasil, meus filhos, é um país sem
memória. Tanto que, até hoje, ainda não percebeu que este horror onde estamos
atolados não passa do saldo legado por ele. A impunidade para ele e seus capangas
nos deixou uma inversão moral nojenta: se você é honesto, você é trouxa. Não viram
ele? Se ainda não, arregalem bem os fatigados olhos: exatamente um ano depois de
ter sido corrido, armando todas para voltar.
Não digo nem escrevo o nome dele. Como aquela palavra, o contrário de sorte,
cuja carga negativa desaba sobre quem a pronuncia. Pois isso é o que vai acontecer a
quem se deixar enganar outra vez. Não digam que não avisei. Só vai ser difícil me
achar para dizer qualquer coisa. Porque se isso acontecer mesmo — além da
imaginação — peço aos amigos que me joguem num hospício e me deixem lá.
Incomunicável.
O Estado de S. Paulo, 3/10/1993
Um presente lindaço
para São Paulo

Cinema e felicidade são parentes próximos


Presente que se preza deve ter forma e conteúdo. Embrulho bonito, crac-crac de
celofane ou seda, laço de fita, papel coloridésimo pra gente espatifar suavemente, de
pura expectativa. E coisa bonita por dentro também, nem precisa ser cara. Pirulito
mesmo serve. Pois semana passada ganhei um presente. Ou melhor, a cidade de São
Paulo ganhou um — e dos lindaços —, mas quem deitou e rolou fui eu. Bem que
andávamos precisados, ela e eu. Você também, garanto.
Tem um nome, esse presente. Chama-se Espaço Banco Nacional de Cinema, fica
na rua Augusta, 1475, duas quadras da Paulista em direção ao centro, passando o
Frevinho, quase chegando ao Longchamp, ali onde era o Cine Majestic. Que
felizmente não virou garagem nem supermercado, igreja evangélica ou qualquer
monstro tipo pró-barbárie. Esse Espaço é antibarbárie. Eu falava de forma: tem três
salas amplas, confortáveis, aparelhagem de primeira, uma sala de espera imensa com
um bar de garotas simpáticas, mais um enorme (e delicioso) pôster de Oscarito e
Grande Otelo. Falava de conteúdo: inaugurou com 26 filmes, considerados os
melhores da mostra do Rio de Janeiro.
Impossível ver todos. Mostra é meio empanturrante; ver um lrmãos Taviani e
em seguida um Zhang Yimou soa tão insensato quanto se jogar sobre um frango
xadrez logo depois de uma lasanha à bolonhesa. Mostra é meio zona também, e filme
bom exige silêncio durante, depois e às vezes até mesmo antes. Sou daqueles capazes
de odiar com ímpetos homicidas quem fala e come em cinema. Pipocas e Visconti,
Diet Coke e Jane Campion, pode? Cinema é ritual, liturgia, solidão, projeção inocente
de fantasias secretas, discretas. Mostra é indiscreta: muita gente aproveita mostra
para mostrar-se. Arranjando um cantinho estratégico para ver sem ser visto, fica
divertido observar o Crítico Que Saltita de Grupo em Grupo Dizendo Coisas Geniais
em Voz Altíssima, ou a Modette Que Saiu Hoje na Coluna e Está Doida Para Ser
Reconhecida. Coisas de Sampa, que nunca andou tão Dallas e onde atualmente o pior
tormento parece ser sentir-se invisível — ou incolunável, que aqui viraram
sinônimos.
Inabalável, graças a Deus, na noite de domingo vi um dos mais belos filmes da
minha vida: O cheiro do papaia verde, do vietnamita naturalizado francês Tran Ahn
Hung. Frágil, delicado. A câmera quase o tempo todo espreita a ação, desliza por trás
de treliças, espia em vãos de portas e janelas, detendo-se às vezes em vidas mínimas
— uma rã, a gota de seiva do mamoeiro, uma lagartixa, os grilos dentro de minúscula
gaiola de bambu. As vidas também são minúsculas, quase mudas. Os personagens
falam por gestos, pelos olhos. Estado de graça, imagem, amém.
Depois desse filme, qualquer outro europeu ou americano (principalmente,
lembrar do Vietnã dói — como foi possível a pata yankee quase esmagar aquela
gente nobre?) parece brutal demais. Perigoso, porque também não se pode desprezar
assim os lamês dourados e veludos bordôs sangrentos de Peter Greenaway, nem o
debochado Wittgenstein de sister Derek Jarman, com a sensacional Tilda Swinton
como Lady Ottoline Morrel, e mecenas amiga de Virginia Woolf e Katherine
Mansfield.
É que cinema salva. E pouca coisa salva. Muitas vezes, entre saltar
imediatamente pela janela, comprar uma passagem sem volta para Marabá ou
comandar uma chacina no Planalto, escolho ir ao cinema. Pois, como dizia Voltaire
(aliás, citado por Louis Malle): “Resolvi ser feliz porque é melhor para a saúde”.
Cinema e felicidade (ou ilusão de, que importa?) são parentes próximos. Será essa
uma das razões por que o Brasil anda tão infeliz? Leio que entre os cento e cinquenta
filmes da 17-ª Mostra Internacional de São Paulo, a partir de 21 de outubro, há
apenas um brasileiro. Um país que não se vê, sem autoimagem. Pois é, deu nisso.
O Estado de S. Paulo, 17/10/1993
Tese de mestrado
à holandesa

Tenho um amigo holandês, Sappe Grootendorst, que viveu algum tempo no Brasil
para preparar sua tese de mestrado. O tema: “Homossexualismo na literatura
brasileira”. Nas noites de inverno de Amsterdã, com os canais cobertos de gelo, eu
tentava ajudá-lo a compreender o que, para uma cabeça holandesa, é tão complexo
que mais parece título de outra tese: a ambiguidade do comportamento sexual
brasileiro. Que ultrapassa a literatura, mas, naturalmente, tem reflexos nela. Tanto
que uma das maiores personagens da nossa literatura (a/o Diadorim de Guimarães
Rosa, em Grande Sertão) é um travesti. Mais didaticamente, tentando ajudar Sappe,
subdividi os gays brasileiros em quatro tipos básicos:

Jacira — A Jacira é aquela que sabe que é, todo mundo sabe que ela é, e ela mesma
não se dá ao trabalho de tentar esconder que é mesmo. Ao contrário, até gosta de
exibir isso chamando atenção em público com gritinhos e gestos afeminados. O que
talvez seja uma grande esperteza, pois a Jacira sabe também que, em sua hipocrisia
moral, o Brasil aceita, aprova e até aplaude a caricatura.

Irma — Bem mais complexa, a Irma é aquela que todos acham que ela é (dá a maior
pinta), menos ela mesma. Frequentemente Irmas são casadas, ou têm noivas e
namoradas, às vezes até filhos. Gente maldosa costuma chamá-las de “bichas com
álibi”, mas a verdade é que, em se tratando de uma Irma, ninguém poderá provar
jamais absolutamente nada…

Telma — Como a Irma, a Telma também nega de pés juntos. Mas, ao contrário da
Irma, não dá pinta alguma. O problema é que, depois do terceiro uísque, Telmas
fazem coisas que deixariam até uma Jacira ruborizada. E na manhã seguinte, lógico,
não lembram de nada. A Telma é uma permanente amnésica, e tão esquizoide que
leva vida totalmente dupla: uma, contidíssima, como Telma propriamente dita;
outra, quando fora de si, como a mais louca das Jaciras.
Irene — A Irene faz a serena equilibrada, sensata, olímpica. Como não esconde nada,
também não precisa se preocupar em ser ou não descoberta. Em geral é culta,
viajada, analisada. De todas as formas, procura o equilíbrio, aceita seus desejos e às
vezes até milita pela causa.

Os quatro tipos têm relações conflituadas. Só as Irmas, muito tolerantes,


parecem aceitar as outras três. As Jaciras, por exemplo, super-radicais, acham que
Irmas e principalmente Telmas não passam de “umas enrustidas”, enquanto as Irenes
para elas são “umas falsas”. Já as Telmas, quando sóbrias, detestam Jaciras,
demasiado explícitas, mas admiram a discrição das Irmas e desconfiam das Irenes.
Estas, democráticas, tentam aceitar a todas, mas têm o irritante hábito de recomendar
psicanálise às Irmas e Telmas, e consideram as Jaciras “umas folclóricas”.
Claro, esses quatro tipos são abrangentes. Existem outros subtipos e intertipos.
Quando passei a relação para Karin von Schweder-Schreiner, a tradutora alemã de
Rubem Fonseca, ela não só me garantiu que as quatro categorias eram internacionais,
como imediatamente localizou uma quinta — a Renata. Que é aquela que, como a
Irma, também tem álibi, mas em lugares públicos sempre dá um jeitinho de ir ao
banheiro dos homens, onde presta muita, muita atenção. Pedro Paulo de Sena
Madureira também localizou outra — a Ondina. Aquela que, ao entrar num
ambiente mais descontraído (sauna, bar, discoteca, por exemplo), instintivamente
começa a ondular feito uma Jacira.
Meu amigo Sappe entendeu. E começou a identificar Irmas, Telmas e Irenes até
no metrô. Jacira era mais difícil: ela é mais comum nos trópicos, não se dá bem com a
severidade europeia e precisa de calor para soltar toda a sua jacirice. Quanto à tese —
bem, por carta Sappe me informa que está pronta. Chama-se, juro, “Literatura bambi
no Brasil”.
O Estado de S. Paulo, 31/10/1993
Na cama por
causa de Madonna

Tentei ignorar, juro. Mas foi completamente impossível. Acontece que moro a duas
quadras do Caesar Park, onde Madonna ficou. Do meu monástico 12o andar, dias e
noites ouvia lá embaixo os gritos daquela involuntária homenagem póstuma a
Fellini. Certa manhã, acordei com um barulho estranhíssimo sob a janela:
helicópteros sobrevoavam a área. E, mesmo tendo que desviar da Augusta para
chegar à Paulista nas minhas peregrinações urbanas, não consegui mais ignorar.
Mesmo decidindo não ir ao show (pruridos ideológicos, tipo eeeu, colaborar com esse
Grosseiro Símbolo da Alienação Capitalista?), acabei indo. Na última hora, meu
amigo Denis Escudero acenou com um irrecusável convite. E fui.
Safári, claro. Uma hora de ônibus, duas na fila, mais três até começar. Dúvidas
pleistocênicas, oh Deus, já não tenho idade, devia ficar em casa lendo Cervantes no
original, que juventude idiota, não tenho mesmo vergonha na cara & etc. Então as
luzes apagaram, a bailarina seminua desceu pela corda. E eu adorei. No dia seguinte,
de cama por causa da Madonna, descobri algo inteiramente insuspeitado — ela é do
bem.
Nem ofensiva nem obscena, Madonna representa tudo aquilo que todos nós
gostaríamos de ser e ter: o prazer sem culpa. Acho que uma figura assim não existiria
em tempos e espaços sem o vírus da aids, que bloqueou a prática sexual e incendiou
todas as formas imaginárias e indiretas da sexualidade. Veja-se, no mundo inteiro, a
maré de revistas, filmes, vídeos pornográficos, sexo por telefone e todas as formas de,
digamos, fazer a coisa da maneira mental, não física — e portanto sem riscos.
Madonna faz no palco tudo aquilo que as pessoas (as saudáveis) fazem na cabeça.
Exemplo — um crioulo fortíssimo, com sotaque baiano, vendendo cerveja na fila,
gritava o que todo mundo sentia: “Minha gente, quero ser que nem a Madonna para
dar mais que chuchu na cerca!”
Infelizmente, observei outras atitudes, também sintomáticas da era da aids. No
palco (fantasia) pode, no real (vida) não. A drag queen montadésima foi atacada aos
gritos de “bicha! louca! piranha!”. Tudo na maior agressividade. Mas, durante as
duas horas da realidade fantástica instaurada pelo show, há respeito no ar. A vida
suposta de Madonna e seu reflexo coreografado (belamente, pelo brasileiro
Alexandre Magno), mesmo entre berros excitados, é recebida com encantamento.
Madonna é um pouco como aquele transatlântico que atravessa ao longe a
madrugada em Amarcord, de — justamente — Fellini.
Na saída (Safári Parte II, o Retorno) Denis observou: “Engraçado, parece que
tem uma espécie de tristeza no ar”. E tinha. Pelas ladeiras do Morumbi, a noite tinha
ficado fria, guardas tentavam organizar um trânsito histérico, os ônibus não vinham,
as ruas pareciam sujas, as calçadas destruídas. Fugaz, o sonho passara. Ninguém era
mais Madonna. Nem ela, de volta ao hotel, enjaulada lá no alto, enquanto cá embaixo
o povo só queria receber uma espécie de autorização — a de que se pode também,
mesmo em tempos sombrios e sem graça, ser meio Madonna na vida.
A moça fez um enorme bem ao astral do Brasil. Parece que gostou de nós, e a
gente precisa tanto, especialmente o Rio de Janeiro. No meio de dias estranhos,
pesados (as mortes de Fellini, River Phoenix, do maravilhoso Felipe Pinheiro, bombas
por toda a Alemanha, lama grossa em Brasília), Madonna deixou no ar um sopro de
vitalidade. Saúde, alegria, tesão. Com ou sem vírus e crise, Madonna dá vontade
dessa coisa sagrada: viver. Por isso mesmo, Deus a abençoe. E pouco importa se Ele
não existe, porque ela também não existe. Existem símbolos. São eles que mobilizam
e, mesmo quando não bastam, são necessários. Melhor ainda se forem belos. E,
repito, do bem. Do lado certo da luz, compreende?
O Estado de S. Paulo, 14/11/1993
Levantando a cortina
de papel vegetal

Escrita em Tóquio, um dia depois do Natal de 1992, a carta levou mais de dois meses
para me encontrar. Passou pelo interior da França, pela Alemanha, Holanda, e
acabou em Paris, onde, num fevereiro sem sol, eu lia as denúncias de Reinaldo
Arenas contra o regime cubano em sua autobiografia Avant la nuit (atenção, editores
brasileiros, alguém já pensou em traduzi-lo aqui?). Rasguei o envelope branco, com
timbre do Clube de Correspondentes Estrangeiros do Japão. A carta era de Marco
Lacerda, velho amigo daqui mesmo, dos primeiros tempos deste Caderno 2, e na
época correspondente da Editora Abril em Tóquio.
Nas três páginas, uma história horripilante. Um vizinho de Marco, o americano
Chris, namorado de Adriana, uma nissei brasileira, caíra de um oitavo andar no
bairro chique de Roppongi (os Jardins de Tóquio). Tinha a garganta e o pênis
cortados por navalha. Parecia obviamente um assassinato, mas nos laudos da polícia,
que não quis reabrir o caso, a morte foi atribuída a um “acidente com sinais de
suicídio”. Menos de uma semana depois, Adriana e todos os amigos do casal
sumiram sem deixar pistas. Marco estava assustado. Eu também fiquei.
Nos meses seguintes, sem endereço fixo, me perdi de Marco e de muita gente.
De volta ao Brasil, pedi notícias aos amigos comuns, que me tranquilizaram — ele
continuava em Tóquio, escrevendo um livro. Na última terça-feira o livro foi lançado
aqui, pela Editora Scritta. Chama-se Favela high-tech, um romance-reportagem onde a
favela do título (aliás, ótimo) é o Japão contemporâneo, e, para minha surpresa, os
personagens principais são aquele casal de que Marco falava na carta.
Como excelente jornalista, ele foi atrás da história. E levantou um roteiro
sangrento que, com sua comercial e trepidante mistura de sexo, drogas e nogautas
(canções tradicionais japonesas), poderia render um filme de sucesso. A diferença —
brutal — é que não se trata de ficção. Adriana estava envolvida com a Yazuka, a
poderosa máfia japonesa, em tráfico de garotas brasileiras para prostituição, e
também em tráfico de cocaína. Seis meses depois de chegar a Tóquio para trabalhar
como operária, tinha um BMW e um apartamento em Ayoama, bairro fino da cidade.
Ela e Chris apaixonaram-se e associaram-se também nos negócios (ganhavam 10%
sobre os lucros), mas acabaram descobrindo que faca que corta sushi sempre é bem
mais afiada do que parece…
Chris, americano, e Adriana, brasileira, eram ambos gaijin — palavra japonesa
para “estrangeiro”, mas que também significa “inimigo” — e um perigo para a
yamato gokoro, a raça japonesa pura, velha obsessão nazista que voltou a rondar o
mundo inteiro. Corajosamente, Marco Lacerda esclarece mais coisas. Levanta uma
ponta da cortina de papel vegetal bordada de clichês (haikus, gueixas, samurais etc.)
que nos separa do Império do Sol Nascente para desmistificar o paraíso capitalista do
Japão contemporâneo, onde milhões de executivos de terno azul-marinho se batem
pelas ruas enquanto vivem em caríssimos cubículos entupidos de tralhas eletrônicas.
Atualmente, cerca de duzentos e cinquenta mil nipo-brasileiros vivem no Japão, a
maioria como operários.
Uma dona de casa que se prostitui para fugir ao machismo medieval, um
monge zen desiludido da filosofia oriental e afogando as mágoas em carreiras de pó,
um homossexual maléfico que transforma em ópera gay a tragédia de Chris — são
alguns dos personagens que tornam esta Favela high-tech um livro fascinante. Talvez
não seja nem um pouco “politicamente correto”, essa praga dos anos 90 — o que é
uma qualidade em tempos de neopuritanismo. E deixa uma estranha sensação
daquela irrealidade da science fiction: como é possível imaginar um país que perdeu a
alma? Pelo que Marco Lacerda conta em seu livro, esse país chama-se Japão.
O Estado de S. Paulo, 28/11/1993
Sugestão para cair
na real… e depois sair

Cinema, teatro, literatura — nas últimas semanas, e sei que digo um clichê, a
realidade brasileira superou qualquer tipo de ficção. Se você ficasse meia hora sem
ouvir rádio nem ver TV, ficaria também completamente por fora das baixarias que
saltavam como coelhinhos politicamente incorretíssimos das cartolas do Planalto.
Teve um dia que dei um basta: chega de realidade objetiva, pô! Lidos todos os livros
da casa, vistos todos os filmes da cidade, fui ao teatro. Com o cuidado de escolher
uma peça que, aparentemente, nada tinha a ver com o momento presente. Vereda da
salvação, texto de Jorge Andrade encenado pelo TBC em 1964 e remontado por
Antunes Filho, o grande mago rodriguiano.
Logo de saída, uma estranheza. Antes de a peça começar, com os atores de
frente para o público, imóveis, dentro de caixões, a lembrar macabramente o
massacre de Vigário Geral, um rádio ligado (rádio real, não ficcional) sintonizava —
o quê? A última coisa que eu queria ouvir: baixarias quentinhas de Brasília…
Impossível fugir. A peça já começava e, nas duas horas seguintes, com a loucura
crescendo nos personagens, aumentava o desconforto agravado pelo bafo de um
teatro superlotado e sem ar-condicionado.
Acontece que a Vereda-93 de Antunes nada tem de escapista ou distante deste
momento brasileiro, mesmo sendo um texto de respeitáveis trinta anos. Justamente
por isso, o adjetivo que me ocorre para sintetizá-la é esse mesmo: desconfortável. A
luz e a música são discretas, quase imperceptíveis, a cenografia limita-se a longos
troncos de madeira, como uma gigantesca floresta. Não há cores, tudo é cinza, sépia,
marrom. Não há nada, enfim, que possa distrair ou amenizar o olhar ou a mente do
espectador. Há um texto cruel, mergulhando fundo e sem volta numa espécie de
transe coletivo (Santo Daime hard-core?) até a catarse final: se a vida real é
insuportável, a única saída pode estar numa outra vida (imaginária, que importa?) —
ou seja, na morte. Na sua impiedade e secura, Vereda da salvação pode parecer
chatérrima. Declamativa, desglamorizada, arrastada como aqueles espetáculos
universitários engajados dos anos 60. Afinal, quem se importa com aquela gente
descolorida, feia, louca e pobre? Esse é o ponto: quem se importa? O diabolismo de
Antunes Filho consegue o requinte de, ao final, tornar a plateia besta um pouco
cúmplice da polícia assassina: é isso mesmo, manda matar essa gente medonha!
Dessa maneira enviesada, o espetáculo atinge seu pleno horror quando localizamos
dentro de nós essa coisa imunda: a cumplicidade. A música brega que invade o final
esbofeteia nossa indiferença. A plateia aplaude frenética. Fico um tanto
constrangido. Talvez porque não caibam aplausos, mais honestas seriam quem sabe
as cabeças baixas e o silêncio?
Saí do teatro em silêncio, cabeça baixa. Só nos dias seguintes fui
compreendendo aos poucos: é que Narciso, já dizia Caetano, acha feio o que não é
espelho. E não me entendam mal, não é que eu não goste da peça. O que detesto é
ver nela o Brasil de hoje. Nesta vereda de Antunes Filho não há salvação. Na do
Brasil, haverá? E na de cada um de nós? Depois do lamaçal deste momento
plutoniano de cura, dizem, nunca mais o país será o mesmo. Ou será isso só (mais)
um clichê?
Como ninguém é de ferro, no dia seguinte fui ver Hair, na versão de Jorge
Fernando. Continua lindo, bailarinos e cantores excelentes. Naturalmente, já não me
atrevo a subir no palco para dançar, como em 1969, mas isso não me impediu de,
comovido, cantar junto let the sunshine in, deixa o sol entrar.
Ah, deixa. Vá ver Vereda da salvação e logo em seguida rebata com Hair.
Esquisito? Essa é a mistura teatral mais perfeita da cidade para cair na e sair da real.
A gente precisa dos dois.
O Estado de S. Paulo, 12/12/1993
1994: um ano
para a literatura

Dizia Clarice Lispector, acho que em A hora da estrela: “Quanto a escrever, mais vale
um cachorro vivo”. Na época, segunda metade dos anos 70, fiquei escandalizado.
Afinal, estávamos saindo daquele período conhecido como “boom de literatura
brasileira”. As páginas de jornais e revistas, as listas de best-sellers e programas de
tevê viviam cheios de bons escritores. Havia dezenas de revistas literárias e feiras de
livros. Em centros e seminários por todo o país, novos escritores e novas editoras
surgiam a cada semana. Talvez naquele tempo, penso hoje, começando a emergir da
escuridão da ditadura militar, o público leitor tivesse necessidade de ver a própria
face refletida na literatura.
Passados quase vinte anos, a frase amarga de Clarice tornou-se dramaticamente
real. O escritor brasileiro — falo com conhecimento de causa, porque sou um deles —
virou um nada. Nunca é lembrado, não é publicado e, se publicado, não é exposto ou
divulgado, nem dignamente comentado. Restou o escracho: qualquer
comentaristazinho de plantão ganha páginas inteiras para demolir alguém que
escreveu a vida inteira. Acuados, os escritores — essas criaturas meio tortas, com
uma terrível dificuldade para lidar com o real — preferem ser deixados em paz nos
seus cantos, cada vez mais pobres e mais confusos. Como, dizem, esses espíritos de
pessoas que morrem tão subitamente que não percebem ter morrido. Ghosts, almas
penadas, eguns. Estranhamente, isso é falso. Fora do Brasil, acredite se quiser, o
escritor brasileiro poucas vezes foi tão respeitado. De Machado de Assis a João
Ubaldo Ribeiro, passando pela própria Clarice até Lygia Fagundes Telles (dois cults
na França), há uma enorme curiosidade, principalmente na Europa, pelo que se
escreve aqui. E também disso tenho conhecimento de causa: passei os últimos três
anos em seminários, leituras e encontros de escritores na Inglaterra, França, Holanda,
Alemanha, Itália. Pude ver, numa cidade para nós improvável como Dusseldorf, uma
livraria cheia, inclusive as calçadas em frente, para ouvir uma leitura de Rubem
Fonseca. Assisti, num teatro lotado em Paris, a uma adaptação teatral de A paixão
segundo G.H., de Clarice. Nas melhores livrarias de Londres, encontrei expostos com
destaque autores como Antônio Torres e Moacyr Scliar. Lembro da garota na
Universidade de Liverpool ávida por Ana Cristina César, do rapaz alemão recitando
Ferreira Gullar em Köln, daquela senhora em Bordeaux que sabe de cor Mário
Quintana.
A melhor prova de que somos amados lá fora é a Feira de Frankfurt de 1994, a
maior feira de livros do mundo, este ano dedicada ao Brasil. Ou seja: ao escritor
brasileiro, esse pobre coitado em seu próprio país. Não compreendo. Talvez, neste
tempo, afundado até o pescoço neste pântano de corrupção que virou o Brasil, o povo
rejeite ver sua própria face refletida na literatura. Em parte, quem sabe, mas só em
parte. Tirar o escritor brasileiro desse nada onde foi jogado para revalorizá-lo
depende muito dos donos do poder, e desse Big Brother inescrutável — a Mídia, com
maiúscula. Depende muito menos dos próprios escritores (que só querem conseguir
escrever, e isso é penoso) do que dos editores de livros e jornais e revistas, de livreiros
e distribuidores. Por que, raios, é na Alemanha, não no próprio Brasil, que dedicam
um ano à literatura brasileira? Por que não aqui, e agora, e já? Lanço minha
modestíssima campanha: você aí, leia um escritor brasileiro em 1994. Um só, para
começar basta. Além dos que citei, há centenas de outros. Graciliano, Callado, Hilst,
Santana, Luft, tantos. Preste atenção neles: falam do que nos cerca, do que sentimos,
do que somos. Ler literatura brasileira é tornar-se mais apto a compreender e lidar
com o Brasil. Neste caso, quem não precisa disso?
O Estado de S. Paulo, 9/1/1994
Marina Lima enfrenta
o Brasil-Barbie

Faz uns dez anos, talvez mais. Marina Lima ainda estava nos seus começos e eu,
comentando um disco ou show seu para a revista IstoÉ, afirmei que ela seria “a voz
dos anos 80”. Fui muito criticado. Muitos disseram que era um exagero, que não
passava de modismo, que ela desapareceria como desapareceram várias cantoras
surgidas naquela época. Fiquei quieto, detesto polêmicas. Além disso, há intuições
que não podem ser provadas racionalmente, para as quais não existem argumentos
além de uma suave certeza íntima. Nos anos seguintes, acompanhando um por um
seus discos (tenho todos e em todos há uma linha clara de crescimento pessoal),
sempre algo me dizia assim: “Engraçado, essa garota tem mesmo something else…”
Como ela mesma diz agora em seu disco mais recente (O chamado, lançado em
dezembro de 1993), na letra de “Meus irmãos”: “Os homens podem muito pouco/ O
tempo sempre sabe mais como agir”. Eu não disse? Aos trinta e oito anos (e cada vez
mais linda), Marina não se deixou transformar em nada supostamente mais atraente
para o consumidor: não ficou mais sexy nem mais roqueira, não ficou mais “popular”
nem qualquer outra coisa que pudesse vender mais. Marina não se tornou
“vendável”: burilou-se, tornou-se ela mesma, e isso é precioso. Não faço ideia do que
pensa dela essa garotada atordoada pelos Hollywood Rocks da vida — e isso não me
importa. Acho que a ela também não.
Embora manso, esse disco novo de Marina é muito atrevido. Mas atrevido pelo
avesso, não porque esbraveja explicitamente contra algo estabelecido, como fazia
Cazuza, de quem a bela “Carente profissional” não por acaso abre o disco. Neste
Brasil histérico, dominado pelo que Lobão — outro que felizmente vai seguindo bom
caminho — chama acertadamente de “estética Barbie” (cultura de shopping,
importações bregas, revista Caras: fake total), Marina reage à estupidez ruidosa
cantando lentas baladas de letras quase sempre melancólicas, cheias de versos como
“Eu sigo latindo, buscando um jeito de achar conforto” ou “Eu não ando bem da
cabeça, já cansei de acreditar” ou “Vou seguindo o chamado, onde é que vai dar eu
não sei”. Meditativa, filosófica, introvertida, seu enorme atrevimento é ir contra o
que o Brasil-Barbie anda impondo aos seus artistas. Contra o esquema muita-gritaria-
e-estádios-cheios.
Marina — ave! — não grita. E até poderia encher estádios, mas a plateia vai ter
que ficar quieta para poder ouvi-la, já que ouvi-la é mais importante que sacudir-se.
Seu disco soa um tom — ou vários — abaixo dos tons ensurdecedores deste Brasil
instaurado, onde qualquer tentativa de reflexão é taxada de “baixo-astral”, qualquer
intimismo é considerado “depressivo”. Um artista sempre é o termômetro de seu
tempo, e o disco de Marina revela com perfeição a face oculta de um país que não
está tendo voz — essa voz das pessoas mais ou menos como a gente, um pouco acima
da miséria, chegando à meia-idade, essa voz meio cansada, um pouco desiludida e
muito assustada. Por trás das dores, sem medo de ser séria, a comovedora serenidade
da “jovem senhora de passagem” pede que não tentem fazê-la feliz — ela aprendeu
que o amor é bom, mas também dói demais sentir.
Mas me enganei, sim, quando anos atrás previ que ela seria a voz dos anos 80.
Afinal, já estamos em 1994 e Marina Lima continua sendo para-raios de uma geração
(como, de outra forma, Rita Lee também é). Discreta e secreta, sua voz
deliciosamente rouca vai dobrar o século, explodindo modismos. Se duvidarem, lá
por 2004 volto a tocar no assunto. Isso se eu — da mesma maneira como ela promete
no refrão de “O chamado” — também resistir, claro. Com gente como Marina
cantando ao fundo, garanto que fica bem mais fácil.
O Estado de S. Paulo, 23/1/1994
Para Dulcineia, que
nunca foi del Toboso

Foi numa daquelas noites de calor senegalesco no final do ano passado. Sem
conseguir dormir ou ler, nem fazer qualquer coisa um pouco mais útil do que me
sentir enjaulado, escolhi a mais modesta e refrescante das saídas — tomar uma
cerveja num bar da rua Augusta. Esclareço: nem sequer da baixa Augusta, perto do
centro, mas daquele pedaço razoavelmente civilizado, próximo à Paulista. E lá estava
eu, então, um senhor quase de meia-idade e quase de bem com a vida outra vez,
diante de seu honestíssimo copo de cerveja, quando percebo um rebuliço na entrada
do bar. Não gritaria ou tiroteio, mas um movimento mais sutil, desconforto no ar.
Constrangimento silencioso, saia-justa. Com certa indiferença e nenhum preconceito,
porque nunca se sabe o que pode explodir nesses bares em noites quentes assim,
olhei prudente.
Eram duas garotas. A mais alta, uma negrinha de brincos enormes e cabelos
eriçados, calças e bustiê estampados, não devia ter mais de quinze anos. A mais baixa
— muito mais baixa, tanto que parecia uma anãzinha — com certeza não passava dos
dez anos. Branca, usava bermudões grunge, muitas pulseiras e estava maquiadíssima.
Sombra verde nos olhos, rodas de ruge na cara, batom escarlate e uma cabeleira
pintada de louro passando dos ombros. Pediram uma cerveja no balcão e nem
reclamaram quando o garçom falou que não servia menores. Eram até discretas,
mesmo com todo mundo olhando sem parar para elas. Que coisa, pensei, certo que
são um tanto precoces, mas por que olhar tanto em tempos de Madonna?
Foi quando um senhor disse que o-mundo-estava-mesmo-perdido e saiu
batendo portas imaginárias que eu me dei conta. Não eram duas garotas: eram dois
travestis. Já vi todo tipo de travesti, até travesti-mendigo, mas travesti-criança só
numa reportagem da revista Time sobre prostituição infantil no Leste Europeu. Que,
a propósito, arrancou de Eduardo Logullo a mais fútil e lógica das questões: “Se a
miséria é tanta, de onde é que vêm as perucas?” As duas de que falo não usavam
peruca nem eram europeias. Brasileiríssimas, logo fizeram amizade com duas
prostitutas de outra mesa, descolaram a cerveja e começaram a conversar.
Estiquei o ouvido. Não peguei muita coisa — afinal, a Augusta não é
exatamente um lugar adequado para show de João Gilberto —, a não ser que a
negrinha criticava a outra. A outra, a falsa anãzinha, chamava-se (juro!) Dulcineia. A
negrinha, uma autêntica Jacira, dizia toda articulada: “Mas Dulcineia, não precisa
usar tanta maquiagem. Viu como todo mundo ficou olhando? Assim você agride a
sociedade”. As duas prostitutas davam força à Jacira, que insistia: “Afinal, quantos
anos você tem, Dulcineia?” Dulcineia, que até então não abrira a boca, bufou furiosa:
“Treze”. E a Jacira, triunfante: “Mentirosa! Treze tenho eu, e sei que você é quatro
anos mais nova. Você tem nove anos, Dulcineia”. Nesse momento Dulcineia
levantou-se, sacudiu o jubão, olhou em volta desafiadora, bateu com força o copo na
mesa e falou bem alto, pro bar inteiro ouvir: “Posso ter só nove anos, mas quero que a
sociedade se dane!”
Não pedi outra cerveja. Parecia soprar uma fresca, como diria meu avô, ali do
alto da Paulista, e achei melhor dar o fora. Semanas depois, numa dessas madrugadas
de garoa oleosa sobre São Paulo, eu descia a Augusta cheio de problemas quando vi
alguém vagamente familiar dormindo num degrau. A cabeleira loura saindo para
fora do cobertor esfarrapado, ao lado (bem sei que parece invenção demagógica, mas
que posso fazer se estava mesmo lá?) de um ursinho de pelúcia — era Dulcineia. Não
parecia menino nem menina, anã, prostituta, Jacira ou Dulcineia, mas apenas uma
criança abandonada. Ah, pensei, fora eu Dom Quixote e puxaria agora minha espada
para protegê-la de tanta Miséria Maligna! Saí chutando a sombra de minha triste
figura. Vago desgosto, o que será que seria?
O Estado de S. Paulo, 6/2/1994
Pra cima com
a câmera, moçada!

Semana passada acendi uma vela para São Lázaro, padroeiro dos ressuscitados, vesti
minha camiseta de Dom Quixote assinada por Picasso e quase de joelhos fui assistir a
três filmes nacionais. Nada de reprise, vídeo ou TV: filmes recentes, de 1993, pós-
assassinato collorido. Magro peito estufado de orgulho varonil, encarei primeiro
Capitalismo selvagem, de André Klotzel (do saboroso Marvada carne); depois Era uma
vez, infantil de Arturo Uranga, ambos (milagre!) em circuito comercial. Para
arrematar, movi céus e terras atrás de um convite para a pré-estreia de A terceira
margem do rio, de Nelson Pereira dos Santos. Bem:
Era uma vez tem mercado específico mas, apesar disso, direção de arte
competente, figurinos legais, bom acabamento e muitos achados espertos (o vilão
pop star, a princesa-perua, a ninfa-ninfômana etc.). Um problema: parece teatro
infantil filmado. Como detesto teatro infantil, o problema pode ser meu, porque é
um filme simpático e, suponho, atraente para baixinhos não demasiado psicóticos ou
imbecilizados.
Capitalismo selvagem parte de uma ideia genial — o capitalista com uma “porção
selvagem” —, mas essa riqueza não rende o que poderia. O roteiro irregular,
compacto demais, deixa no ar várias pontas sem solução; falta unidade narrativa; há
equívocos na direção de certos personagens, que mais parecem saídos de um especial
de Guel Arraes. Em contraponto e compensação, além de um José Mayer
corretíssimo, há uma Fernanda Torres deslumbrante. Mistura de Juliette Lewis de
Kalifórnia com Carmen Maura, meio Giulietta Masina, meio María Félix (na
magnífica cena de viuvez), Fernandinha nunca é menos que soberba. Por vários
motivos — como a bela sequência final, referência ao Macunaíma de Joaquim Pedro
— vale ver o filme, mas acima de tudo por Fernanda. Pena que a hibridez da
linguagem atrapalhe tudo. Como se Klotzel, bom cineasta, mesmo sem ter
encontrado o “tom” certo, tivesse ido em frente aos trancos.
De qualquer forma, Capitalismo parece íntegro e honesto. Embora cínico. Isso
não acontece com A terceira margem. A mão pesada de Nelson Pereira quase esmaga a
poesia de Guimarães Rosa, num desastrado mélange de sertão à la Leandro &
Leonardo com ideologia-68 à la Antunes Filho em Vereda da salvação. Até aí passa.
Mas imperdoável e repugnante mesmo é o preconceito explícito: lá pelas tantas, a
menininha-milagreira (a melhor coisa do filme) resolve morrer logo depois de
recusar ajuda a um pobre-diabo com aids. Homofóbico ou não, a cena não ajuda em
nada a derrubar o preconceito contra a doença. Argh! Pirotecnias charmosinhas à la
realismo mágico para inglês (ou alemão) ver, um excelente ator (Ilya São Paulo),
mais toneladas de supostas boas intenções e clichês não evitam o adjetivo —
constrangedor, este “Vidas Úmidas” anos-90. Pena.
Dias melhores virão, tem sangue novo chegando logo. Vêm aí: Alma Corsária, de
Carlos Reichenbach; o esperado O corpo, adaptação de Clarice Lispector por José
Antonio Garcia; Perfume de gardênia, de Guilherme Almeida Prado; A causa secreta, o
Machado de Assis de Sérgio Bianchi; os sambas de Chico Buarque visitados por Cacá
Diegues; O mandarim, vida de Mário Reis, o precursor de João Gilberto, por Júlio
Bressane. E onde andarão Ana Carolina, Roberto Gervitz e o magnífico Jabor-
cineasta? E cadê todos aqueles roteiros inéditos deixados por Wilson Barros?
Pensando bem, até que São Lázaro tem ouvido as minhas preces… Verdade que
o Brasil degradado até a última baixeza pela cafajestice de um presidente cantando
uma jovem pistoleira nordestina (outra?) nas fuças estupefatas do povo durante o
Carnaval me deixa verde-amarelo de vergonha. Drummond cobrava “mas… e o
humour?” Cobro a esperança, nossa eterna profissão. E só não falo em É-T-I-C-A
porque o espaço acabou e eu preciso ir ao banheiro vomitar.
O Estado de S. Paulo, 20/2/1994
Viva o império das
coroas magníficas!

Paris — Há brasileirices de que a gente só sente falta longe do Brasil. Foi assim por
exemplo com a cantora Alcione, a quem nunca dei muita bola até certa tarde de 17
graus abaixo de zero, em Londres, quando Cida de Assis colocou no toca-fitas “não-
posso-mais-alimentar-essa-ilusão-tão-louca-que-sufoco”. Soluçamos no ombro um do
outro, depois enfrentamos a neve para comer junk food indiana na esquina de
Hampstead, cantarolando a Marrom. Ao molho de curry, que assim é a vida.
Desta vez, sem vergonha na cara, confesso: morro de saudade de Fera ferida, a
telenovela de Aguinaldo Silva. Sou um telenoveleiro apenas razoável: não suporto a
das dezoito horas, tola demais; a das dezenove vejo enquanto pico cenouras, sem
prestar muita atenção, embora Patrícia Travassos tenha o dom de me arrancar dos
confins da cozinha. A das oito, que sempre foi às oito e meia, sempre me deixa mais
atento porque vale como termômetro-do-emocional-coletivo-tupiniquim.
Principalmente se for de Gilberto Braga, aí não desgrudo mesmo. E trato mal quem
telefona durante. Sensibilidades das raras e especiais, como Cida Moreira, nessas
fases têm a sabedoria de ligar apenas durante intervalos comerciais.
Fera ferida começou irritante. Já na primeira cena, a soma das idades dos atores
beirava a idade do Brasil desde Cabral e aquele fatídico dia. Os tiques, e aquela coisa
jecoide, ai, lá vem sotaque nordestino, lá vem vestido de chita… Mas Aguinaldo
Silva, como bom telenovelista e romancista (leiam Lábios que beijei, Siciliano), foi
esquentando aos pouquinhos. Quando a gente dá conta, pronto: está viciado. Só
depois de meses Fera ferida deixou bem claro por que é excelente: tem um time de
atrizes e personagens femininas fora do comum.
Nada de modelões arfantes ou jubões crespos (o único jubão é a figura mais
apagada de todas, Claudia Ohana): Fera ferida é o império das coroas magníficas. Pois
não é que, sem sentir, comecei a dizer coisas tipo “jantar fora, meu bem, só depois da
Ilka Tibiriçá”? E não apenas Cássia Kiss, redimida de anos de canastrice e antipatia
por essa solteirona pungente: há muito mais. Suzana Vieira, pérfida e cafona; Joana
Fomm, ainda mais pérfida, mas nem tão cafona assim. A perua provinciana e a perua
viajada em choque: não esqueço a cena (cruel) em que Salustiana dispensou a visita
de Rubra Rosa. Isso sem falar na rainha do escracho: Maria Gladys. Já quem tem
menos de quarenta anos merece reparos: Camila Pitanga precisa de lições de arte
dramática; Déborah Evelyn, de uma boa dose de Efortil; a najinha Anna de Aguiar
(Isoldinha), menos bocas; a anoréxica Érika Rosa, de refeições mais substanciais,
pobrezinha.
Sobre todas, merecendo uma ode, paira uma deusa discreta chamada Arlete
Salles, a costureira Margarida. Brava Arlete, que décadas atrás derrubou preconceitos
casando com Tony Tornado e nunca foi superstar. Contida, sóbria, modesta, elegante,
ela não é daquele tipo de atriz como Emma Thompson, Meryl Streep ou Beatriz
Segall, entre as tropicais, cujo subtexto sempre dá a impressão de um arrogante “Eu
Sou Uma Grande Atriz”. Arlete é suavemente contagiante. Chorei junto com ela
aquele rio de lágrimas no chão do quarto; me arrepio com sua fidelidade à Frida, a
filha songamonga; adoro suas mãos castigadas e seus olhos de cão. Humaníssimos,
solidários, leais.
Pois sinto falta, agora, daquela pausa no final do stress nosso de cada dia
quando, num processo tribal e talvez alienante (mas que importa?), todo o Brasil
esquece URVs e baixarias do gênero para mergulhar junto na única coisa capaz de
nos distrair um pouco da insegurança: o sonho. Revejo Margarida Weber, a costureira
desprezada, como uma tia arquetípica, a nos garantir que tudo, tudo vai dar pé.
Vocês vão ver só, meus filhos, nós vamos dobrar essa gentalha!
O Estado de S. Paulo, 20/3/1994
De laços, seios,
sábados e tormentas

Paris — Era uma vez um sábado de abril. Sábado é sempre sábado, igual em Paris,
Porto Alegre ou Cingapura. Sempre no ar aquela expectativa — pizza, cinema ou
beijo, não importa — de uma gota de mel para o domingo. Comprei o Le Monde e o
Libération, sentei no café da esquina para praticar meu mórbido e pátrio esporte
diário: procurar notícias do Brasil, que não desato esse laço. Nunca tem. Mas desta
vez — explosão! como diria Clarice Lispector — ah, desta vez sim, bem grande no
alto da última página: BRÉSIL. Adiei a voracidade, pedi outro café, fui ao toalete
fazer nada, acendi um cigarro, sorri para uma alemã e depois de uns dez minutos,
absolutamente natural, só o coração batendo secreto me denunciaria, peguei e li sem
fôlego, morto de sede e saudade.
Olinda, uma das cidades mais belas que conheço, patrimônio histórico da
humanidade. Periferia de Olinda, Recife, Pernambuco, Nordeste do Brasil, América
do Sul. Um seio amputado no lixo. Fome, miséria. Tamanho horror que minha forma
mais eficiente de reproduzi-lo é repetir sua síntese aqui assim numa única linha para
que fique bem claro e medonho e irrecusável na sua hediondez que ofende a todos
nós:
Canibalismo em Olinda.
Voltei ao toalete para fazer aquilo que os bebês e os bêbados fazem muito,
embora tenha passado dos quarenta e, hoje, só tenha bebido café e vitamina C. Dobro
o jornal com cuidado e vergonha, para que ninguém leia. Capricho na pronúncia ao
pedir a conta, para que não suspeitem de onde venho, e saio de fininho. Ando sem
rumo por Alesia até me atrasar para a entrevista. Eva Louzon, apaixonada pelo
Brasil, faz milhares de perguntas, eu falo do Sol, da energia bruta da terra — axé!
axé-que-aqui-não-tem! —, de Machado e Rubem F. e Lygia Fagundes e Hilda Hilst e
muita música, Gal, Bethânia e Calcanhoto, cascatas, araras, essas praias murmurantes
aonde a lua vem brincar e futuro resplandecente. Um dia, um dia. Tropeço por
brasilidades histéricas, fumo demais. No metrô um punk antigo demimoicano
ameaça com navalha quem não dá dinheiro. Não dou, faço o invisível, sempre
funciona. Desabo no Marrais de tardezinha.
Um postal de Isabelle Adjani como Emily Brontë, uma antologia de contos gay
organizada por David Leavitt. Podia visitar sem aviso Betty Milan, que mora na
esquina, telefonar para qualquer um, em português, assistir a Jeanne la Pucelle,
Sandrine Bonnaire como meu ídolo de infância, Joana D’Arc na versão de Érico
Veríssimo. Não faço nada: cinemas cheios demais, ruas cheias demais. Quero voltar
para casa, ver TV até a imbecilidade, dormir sem sonhos. Alguma coisa me falta,
desesperadamente. Estou perdido. Atravesso pontes, viro esquinas medievais. O dia
é cinza e frio como as cinzas dos borralhos. Quero qualquer coisa que não tenho
agora, um país, uma língua, um amor, nesta cidade estrangeira quero me jogar no
Sena, me embriagar alucinadamente. Então eu paro e olho a rua, a casa em frente.
Quai de Bourbon, número 19. Uma placa diz que ali viveu Camille Claudel.
Mais abaixo, esta frase dela — “Il y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente”
(Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) — escrita exatamente há
cento e oito anos. Mas já vivi isso, penso, por que outra vez? Quero acender uma vela
pela alma de Camille, a multidão de japoneses barra a entrada de Notre-Dame.
Amanhã, amanhã sem falta em Saint-Germain des Prés. Volto pelos túneis cheios de
namorados. O sábado, o mel. O Brasil me falta e dói como dizem doer a ausência de
um membro amputado, o seio no lixo, o tormento e a tormenta nas esquinas de
Pernety, eu repito e repito o horror que ofende a todos nós:
Canibalismo em Olinda.
E, no entanto, eu não desato esse laço. Tão apertado, parece forca.
O Estado de S. Paulo, 1/5/1994
Negro amor ao som
de Bruce Springsteen

Paris — Acaso — você conhece? — é só um dos nomes de Deus. Por essa espécie de
acaso, conheci João. Eu jantava com amigos quando o garçom me chamou a atenção.
Um negro pequeno, forte, cabeça raspada, olhos redondos pretos e vivos, sorriso
enorme. E qualquer coisa luminosa em volta. Apesar do seu francês impecável,
imaginei Cabo Verde, Cuba, Martinica. Puxei papo. João é brasileiro. De Minas. O
mais simpático, rápido e sorridente garçom daquele restaurante de garçons meio
emburrados. Por outro acaso desses, outra noite nos cruzamos num bar. Mortos de
sede do Brasil, cantamos juntos Nana Caymmi, depois caímos nesse poço inevitável:
histórias pessoais. Eu quase não tinha nada para contar ou, por deformação
profissional, preferia ouvir. Entre cervejas, então, João contou.
Veio do Brasil há mais de dez anos, apaixonado por Christian, um francês
também apaixonado por ele. Trabalharam, viajaram, se amaram, sempre juntos.
Então Christian começou a ficar doente, cada vez mais doente. Fez o teste fatídico:
sim, aids — ou sida, como dizem os franceses e nós brasileiros também deveríamos
dizer, não fôssemos tão colonizados. Mas isso não importa agora.
O que importa é a história real de João. Dura, real, presente. À morte, no
pequeno apartamento alugado, Christian recusa-se a ser hospitalizado. O AZT, DDI e
todas essas afetaram sua mente, às vezes foge pelas ruas, seminu e muito magro. João
avisou a mãe de Christian, que não o conhece e vive em Toulouse. A mãe, judia de 74
anos que sofreu durante a guerra, veio a Paris sem saber do que se tratava. Sem saber
absolutamente nada. E esbarrou nas três pontas farpadas dessa situação: 1-º) O filho
de quarenta anos é homossexual; 2-º) O filho está à morte com aids; 3-º) O filho vive
com um negro brasileiro. Na cara certamente exausta dessa velha senhora, três
preconceitos de uma só vez: a homossexualidade do filho único; a aids e a raça de
João — além de negro, brasileiro. E, como se não bastasse, com um acintoso teste
negativo. Os três juntos num quarto e sala de Montparnasse. Christian delira no
quarto. João trabalha em dois, três restaurantes, sem folga. A mãe quer levar seu filho
para morrer em Toulouse. Sem João, claro: o que não vão dizer os vizinhos? Christian
não quer. João também não: “Quero que ele morra comigo. Quero ficar com ele até o
fim, compreende?”
Compreendo. E vejo a mãe sentada na sala olhando João com olhos acusadores
quando ele chega de madrugada. João traz flores, frutas, leite, pães. Que a mãe não
toca. Como se estivessem contaminados e João fosse o anjo negro portador da peste
desse país assustador, a que os franceses se referem como là-bas… João evita voltar
pra casa, fica pelos bares, vezenquando dorme no apartamento de Fifi, que vive no
mesmo prédio e é o melhor amigo de Christian. O que fazer com uma história
dessas?
Parece peça de teatro, digo, parece filme. E quando digo “filme”, ao mesmo
tempo em que João me pergunta o que fazer, eu tenho a ideia. João, convide a mãe
de Christian para ir ao cinema, leve-a para ver Filadélfia, de Jonathan Demme. Só
isso. Não precisa dizer nada. Compre pipocas, ou coisa alguma. Fique quieto, duas
horas no escuro, ao lado dela. João sorri. Sorri sempre, mesmo quando os detalhes de
sua história são pesados demais. Et pourquoi pas?, considera. Eu me pergunto se
voltarei a vê-lo assim, por acaso. Por isso que as pessoas — tão pudicas de magia —
costumam chamar de “acaso”. E não sei o que vem depois.
Mas esse luminoso à sua volta, João, quero perguntar, será o que chamam de
“amor”? Ele não me escutaria. Braços abertos e sorriso enorme, dança no meio da
pista como um deus negro, solitário e selvagem.
A luta continua.
O Estado de S. Paulo, 15/5/1994
Confissões de um
lusófobo enfurecido

Paris — Estou uma fera, quero guerra.

Pois movido a fantasias meio uterinas (a pátria-mãe), literárias (ai, Pessoa),


bucólicas (o tal jardim-à-beira-mar) — e que tais — fui a Portugal pela primeira vez.
Ônibus, vinte e cinco horas on the road. Coluna doendo (ai, a idade), mas a memória
florida de referências: Sá-Carneiro, Sophia de Mello Brayner Andresen, Florbela
Espanca, o Trás-os-Montes de Miguel Lorga, os cus-de-judas de Lobo Antunes, a
Mouraria de Amália Rodrigues, Manoel de Oliveira e Maria de Medeiros,
amorosamente eu fui. Passei duas semanas em Lisboa. Não exatamente venturosas.
De chegada, estorvos. Tresnoitado e sem escudos, perambulo por meia dúzia de
bancos à cata de câmbio para dólares ou francos. Nativos de maus bofes só trocam
moeda estrangeira para clientes. Mas como eu seria cliente, senhor, se acabo de
chegar de França e só quero dinheiro para pegar um táxi? Sorriso sádico: Ah pois se
és brasileiro, ó pá, deves estar tristíssimo com a morte de vosso herói. E eu lá tenho
herói, cara? Ah pois não sabes que morreu o Senna? Sena Madureira? Quem? Hein?
Senna da Silva (sic). I beg your pardon? O Ayrton, o corredor. Morreu?
Completamente, pois. Ai, Jesus, que cá cheguei com o pé esquerdo…
Miúdo calvário. Banco em banco, arrastando malas e ciática pelas ladeiras,
finalmente consegui. Escudos em cima, entrei num snack bar e pedi um cafezinho.
Ninguém me olha. Estarei invisível? Morri? Insisto. O portuga joga uma xícara na
minha cara: Aí está tua bica, ó brasileiro. Pago, pego um táxi. A rapariga motorista
não me deixa colocar a mala no banco de trás (“Vais me romper o estofamento, ó
pá!”) e recusa-se a sair para abrir o bagageiro. Santificado, mala no colo, desabo na
rua Actriz Virginia, no Areeiro, onde vivem meus amigos. Meio-dia, eu chegara às
nove. Três horas de puro atrolho. Por quê, Deus meu?
Gianni e Zé Arthur, que lá vivem na terrinha há quatro anos a comer o pão que
Inês de Castro amassou, me explicam a hostilidade; os portugueses ODEIAM
brasileiros. Duvido. Mostram plantas mortas na sacada: na calada da noite, a
portuguesa joga água com sal para que as plantas deles morram. Saímos às ruas
falando alto em “brasileiro”. Um carro freia para passarmos no sinal fechado.
Alguém grita: Mas não precisas frear para brasileiros paneleiros, ó pá!
Duas semanas de horror nazi-medievo-surreal. Discriminação: eu negro, judeu,
turco, paquistanês. A balconista insiste em dizer que não há blocos de papel, e eu
vejo uma pilha na prateleira; o caixeiro me empurra sandálias número 39 ou 41 e,
quando faço literalmente pé firme no 40, diz que não tem — mas há uma na vitrine.
Meus amigos me ensinam o truque: falar inglês, francês, italiano, qualquer língua,
jamais “brasileiro”. Testo. Servis, gajos correm a me atender melados de submissão.
Começo a chafurdar nessa lama fétida: o ódio recíproco. Amor ferido, sonho
frustrado. Acho o Estoril escroto, Cascais cafona, Sintra sinistra. Bloqueio os ouvidos:
não compreendia, não compreendo e não compreenderei jamais português de
Portugal. É outra língua. E feia.
Laços fora, moçada: como escritor, não aceito o acordo ortográfico. Nem
ortográfico, nem geográfico, histórico ou imigratório. Portugal é um atraso de vida,
disse Christiane Torloni, guerreira ferida em batalhas lisboetas, a quem dedico estas
linhas. Virei lusófobo naquele monte de ruínas à beira-mar plantado. Vou pra
Noruega rebater o baixo-astral. E continuo uma fera. Não há pastel de nata, bolinho
de bacalhau ou cálice do Porto que aplaquem minha cólera sagrada.
Ai, Jesus, como dói amor não correspondido…
O Estado de S. Paulo, 29/5/1994
Entre a Frau do mal
e a “Jente” do bem

Paris — A caminho de Copenhague o ônibus para em Hamburgo, norte da Alemanha.


Seis da manhã, desço moído à procura do Café Salvador. Entro no bar da Frau gorda
que me lembra Marianne Sägebrecht. Peço café, custa cinco marcos. A Frau enche a
xícara e não me entrega, fica à espera do pagamento. Então percebo que talvez não
tenha marcos suficientes. Escudos, pesetas, francos franceses e belgas, florins e
dólares: espalho sobre o balcão todas as moedas de todos os bolsos. Marcos, só quatro
e cinquenta. A Frau leva embora a xícara de café — oh, Deus, tão fumegante…
Recolho moedas, vou saindo injuriado. Então, em súbito ataque de nervos latino, da
porta berro em inglês com dedo em riste: “Todo mundo diz que vocês alemães
continuam nazistas!” Saio de fininho em direção ao ônibus. Afinal, todas essas
histórias de crimes contra estrangeiros…
Uma semana depois, vindo de Estocolmo, o trem chega à moderníssima gare de
Oslo. Seis da tarde e eu arrasto bagagens, mais de hora livre até outro trem para
Sarpsborg, sul da Noruega. Um jornal, delírio, um jornal em língua inteligível.
Reviro o kiosk até encontrar um deslumbrante El País dominical, com direito a revista
em cores e entrevistas de Botero: 25 coroas norueguesas. Cinco dólares parece
baratíssimo pelo Paraíso, reflito enquanto a jente (garota) dourada como trigo espera
o pagamento. Espalho aquelas mesmas moedas, acrescidas de coroas dinamarquesas,
suecas e norueguesas. Faltam cinco. Amargamente experiente, recolho moedas,
devolvo o jornal. A garota me detém, pega as vinte coroas e entrega o jornal
sorrindo. Vaer sa god!, diz, “bom proveito”. How sweet you are!, suspiro. E só não a
peço em casamento porque não posso mesmo perder esse trem.
Não, nem todo inglês é arrogante; nem todo mexicano sonolento; nem todo
russo bêbado etc. Por trás e no fundo do geral panorâmico de raças e nações existem
sempre as Individualidades Abissais, e são elas que importam. Acendo um cigarro na
vidraça do trem futurista que contorna fiordes, bosques, cidades de nomes
encantados, impronunciáveis — Porsgrunn, Drammen, Sandefjord — e tento
compreender tanto a Frau do mal quanto a jente do bem. Às seis da manhã de um
domingo, é possível que a Frau de Hamburgo estivesse de medonho mau humor, na
expectativa de perder o dia esplêndido atrás daquele balcão muito mais melancólico
que o do Bagdad Café. E, às seis da tarde de outro domingo, é possível que a jente de
Oslo estivesse de radioso bom humor, na expectativa de sair logo para encontrar
algum viking impetuoso na noite branca da primavera escandinava. Coisas assim, de
gente.
Mas um viajante — ah, como um viajante precisa de doçuras. Para um viajante,
o contato com os nativos necessita desesperadamente ser amável. Caso contrário,
inseguros e feridos, caímos em Estado de Rejeição Lancinante e cometemos
gravíssimas injustiças, generalizando na tentativa de entender o que não é entendível
— e afirmamos então barbaridades, como os suecos são neuróticos, os japoneses
traiçoeiros, os espanhóis violentos etc. Acontece que as Individualidades Abissais, e
são elas que importam, não são classificáveis. Uma raça ou país de origem não
determinam sentimentos. A certeza contrária a esse pensamento atende pelo nome
hediondo de nazifascismo.
Sim, a Noruega me encanta com a sua natureza de aquarela, embora ainda me
aterrorizem as imagens de Bosna!, o filme feito por Bernard Henri-Lévy nos
escombros da ex-Iugoslávia, e as manobras de Berlusconi e seus cinco ministros
fascistas na Itália. Mas este verão na Escandinávia é tão fugaz e frágil que urge ser
feliz antes que voltem as sombras do inverno. Escolho então guardar no coração a
jente de Oslo, não a Frau de Hamburgo. E hoje, em vez de ler jornais, prefiro colher
lilases.
O Estado de S. Paulo, 12/6/1994
Afinal, quem era
mesmo Lolita Torres?

Prometi a Tânia, e estou tentando cumprir a promessa. Já andei perguntando aqui e


ali, discretamente, mas ninguém parece saber ou lembrar quem foi Lolita Torres.
Bem sei, é desses nomes tão sonoros e perfeitos que logo ao ouvi-lo todo mundo tem
certeza de que conhece, mas basta você começar a investigar quando, e onde, e como,
que ninguém lembra mais nada. Ficou a melodia, percebo. Ótimo, pois, segundo
Tânia, Lolita era pura melodia solta no ar pesado da Moscou dos anos 50.
Agora parei um pouco de escrever, olhei pela janela e pensei que vocês não
devem estar entendendo nada desta história. Vou tentar explicar, mas também
confesso que não sei bem por onde puxar o fio. História tem dessas coisas, você às
vezes puxa um fio que resulta noutro bordado não planejado. Em crônica fica ainda
pior, porque você tem que controlar o espaço o tempo todo e não pode dizer demais,
jamais.
Conheci Tânia Prigarina no sul da Noruega. Russa, passou quase toda a sua vida
tentando escapar da Cortina de Ferro enquanto estudava no teatro do Bolshoi. Há
quinze anos, conseguiu: casou com um norueguês e foi morar em Hoisand, onde a
encontrei na última primavera. Tem setenta anos, mas não aparenta mais que
cinquenta, com seus cabelos lisos pretíssimos que fazem lembrar certas fotos de
Diana Vreeland, a sacerdotisa americana do chique.
A primeira coisa em que pensei ao ver Tânia foi que ela seria uma das três ou
quatro únicas mulheres no mundo (uma era La Vreeland, a outra talvez Anjelica
Huston?) perfeitamente habilitadas a usar sombra verde nas pálpebras e calças
justíssimas com estamparia de tigre. Ou onça, não estou bem certo. Se você
compreender isso e acrescentar inúmeros cigarros, olhos brilhantes e voz grave
falando inglês com estupendo accent russo, terá uma boa ideia do visual de Tânia.
Foi nos anos 50 que Tânia Prigarina conheceu Lolita Torres em Moscou. Tânia
ocupava suas noites a copiar textos proibidos à luz de velas quando chegou a
Moscou, pela primeira vez, um sopro do charme fútil do Ocidente. Era Lolita Torres
que, por razões misteriosas, não era considerada capitalista ou nociva pelo Partidão.
Nunca se falaram. Tânia era apenas plateia dos shows onde Lolita dançava e cantava
um repertório que incluía desde o fado português “Coimbra” até a guarânia
mexicana “Maria bonita”. Até hoje Tânia é capaz de repetir alguns versos, com
sotaque arrepiante. Que língua vigorosa o russo, meu Deus…
Pois durante uma das temporadas de Lolita em Moscou, e talvez ampliando o
caminho aberto por ela mesma, o governo russo resolveu realizar um grande festival
de cinema ocidental. Liz Taylor, Gregory Peck, Gina Lollobrigida, Kim Novak —
uma chuva de estrelas despencou sobre Moscou. Só que filmes americanos jamais
tinham sido exibidos na Rússia, e portanto seus superstars não significavam nada para
o povo. Que na noite de abertura ignorou solenemente Lollôs, Novaks e Elizabeths
para jogar-se em cima da única estrela que conhecia e considerava não só a maior de
todas, mas a única: Lolita Torres. Nessa noite (talvez Tânia ou eu deliremos um
pouco neste trecho), conta-se que Lolita foi carregada em triunfo nos ombros do
povo pelas ruas de Moscou.
Então vêm as dúvidas. Tânia diz que Lolita era argentina. Mas como uma
argentina conseguiu furar a Cortina de Ferro dos anos 50? Não seria espanhola, ou
até mesmo portuguesa? E Tânia, pergunto, você está certa de que o nome era mesmo
“Lolita”, e não “Conchita” ou algo assim? Desde que voltei ao Brasil, tenho
perguntado aqui e ali. Quando falo “Lolita Torres” as pessoas fazem ah! e parece que
já vão lembrar de tudo. Um segundo depois, não lembram de nada. Ah, dizem
também que Lolita fez um filme chamado Age of love, Tânia não lembra ao certo.
Quem lembra? E você, pense um pouco, tem certeza de que nunca ouviu falar em
Lolita Torres?
O Estado de S. Paulo, 26/6/1994
Apresentando
Álvaro Caldas, escritor

Recebi um pacote pequeno pelo correio. Dentro, um livro — Balé da utopia, de Álvaro
Caldas — e uma carta deliciosa do autor. Depois de sugerir que Lolita Torres talvez
fosse uma agente secreta, uma espiã dos tempos da Guerra Fria, Caldas lembra outra
crônica minha, do início deste ano, falando do desprestígio do escritor brasileiro e
lançando modestíssima campanha: “Leia um escritor brasileiro este ano”. Você já
leu?, pergunto eu, e duvi-dê-o-dó do seu “sim”. Pois eu, agora, já li.
Balé da utopia é um romance curtinho, cento e trinta e quatro páginas, mas tão
densas e bem trabalhadas que parecem trezentas. Foi publicado pela Editora Objetiva
do Rio de Janeiro no final de 1993, e traz duas apresentações respeitáveis — de um
Ivo Barbieri, professor de literatura da Uerj, e de João Antonio, o maravilhoso e
esquecido autor de Malagueta, Perus e Bacanaço. O autor Álvaro Caldas é um goiano
de cinquenta e três anos, radicado no Rio, jornalista com passagem por meia
imprensa brasileira e autor de outro livro publicado no início dos anos 80 — Tirando o
capuz, “memórias da guerrilha urbana”. E foi essa informação que me deixou
aterrorizado e cheio de preconceitos fatais, irracionais: ah não, literatura poncho &
conga de novo, não, lá vem clichê anos 70, caipirinha, molotov e pau de arara: não
sou obrigado! Ficamos todos muito traumatizados por certo tipo de literatura
oportunista abundante nos 70, quando o principal crédito dos autores era “eles foram
torturados”…
A gente se engana, às vezes. E Balé da utopia me surpreendeu. Sim, trata-se
mesmo de uma situação política clichê dos tempos da ditadura: num pequeno
apartamento quarto e sala, no Rio, convivem três militantes — Cristiana, o
guerrilheiro urbano Santiago e um bailarino sem nome, proibido de tirar o capuz. O
que fazer com uma situação dessas? Já nas primeiras páginas o autor explode nossos
preconceitos — ele não parte, como poderia dizer Nelson Rodrigues, para o
“cretinismo da objetividade”; parte sim, e decidido, para a poesia. O apartamento é
chamado de “cabine”, como a cabine de um trem viajando em zona contaminada; o
bailarino tem uma obsessão por Nijinsky e Stravinsky, o que o faz contar histórias
um pouco como aquelas de O beijo da mulher-aranha, e aos poucos arma-se uma teia
mágica, sensual, enfeitiçante. A grande ousadia de Álvaro Caldas é ter optado pelo
simbólico para uma narrativa que poderia ser estupidamente realista. E com recursos
literários para isso — linguagem trabalhadíssima e uma agilidade técnica que, sem
que o leitor perceba exatamente onde aconteceu o “truque”, o faz transitar da
primeira para a terceira pessoas, do passado para o presente, do imaginário para o
real. Com a suavidade de um bailarino e a precisão de um coreógrafo das palavras.
Balé da utopia é um romance belo, vigoroso e delicado ao mesmo tempo,
percorrido por um fio de erotismo sutilíssimo que pulsa e cresce até o orgasmo final.
Nem amargo, nem nostálgico: um romance que se atreve a terminar com um
orgasmo é pura vitalidade. E tem aquela outra qualidade das boas ficções: você às
vezes o visualiza como uma peça teatral, outras como um filme, uma coreografia. O
autor brinca com gêneros, referências, ritmos e linguagens — e por sobre todas essas
habilidades paira a criação de um inesquecível personagem feminino, Cristiana.
Não conheço Álvaro Caldas, nem sei como seu livro foi recebido na época do
lançamento. Talvez eu não estivesse no Brasil, mas não lembro de ter lido ou ouvido
falar nada a respeito. Bem, por enquanto esse é meu próprio livro brasileiro para 94.
E o seu? Procure, insista. Claro, nas livrarias vão dizer quem, o quê, não, nunca ouvi
falar. Mas ah, insista sim. Álvaro Caldas é um desses escritores, raríssimos, que
ajudam a compreender melhor o Brasil. Se é que isso é possível.
O Estado de S. Paulo, 10/7/1994
Lolita, Lisboa y
otras cositas más

Às vezes recebo cartas de leitores, mas nunca posso responder. O espaço da coluna é
exíguo e seria impossível responder a todas diretamente. Duas de minhas últimas
crônicas (sobre Portugal e sobre Lolita Torres) motivaram tantas cartas, faxes e
telefonemas que me sinto na obrigação de dar uma satisfação aos leitores. O que não
me impede de falar em otras cositas más. Ou boas. Vamos lá, por tópicos:

Lolita — Para alegria geral, comunico que Lolita Torres — a cantora que furou a
Cortina de Ferro para encantar Moscou nos anos 50 — realmente existe. Lolita é
argentina, começou nos anos 50 cantando e dançando música espanhola, informa
Letícia Esteves. Vive atualmente na Argentina, ainda canta, tem entre sessenta e
cinco e setenta anos. Guilhermo Cardozo se propõe a enviar a crônica para Lolita e
Jorge Abraham Jachuk, dois eleitores muito gentis, sugere escrever a algum jornal ou
revista argentinos para mais informações. Não é preciso. Para mim, basta saber que
Lolita passa bem e toda essa trama de filme noir confirma algo simples, fundamental
para ir em frente: senhores, a vida é fascinante!

Lisboa — Assunto bem menos fascinante. Visitando Portugal pela primeira vez em
maio último, fui violentamente discriminado por ser brasileiro. Escrevi uma crônica
ofendida, lamurienta, me declarando lusófobo. Várias cartas iradas. Desde uma leitora
insinuando que eu “não-estava-bem-&-quando-a-gente-não-está-bem-atrai-coisas-
más”, passando por outro que envia uma lista de maravilhas como o Algarve etc.
(quem paga minha passagem?), um furioso porque fui de ônibus, até um cônsul do
interior do Estado me espinafrando por citar Miguel “Lorga”, e não Torga. Esse
senhor nunca ouviu falar em erro de revisão? Mais: minha tradutora francesa, Claire
Cayron, é a mesma do grande Miguel TORGA, de quem conheço toda a obra. Para os
outros, nada a dizer. Há um fato claro, duro, feio: fui discriminado em Lisboa apenas
por ser brasileiro. E discriminação (social, sexual, econômica, racial etc.), meus caros,
é coisa que não admito. Cheira a neonazismo, Berlusconi, Jirinovski. E o cheiro de
neonazismo que empesta o planeta me deixa doente. No pasarán!

Novela — Vocês já viram Éramos Seis, no SBT? Comecei curingando minhas amigas
Jussara Freire (linda!) e Luciene Adami (deus!) e acabei cativo. Belíssima. A
antinovela global — singela, delicada, sem nenhum artifício para atrair o público.
Suas armas são a extrema humanidade e o retrato arquetípico que traça da família
brasileira. Direção, reconstituição impecáveis. E atores idem, liderados pela soberba
Irene Ravache, a nossa Jeanne Moreau. Experiente, faz bem à alma.

Gênio — Morreu Sérgio Sampaio, há cerca de um mês. De cirrose, na Bahia, com pouco
mais de quarenta anos. Nos jornais não saiu uma linha. Para quem não lembra, o
cantor e compositor era o autor de “Eu quero botar meu bloco na rua”, grande
sucesso nos anos 80. Sérgio era um pós-tropicalista, uma espécie de elo entre
Mutantes, Tom Zé e o que de melhor veio depois — Cazuza, Lobão, Angela Rô Rô,
Raul Seixas, que ele adorava, todos sofreram sua influência. Gravou três ou quatro
LPs malditos, era rebelde demais para sujeitar-se à caretice das gravadoras. Era de
Cachoeiro do Itapemirim, fomos amigos em noitadas inesquecíveis no Baixo Leblon.
Como Torquato Neto, é uma figura perfeita para ser ressuscitada, mitificada e, claro,
vendida. No além, Sérgio vai rolar de rir…

Brasil — Posso estar enganado, mas o tetra, o real e não sei que mais deixaram uma
alegria maior no céu do Brasil. Sinto no ar mais esperança, nova energia. Estamos
todos tão exaustos de corrupção, miséria, violência, desemprego. Claro, é preciso
controlar a festa histérica, eufórica — mas esses pores do sol púrpura, dourado e roxo
que toda tarde vejo deste décimo segundo andar me enchem de fé. Palavra sagrada:
Axé!
O Estado de S. Paulo, 24/7/1994
Na trilha dos
mistérios de Clarice

No último dia 25 de junho o Caderno 2 publicou uma carta de Clarice Lispector que
chegara misteriosamente às minhas mãos (a amiga de uma amiga encontrara entre
velhos guardados), aparentemente inédita. Na maior boa fé — porque a carta era
linda e, por sua sabedoria, poderia fazer bem a muita gente —, encaminhei-a para o
jornal.
Não era bem assim. Do Rio, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna telefonou
informando que a carta fora escrita por Clarice à sua irmã Tânia. Affonso tem uma
cópia guardada. Mais tarde, a mesma carta (ou trechos dela) foi incluída em Esboço
para um possível retrato, uma espécie de pequena biografia poética escrita por Olga
Borelli, grande amiga da escritora nos seus últimos anos de vida. Procurei o livro em
várias livrarias para confirmar — está completamente esgotado.
Mas entre telefonemas e informações desencontradas, fui recolhendo algumas
informações. Uma ótima: a Editora Ática deve publicar logo uma biografia escrita
pela professora Nadja Gotlib, depois de vários anos de pesquisa. Outra nem tanto:
segundo Affonso Romano, Tânia, uma das irmãs de Clarice — a outra, Elisa, é
também escritora, autora do romance O muro de pedras, entre outros —, guarda até
hoje grande parte da correspondência, mas não quer cedê-la para publicação de jeito
nenhum.
A verdade é que Clarice, que viveu muitos anos no exterior, acompanhando o
marido diplomata, era uma grande missivista. Lygia Fagundes Telles me informa que
havia muitas cartas dela para Érico Veríssimo, outro também chegado num bom
correios & telégrafos, naqueles velhos tempos sem fax. E há uma história famosa
sobre Lúcio Cardoso, por quem Clarice teve uma grande paixão. Dois ou três dias
depois de receber os originais de um romance escrito por ela na Suíça, Lúcio recebeu
um telegrama (cito de memória) dizendo algo como: “Favor não considerar vírgula
na linha X da página V PT Abraços Clarice”.
A verdade também é que Clarice era deliberadamente misteriosa. Apagava
rastros, diluía pistas. Ninguém sabe ao certo o ano de seu nascimento, na Ucrânia.
Ela sempre disfarçava, mudava de assunto, confundia. Era uma grande recicladora
dos próprios textos. Nos anos 60 e 70, quando foi cronista do Jornal do Brasil, volta e
meia republicava trechos de algum conto ou romance como crônica, com outro
título. Alguns dos capítulos de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres foram
publicados primeiro na coluna do JB e, mais tarde, também, em A descoberta do
mundo, a coletânea completa de seus escritos dispersos (inclusive, imaginem,
entrevistas que ela fez para a revista Manchete). Há quem diga que ela às vezes
enviava a mesma carta para várias pessoas…
Quem conheceu Clarice sabe: ela não era mesmo muito deste mundo. Até hoje
lembro de um encontro que tivemos em Porto Alegre, em 1975. Ela — que quase não
falava, fumava muito e suportava pouco as pessoas — me convidou para um café na
rua da Praia. Fomos. Silêncio denso, lispectoriano. No balcão do bar, por trás da
fumaça do cigarro e com aquele sotaque estranhíssimo, de repente ela perguntou:
“Como é mesmo o nome desta cidade?”. E estava em Porto Alegre havia três dias…
Na obra, na vida, foram muitas as lendas e mistérios deixados por Clarice
Lispector. Hoje, seus livros são cultuadíssimos na Europa. Seu tradutor inglês,
Giovanni Pontiero, da Universidade de Manchester, certa vez me disse que tinha
certeza de que, se ela não vivesse no Brasil, teria ganho o Nobel. Sofreu demais aqui.
Lembro até hoje da crítica decretando seu fim quando saiu A hora da estrela. Fim?
Bem, passaram-se dezessete anos desde a sua morte, e continuamos a falar nela. E,
sinceramente, se fico encabulado com a história confusa da carta, fico contente por
poder trazê-la um pouco de volta.
O Estado de S. Paulo, 7/8/1994
Delírio eleitoral
à beira do ridículo

O.k., vamos mudar de assunto. A vida é sempre o mais importante. E o


Porto Alegre —
mais importante justamente hoje, às vésperas da eleição — mesmo que o papa se
mate ou um óvni atropele a Casa Branca —, é esse luxo da democracia: vamos todos
votar amanhã.
Todos, não. Alguns sentirão preguiça, outros estarão doentes, outros dementes,
outros em trânsito. Faço parte destes últimos. Pegarei todos aqueles papéis e
carimbos no correio do Menino Deus para enviar a nunca sei exatamente quem, nem
quando, nem onde em São Paulo. Estivesse lá (ou aí), com alegria, orgulho e
confiança votaria na honestíssima Luiza Erundina e também em Marta Suplicy. Os
outros, pensaria bem, talvez até me submetesse a uma hora de tortura televisiva
assistindo ao HEG (não, não se trata de um novo vírus: é o Horário Eleitoral
Gratuito) para escolher certo. Ai, meu Deus, o certo e o errado, e Brasília depois, o
poder subindo à cabeça, corrupção, loterias, e os do-bem virando do-mal e os do-mal
ficando cada vez mais do-mal, porque nunca que eu saiba aconteceu de um político
do-mal virar do-bem…
Nos últimos dias, ocupado em catar poluidores santinhos eleitoreiros jogados
na grama recém-cortada do jardim de meu pai, comecei a pensar em algo terrível.
Tão terrível que disfarçava, ia tomar um café, andar de bicicleta, ler mais algumas
páginas de O homem da mão seca, de Adélia Prado. Só para não pensar naquilo.
Assumi o pensamento quando vi Eliakin & Leila no SBT revelando que o mesmo
temor atacou também Caetano Veloso, injuriado porque Enéas Carneiro ultrapassou
Brizola nas pesquisas. Mais seguro, revelo a vocês aqui e agora o meu maior e mais
ridículo medo pré-eleitoral — e se… o Enéas ganhar?
(Pausa longa. A princípio incrédula. Depois, paranoica).
Décadas atrás, o povo chegou a eleger o rinoceronte Cacareco (lembro da
marchinha de carnaval: “eu-encontrei-o-Cacareco-tomando-chope-com-salsicha-e-
rabanada”); houve também um certo macaco Tião. Houve até — credo em cruz! —
Fernando Collor. Por que não Enéas Carneiro? Assim, de sarro. Ou de amargura,
porque depois de tanta bobagem, feiura, denúncias, golpes, cinismos, arrivismo,
falsidade (alô, alô, FHC!), o eleitor poderia muito bem se decidir por aquela opinião
que De Gaulle tinha sobre o Brasil — a célebre c’est pas un pays serieux. Oswald de
Andrade, ou seu espírito, adoraria. Chacrinha talvez reencarnasse para ser, digamos,
ministro da Fazenda. E Mazzaropi ou Oscarito para a Saúde, que tal? Uau, enfim
uma República Palhaça! Assumida, descarada.
Piada? Espero mesmo que não passe disso. Seria perigoso demais, pois, por trás
da imbecilidade aparente, Enéas parece tão fascista quanto o porco Berlusconi. Sei o
que digo. Eu o conheci no final de 1990, no Aeroanta, quando Grace Giannoukas,
Ângela Dip e Marcelo Mansfield (na época, o grupo Harpias & Ogros) ofereceram a
ele um dos troféus “Crème de la Crème”. Encarregado por Martha Góes de fazer a
cobertura para este mesmo Caderno 2, dividi uma mesa com a poeta Ledusha, a atriz
Maria de Moraes e, voilà, o tal Enéas. Este, levando a sério o puro deboche.
Constrangedor. E me pergunto, será tão patética assim a desilusão do povo brasileiro
a ponto de cometer esse absurdo? Razões não faltam, sei. Eu mesmo endureci tanto
após o affair Ibsen Pinheiro…
Peço então en-ca-re-ci-da-men-te: amanhã, votem em quem quiserem, mas
NUNCA em Enéas. A comédia pode virar tragédia, gente. Já pensou, quatro anos de
meu-nome-é-etc., perseguição às minorias e defesa da célula-mater? Posto isso, parto
para Frankfurt dia 4. Terei que ler em alguma língua estrangeira sobre o que rolou
por aqui. Caso essas minhas torpes fantasias se realizem, juro que nem volto: vou
direto morar em Saravejo. Anyway, da estrada mando notícias. E juízo amanhã, hein?
Estado de S. Paulo, 2/10/1994
Os onze sexos
de um anjo terapeuta

Carinho, com letra maiúscula, é uma das coisas que faltam no mercado
Você já ouviu falar em terceiro sexo? Claro que sim, eu também. E em décimo primeiro
sexo? Garanto que não, e eu também não. Pelo menos até ler o livro do dr. Ronaldo
Pamplona da Costa — Os onze sexos, publicado pela Editora Gente. Ou será Gente
Editorial? Agora me escapa o nome correto, mas li as provas antes de viajar e ponho
minha mão no fogo por esse livro e por seu autor, alguém muito especial.
A maioria das pessoas está acostumada (condicionada? manipulada?) a lidar
com a ideia de apenas dois sexos — masculino e feminino — ou dois tipos de
sexualidade. Os mais abertos admitem a existência de um terceiro, que englobaria
confusamente todas as variantes não oficiais nem pertencentes àqueles dois
estabelecidos. Com muita objetividade e simplicidade, Ronaldo propõe nada menos
que onze variantes. Como assim? Eu também, a princípio, me espantei. Mas é tudo
muito lógico.
Veja só: 1) heterossexual; 2) bissexual; 3) homossexual; 4) travesti; 5) transexual.
Só aí cinco possibilidades. Pense então nelas nas versões masculina e feminina. O.k.,
serão dez. E a décima primeira? Segundo Ronaldo, seriam os hermafroditas. Onze
sexos, confere?
Com que autoridade o autor afirma isso? Bem, Ronaldo é psiquiatra,
psicanalista, terapeuta, psicodramatista com, calculo, mais de vinte anos de
experiência com indivíduos, grupos, casais e quem o procurar. Fora os créditos
profissionais e o imenso e valiosíssimo conhecimento do humano adquirido nesses
anos todos, Ronaldo tem uma qualidade rara no seu ramo: ele se individualiza para
os pacientes. Não faz a Esfinge Enigmática consagrada pelo modelão freudiano:
Ronaldo sorri e conta histórias da sua ou de outras vidas, com um jeito tranquilizador
de deixar sempre no ar que nada do que é humano lhe é estranho.
Posto isso, percebo que é mais do autor que do livro (uma delícia não ortodoxa,
recheada de solidariedade) que quero falar aqui. Por que não? Conheço Ronaldo há
pelo menos uns quinze anos. No começo, eu fazia grupo com um terapeuta da
mesma clínica. Mas na sala de espera observava com certa inveja os clientes daquele
outro terapeuta de cabelos compridos e túnicas indianas. Eram diferentes, mais leves
e livres, sem aquele ar terrivelmente sério de quem tem confissões medonhas a fazer.
Parei com aquele grupo, passei por outras experiências. Algumas marcantes,
como um workshop liderado pela maravilhosa Rachel Rosenberg, num sítio em
Pirassununga, interior de São Paulo; outras absurdas, como as sessões lacanianas com
Betty Milan. Sassariquei por junguianos, pavlovianos, reichianos, rogerianos e nem
lembro mais o quê — era o meu jeito de fingir que estava me tratando, talvez,
quando estava apenas me atordoando.
Até que um dia, seguindo indicação de mais um terapeuta, encontrei Ronaldo.
Surpresa: era aquele mesmo, o de cabelos compridos e túnicas indianas, só que agora
de cabelos curtos, jeans e camiseta. Então parei de me atordoar. E comecei a me tratar
de verdade.
Entre altas provisórias, grupos e individuais, intervalos, viagens e voltas para,
digamos, “apertar parafusos”, Ronaldo cuida de mim há cerca de dez anos. Não
temos mais aquela relação severa médico-paciente, temos coisa muito melhor, mais
preciosa: somos amigos.
Durante minha temporada no hospital, lembro de cada uma de suas abençoadas
visitas, quase todas as manhãs do mês de agosto. Chorei um pouco no colo dele, mas
ri muito mais com suas histórias de querubim safado e sempre pronto a, além de
cuidados médicos, dar essa outra coisa em falta no mercado — Carinho, chama-se,
com maiúscula. Tenho certeza de que, depois dele, me tornei uma pessoa melhor,
mais feliz, menos culpada. E aposto que isso também vai acontecer com você se ler o
livro dele. Que, como o próprio, não é caro nem clínico, mas reconfortante. Caloroso
feito um abraço.
O Estado de S. Paulo, 30/10/1994
Para Rita Lee,
com amor e irritação

Pudesse, ia te dar palmadas no bumbum


Rita, olha, não se espante nem se injurie com esta carta. Você sabe muitíssimo bem
que o meu amor por você é público e notório, tanto que há dois anos, quando
retomei esta coluna, minha primeira crônica foi uma espécie de miniode a você e seu
último disco, lembra? Você até me mandou um fax, convidando para uma tarde de
wine and roses. E eu morri de timidez e bobeira e não fui até hoje. Haverá tempo?
Mas olha só, ando preocupado com você. Que que houve, Rita? Bem no dia do
teu aniversário, li nos jornais que você teria sido internada para lavagem estomacal,
depois de uma overdose de Lexotan. Tudo meio misterioso, a família não queria dar
declarações, só garantia que você estava bem. Telefonei ao Bivar e à Vânia, as pessoas
mais chegadas a você que conheço, mas uma estava na Bahia, o outro imagino que
em Ribeirão Preto. Então rezei, acendi vela, incenso, joguei rosa branca no mar no
réveillon de Oxalá, pedindo por todos nós e por você especialmente. Mas até hoje
não sei direito o que houve.
Fico pensando: acidente ou tentativa de suicídio. E não pode, nenhum dos dois.
Imagino que você saiba que suicídio é o pior crime que alguém pode cometer,
violação cármica braba e burra, porque depois reencarna com todo o bode anterior
pra pagar, ainda mais o suicídio. Acidente também não pode, Rita, já bastou a Elis.
Não tem que tomar Lexotan, é do mal, esses downers todos matam neurônios, deixam
a gente meio tantã no dia seguinte. Quando você estiver a fim de se jogar pela janela,
toma chá de mulungu, maracujá, capim cidró. Senta em lótus e fica inspirando,
expirando bem devagarinho. Além do mais, você há de concordar, overdose de
Lexotan é jequérrimo…
Outra coisa que me grila é ter sido justo na véspera do teu aniversário. Rita, a
astrologia esotérica diz que quem morre no dia do aniversário em plena conjunção
Sol-Sol queimou todo o carma, vai pra luz (foi assim com Ingrid Bergman), mas
forçar a barra com suicídio não vale. Deus não é engambelável feito criança que berra
por uma coisa caríssima e você dá uma bala. Rita, cá entre nós, você tá com medo de
Cronos, o Tempo? Ó menina, mas ele acontece com todos nós. E eu sonho sempre
que, lá pelo réveillon de dois mil e tantos, pessoas como nós vamos estar velhinhos
sacudidérrimos, com bengalas enxutíssimas vindas de Paris, para tomar champanhe e
rir de tudo. Na verdade, eu tô mesmo é meio puto com você e a fim de te passar um
pito. Pudesse, na hora que soube do bode, pegava um jatinho e ia direto a Sampa te
dar sonoras palmadas no bumbum. Daquelas que doem de verdade.
Porque não pode você ficar mal, Rita. Você tem responsabilidades. Não falo
nem de filhos, trabalho, essas coisas. Falo de mim e de nós que te amamos tanto e pra
quem você deu tantos toques bons de vida nos últimos pelo menos, sei lá, quase
trinta anos. Você tranquilizou a todas as ovelhas negras das famílias, mandou a gente
sentar no colo da mamãe natureza, disse que queria mais saúde, nos mergulhou
numa banheira de espuma no meio da cidade nua e agora fica aí de frescura? Você tá
apavorada com abrir o show de titia Jagger, é isso? Mas Rita, só você pode mostrar
pros Stones o que é que a gringa tem, você é nossa porta-voz junto às tias todas, a
nata jurássica! Não me falhe, não nos falhe, e principalmente não se falhe,
compreende? Eu sei, eu sei que dói às vezes sem remédio, e a gente também não é de
ferro. Mas tem que ser, Rita. Você não pode nos deixar agora, quando parece que
tudo vai dar certo, compreende? A gente fica muito fraco sem você. Por
solidariedade, não pode você ficar mal, por consciência social, por você mesma,
enfim. Fique linda, fique feliz, arrase nos Stones e me perdoe o atrevimento. Amor,
saúde pra todos nós, axé.
O Estado de S. Paulo, 8/1/1995
Ney Matogrosso,
muito além do bustiê

Tê-lo entre nós nos deixa mais nítidos e felizes


De passagem por este Rio que eu amo, ganhei um presente raro: Ney Matogrosso no
show Estava escrito, os sucessos de Ângela Maria. Nos figurinos elegantérrimos de
Ocimar Versolato, o novo fashion darling, Matogrosso surge com o vigor e a beleza
de uma viúva grega ou portuguesa, dramatismo de Amália Rodrigues, Irene Papas,
Edith Piaf. Luz divina, cenário celestial (Billy Accioly), músicos perfeitos. Ney quase
não se move. Nos telões, sua cara de gavião etrusco é pura tragédia. Perdas, dores de
amores impossíveis. Grego, sim. E tropical.
O público se remexe impaciente. Aplaude, mas assustado. Afinal, onde está o
bustiê? Depois de quase uma hora de punhais, Ney tira o paletó. Por baixo,
naturalmente, o bustiê. Mas preto. Com gargantilhas. Então baixa uma rumbeira. De
meio-luto, verdade. Esse é o Ney que a plateia conhece, e a festa fica garantida com o
grand finale de “Babalu”.
Danço e choro, lembrando noitadas de Santo Daime com Vicente Pereira,
Carlos Augusto Strazzer (tantas, tantas perdas), Duse Nacaratti, Patrícia Travassos,
Eduardo Dusek, Leiloca. O tempo passou. Tantos se foram. Nós ainda não. Revejo
Ney no enterro de Cazuza, todo de branco, imóvel feito anjo de pedra junto aos dois
metros de flores sobre o túmulo. O cemitério foi esvaziando, todos se foram. Ele
ficou. Abrindo o caminho da luz para o menino Agenor, parecia um anjo.
E era. E é.
Beijando-o depois nos camarins, já “desmontado”, tive a confirmação do que
suspeitava havia muitos anos, desde que o conheço. Ney Matogrosso não é humano.
Quero dizer, Ney Matogrosso é humaníssimo, sim. Não, nada disso. Ney Matogrosso
é um anjo encarnado, como aqueles de Wim Wenders. Jamais o vi dizer uma palavra
mais rude para alguém, nunca o vi fazer ou dizer algo vulgar nem negar nada a
ninguém. Penso: Ney apenas parece um anjo porque é um grande artista, talvez o
maior deste país, de energia só comparável à da entidade Maria Bethânia? Ou os
anjos se fingem, sonsos, tanto de esfinges quanto de mendigos para não dar
bandeiras perigosas à extensa do mal?
Eu não sei, Ney é mistério. Deve-se ouvi-lo sem deixar a razão interferir demais,
senti-lo tanto nas cadeiras quanto no espírito, feito onda morna e tropical que nos
embala além da arrebentação entre espumas e corais. Caribe e Tebas ao mesmo
tempo, Star Trek e Maria Antonieta Pons, Dalva de Oliveira e Antonio Banderas,
confins do rio Araguaia e a Viena, de Egon Schiele.
Ney foi o anjo enviado por Deus para que o brasileiro compreenda melhor sua
louca identidade de homem-mulher unidos num só: pássaro e tigre, cobra e
borboleta, miséria e esplendor. Muito além do bustiê, Ney Matogrosso parece uma
tese de mestrado ao vivo sobre a ambiguidade deste país. Tê-lo entre nós nos deixa
mais nítidos e mais felizes também, pois a clareza dele é bela e como ele é nós, épico
e arquetípico, nos tornamos belos através dele e muito mais livres e muito mais
nobres. Rosa de Hiroshima soropositiva, seria radioativa, something between Greta
Garbo, Rodolfo Valentino e Antígona: saúde!
Depois do show, abraçado por disparidades como Benedita da Silva e Cláudia
Abreu, Fábio Assunção e Antonio Pitanga, seus olhos úmidos diziam obrigado.
Suavemente, sem esconder as tantas perdas. Tão verdadeiro e tão singelo é Ney
Matogrosso que ao chegar perto dele qualquer um desce do altar. Não arrogante, mas
rei. Não pretensioso, mas luminoso. A seus pés, brilhamos todos iluminados pela
grandeza de sermos humanos como ele. Pois Ney Matogrosso, repito, foi o anjo
escolhido pelo senhor para cantar estes Brasis de rumba, samba-canção, matas,
cachoeiras, araras, cariris e chimarrões. Axé, chê!
Como a G.H. de Clarice, eu não entendo o que digo. Então adoro.
O Estado de S. Paulo, 3/2/1995
Feliz em conhecê-la,
Natália Lage

Chama-se Natália, essa garota. Como heroína de romance russo ou uma tia-avó que
nem conheci, famosa pela solidão (morreu solteirona), independência (vivia num
hotel), aristocracia (odiava gentalha) e bom-gosto (costureira requintadíssima) e,
curiosa, como a própria filha que não tive e sempre pensei chamar de Clara, Luz ou,
justamente, Natália.
Tem dezesseis anos. Feitas as contas, poderia ser minha neta, posto que sou
trinta anos mais velho. Supondo que eu tivesse tido um filho aos quinze, e esse filho
tivesse tido um filho também aos quinze — esse último filho ou filha, neto ou neta,
poderia ser Natália. Por escolha, não tive nenhum. Os dois possíveis, em comum
acordo com suas mães, foram abortados. Coisa de que me arrependo até hoje, ainda
que não soubesse o que fazer a esta altura do safári com um rapaz ou moça de
dezenove anos e outro ou outra de treze.
Penso muito nesses filhos que não deixamos que vivessem. Rezo por eles, peço-
lhes sempre um perdão desesperançado, amargo, desconfiado de que o crime
cometido será para sempre imperdoável. Mas como Deus, embora aja, arranja jeitos
tortuosos de compensar, volta e meia cruzo com alguém que poderia ser um
daqueles filhos.
Natália é desses. Pele branca de porcelana, cabelos lisos quase louros, silhueta
barroca, parece uma inglesinha do século passado. Não é difícil imaginá-la envolta
em rendas, com chapéu e luvas, um livro ou bordado nas mãos. Fala pouco, quase
nada. Mas olha muito, o fundo. Séria, não fica jogando carinho fora (é de Escorpião),
mas de vez em quando pega na sua mão ou te dá um abraço apertado sem avisar.
Súbito e verdadeiro, o gesto de Natália nunca é social, estudado ou sedutor; toca em
você respirando suave, sem nada pedir, sem carências. Como quem diz qualquer
coisa tipo “que bom, navegamos juntos”.
Até dez dias atrás eu só conhecia Natália da TV: ela foi a filha ao mesmo tempo
de Vera Fischer e de Silvia Pfeifer (e de Mário Gomes) numa telenovela cujo nome
não lembro, depois a riponga Adrenalina de Tropicaliente. Por amigos, certo dia soube
que Natália gostava dos meus livros. Mas ela é tão jovem, pensei, e esses teens (argh!)
não leem nada, pensei assim com preconceito burro.
Fim do ano passado me procurou Marta Lage, mãe de Natália, queria produzir
um espetáculo teatral com meus contos. Natália, imaginem, não tinha coragem de
falar comigo. Pura intuição do bem, autorizei na hora.
Juntaram-se ao elenco Candé Horácio (dezenove), Suzana Pires (dezoito),
Henrique Farias (vinte) e Maurício Branco (vinte e cinco), todos eles filhos-não-tidos.
Gilberto Gawronski começou a dirigi-los. Surgiu o título de um dos contos — À beira
do mar aberto, a ideia justa desse mar imenso da vida aos pés dos muito jovens, tão
jovens que mal começaram a navegar. Terá sereia nesse mar? E ilha e tubarão, terá?
Piratas, tesouros, naufrágios, calmarias, tempestades, recifes, corais, escorbutos,
banzo e nácar? Oh Deus, tende piedade dos moços: só navegando em tuas águas pra
descobrir tanto horror e maravilha.
Então vim ao Rio, e com uma equipe de dezessete lindas pessoas fomos a
Fortaleza estrear. Conheci Natália. Durante a viagem, enquanto os outros se
agitavam excitados, ela leu todo O marinheiro de Fernando Pessoa num bar, a vi sair
discretamente para caminhar de mãos dadas com um menino mendigo. De vez em
quando, numa mesa cheia, baixa a cabeça e escreve, escreve, escreve. É uma atriz. Tão
menina, e de vez em quando umas entonações sabidas de balzaquiana, ironias de
diva, charme de gatinha. Estranha densidade. Aura, magnetismo: talento.
Voltei, eles ficaram. Vão a Natal, João Pessoa, Salvador, Ilhéus, depois para o
Sul. Eu trouxe Natália no meu coração assustado, feito flor rara. Desde que a conheci,
aqueles filhos que não tive me doem bem menos. Que é da natureza da dor parar de
doer, tenho aprendido.
O Estado de S. Paulo, 5/2/1995
Reza forte para um
egum maldespachado

Recebo lindas cartas dos leitores desta coluna. Cada “lote” que a Margarete manda
do Caderno 2 em São Paulo traz notícias de amigos perdidos há tempos (Harumi
Ishiahae, a mais bela das japas; Raquel Salgado, jamais esquecerei nossa viagem de
moto para Trindade; Ludovico da Silva, talentoso e inédito escritor de Piracicaba, ex-
aluno meu numa oficina iniciada pelo Ignácio de Loyola) e também de gente que
nem conheço. Quer dizer, nunca vi o rosto, mas isso não significa que não conheça,
certo? Como Maria Ester Fernandes, que me envia de Paris fotos daquela casa no
Quai de Bourbon, onde para sempre enlouqueceu Camille Claudel, e tantos mais
que, fosse contar suas gentilezas, teria mais material que a Xerazade nas suas mil e
uma noites.
Vou tentando responder então pelas próprias crônicas. O tempo é curto,
energia milimetrada. E hoje fico até encabulado de tocar num assunto extremamente
pessoal para pedir ajuda a esses amigos e a outros que nem suponho. A história é
longa, feia, triste e, ao que parece, também sem remédio.
Há cinco ou seis anos, selecionando — pela qualidade do texto — os
participantes de uma oficina de criação de contos em São Paulo, recusei — pela
absoluta mediocridade — os textos de uma moça. Ela insistiu. Além de má escritora,
parecia também mau-caráter. E louca, louca do mal, porque há poucos e loucos,
inclusive os geniais e os que não fazem mal a ninguém. Ela costumava invadir as
aulas aos gritos e, desde então, me persegue feito um egum (espírito sem luz no
candomblé) maldespachado. Me seguia pelas ruas, metrôs e ônibus quando eu ainda
vivia em São Paulo, descobria os lugares aonde eu gostava de ir. Parei de ir.
Mas o pior eram os telefonemas. Bêbada ou drogada, ou os dois, ligava de bares
(copos e gritos ao fundo) às quatro, cinco da manhã. Eu levava sustos terríveis
imaginando doenças e acidentes medonhos com parentes, com amigos. Para poder
dormir, comecei a deixar a secretária ligada. Certa vez deixou gravada uma oração de
magia negra. Assim também é demais, pensei, e pedi ajuda ao meu amigo Paulo
Coelho.
Não sei que reza braba Paulo (que é dos bons) fez, mas o fato é que ela parou no
mesmo dia. Durante uns três meses. Depois voltou. Até hoje. Eu já tentei de tudo, da
mansidão à fúria, da argumentação lógica às ameaças. Processo, polícia. Nada, o
egum não desencarna.
Em agosto último, no dia em que recuperei a consciência no hospital, ela foi a
primeira a invadir o quarto. Pedi às enfermeiras que avisassem aos seguranças. Na
casa Mário de Andrade, onde eu dava aulas, a escritora Anna Maria Martins e a
brava Mariclaire Brant também tiveram que pedir ajuda para impedi-la de entrar.
Pois desde que vim para Porto Alegre ela descobriu o telefone (psicopatas têm uma
porção Sherlock Holmes forte) e liga, imaginem, a cobrar. Desligo assim que entra a
musiquinha. O que cria grandes problemas, pois sempre pode ser pessoa da família
viajando, ou alguém em dificuldades.
Além de vexames tipo eu xingar outro dia o diretor teatral Mario Diamante,
cuja voz confundi com a dela, ou minha mãe gritar com Cecília Nisemblat, minha
bela amiga dos tempos da faculdade.
Pois chama-se Maria Cecília Flosi, o monstro. Dizem que já esteve internada
várias vezes, dizem também que é filha de um homem importante. Descobri o
telefone, liguei para ele, pedi providências. Não foram tomadas. No momento em
que escrevo, onze da manhã, ela já ligou três vezes. O que quer? Pura obsessão,
imagino. E lembro de O fã, aquele filme em que um maníaco matava Lauren Bacall,
ou de um conto de Milan Kundera. Mas isto que conto não é ficção, até poupei vocês
dos detalhes mais escabrosos.
Então peço: se alguém tem o desprazer de conhecer essa patética psicótica ou
pessoa de sua pobre família, por favor, me ajude. Para que eu possa continuar a
trabalhar com a paz possível nesta ilha onde travo minha solitária guerra pela saúde
física e mental.
O Estado de S. Paulo, 19/2/1995
Vamos voltar a
falar em poesia?

Então tá. Passou eleição, Natal, Ano-Novo, Reis, praia, Carnaval (bela Bidu Sayão,
hein?): começamos agora outra vez. Diz que o povo em Brasília cantava nas ruas “Eu
tinha medo do HIV, agora tenho medo do FHC”. Pura maldade, tem Dona Ruth
Maravilha por trás, não? Então tá seguro, então já rolou, então vamos falar do que
interessa.
E o que interessa? Toujours y always and sempre: po-e-si-a.
São três rapazes por volta dos trinta anos, dois paranaenses e um paulista que
acabam de conseguir a façanha inacreditável de publicar seus primeiros livros. Boas
editoras, bons livros: Solarium, de Rodrigo Garcia Lopes; LSD Nô, de Ademir
Assunção, ambos da valorosa Iluminuras de Samuel León, e Primeiro segundo, de
Ricardo Lima, numa edição lindíssima da Arte Pau-Brasil. Entre eles, em comum,
além da geração (Rodrigo é de 62; Ademir de 61; Ricardo, o mais jovem, de 66) e do
talento incomum, certo universo, certas heranças. Aqui e ali, pelos três, é possível
recolher vestígios da geração beat, de Paulo Leminski, Ana Cristina César, e uma
visão de mundo marcada pela ironia em relação ao amor e às estruturas sociais.
Cada um faz isso de um jeito, e com múltiplas atividades. Rodrigo, o mais
viajado (mestre em Artes pela Arizona State University, com tese sobre William
Burroughs), tem poemas escritos em Creta, Veneza, Londres, Viena, Barcelona, é
também tradutor dos difíceis poemas de Sylvia Plath, publicados pela Iluminuras.
Ademir, jornalista que passou aqui pela redação do Caderno 2 lá por 87, sob o
heterônimo de Pinduca, é letrista de músicos como Itamar Assumpção e Edvaldo
Santana, participou de exposições de poesia visual em Paris, Lisboa e Sidney. Ricardo
fez três anos de Geologia, que trocou por Comunicação, e guerrilhou anos em
oficinas culturais em Ribeirão Preto e, em São Paulo, na Assessoria de Cinema da
Secretaria de Cultura do Estado. Ou seja: alem de poetas, são três lutadores culturais.
Em Rodrigo e Ademir, às vezes certa atração pelo concretismo, pela
visualidade: do poema, versos em corpos diversos ou dispostos no branco de maneira
não convencional. Ricardo é diferente: através de uma epígrafe de Hilda Hilst — que
com João Cabral e Adélia Prado compõe o triângulo de nossos maiores poetas vivos
— propõe de saída seu universo de puro rigor. Poemas enxutos, exatos, sem título,
essenciais a ponto de lembrar às vezes Antônio Fernando de Franceschi ou Rubens
Rodrigues Torres Filho, poetas marcantes da geração anterior.
Pelos três livros, pequenas genialidades. E cada um atinge sua obra-prima: o
budista Ademir, em “Satori” (“sou apenas/ mais uma/ espécie de vida/ entre
muitas/ viajando pelo tempo/ que nunca existiu”); Rodrigo em “Morning glory”,
dedicado a Ana Cristina César, musa de todos nós (“olha/ é outono/ em tudo/ (lá
fora e agora-)/ quando um rosto (é tudo-)/ que resta na memória”); Ricardo mais de
uma vez, talvez principalmente neste poema com sabor gullartiano: “pessoas se
perdem/ vizinhos mudam da infância/ amigos somem de tempos em pentes./
Família morre/ amor passa/ cidades partem/ as tardes/ não as recebo mais”.
Publicados entre final do ano passado e início deste, não lembro de ter lido
nenhuma resenha ou sequer notas pelas raríssimas páginas literárias dos jornais. E
olha que sou atento… Onde andarão os críticos d’antanho? Será que, como Dulce
Veiga, também querem “outra coisa”? Pois essa outra-coisa palpita nestes livros de
uma geração de jovens-nem-tão-jovens, muito além dos shopping centers e
videoclipes e clubbers da vida, cheios de cultura, vigor, brilho. Quando voltarem a
me encher o saco perguntando por-que-a-poesia-brasileira-está estagnada, esfrego
estes livros nas fuças dos desinformados. E quanto a vocês, o que estão fazendo aí
parados lendo esta crônica? Corram já para as livrarias.
O Estado de S. Paulo, 5/3/1995
Betty Crawford, Ph.D.
em Najice Comparada

Este domingo não tem Caio F. Acossado pela psicopata telefônica (não, ela não
parou); pelo processo movido pelo senhor Meu Nome É Enéas, graças à crônica aqui
mesmo publicada; pela grosseira pirataria cometida pela Geração Editorial, que
incluiu um texto dele no livro Viagem Inteligente sem autorização ou contrato, e nem
responde a cartas — esta semana, exausto e aos gritos de “Quanto mais eu rezo, mais
assombração me aparece!”, nosso colaborador recolheu-se a um spa zen em Macapá
para tratamento à base de ayhuasca, Maracujina e Lexotan. Em seu lugar, com vocês,
sua estonteante interina.
Meu nome é Betty Crawford, dupla homenagem a duas deusas do cinema
prestada por meu bravo pai, e vou começar de sola colocando alguns pingos nos is.
Primeiro, sou Ph.D. em Najice Comparada, portanto não esperem ter de mim
angélicas delicadezas, metafísicas divagações ou poéticos delíquios. Meu negócio é
Dallas, uma rajada de balas — ou seja, Brasil 95.
Segundo, a escolha de meu nome para substituí-lo foi do próprio Caio F.,
imediatamente aprovada pelo querido Antônio Bivar, meu padrinho de formatura,
o.k.? Então apertem os cintos, leitores, que hoje vamos ter uma coluna agitada…
E agora falem pra tia: vocês já se deram conta de que estamos em plena era
Dona Ruth? Pois deem-se, e urgente, pois isso impõe novas éticas, estética, moral,
comportamento etc. Depois de Rosane Collor, e sem levar em conta Lilian Ramos,
June Drummond e muito menos Norma Bengell, como evoluiu este pobre país em
apenas quatro anos! Um salto não só geográfico, mas qualitativo também. De
Pajuçara ao Quartier Latin, de boizinho de cerâmica a Camille Claudel, de livro de
cordel à tese de mestrado na Sorbonne, os tempos mudaram. Jamais esqueçam de
quanto nos fez sofrer Fernanda I, a do Mal, e de quantas renovadas esperanças traz-
nos agora a ascensão de Fernanda II, a do Bem, exclamação!
Pois nesta nova dinastia, certas bagaceirices tornaram-se mais que intoleráveis.
Seja qual for o tema em pauta, antes de opinar, pensem em Dona Ruth — ela
aprovaria? Por exemplo, Romário, a pior imagem que o macho brasileiro poderia ter
— ah, bons tempos de Nelson Sardelli, aquele bofe da Jayne Mansfield, Bob Zagury e
BB, Paulo Pilla e Rachel Welch, Tarso de Castro e Candice Bergen! Imaginem o pônei
Romário tomando um chá com Dona Ruth.
De que falariam? Chuteiras, meniscos talvez? Se pelo menos fosse o Raí, que
deve arranhar o seu francesinho (no sentido linguístico, suas najas!), ou o Renato
Gaúcho (com este, aliás, a última coisa que uma mulher sensata pensaria em fazer
seria conversar). Em respeito a Dona Ruth, a primeira-dama mais culta e chique que
já tivemos em toda a história (sorry, Dona Sarah), precisamos reagir contra os
destroços morais herdados dos negros tempos de Fernanda, a Má. Esqueçam Miami,
queridos, et vive la France!
Me digam: uma revista como Fuças, digo, Caras, você consegue mentalizar Dona
Ruth folheando, mesmo na sala de espera do psicanalista? E a ilha de Caras, vocês
acham que Dona Ruth passaria um fim de semana lá? Se pelo menos fosse um
estúdio na USP, perceberam a técnica de raciocínio Brasil-contemporâneo?
Mas o mais inadmissível de tudo é essa paraguaia Veronica Castiñeira, que faz a
Lillian Ramos parecer um anjo de pureza. Me digam, o Brasil precisa importar
pistoleiras, ainda por cima do Paraguai? Ah, bons tempos de Coccinelle… E
domadores de leão? Se pelo menos fosse um estruturalistazinho…
Mas mal comecei a desenvolver minha tese e o espaço acabou. O que quero
dizer, queridos, é simples: esqueçam sim o parâmetro Miami, mas pelo amor de Deus
não se voltem para o modelão Assumpción. Bem sei quanto a gentalha deve estar
atemorizada com as mudanças trazidas por Dona Ruth, mas façam um esforcinho
estético pelo amor de Roland Barthes. Mais processos, please, para a redação. Beijos,
Betty C.
O Estado de S. Paulo, 19/3/1995
De volta ao avesso
do avesso do avesso

A Paulista é sempre comovente à noite


Numa rasante de dois dias e uma noite sobre São Paulo — não, não ficou mágoa
dessa relação. Como esses casais que vivem brigando durante anos e depois, ao
separar, percebem que deviam ter feito isso antes, pois se afastarem era a única
maneira de continuarem amigos, da mesma maneira olhei o largo do Arouche e a
cidade em volta, do décimo terceiro andar do Hotel San Raphael. Sem saudade nem
vontade de voltar, mas feliz ao perceber que na “cidade em escombros”, como diz
Ignácio de Loyola, um de seus amantes mais críticos, a pequena praça redonda do
largo está cheia de flores bem cuidadas e as bancas continuam verdes.
A boa impressão continua durante a gravação para o programa de Marília
Gabriela. A produção é gentil e, de repente, sem que elas mesmas saibam, vejo
reunidas no mesmo trabalho pessoas que conheço de lugares diferentes e não via
fazia muito tempo: a própria Gabi, minha ex-vizinha na Haddock Lobo, leitora
entusiasmada de Onde andará Dulce Veiga?, Ninho Moraes, o diretor do programa,
tempos de José Márcio Penido, Aninha Braga e Samuca Jagger na Girassol da Vila
Madalena; Reinaldo Moraes, cronista do programa, de outros tempos na rua Alagoas,
noitadas inesquecíveis com Mário Prata, Maria Emília Bender, Ruy Fontana Lopez,
Ana Cristina César. De repente, na plateia, Sílvia Poppovic e sua beleza barroca para
ajudar ainda mais o astral. Ah São Paulo, penso, e seu grande luxo que em cidade
nenhuma existe igual: as pessoas. Pessoas sérias, fiéis, leais, solidárias, discretas,
trabalhadoras.
Com Gil Veloso, que é tudo isso também e vive em Sampa, saio da TV para ver
Nanni Moretti e o humor tristíssimo de seu belo Meu caro diário. A Paulista é sempre
comovente à noite em seu mar ilusório de neon, as garçonetes do quiosque Viena no
Conjunto Nacional continuam lentas, e no Cinearte, um dos meus preferidos, mudou
a sala de espera, levemente claustrofóbica agora. Saio fascinado por aquele passeio de
vespa na praia onde foi assassinado Pasolini, ao som — reconheço espantado — do
Köln Concert, de Keith Jarrett.
Na manhã seguinte uma saudade súbita me fere ao sol, atravessando a rua em
direção ao Almanara. Talvez porque nos cruzávamos às vezes no outro Almanara, da
Oscar Freire, lembro com força e sem planejar de Ileana Kwasinski. Da esplêndida
atriz que era, e pôde mostrar isso em Depois do expediente, peça de um alemão
contemporâneo, não lembro o nome, sem uma única palavra ou como o rei de A vida
é sonho. Não sei se Ileana era paulistana, mas era também, como eu dizia, séria, fiel,
leal, solidária, discreta, trabalhadora. E de um talento que não creio tenha sido
explorado até os últimos recursos, talvez inesgotáveis. Sim, estamos partindo, penso
sem amargura, mastigando meu homus com suco de laranja. E ainda nem sei que
Rofran Fernandes também morreu…
Ah São Paulo, tanta gente lutando numa paisagem urbana que não ajuda na
luta, enumero no caminho para o aeroporto os encontros carinhosos com Gisela
Arantes, com George Freire. E aos poucos, pela janela do táxi, o susto antigo que
volta, o engarrafamento monstruoso. O manto de fuligem envolvendo o topo dos
edifícios, transformando o obelisco do Ibirapuera lá embaixo da 23 de Maio numa
espécie de escultura abstrata cuja parte superior se perde num céu de sujeira. Os
olhos ardem, começo a tossir. Muito sereno, o motorista comenta bem natural que,
em breve, todos em São Paulo terão que usar máscaras de oxigênio para sair às ruas.
Sim, concordo, em breve. Hoje, ontem, já.
E não sinto saudade, percebo da janela do avião. Nenhuma nostalgia de estar lá.
Nenhum rancor. Bom ir, bom voltar, bom saber que aquelas pessoas boas continuam
lá, outras também, outras não mais. Suspiro aliviado: sim, esse casamento meu com
Sampa acabou na hora certa. Mas te desejo, de longe, felicidade. Me deseje também.
E saúde, meu Deus.
O Estado de S. Paulo, 30/4/1995
Inútil pranto
por Santa Teresa

Havia grilos, vaga-lumes, perfumes soltos no ar mais frio no morro


Conheci Santa Teresa em 1968. E era tão bonita que nem parecia real, mas locação de
filme brasileiro de época, o casario colonial de portas e janelas coloridas feito pintura
primitivista, o sobe-desce das ladeiras e o Rio de Janeiro esparramado lá embaixo.
Jurei encantado: um dia, ah um dia ainda venho morar aqui.
Cumpri a promessa. Lá por 1971, fui morar numa espécie de minicomunidade
hippie com Lima, Lili e Tereza, perto do morro do Silvestre. Nos fundos do
apartamento, um abismo de bananeiras, flores tropicais selvagens que ninguém sabe
o nome. Vezenquando alguma cobra atravessava a rua, bem natural. E nós tão
hippies, mas tão hippies que volta e meia, geralmente nos sábados à tarde, o pintor
Luiz Jasmim (onde andará?), que morava ao lado, colocava as caixas de som na janela
e a trilha sonora de Hair bem alto, só pra nós. Os acordes de Aquarius ou Let the
sunshine in eram uma declaração de simpatia ao mesmo tempo explícita e delicada.
Se éramos felizes? Não sei, éramos jovens. Além disso, havia Santa Teresa em volta e
aquele exagero de beleza da baía de Guanabara, que podia ser vista até da janela do
banheiro. Nem teve importância que tudo terminasse numa dançada federal. Saímos
de lá corridos, feridos, assustados. Normal para a época. Afinal, quem não dançou
nos anos 70 nem sequer sonhou.
Mas não me dei por vencido. Em 1982 voltei para morar outra vez em Santa
Teresa. Desta vez no lendário hotel do mesmo nome onde, reza a lenda, morou Raul
Seixas. Durante quase um ano, enquanto escrevia Triângulo das águas, me dedicava a
longas caminhadas pelas ladeiras de calçadas estreitas, pegando amizade com a
população do bairro. Naquele tempo, e nem tanto tempo assim faz, por incrível que
pareça as pessoas não tinham medo umas das outras. Violência? Vez por outra um
pivete roubando relógio ou corrente de ouro de turista tonto no bondinho, e a
história era comentada durante uma semana. Mas tiro, bala perdida, mortos e
feridos, isso nunca. Essas coisas não cabiam lá.
Santa Teresa ficava no interior da cidade do Rio de Janeiro. Santa Teresa,
qualquer coisa entre Paraty e as cidades coloniais mineiras, era pacífica, preguiçosa,
suavemente monótona. Feito uma foto em sépia, aquarela primitiva, vila fora do
tempo. À noite, dava para sentar no muro caiado de branco, ouvindo as mangas
maduras demais se esborracharem no chão, sentindo o perfume de dama-da-noite
solto no ar. E quando se descia até o Rio e ficava muito tarde, e os motoristas de táxi
recusavam-se a subir, dizendo que os trilhos dos bondes cortavam os pneus, ia-se a
pé mesmo, por quebradas estreitas da Glória, por intermináveis escadarias do Cosme
Velho. Havia grilos, vaga-lumes, perfumes soltos no ar um pouco mais frio no morro.
E as luzes da Guanabara, maravilhosas e perigosas, lá longe. O melhor de Santa
Teresa, talvez, era que o Rio de Janeiro era uma coisa que você podia ou não usar,
mas estava sempre lá.
Agora acabou. O que leio nos jornais e vejo na TV nas últimas semanas me
deixa doente. Ainda mais doente. Santa Teresa sangra, transformada em Sarajevo
tropical, em Chechênia invadida, estuprada. As pessoas abandonam as casas e fogem
para qualquer lugar, escondendo o rosto. Balas perdidas cruzam o ar. Não, não sei se
é suficiente chorar o que se perdeu e rezar pelo que ficou. Sei que, por conta disso,
acabei achando um pouco ridículo FHC todo sorridente ao lado da rainha da
Inglaterra e todas essas comemorações do fim da Segunda Guerra, enquanto Santa
Teresa agoniza, desamparada e bela, no alto daquele morro. Quem pode fazer
alguma coisa, que faça. E quem pode?
O Estado de S. Paulo, 14/5/1995
Tentativa de sitiar
uma esquisitice

O terror interno foge de todas as maneiras do real e do agora


Ando esquisito. Não exatamente mal, mas preguiçoso, dispersivo, desatento. Ou
atento a coisas tão remotas que é como se não estivesse completamente aqui. Nem lá,
na coisa remota. Na caixa do supermercado, de repente revejo nítida aquela esquina
do restaurante japonês em Pernety, Paris. Ao atravessar uma rua aqui do Menino
Deus, onde moro, a luz do crepúsculo me transporta para a beira do fiorde de
Skjeberg, no sul da Noruega. E também não são só flashes assim chiques, estrangeiros,
não. Outro dia na sacada aqui de casa, voltou de repente certo entardecer na
fronteira com a Argentina: 360 graus de pampa, o sol se pondo atrás do Uruguai e a
lua cheia subindo exatamente a 180 graus opostos. E não só lugares. Caras também, e
vozes, e pessoas ausentes ou distantes de repente se introduzem no presente e no
próximo. Não são apenas lembranças, que isso é comum de ter, é mais inquietante
que isso: são invasões no real do imaginário e da memória.
Vou ao cinema. Prêt-à-porter, de Robert Altman, me faz rever por dentro um
filme francês sofisticadíssimo do fim dos anos 60: Qui êtes-vous, Polly Maggoo? Não só
o filme, mas também o cinema onde o vi, e que já não existe mais, e a própria tarde
de novembro em que foi visto, depois de uma prova na faculdade. Amateur, de Hal
Hartley, e seus personagens zumbis desmemoriados me levam de volta a uma noite
gelada de inverno em Kentish Town, Londres, saindo de um restaurante paquistanês.
Uma moça chorava desesperadamente sentada no degrau. Perguntei se precisava de
ajuda, ela contou: acabara de encontrar o namorado com outra na cama. Mas não
queria ajuda nem nada, só queria ficar ali chorando sozinha no degrau gelado. Fui
embora.
Será grave isso que tenho, ao ver outras coisas dentro da coisa presente? Não no
sentido clínico ou físico, suponho, que não exige internação nem tratamento. Mas
num outro sentido um tanto abstrato, talvez seja gravíssimo. É normal ver o que não
é mais no que está sendo? “Normal” não é a palavra, eu sei, “normal” estabelece um
critério tão inabalável de sanidade que chega a ser fascista. Tento de outro jeito,
então: será que é bom, isso?
Percebem como é vago? Tenho que dizer isso porque não sei como se chama. O
que agrava as coisas, pois sempre é muito mais fácil lidar com algo batizado,
classificado e supostamente compreendido. Será o inverno chegando? Aqui no Sul
temos inverno brabo, e este final de maio deixa no ar uma espécie de calafrio de
antecipação: quer-se de repente estar no Caribe ou na Bahia para não ter que
atravessar as geadas e os gelos de junho e julho para chegar despedaçado em agosto
e, a partir de setembro, tentar reunir os cacos outra vez. Talvez porque há quatro
anos viajando sem parar, vivendo dois invernos seguidos, e nenhum verão, ou o
contrário, meu organismo tenha perdido o ritmo natural?
Será o Zaire? Será a greve dos petroleiros? Será o excesso de remédios? Será
porque terminei livro novo, e isso sempre deixa a gente assim, esvaziado, espantado?
Durmo e não sonho, faz tempo. Cartas e telefonemas, que quase não atendo, deixo
para responder depois. Então esqueço. Começo a ouvir Mozart, me dá vontade de
ouvir Satie. Vou ao Satie, mas acho que quero mesmo é Chopin. Abro Jorge de Lima
pensando em Drummond, quero João Cabral, mas no segundo verso estou pensando
em T. S. Eliot. De madrugada, acordo súbito e suado, julgando ouvir as sirenes da
polícia daquele inverno infernal em Brixton. Há qualquer coisa ausente? Há outra
coisa que ronda, querendo tornar-se presente? O terror interno foge de todas as
maneiras do real e do agora para não encarar-se, será? Não sei, ando esquisito. Ando
mesmo muito esquisito e, bem sei, ninguém pode ajudar.
O Estado de S. Paulo, 28/5/1995
Picadinho para
aquecer o inverno

Novela — Os muito intelectuais que me perdoem, mas fui atacado outra vez pela
síndrome telenoveleira. Desde que Marcos Frota partiu a cara da naja Claudia Ohana
no dia do casamento, não perco um capítulo de A próxima vítima. Sem alarde, a
novela tem lá suas ousadias: a família de negros onde, desta vez, a branca é a
empregada; uma prostituta assumida sensacional (a divina Vera Holtz); uma dupla
de rapazes gays discretos e sem traumas; o romance de um negro com uma branca
(Mila Moreira, uma perua fantástica). Claro que também há malas pesadíssimas a
carregar, como o chatíssimo e subliterário Zé Bolacha de Lima Duarte (que
felizmente viaja muito: podia morrer num acidente), a gritaria da harpia Suzana
Vieira ou o casalzinho xaroposo Deborah Secco-Selton Mello. Nada de grave. Afinal,
além de Sílvio de Abreu, tem as mãos sábias dos dramaturgos Maria Adelaide
Amaral e Alcides Nogueira ajudando. Mais aquela garota linda e ótima atriz que faz
a Yara. E o melhor de tudo: Aracy Balabanian, a nossa Bette Davis.
Bonecos — Semana passada, subi a Serra Gaúcha para o 8-º Festival Internacional de
Teatro de Bonecos, em Canela. Cerca de trinta espetáculos, com pelo menos três
deliciosos do pouco que consegui ver: o chinês Yang Feng, o russo Nikolai Zykov
(com uma doida marionete camp dublando Gloria Gaynor) e, o melhor, o catalão
Jordi Bertran, de Barcelona (Pablo Casals e Salvador Dalí entre os bonecos). Para
aquecer o frio da cidade, mais para Suíça do que para trópico, a gentileza da
primeira-dama da cultura local: Nídia Guimarães, viúva do escritor (grande) Josué
Guimarães. Luxo gaúcho, venham conhecer.
Princesa — Meus leitores são um barato. Mal saiu a crônica que escrevi sobre o livro
A pequena princesa, de Frances Burnett, Sérgio Telles apressou-se a me enviar um
exemplar igual ao meu perdido. Mais um verbete da Enciclopédia Britânica sobre a
escritora: uma capricorniana nascida em Manchester em 1849 e falecida em Nova
York em 1924. Outra leitora informa que A Pequena Princesa virou filme e está
chegando logo por aí. O livro foi publicado em 1888.
Rebanho — Depois de muito trabalho, insegurança e chiliques de escritor, lancei aqui
em Porto Alegre as minhas Ovelhas negras, pela Sulinas, com Luís Gomes no
comando, um jovem editor cheio de pique. Estamos tramando lançamentos em São
Paulo (na Cultura) e Rio (na Argumento) para julho. Quero ver vocês! Afinal, the
show must go on. Ou como dizia Vicente Pereira, citando Marlene Dietrich: “Segura o
turbante, meu bem. E sente o ritmo”.
Baixo-astral — Com atraso, vi em vídeo aquele Natural born killers, de Oliver Stone.
Provavelmente o filme mais do mal que já vi em toda my perra vida. Vamos
combinar: essa gentalha tipo Stone, Quentin Tarantino ou aquele outro diretor de
Kalifornia não tem nada a ver. Pura energia negativa. E o que parece contestação à
violência contemporânea frequentemente beira o nazifascismo. Stone justificando o
assassinato é de dar náuseas. Bons são Theo Angelopoulos, Jim Jarmusch. E viva
Robert Altman!
Joias — Vida inteligente — inteligentíssima — na Rede Globo: o programa de Regina
Casé, síntese comovente da diversidade brasileira provando que o Brasil é muitos
países, e a Comédia da vida privada, com textos de Luis Fernando Verissimo. O último,
uma geral na vida brasileira dos últimos 25 anos, com o quarteto maravilha Fernanda
Torres, Diogo Vilela, Paulo Betti e Pedro Cardoso, foi das melhores coisas que vi nos
últimos anos. Engraçado sem ser tolo, pungente, poético, humano, coisas raras. Na
direção, o competentíssimo Jorge Furtado, do curta Ilha das Flores. Faz um longa logo,
Jorge, faz, para calar as Carlas Camuratis da vida…
O Estado de S. Paulo, 25/6/1995
A vaia consagradora
de Denise Stoklos

Domingo, 24 de setembro último, nove da noite. Na umidade desta Gay Port, pelo
menos 1.500 pessoas se acotovelavam em frente ao Salão de Atos da Reitoria para
assistir ao encerramento do festival de teatro Porto Alegre em Cena. Atração: a
estreia internacional de Denise Stoklos com Elogio, inspirado na obra de Jorge Luis
Borges. Certo frenesi percorre a plateia. Animação, expectativa.
O espetáculo começa. Flui com dificuldade. Apesar da luz magnífica de Maneco
Quinderé, dos belos figurinos, da soberba Cida Moreira, da presença enigmática de
Fábio Namatame travestido de gueixa. E da própria Denise, e do próprio texto de
Borges, claro. Para agravar as coisas, em cena está também o casal de adolescentes
filhos da atriz. Simpáticos, às vezes até comoventes, mas inexperientes e, por vezes,
constrangedores. Os pais de Denise atravessam o palco dançando um tango. Passam-
se duas horas entre trocas de cena morosas e um tom indefinido de sátira. A plateia
suspira, remexe-se inquieta. Deve durar ainda mais uma hora, cochicham. Nem a voz
e a figura de Cida Moreira, em grande momento, conseguem aliviar o desconforto.
Súbita, então — a vaia. Não crescente, nascendo aos poucos de pontos isolados
do teatro, espontânea. Mas ululante, organizada, partindo de cerca de trinta pessoas
junto a uma das saídas. Por instantes a plateia vacila; fará parte do espetáculo? As
luzes se acendem todas, Denise e Cida interrompem a peça. A vaia é de verdade,
“Cala a boca”, gritam, “sai de cena”. Cida debruça-se ao piano com ar entediado,
Denise estatiza de braços abertos, crucificada ao fundo do palco. Às vezes repete:
“Eles estão vivos! Eles estão vivos!” O salseiro dura uns dez minutos, enquanto a
plateia se levanta em peso — menos os vaiantes, claro — e aplaude em pé. No palco a
ação é retomada. Agora elétrica, conturbada, como se o espetáculo finalmente
começasse.
Saio sozinho ao final, rapidinho desviando de grupos excitados no saguão.
Preciso ficar só, quase meia-noite de domingo, preciso pensar na vaia. Lembro
Nelson Rodrigues, Caetano, Clarice Lispector — que teve uma morte literária
decretada pela mídia ao publicar A hora da estrela, talvez sua obra-prima, um ano
antes de morrer. Pois que um artista, vou pensando, um verdadeiro artista, um
experimentador de técnicas e emoções, não deve ambicionar jamais a unanimidade.
A unanimidade é o começo da acomodação e da mediocridade. Lembro do escritor
francês Georges Bataille e sua frase usada por Hilda Hilst para justificar suas novelas
pornográficas: “Agora, enfim, sinto-me livre para fracassar”. Só os verdadeiramente
livres são vaiados?
Além disso, não se diz “cala a boca” nem a uma criança, a um operário ou
faxineira. E ordenar “sai de cena” aos berros é como dizer a um doente grave “pare
de viver”. Lembro de minha avó repetindo: “Os incomodados que se retirem”.
Ninguém é obrigado a gostar de Denise Stoklos. Mas também ninguém pode duvidar
de seu extraordinário talento. Mais ainda porque, como artista experimental, ousa
errar.
Ousa, honesta, apresentar o mero rascunho de um espetáculo que pode vir a ser
deslumbrante. Ousa, enfim. Quando podia muito bem estar faturando horrores com,
por exemplo, Apareceu a Margarida. Feito Marília, a Pêra. Denise não é estabelecida.
Graças a Deus.
Um casal comenta: “Nossa, coitada, deve estar arrasada”. E eu penso que não.
Ou que, se estiver, não deveria. Para um artista do calibre de Denise Stoklos, a vaia
deve soar como uma consagração pelo avesso, que impulsione para o
questionamento de possíveis autocomplacências. Envio mentalmente minha
solidariedade a todo o grupo. Suspiro.
O Estado de S. Paulo, 1/10/1995
Para mãe Sonia
de Oxum Apará

Sou um homem de sorte. Uma das razões é que tenho duas mães. Alguns não têm
nenhuma, outros desprezam ou detestam a sua. Outros até, leio nos jornais, até a
matam. Pois tenho duas. Ambas maravilhosas. Uma, claro, é a poderosa Dona Nair,
atualmente recuperando-se de uma isquemia com a bravura de sempre, é tão legal
que às vezes eu tinha ciúme: meus amigos às vezes ficavam mais amigos dela do que
meus.
Como o José Márcio Penido, que preferia ficar vendo fotos antigas com ela a
fazer a ronda comigo pela noite de Porto Alegre, que ele não conhecia. A outra mãe
não é de sangue, mas de espírito. Chama-se Sonia Maria Barbosa, vive no Rio.
Libriana ascendente Libra, pura beleza, fez aniversário no último dia 5. Este texto eu
gostaria de ter publicado naquele dia. Vai atrasado. Com carinho e respeito, eu conto:
Há uns quinze anos, vivendo em Sampa, por conta de uma namorada eu ia ao
Rio quase todo fim de semana. Um dia a artista Vera Salamanca me disse: “Procura lá
no Rio uma mãe de santo maravilhosa”, minha amiga deu o endereço. Na época,
kardecismo, candomblé, umbanda, pra mim era tudo a mesma coisa.
Incompreensível, vista com superioridade e até certo desprezo pseudointelectual. No
Rio, comentei com a amiga Graça Medeiros (grande astróloga, há uns dez anos em
Nova York). Graça animou-se. Lá fomos nós, safári heavy da rua Mundo Novo,
Botafogo, até o Méier, zona norte, via Maracanã.
Sonia era uma senhora bonita, pouco mais velha que a gente (mas tinha um ar
de senhora, no melhor sentido: nobre), cabelos castanho-claros, quase louros, olhos
verdes penetrantes, sérios, um tanto melancólicos. Falava pouquíssimo, vivia só,
apartamento pequenino, limpíssimo. No minúsculo quartinho de empregada, a mesa
de jogar búzios. Fiquei fascinado com a beleza dos panos brancos, as contas coloridas
em círculo, as orações em iorubá. Ela jogou e disse que eu, coisa rara, tinha os dois
Oxalás — Oxaquiã, o jovem guerreiro do sol do meio-dia, e Oxalufá, o velho sábio,
mais uma Oxum. Não entendi nada. Sonia contou que de sete em sete anos Oxalá
mandava um filho especial, do qual ela teria obrigação de cuidar para sempre. Esse
filho não precisaria fazer nada, nem dar cabeça, nem voltar lá nunca mais. Já era
dezembro, estava angustiada porque esse filho não aparecera ainda naquele ano
quase no fim. E esse filho era eu. Senti vaidade. E medo. E suspeitas paranoicas. Mas,
sobretudo, encantamento.
Sonia foi “feita” na Bahia, ala Keto, candomblé puríssimo: Sonia de Oxum
Apará. Faceira, guerreira. Contou lendas lindas, me indicou livros. Voltando a São
Paulo, devorei Pierre Verger, Roger Bastide, Nina Rodrigues, tudo o que me caísse
nas mãos. Voltei ao Rio, voltei à Mãe Sonia com Graça, de Oxumaré, e Cacaia, de
Bará e Oxum. Sonia precisava de uma casa maior. Fizemos uma espécie de pacto:
levaríamos lá o maior número de pessoas possível, seria a nossa forma de pagamento.
Sonia comprou uma casa enorme, quase em ruínas, na Vaz de Toledo. Engenho
Novo. Obras intermináveis. A casa foi ficando pronta. Sonia mudou-se. A casa cada
vez mais linda. Na frente, ao nível da calçada, depois com uma escada que desce
entre plantas e árvores incrivelmente verdes até as casas dos Orixás, o terreiro, a sala
onde ela joga búzios. Tudo impecável, branco, limpo, perfumado. Bandejas de frutas,
cheiro de manga madura no ar. Você senta e tem vontade de ficar para sempre lá. E
Mãe Sonia cada vez mais bela, generosa, sábia. Muita gente deve muito a ela, em
todo o Brasil. No estrangeiro também.
Nunca fugi, sempre voltei. Nunca dei cabeça, nunca parei de ler sobre
camdomblé e, autorizado por ela, a preparar meus banhos, meus axés. Tudo branco,
tudo do Bem. Quem a conhece a ama muito. Liguei um dia depois de seu aniversário
(no dia, o telefone sempre ocupado, fiquei com ciúme). Mãe Sonia anda cansada,
doente. Batizei minha roseira amarela de Sonia, plantada em 8 de dezembro, dia de
Oxum. Hoje contei sete botões em Sonia. Mas Sonia vai ficar bem. E viver longos
anos, para o bem de quem quer o Bem.
Rora Yêyê ó fí dé rí omon!
O Estado de S. Paulo, 15/10/1995
Entrevisão do trem
que deve passar

Está amanhecendo. Não, talvez esteja anoitecendo. Impossível dizer baseado apenas
nessa luz nem clara nem escura, suspensa na atmosfera, uma luz que não vem de
nada visível, nem de sol nem de lua. Uma luz como essa que costumamos dizer de
“um dia sem luz”. Erradamente, pois embora invisível, indefinida, a luz está lá. Sob
uma luz dessas, ao ar livre, você está sentado.
Não sei se na transição do dia para a noite, da noite para o dia. E nem mesmo se
em algum outro tempo no meio da manhã ou da tarde. No meio da noite, não,
porque seria escuro e essa luz, a do escuro, a da não luz, é reconhecível. Mas ela não
importa, a luz, seja qual for. Nem importa se você está sentado, em pé ou mesmo
deitado. Importa você estar lá. Importa, quero dizer, no que escrevo agora, no que
imagino, e não sei ainda direito o que é.
Você está lá. Há aquela luz à sua volta. Não posso descrever seus traços, nem
mesmo dizer se é homem ou mulher, vejo apenas um vulto. E sei, mas não sei por
que sei, que se trata de um espaço aberto. Como a plataforma de uma estação. Perto
de você há vultos menores, quadrados, retangulares. Parecem malas, bagagens. Sei
que são objetos porque não se movem, enquanto você às vezes dá alguns passos, abre
ou estende os braços.
Imagino então assim: você é alguém que vai viajar para longe, ao amanhecer.
Eu poderia até afirmar isso, e ninguém duvidaria, não só porque sou dono e soberano
de minha própria imaginação, mas porque é exatamente isso o que imaginaria
qualquer um que entrevisse o mesmo que entrevejo. O problema para descrever é
esse: apenas entrevejo.
Apenas entrevendo, continuo a escrever.
Não há mais ninguém nessa estação. Ou por algum motivo não entrevejo os
outros que talvez estejam também lá, apenas você, num zoom seletivo que exclui os
demais. E por se tratar de uma estação, deve haver um trem que não chega, não passa
nem parte. O que passa é apenas o tempo. Sei que passa não porque a luz se
modifique ou aconteça alguma coisa, mas pelos seus pequenos movimentos, um
passo, um braço, que revelam ansiedade e espera.
O que se pode fazer numa situação como essa — mesmo para mim, que deveria
ser o dono dela, mas me recuso — a não ser esperar? Esperamos, todos. O que está lá,
o que conta sobre isso e os que leem sobre isso. Esperamos então. Horas, dias, meses,
anos e anos. Ninguém sabe quanto.
Podemos nos distrair enquanto esperamos, ligar o rádio, olhar pela janela, abrir
a geladeira, mastigar alguma coisa, beber mais água neste dia seco, até mesmo ligar a
TV para entrar noutras histórias, falsas ou verdadeiras, mas onde aconteçam coisas,
em vez de ficarmos parados nesta onde nada acontece desde as primeiras palavras. E
voltar a ela como quem volta a chamar um número de telefone eternamente
ocupado, só para constatar que continua ocupado e apenas para ter a sensação de não
desistir. Desistir não é nobre. E arduamente, não desistimos.
Então acontece. É tão surpreendente que aconteça que pouco importa seja a
única coisa que poderia acontecer. O trem chega e para. Na plataforma você começa
a tentar colocar as bagagens dentro dele. Mas elas não saem do chão. O trem apita, o
trem vai partir. Você percebe que não pode levar nada além de você mesmo. E entra
no trem.
Mas isso que você tenta fazer entrar no trem, e que é o seu corpo, também não
pode entrar. Então você o deixa, deixa o vulto que entrevejo jogado na estação junto
com as bagagens. O trem então parte levando de você algo que nem você nem eu
sequer conseguimos entrever. Outra coisa, talvez nada, porque nada podemos
garantir ter visto partir dentro do trem.
Você não grita nem acorda. Não há terror, mesmo sendo aterrorizante: é assim
que é. E pior ainda, não se trata de um sonho. Começa a amanhecer. Ou a anoitecer.
Ninguém sabe quando passa o trem. Nem para onde vai. E não se leva nada. Isso é
tudo o que sabemos.
O Estado de S. Paulo, 12/11/1995
A cara do Brasil em
Terra estrangeira

Há pelo menos quarenta anos tenho uma paixão compulsiva pelo cinema brasileiro.
Desde as chanchadas no Cine Imperial, em Santiago, passando pela fase pré-Cinema
Novo (inesquecível Odete Lara, até hoje nossa única star, em Mulheres e milhões) até
os tempos do Cinema Novo (acho O padre e a moça, de Joaquim Pedro, o mais belo
filme nacional de todos os tempos). Acompanhei os abismos de Walter Hugo Khouri,
o cinema da Boca, as obras-primas rodrigueanas de Jabor, os últimos suspiros nos
anos 80 (lindos Anjos da noite, de Wilson Barros, Feliz ano velho, de Roberto Gervitz).
Fui corroteirista de Romance, de Sérgio Bianchi; passei por projetos jamais realizados
com Ana Carolina, Ana Maria Magalhães, Ivo Branco. E a quatro mãos, com Wilson
Barros, restou um roteiro pronto e engavetado: Em nenhum lugar. Wilson se foi, ficou
tudo por isso mesmo. A propósito: se alguém se interessar pelo roteiro, dê notícias.
Tudo isso para dizer que sofri como se fosse um amigo o assassinato promovido
pela besta Collor. Mas desde que voltei de viagem ano passado e assisti a Lamarca
(Sérgio Rezende) e Capitalismo selvagem (André Klotzel), uma esperança modesta
começou a pintar. Afinal, Collor foi expulso (mas não punido), as coisas não morrem
e tudo se renova sempre sem parar. Levei um susto maravilhoso com o sucesso
popular de Carlota Joaquina (Carla Camurati), apesar de odiar a grosseria do filme,
vibrei com O quatrilho (Fábio Barreto) e Perfume de gardênia (Guilherme Almeida
Prado), onde até faço uma ponta.
Esta semana tive a confirmação definitiva. O cinema brasileiro voltou, moçada,
voltou com tudo! Terra estrangeira, de Walter Salles Jr. e Daniela Thomas: um filme
dilacerado, vivo, radicalmente contemporâneo em relação não só ao país, mas ao
próprio cinema brasileiro. Walter, de quem a estreia em A grande arte era animadora,
embora pecasse pela ambição e pós-modernidade chatinha (Giulia Gam de prostituta
com jaqueta de grife, waal…). Terra estrangeira não é ambicioso, mas despojado e
competentíssimo no preto e branco pungente, na trilha sonora de José Miguel
Wisnik, em seus atores deslumbrantes, no toque presente da extraordinária Daniela
Thomas. Sangra lucidez. Faz pensar e chorar. Quem não soluçará com Gal Costa
cantando “Vapor barato 70” em contraponto gemido com Fernanda Torres naquela
disparada vertiginosa em direção à Europa e a um futuro talvez morto? E quando
você supõe que isso foi o fim, a sequência final aplica a última punhalada: o violinista
cego, os diamantes do Mal esmagados por pés anônimos. Bravo!, gritei no escuro.
São muitas as marcas de outros cineastas na obra de Walter (afinal, é um
cinéfilo de estirpe): Jim Jarmusch, o Antonioni de Zabriskie Point, sobretudo no final,
um Glauber aqui, Godard ali. Mas há um tom e um estilo absolutamente novos.
Brasileiro e universal, sincronizado com a barbárie do país e do planeta. Grandeza e
sutileza, ao mostrar a vida-cadela dos brasileiros em Portugal. Aliás frente ao navio
naufragado, quando Fernanda diz: “Pobres portugueses, navegarem tanto para
descobrirem… o Brasil”. É a única coisa que não concordo. Fernando Alves Pinto
(excelente ator) deveria replicar: “Pobres brasileiros, esperarem tanto para serem
descobertos por… Portugal”.
Mas isso, sorry, são recaídas desse lusófobo traumatizado. O que importa é este
filme quase apocalíptico, arrancando poesia dos escombros do final de século. A
imigração de O quatrilho e Carlota Joaquina encontra seu reverso e complementação
na emigração de Terra estrangeira. Os três, cada um a sua maneira, revelam um Brasil
finalmente disposto a conhecer e a mostrar sua cara.
E viva Cazuza!
O Estado de S. Paulo, 10/12/1995
Tirando o pó
do velho 1995

Para começar um novo ano, nada melhor do que arrumar gavetas. Jogar fora sem
piedade esses trastes que se acumulam na vida da gente, jornais, revistas velhas,
cartas antigas, objetos quebrados. Podem até ter um certo valor afetivo, mas é inútil
tentar aprisionar o tempo. Só atrasa a vida. Também é excelente para saldar dívidas,
não só pagar contas, mas ligar amigável para aquele ex-amor que nos feriu, visitar a
tia jogada numa clínica etc.
Limpar, desvencilhar-se do velho para deixar entrar o novo. Pois é isso que
vamos fazer hoje. Como esta coluna é bimensal, muito assunto vai ficando para trás,
perguntas dos leitores vão ficando, injustamente, sem resposta.
Sonia de Oxum — Muita gente ligou ou escreveu pedindo o telefone da maravilhosa
babalorixá carioca. Pedi autorização à própria Sonia, ela concordou. Anotem: (021)
204-5684. Fica no Engenho Novo, no Rio, numa rua tranquila, arborizada, serena
como no interior. É fácil chegar lá, e Sonia, sempre gentilíssima, certamente
explicará.
Jardim — Muito sofreu este ano. Depois do inverno medonho, comecei a ficar mal de
saúde, o que culminou em três cirurgias dezembro último (convalesço, pareço Frida
Kahlo, mas ça marche bien). Fiquei impossibilitado de cuidar dele como devia.
Quando saí do hospital, a devastação era dolorosa. Não que meu pai e minha irmã
Claudia não tivessem cuidado dele, mas houve uma seca medonha, com
temperaturas de 40 graus, as formigas enlouqueceram, comeram quase tudo. Até as
roseiras pararam de florir. Como se não bastasse, depois veio um vendaval daqueles
de arrancar jacarandá. Curioso: de todas as minhas flores, só as sempre-vivas
sobreviveram. Fortes, coloridas, aparentemente indestrutivas. Agora as plantas
convalescem, a roseira de Oxalá (Lygia) chegou a dar três rosas no Natal. Aos poucos,
tudo volta à vida. Como eu. Como todos nós em 96, não?
Princesa — Recebi vários exemplares de A pequena princesa, “o livro da minha vida”.
Fico gratíssimo. E informações preciosas: no Brasil, foi publicada somente uma
adaptação. A autora Frances Eliza Hodgson nasceu em Manchester, Inglaterra, em
1849 e emigrou para os Estados Unidos com a família em 1865. Grande e famosa
escritora na época, na Inglaterra está reeditada e consagrada. Não me perguntem por
que não a traduzem no Brasil. Eu mesmo faria isso com prazer. Ah: parece que há um
filme, com Shirley Temple fazendo Sarah Crewe.
Notáveis — “Cuidado, um engano em bronze pode ser um engano eterno”, reagiu
Mário Quintana quando quiseram colocar um busto dele numa praça. Foi o que eu
disse quando José Castello me propôs fazer um daqueles ótimos Encontros Notáveis
dos sábados aqui no Caderno 2. O resultado foi comovente e belíssimo. Castello é o
melhor, e dos poucos, jornalista literário do país. Mas em horas de gravação, nomes,
datas, lugares, são inevitáveis algumas confusões. Eu mesmo já troquei Ibsen por
Pirandello numa crítica teatral… Bem, Castello enganou-se numa longa história
sobre um editor irlandês gângster (Ray Keenoy, da Boulevar Books, que — medo! —
está publicando Ana Cristina César em Londres). Tudo aquilo — pratos do
restaurante L’Écluse, em Camden Town, a livraria Compendium com Dragons na
Vitrine, foi em Londres, jamais em Paris, onde sempre fui tratado como um príncipe.
E como mandei cópias da matéria para lá, fiquei preocupado que meus três editores
franceses honestíssimos (Henry Dougier, da Autrement; André Versaille, da
Complexe; o poeta Christian Bouthemy, da Arcane 17) acabassem sabendo e
resultasse em confusão. Mas a matéria foi a mais linda da minha vida, e Castello, não
por ter sido comigo, é um expert respeitável e de nível internacional nessa área.
Pedido — Aos leitores que me enviam cartas lindas: leio todas, mas não tenho tempo
para responder. E imploro: pelo amor de Deus, não me mandem originais inéditos
para opinar! Preciso dedicar-me ao meu próprio texto. Bom ano-bom para todos nós
e para Gaia.
O Estado de S. Paulo, 7/1/1996
Cor-de-rosa,
uma ova!

Marianne Faithfull chega quietinha, carregando um forte sotaque de cabaré


Cuidado, meu amigo, vai doer. Se você é daqueles que acham que a vida é um mar
de rosas cor-de-rosa, mantenha distância. Ou vá ouvir a Xuxa. Se você também não
quer ver maculada aquela imagem da moça Marianne Faithfull, musa da swingin’
London nos anos 60, groupie dos Rolling Stones que passou na cara todos, estrelou
filmes com Alain Delon e foi consagrada pela mídia da época como a garota símbolo
de ousadia & liberação — não, melhor não ouvir este dilacerante Strange weather
(WEA).
Mas, se você não tem medo de descobrir um dos discos mais bonitos lançados
no Brasil este ano (e por que desespero, amargura, tristeza, desamor, solidão, não
podem ser belos? em pleno 1987?), caia de boca no blues de Marianne. Depois de
uma tentativa de suicídio, envolvimentos com a polícia por causa de drogas (nada
soft: heroína no duro) e pântanos de álcool, ela salvou-se não pela conversão a
alguma seita brega, mas pela música. Sim, a arte salva. Ou consola. Ou torna pelo
menos suportável.
A foto em preto e branco da capa mostra um rosto ainda jovem, mas meio
devastado (lindamente devastado). Com esse rosto, Marianne Faithfull joga sua voz
grave, metálica, de negra velha, em onze canções de clima pesado de cabaré. Lembra
às vezes Lotte Lenya, mais frequente a deusa Marlene Dietrich. Uma Dietrich que
tivesse atravessado aqueles velhos bons tempos de rock, sexo e drogas para chegar,
depois do punk, ao som de New Orleans, onde começou o blues. Fumaça de muitos
cigarros, bebidas fortes — e a certeza de que “desde o meu nascimento eu tenho sido
uma estranha neste mundo” (em “A stranger on earth”, regravação de um clássico de
Dinah Washington, que fecha o disco).
Cheia de fé, Faithfull relembra Billie Holiday em “Yesterday”, passeia sem
acompanhamento algum pela capela de “Aint’ goin’ down to the well no more”,
pelo hino religioso “Sign of judgement” revisa Bob Dylan (em “I’II keep it with
mine”) chega à sarjeta mais contemporânea de Tom Waits (um dos amigos que
ajudaram a emergir da rebordosa, na faixa-título). E chega ao paroxismo, ao requinte
(da crueldade e do talento, também) a regravar “As tears go by”, aquele antigo
sucesso de Mick Jagger, Keith Richards e dela mesmo longínquos dezessete anos.
Dói, e dói muito ver o tempo assim, tão nítida e implacavelmente perdido.
Com músicos impecáveis — segundo ela mesma, “os melhores de Nova York e
alguns dos melhores do mundo” —, entre eles o baixista Fernando Saunders e o
baterista J. T. Lewis, integrantes da banda de Lou Reed, a corajosa Faithfull
conseguiu os cúmplices e o clima exato para encarar de frente a própria amargura.
Claro, sonhos quebrados sempre doem. Mas talvez seja mais saudável contemplar os
cacos e tentar compreender o quebra-cabeça do que comprar uma passagem para a
Disneylândia.
O Estado de S. Paulo, anos 1980
Muito além do bordô

Semana passada fui a Porto Alegre, tchê, apanhar energias gauchescas. Porque
Sampa é vampira, você sabe. E Portinho sempre revigora, por mais decadente, feia e
semidestruída que esteja. À beira de agosto: frio tipo navalha na alma, paredes
mofando de umidade.
Assim como uma velhice precoce baixando na gente, vontade de ficar sentado
ao sol, feito planta. Úmido e humilde, querendo apenas um pouco de calor. Nem
humano — que pretensão! Calor do sol mesmo, na pele.
Matei saudade virando noite com Denise Barella, Eliane Steinmetz, Ivan Mattos
e Otávio Punk (os mais darks, lógico, que não me dou com gentinha), ouvindo as
neogauchices de Eliane. Fica tão falso dizer Eliane, porque na verdade ela é “A
Gorda”. Uma grande atriz, linda, loira, mocinha e — pasmem — magra. Gorda é a
maior autoridade em neogauchês daquela paróquia. Que tal: porém bordô? Porém-
bordô é quando algo ou alguém é quase legal. Quase-quase chega lá, mas vacila no
caminho. Não é de quinta, mas também não será nunca nenhuma maravilha. Porque
falta tchã, falta crà, falta pã — percebe? Exemplo: andei lendo Coiote, de Roberto
Freire. Louquíssimo, superinteressante e tal. Porém bordô…
Outra da Gorda: se você obceca num papo meio depressivo, tipo meu-amor-me-
abandonou, não-tenho-onde-morar ou traumas-da-mais-terna-infância, ela implora:
“Pelo amor de Deus, não me mostra as tuas feridas!” Eu tava que era uma feridama
só… Então fiquei quieto. E ri. Depois de saudade de Porto Alegre, morrendo de
saudade de Porto Alegre, entende? Porque a Portinho de lá — real, objetiva — existe
mais no meu coração bordô do que lá mesmo, e ela não tem culpa. Com frio e sede,
voltei.
Morto de saudade de Porto, fui parar no Espaço Off. E dou de cara com o
melhor do Sul: Annie Perec (foto) e seus teclados comandados pelo Ricardo Severo.
Annie é uma cantora. Será mesmo uma cantora? Não, é mais. Primeiro, pensei:
alguma coisa entre Patricio Bisso e Cida Moreira, temperada pela maldição de
Cláudia Wonder. Mesmo assim, não define. Annie me assustou pelo contemporâneo
“tem sarcasmo, tem rua, tem aquele chamado tipo ‘vem pra barra pesada, meu!’” que
La Wonder gosta. Uma plateia pequena, arrebatada, antenada e arrepiada, delirava
com os versos de Severo para Antígona, um dos retratos mais perfeitos que conheço
do psicótico ego contemporâneo. E quando digo contemporâneo quero dizer agora,
já, neste minuto, aqui — que medo, hein?
Saí do Off juntando coisas na cabeça. Tipo assim: o contemporâneo é depressão
inevitável, mas com autocrítica e overdoses de cinismo e sarcasmo em cima. Nada do
que é medonho me é estranho — a mim, que tenho o coração batendo neste fim de
século pós-Chernobyl.
Isso a Gorda fala, e Porto Alegre é, e Annie Perec canta e incorpora através dos
versos de Severo. E mostra, sim, as feridas todas. Mas rolando de rir delas. Muito
além do bordô. Porque, convenhamos, fica no mínimo ingênuo querer ser feliz &
saudável & rosadinho a esta altura do milênio. Annie e Severo inauguraram o
hilário-dilacerado disto que eu e você estamos vivendo AGORA, metidos até o
pescoço neste instante de boldo com chantili. Ser capaz de rir da própria dor (e
daquela da humanidade) é bênção.
Em tempo: Annie estreou ontem no Madame Satã, enquanto o Espaço Off —
ontem também — começou a ser ocupado por mais uma gauchinha alucinante, Laura
Finokiaro. Se você for conferir o trabalho das duas, de repente até pode compreender
por que eu falo tanto nesses gaúchos.
O Estado de S. Paulo, anos 1980
Clarice Lispector ress...
(sem título completo e sem data)

Cronista do Caderno 2 resgata correspondência da escritora enviada em 1947 para uma


grande amiga
“Autora busca os prazeres da existência e faz apologia do respeito a si mesmo”

Puro mistério. Como ela gostava. Quase não há fatos nem nomes. Uma amiga
— Ana Amaral, psicanalista também chegada em mistérios — veio me visitar. Lá
pelas tantas, muito natural, disse que tinha uma surpresa. E tirou da bolsa uma carta
inédita de Clarice Lispector. Fiz perguntas. Ana foi vaga, uma amiga de uma amiga
encontrou entre velhos guardados. Encantado e intrigado, fiquei com a carta nas
mãos sem saber o que fazer. Porque é linda resolvi trazê-la a público. Como um
presente.
A carta é datilografada. Inclusive, sua assinatura (o que era hábito de Clarice)
não tem o nome da destinatária (apenas “querida”), nem nada que possa comprovar
sua autenticidade. Exceto um detalhe: o estilo. Qualquer leitor de Clarice
imediatamente reconhecerá nestas linhas o inconfundível estilo-não-estilo da
escritora. Sabe-se também que, em 1947, após uma temporada de quatro anos com o
marido diplomata em Berna, na Suíça (onde escreveu A cidade sitiada ou O lustre, não
estou bem certo), ela voltou ao Brasil. Tinha cerca de vinte e cinco anos. Mas esse
texto belíssimo, cheio de humanidade e sabedoria, é de alguém sem idade,
atemporal, que se investiga com intensidade quase impiedosa, como Clarice sempre
fez. E tudo isso me faz pensar, melancólico, que desde a sua morte, em 1977,
ninguém se atreveu a escrever uma biografia de Clarice Lispector, nem se dispôs a
recolher sua abundante correspondência.
*
“Berna, 2 de janeiro de 1947
Querida,

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie
de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso —
nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como
explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que
é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos
outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito a si mesma e o
respeito às suas próprias necessidades — depois disso fica-se um pouco um trapo.
Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências
minhas e de outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a
realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou
agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, ou falta
de caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas
espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme
instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar.
Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me
resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um
touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu… em que pese a dura
comparação… Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas
e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões — cortei em mim a forma que poderia
fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você
nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que
me leve de volta, só a ideia de ver você e de retomar um pouco minha vida — que
não era maravilhosa mas era uma vida — eu me transforme inteiramente.
Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse, e me perguntou:
‘Você era muito diferente, não era?’ Ela disse que me achava ardente e vibrante, e
que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou
então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que
eu me movo com lassidão de mulher de cinquenta anos. Tudo isso você não vai ver
nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude
deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto
com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado.
Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você — respeite sobretudo o que você
imagina que é ruim em você — pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma
pessoa perfeita — não copie uma pessoa ideal, copie você mesma — é esse o único
meio de viver.
Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por
covardia — será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna
não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o
que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o
que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você
acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu
saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a
comodidade de alma.

Tua

Clarice”
Por aquelas escadas
subiu feito uma diva

Foi mesmo amor à primeira vista. Naquela manhã de 1982, pelas escadas que
levavam à “Nau dos Insensatos” — como Caio Graco batizara a redação do Leia
Livros, um mezanino da antiga editora Brasiliense na General Jardim, plena Boca do
Lixo em São Paulo — por aquelas escadas de madeira subiu Ana C. feito uma diva.
Linda, loura, pescoço de Audrey Hepburn mas “certo ar de Mia Farrow”, como ela
mesma se autorretratou em um poema, um único brinco indiano na orelha esquerda.
Nervosa, irônica, crispada, inteligentíssima. Atenta demais, quem sabe?
Talvez tenha sido amor correspondido também, pois através do correio
imediatamente começamos a nos escrever. Os meus livros, os dela, editados
artesanalmente por Heloisa Buarque de Hollanda, traduções, artigos para o velho e
bom Leia, contos, poemas. Ana C. em sampa em fim de semana fin-de-siècle, com
Reinaldo Moraes e Maria Emília Bender íamos a restaurantes japoneses (ela adorava
saquê), ao Spazio Pirandello, Frevinho, o antigo Longchamps do grande balcão anos
50 e falávamos, falávamos sem parar.
As cartas ficaram insuficientes, vieram os interurbanos — ela usando a Rede
Globo, no Rio, onde trabalhava; eu a Brasiliense, em São Paulo. À noite, quando
começou a longa crise, outros telefonemas em desespero: “Me sinto emparedada”,
repetia sempre. Um pouco por ela, mudei para o Rio, para o Hotel Santa Teresa, no
alto do morro. A crise continuava. Certa vez, no apartamento de nossa amiga
astróloga Graça Medeiros, segurei-a na janela à beira do salto. Quase bati nela.
Noutra, segurei-a tentando jogar-se em frente aos automóveis da Gávea. Ela quase
me bateu. Não, nunca fomos amantes: nossas praias eram outras, se é que me
entendem. Durante quase um ano, ela forjou suicídios cotidianos ao mesmo tempo
sinceros e fraudulentos.
A última vez que a vi foi numa noite de setembro, quando eu completava trinta
e cinco anos. Graça conseguiu levá-la até o alto de Santa Teresa e, por mais de duas
horas, Ana C. não disse nada. Lerda, concentrada, apenas tocava, um por um, todos
os objetos do meu quarto. E me olhava. Profunda, atentíssima, remota. Parecia uma
despedida. Pouco depois tentou o suicídio pra valer e foi internada numa clínica
inacessível, para onde liguei tentando falar com ela e a psicanalista recusou-se,
dizendo que “os amigos eram os principais culpados”. Seríamos? Mas logo nós, que a
amávamos tanto, seríamos assim uns love killers?
Em outubro vim a Porto Alegre lançar o meu Triângulo das águas, muito
influenciado por ela. Ao entardecer de um começo de novembro, nossa amiga Maria
Clara Jorge ligou do Rio dizendo exatamente: “Caio F., a Ana C. conseguiu”.
Surpresa nenhuma, havia um ano ela jogava aquele xadrez bergmaníaco com a
morte. Sabia que era cedo demais; sabia que viraria mito; sabia que, mais que uma
atitude existencial, era uma atitude literária. Mas ousou. Senti dor e raiva por ela nos
ter abandonado tão brutalmente no meio do caminho, deixando aquela sensação de
que poderíamos ter feito alguma coisa. Tão arrogantes: quem tem, afinal, o poder de
salvar o outro de seus próprios abismos?
Não fomos felizes para sempre. Nem infelizes. Já a perdoei, já me perdoei. Fica
esta dor de saber que toda a literatura brasileira perdeu o prenúncio de sua maior
voz poética contemporânea. Nossa Sylvia Plath, nossa Zelda Fitzgerald. Fugaz como
elas, doida, bela, chique, insuportável, irresistível. Ficou ainda um buraco, um vácuo,
solavanco na continuidade. Cartas, poemas. Vestígios, souvenirs. Palavras, nossa asa
e arma. Às vezes mortífera, sabes?
O Estado de S. Paulo, 1995
Caio Fernando Abreu nasceu em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em
1948, e morreu em Porto Alegre em 1996. Nasceu escritor, literalmente: ainda
menino escreveu o primeiro conto e aos 19 anos produziu o romance Limite branco.
Em 1968 mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar na grande imprensa.
Seu talento de escritor foi logo reconhecido com o prêmio da União Brasileira de
Escritores a seu primeiro livro de contos, Inventário do ir-remediável.
Na década de 1970 morou ainda no Rio de Janeiro, em Estocolmo e em Londres.
Voltou a São Paulo em 1981, onde atuou como jornalista, escritor e editor de livros.
De 1986 a 1989 e de 1992 a 1996 escreveu as crônicas de que parcela essencial
viria a constituir os livros Pequenas epifanias, publicado originalmente em 1996,
poucos meses depois de sua morte, e A vida gritando nos cantos, de 2012.
Caio Fernando Abreu lançou onze livros, tendo sido premiado duas vezes com
o Jabuti da Câmara Brasileira do Livro (em 1984 e 1989), e seus textos foram
traduzidos para diversas línguas. Sua obra está sendo relançada pela Editora Nova
Fronteira.
EDITORAS RESPONSÁVEIS

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Maria Cristina Antonio Jeronimo

PRODUÇÃO
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PRODUÇÃO EDITORIAL
Ingrediente Secreto e Estúdio Sabiá

REVISÃO
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PRODUÇÃO DE EBOOK
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