Você está na página 1de 162

-

SIGNIFICACAO

REVISTA BRASILEIRA DE SEMIÓTlCA
N.os 8 e 9 - OUTUBRO DE 1990

r
SIGNIFICAÇAO -
Revista Brasileira de Semiótica
Outubro de 1990
Números Se 9

Comissão editorial: Eduardo Peiiuela Canizal


Leonilda Ranzani de Luca
José Luiz Fiorin
Paulo Eduardo Lopes

Jornalista responsável: Geraldo Carlos do Nascimento

SIGNIFICAÇÃO -- Revista Brasileira de Semiótica RegistronQ 014811 Publicação


do Centro de Estudos Semióticos - CES - Rua Pamplona, 1365, casa 9,
CEP 01405 - São Paulo SP Brasil
Solicita-se permuta - On demande I'échange - Exchange requested - Rogamos
canje

CENTRO DE ESTUDOS SEMIÓTICOS - C.E.S_


Diretoria (biênio 1989-1990):
Coordenadora: Tieko Yamaguchi Miyazaki
Secretário Geral: Arnaldo Cortina
Tesoureiro: Paulo Eduardo Lopes
Agradecimentos:

Ao Prol.Dr.José Ênto Casalec/chi,


diretor da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, campus de Araraquara,
sem cuja colaboração este número não teria sido possível.

A Leonilda Ranzani de Luca e


Luiz Gonzaga de Luca
pela diagramação, editoração eletrônica e artes-finais.

A Edna M.Fernandes dos Santos Nascimento e


Geraldo Carlos do Nascimento
pela revisão geral deste número.
SIGNIFICAÇÃO
REVISTA BRASILEIRA DE SEMIÓTICA -outubro de 19901 números 8 e 9

5 Indagações sobre os fundamentos da linguagem


Ignácio Assis Silva

17 A figurativização na publicidade
Lconilda Ranzani de Luca

37 Função poética e televisão


Anna Maria Balogh

49 Por um modelo unificado da cognição discursiva


Paulo Eduardo Lopes

63 A intertextualidade conotada
Eduardo Pcfiuela Cafiizal

77 Os sublimes duelos amorosos


Flor Marlene E. Lopes

85 A intertextualidade em Carlota/Amorosidade
Geraldo Carlos do Nascimento

91 Sobre a tipologia dos discursos


José Luiz Fiorin

99 A sanção de toleima: «Marquesa, porque eu serei Marquês»


Maria Angélica Seabra Rodrigues Martins

109 Análise do conto «Um espinho de marfim» sob a perspectiva


da teoria greimasiana
Maria do Carmo Almeida Correa

129 Verbo/imagem - Leitura de «Sargento Getúlim), livro e filme


Alécio Rossi Filho

147 Poesia latina: anotações lingüísticas e fonoestilísticas


Alceu Dias Lima
Indagações Sobre os
Fundamentos da Linguagem

Ignacio Assis Silva

1. o Dicionário de Semiótica I, de Greimas c Courtés, acostumou-nos a


pensar na figurativização como um problema de semiótica discursiva. Partindo
de uma formulação genérica do conceito como as mil maneiras de contar como
um sujeito disjunto de seu objeto-valor passa a conjunto ou vice-versa, os
Autores acrescentam que a figurativização:

- transforma processos em ações,


- confere contornos figurativos ao sujeito que, com isso,
se toma um ator (sofre ancoragem espacio-tcmporal).

Isso se faz em dois patamares:

- o da figuração,
- o da iconização
(Ver Greimas e Courtés, s/d: 185-187)

o Dicionário de Semiótica 11 (Greimas e Courtés, 1986), no verbete


"figuratividade", vai insistir na diferença cntrefiguratividade cfigurativização.
Distinguir-se-âo, assim, procedimentos discursivos que produzem isotopias
figurativas, cuja tarefa mais importante "não ésuscitar impressões referenciais,
mas, perdendo todo contato com a referenciação, estruturar de maneira
bastante abstrata a significação" (1986:91), daqueles procedimentos discursi-
vos que explicam como as figuras, entramando-se, produzem o efeito de sentido
realidade. Os primeiros constituem uma trama figurativa elementar (um esteno-
grama) que estrutura o nível profundo do discurso. São estudados pela semân-
tica fundamental da Gramática Profunda. Já os segundos constituem a figura-

SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 . Nº 8 e 9
5
IGNACIO ASSIS SILVA

tivização propriamente dita e serão objeto de estudo da Gramática Discursiva


(Semântica).

É à luz dessas distinções que procuraremos repensar a questão da


metamorfose como um lugar privilegiado para as indagações sobre os funda-
mentos da linguagem. -

2. Três exemplos típicos de metamorfoses

2.1. Da plenitude figurativa ao mínimo figurativo: "As metamorfoses de


um touro", de Picasso.

o texto picassiano mostra-nos, de início, um touro soberbo, roliço,


bojudo, que, vai, aos poucos, transformando-se até restar apenas um touro-
linha, um touro-estenograma, um touro-fora-de-todo-e-qualquer-contexto.

Metamorfose anti-ovidiana, o texto de Picasso suprime, tira, em vez de


acrescentar. Uma verdadeira caminhada do "touro" à "tauridade" convicente-
mente acentuada pelas chamativas expressões que balizam o texto-comentário
de Hélêne Parmclin:

- tirar em vez de por,


- decompor o touro,
- sobrar menos touro,
- parecer uma formiga,
- suprimir, suprimir,
- terminar por onde normalmente deveria começar,
- pinturas que pareccm não ter nada, mas têm tudo,
- touro fora de todo e qualquer contexto

2.2. Do mínimo figurativo à plenitude figurativa: "A transformação de


Níobc em pedra", de Ovídio:

"Tendo perdido toda sua família, Niobe cai sentada no meio dos
corpos inanimados do marido e de seus filhos e filhas, enrigescida
pela dor. O vento não agita sequer um fio de cabelo; nem uma gota
de sangue colore suas faces; os olhos quedam imóveis 110 semblante

6 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990· N' B e9


INDAGAÇÕES SOBRE OS FUNDAMENTOS DA LINGUAGEM

'( -.-- _--:;...... "'-./


\\, ~,( cf'
\
...
-..........
'<, /' <, ,

/,\, ,
\\ ,-""
f>''-',--'
.> \ ,
~
v
\

A
/

{
'

"I
,\
\ I

r,

.. ,~- '--------

~ç--:(~
As Metamorfoses de um Touro - Pablo Picasso .

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 . N' 8 9


9
7
IGNACIO ASSIS SILVA

desolado; nenhum traço de vida anima o seu rosto; a própria língua


se. congela no interior (da boca) junto ao duro palato; cessa todo
movimento em suas veias; o pescoço não pode mais dobrar-se; Os
braços não podem mais mover-se, nem os pés conseguem avançar;
até nas suas entranhas, tudo é pedra. Mas Níobe chora" (Metamor-
phoses I: 303-312).

Ao contrário do que vimos acontecer no texto picassiano, Ovídio


destaca, de início, um traço que individua o objeto, estabelecendo assim um
arcabouço figurativo elementar, como a rigidez que invade o corpo de N íobe
e, a seguir, vai acrescentando traços que denotam qualidades físicas c espaciais,
pelas quais se exprimem os sintomas de transformação:

- o vento que não move os cabelos,


- a cor das faces que desaparece,
- os olhos que se imobilizam,
- o pescoço que não se dobra,
- as mãos inertes,
- os pés que não avançam,
- etc.

Em seu artigo "Alcuni traui strutturali delle Metamorfosi di Ovidio ", J.


Seegelov (1962: 113) mostra que a metamorfose ovidiana está embasada no
trabalho com adjetivos que denotam qualidades como a curvatura, o vazio, o
estado líquido ou sólido, o estado de tensão do objeto, e assim por diante.
Quando escolhe um adjetivo com que isola a qualidade de um objeto, esse
adjetivo já contém a indicação do caminho que pode levá-lo a transformar-se em
outro. Assim, quando se diz de uma pedra que é "dura" e "informe", isso já
sugere a existência de outros objetos que sãot'moles" e "dotados de forma". O
efeito da metamorfose reside, todo, no fato de que uma coisa é diferente da outra,
mas sendo comensurável a ela, presta-se facilmente à transformação.

2.3. Conflitos actanciais e temáticos: "A metamorfose de Gregório


Sarnsa", de Kafka.

- Das mudanças no corpo:

8 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBR0/1990· Nº 8 e 9
INDAGAÇÕES SOBRE OS FUNDAMENTOS DA LINGUAGEM

"Certa manhã, quando Gregório Samsa acordou, após um sono


intranquilo, achou-se em sua cama convertido em monstruoso inseto.
Estava deitado sobre a dura carapaça de suas costas e, ao erguer um
pouco a cabeça, viu afigura convexa de seu ventre escuro, sulcado
por pronunciadas ondulações, cuja proeminências a colcha mal
podia aguentar, pois estava visivelmente a ponto de escorregar ate ao
solo. Inúmeras patas, lamentavelmente esquálidas em comparação
com a grossura comum de suas pernas, ofereciam a seus olhos o
espetáculo de uma agitação sem consistência ". (Kafka, 1976: 9),

- Às mudanças nas relações actoriais:

o texto kafkiano enfatiza os conflitos actanciais (mudanças na estrutura


modal dos Actantes) e temáticos (mudanças na estrutura dos papéis temáticos
desencadeadas pelas transformações figurativas. Por exemplo: provedor/provi-
do; protetor/protegido; perseguidor/perseguido, etc.).

3. Metamorfose e pensamento mítico: a adesão ao aspecto


concreto e particular das coisas

Emst Cassirer (1945: 126) diz que "Si existe algún rasgo característico
y sobresaliente dei mundo mítico, alguna ley que lo gobierna, es ésta de la
metamorfosis ", para acrescentar, na página seguinte, que "Lo que caracteriza
a la 111 entalidad primitiva no es su lógica sino su sentimiento general dela vida ".

É sob esse prisma que desejamos focalizar as metamorfoses picassiana


e ovidiana. Ambas revelam a mesma orientação para os aspectos concretos.
Mutatis mutandis, a caminhada picassiana assemelha-se ao percurso desenvol-
vido por Greimas (1966: 43 e seg.) na aná Iise sêmica de "ca beça". Picasso chega
ao "touro-linha", Greimas à "cabeça-extremidade superativa", Como Ovídio,
isolam traços que denotam qualidades físicas e espaciais, chegando ao que se
poderia chamar de substrato figurativo ou tramafigurativa elementar éoobjeto.
A associação aqui é inevitável dessa concepção às percepções visuais esquema-
tizadas que, segundo Raymound Ruyer, permitem às aves saber de uma outra
que se aproxima se é inimiga ou amiga, com base nas oposições:

pescoço comprido I cauda curta


vs.
pescoço curto I cauda comprida

(Cf.Greimas 1966: 64)

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 . Nº 8 e 9 9
IGNACIO ASSIS SILVA

A mesma orientação para o concreto é sugestivamente ilustrada pelo


papel sagrado do rei na concepção indo-européia:

"Em rex - diz Benveniste (1969: 9) - importa ver menos o soberano do


que aquele que traça a linha. o caminho a seguir. que encarna ao mesmo tempo
o que é direito: a noção concreta enunciada pela raiz * reg- está muito mais viva
em rex, na origem, do que nós pensamos" (grifos nossos).

Ainda a respeito dessa adesão ao concreto que resulta do sentimento geral


da vida, vemos como fontes ricas de inspiração as considerações de Cassirer
(1972: 113)sobre o princípio de equivalência que leva a linguagem a tratar como
iguais conteúdos que, do ponto de vista da reflexão analítica e científica, se nos
afiguram altamente diversificados. Depois de citar Preuss (Die geistige Kultur
derNaturvolker, Leipzig, 1914), segundo o qual o índio cora, de um modo que,
à primeira vista nos parece inteiramente absurdo, coloca as mariposas entre os
pássaros, Cassirer lembra que nossas próprias línguas atuais continuam criando,
sem parar, Semelhantes coordenações, que contradizem nossos conceitos em-
píricos e científicos das espécies e classes, como acontece, por exemplo, nas
línguas germânicas, onde a mariposa é costumeiramente chamada de "pássaro
manteiga" ou "mosca-manteiga" (Buitervogel e Butterfliege em alemão; boter-
vlieg, em holandês; butterfly, em inglês. (Cf. Cassirer 1972: 113). Tais denomi-
nações realçam como decisivo e essencial o momento de "vôo", o mesmo
momento que o índio cora isola na denominação da mariposa.

o "touro-linha" de Picasso, a "cabeça-extremidade-primeira", da análi-


se greimasiana, a qualidade física e espacial isolada por Ovídio, as percepções
visuais esquematizadas das aves de Ruyer, a "mariposa-vôo", do índio cora ou
o pássaro-vôo da eseultura de Brancusi (1), todos mostram que o substrato
figurativo do objeto é feito de figuras.do conteúdo que correspondem a figuras
do plano de expressão de scmióticas não linguísticas, as quais enformam a
macrossemiótica do Mundo Natural (2). São traçosexteroceptivos, cosmológicos
engendrados pela semiotização de traços da relação do homem com o mundo
natural. Desse ponto de vista, representam, como quer Greimas (1966: 65), a
contribuição do mundo exterior ao nascimento do sentido. Entendendo como
enérgeia e não como érgon a relação que une as grandes semióticas em que se
articula a produção de sentido (a Língua Natural e o Mundo Natural), o
programa ovidiano In noua mutatas dicere formas corpora (Met.l: 1-2) surge
como um empreendimento metalinguístico (dicere) de explicação do sentido do
homem no mundo:

10 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 . N· 8 e9
INDAGAÇÕES SOBRE OS FUNDAMENTOS DA LINGUAGEM

Língua Natural Enérgeia Mundo Natural

traços conceptuais, traços perceptuais,

noológicos Metamorfose cosmológicos

In noua corpora <-- mutatas <- formas

4. Utpictura poesis (Horácio): A figuratividade como um


patamar comum a diferentes semióticas

Heródoto disse que Homero e Hesíodo deram aos deuses gregos seus
nomes e esboçaram suas figuras. Cassicr - que nos dá essa infonnação--,
acrescenta: "La obra comenzada por la poesía griega fue completada por la
escultura: nos es difícil pensar en el Zeus olímpico sin representárnoslo en la
forma que le presto Fidias", (1945: 150). A arte dos fazedores de imagens
(escultura e pintura) e a arte da palavra (poesia) surgiamjá para os gregos como
dotadas de um embasamento comum, não obstante fossem postas numa relação
de complementaridade: a poesia esboçava as figuras dos deuses, o seu perfil,
enquanto a pintura e sobretudo a escultura lhes davam a plenitude figurativa.
É que os fazedores de imagem gregos estavam muito mais preocupados com
o eiconopoiein, com a figurativização, do que com a figurarividade.

Hoje, ao retomarem a problemática lapidarmente sintetizada na fórmula


horaciana, os semioticistas, de modo especial os visualistas, concentram sua
atenção na figuratividade, que concebem como um patamar comum às diferen-
tes linguagens, situável na camada fundamental do percurso gerativo: "As
isotopias figurativas podem não apenas suscitar impressões referenciais, mas,
perdendo todo contato com a referenciação, podem igualmente estruturar de
maneira bastante abstrata a significação e organizar o nível profundo do
discurso, constituindo aí uma linguagem figurativa de tipo metassemiático "(1.-
M. Floch, in Greimas e Courtés 1986: 91). Vemos assim as indagações do
semioticista convergirem para um tipo de preocupação semelhante àquela que
marcou os principais momentos da História da Arte Moderna. Realizam um
percurso como a da metamorfose picassiana que vai do figurativo, tal como se

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBAO/1990 - Nº B e 9 11
IGNACIO ASSIS SILVA

Bird In Space (1919)


de Constantin Brancusi

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N' 889


12
INDAGAÇÕES SOBRE OS FUNDAMENTOS DA LINGUAGEM

manifesta na superfície discursiva, onde provoca o efeito de sentido de aproxi-


mação do real, de iconização, em direção ao não-figurativo, ou mais precisa-
mente, à figuratividade. Uma caminhada que vai desreferencializando o discur-
so para provocar o efeito de sentido de desreferenciação do signo em relação ao
objeto representado. O que vemos é um suprimir, um tirar ou, como gostam de
dizer os semioticistas, uma evacuação do sentido. Para quê?

Para tomar cada vez mais cheio. Como? Com o quê?

Desreferenciando o sígnico, dcsadensando-o para aumentar a incidência


do simbólico.

Picasso queria "o mais real do que o real" e produziu "pinturas que
parecem não ter nada, mas têm tudo". Renê Passeron, comentando a descons-
trução construtivista da arte cubista, diz que ela está marcada por "uma vontade
de infrassistema" (1970: 161 e 162).

O árduo trabalho de (rejinvcnção da pintura empreendido pelo poeta-


pintor Hcnri Michaux quer chegar a "formações insignificantes", a signos
destituídos de passado e de sentidos prévios. O coroamento de todo esse esforço
é "um magro grafismo informe, sem outra espessura que a de uma linha
esticada em direção a nada, uma pequena célula de agitação e sobressalto"
(Max Loreau, 1980: 39). O resultado dessa desmontagem do sígnico o seué

"hornme-en-fil", homem-barbante, homem-linha. "Que não é nada. Sem


significação, nem forma, é estranho aos objetos, está aquém do conceito ". (Cf.
Loreau: 1980: 40). Mas como tal que ele bem o signo mínimo de que Michaux
é é

precisa: sendo algo completamente diferente de uma imagem ou de uma


representação, éesse homem-linha que é guindado por Michaux à condição de
um "eu" produtor de espaço: "Desde 1942, o homem-linha surge COI/IO o núcleo
emissor do espaço em torno do qual tudo acontecerá. Homem tênue, de
reduzida aparência, encolhido ao extremo, que se resume a quase nada para
subtrair-se ao Outro e que, esvaziando, sefa; eu - em tudo e por tudo, um vivo
jato de energia; [...j o grau mais elementar de existência no mundo, o
irredutível nada que é tudo o que resta em mim quando o Outro foi expulso
(Loreau: 1980: 39). É dele que se valerá Michaux como um elemento capaz de
produzir o mundo: "à força de secretar e mimar o espaço mais elementar,
aquilo que, de início, não era senão energia vazia - nada - acaba sendo o
ligamento universal" (Loreau, 1980: 40).

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 . N2B e 9 13


IGNACIO ASSIS SILVA

É curioso! Este homem-linha tão perto de nós, que tão bem nos resume,
lembra um outro homem tão longe de nós no tempo: aquele que traça a linha, o
rei indo-europeu evocado por Benveniste: ambos põem em jogo forças que,
transformando a aparência em sua origem, fazem surgir o espaço. Executam um
fazer mágico que recorta, um a tela, outro a terra, inaugurando, nesse gesto
radical, a emergência do mundo do sentido.

NOTAS:

(1°) Insistimos nos exemplos de elaboração lingüística comentados por


Cassirer, porque vemos aí um bom ponto de partida para entender o processo de
elaboração da metáfora mítica que atua nos momentos mais marcantes da
produção plástica moderna. É o que, a nosso ver, acontece com o Pássaro no
espaço de Constantin Brancusi (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque):
numa caminhada sob vários aspectos semelhante à de Picasso, ele chega a uma
concepção escultórica extremamente despojada que também isola no pássaro o
"momento do vôo" como decisivo e essencial.

(2°) "O mundo natural, da mesmaforma que as línguas naturais, não deve
ser considerado como uma semiôtica particular, mas antes como lugar de
elaboração e de exercício de múltiplas semiôticas. Quando muito, supondo-se
a existência de um certo número de propriedades comuns a todas essas
semiôticas, poder-se-ia tratá-las como uma macrossemiôtica .. (Greimas, s/d:
292). Nesse mesmo verbete, os Autores esclarecem que o qualificativo natural,
empregado para sublinhar o paralelismo do mundo natural com as línguas
naturais, serve para acentuar que o indíviduo se integra progressivamente -
pela aprendizagem - num mundo significante feito ao mesmo tempo de
"natureza" e de "cultura". A natureza não é um referente neutro, mas fortemente
culturalizado (Cf. Grcimas e Courtés, s/d: 291).

TRABALHOS CITADOS:

1- BENVENISTE, É. (1969) - Le vocabulalrc dcs instituitions


indocuro curopcénncs. Paris: Ed. de Minuit.

2- CASSIRER, E. (1945) - Antropologia lilosófica. Trad. do


alemão. México: F.C.E.
3- CASSIRER, E. (1972) - Linguagem c mito. Trad. do alemão.
São Paulo: Perspectiva.

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N' 8 e 9


14
INDAGAÇÕES SOBRE OS FUNDAMENTOS DA LINGUAGEM

4- GREIMAS, A.l. (1966) - Sêmantique structurale. Paris: Larousse.


5- GREIMAS & COURTÉS (s/d) - Dicionário de semíôtíca. Trad.
São Paulo: Cultrix (A edição é de 1979).

6- GREIMAS & COURTÉS (Coord.) (1986) - Sémiotiquc.


Dictionnaire raisonné de la théorie du langage. Tome 2. Paris:
Hachette.
7- KAFKA, F. (1976) - A metamorfose. Trad. do alemão. São Paulo:
Clube do Livro.
8- LOREAU, Max (1980) - 'La poésie, la peinture etle fondement
du Iangage (H. Michaux)', in: Loreau, M. (1980) - La peinture
à I'oeuvre et I'énigme du corps, Paris: Gallimard

9- OVIDE - Les métamorphoses. Texte établi et traduit par G. Lafaye.


Paris: Lcs Belles Lcttres, 1957.
10- PASSERON, R. (1970) - L'Oeuvre picturale et les fonctions
de Papparence. Paris: Vrin.
11- PICASSO, número especial do CORREIO DA UNESCO. Fevereiro
de 1981.

12- SCEGELOV, lu. (1962) - 'Alcuni trattistrutturali delle Metamorfosi


di Ovidio', in: FACCANI, R. & ECO, U. (1969) - I sistemi di
segni e lo struUuralismo sovietico. Trad. Milão: Bompiani.

SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990· N° 8 e 9 15
A Figurativização
na Publicidade

Leonilda Ranzani de Luca

Para se compreender a figurativização dos discursos, bem como os


procedimentos mobilizados pelo enunciador para tal, é necessário "a constru-
ção de UlII simulacro de produção de discurso, ou seja, refazer o percurso
gerativo do sentido via enunciado e enunciação enunciada".

Segundo Greirnas (1983: 185-186), a construção desse simulacro é que


nos dá "o quadro geral, no interior do qual se pode procurar inscrever,
de maneira operatória eprovisória, os procedimentos defigurativiração de um
discurso, colocado a princípio como neutro e abstrato".

Tendo isso em vista, procuraremos, neste artigo, mostrar a relação entre


a figurarividade/figuratlvização (Grcimas e Courtés, 1986: 91) de textos publi-
citários da media impressa e certas instâncias do percurso gerativo, procurando
dar uma idéia de como a figuratividade/figurativização "brota" c "floresce" a
partir dos valores da estrutura profunda até a manifestação, dando maior ênfase
aos níveis narrativo e discursivo, e arriscando uma breve incursão pelo percurso
gerativo da expressão.

Ler um texto publicitário é tarefa relativamente fácil, desde que se leve em


conta a intertextua lidade, enquanto textos-ocorrência de um mesmo universo de
discurso.

As estruturas semióticas desse tipo de discurso estão profundamente


enraizadas na competência do leitor - embora possa não se ter consciência
disso - e só podem ser apreensiveis na intertextualidade.
SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 . N. 8 9
B
17
LEONllDA RANZANI DE UJCA

Por esta razão, o sujeito-enunciador (produtor) pode:

(a) implicitar ao máximo as estruturas semiôticas de um texto,


tendo em vista a manipulação ou c economia discursiva, ou
(b) explicitar, até à iconização sõo-sulpiciana, determinadas estru-
turas, tendo em vista a persuasão s.bt:! o leitor.

No anúncio da DuLoren (fig.I), temos um caso :le implicitação tendendo


para a maximização, onde o texto manifestado se reduz a três ou quatro figuras-
ator (todas com o mesmo aporte-predicado IferrJnilidade/): o destinador, o
destinatário e os objetos prático e mítico. Esse reduzido plano de expressão
condensà os percursos
de SI (sujeito produ-
tor-enunciador-rnani-
pulador) e de S2 (su-
jeito enunciatário-ma-
nipulado), percursos
que, em outros textos,
podemconrespondera
programas narrativos
(PN) altamente com-
plexificados. Todavia,
em caso de implícita-
ção máxima, o texto
publicitário manifesta-
do pode se reduzir à
apresentação do obje-
to, lugar por excelên-
cia da intersubjetivi-
dade, que pode con-
densar o percurso dos
três sujeitos da propa-
ganda (o SI e o S2,
mencionados acima, e
o S3 que, geralmente,
é o sujeito beneficiá-
rio), graças à memó-
ria intertextual do
leitor. Como exemplo
Fig.1 de explicitação ten-
~------------------------------------~
18 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBA0(1990 • NO8 •• 9
A FIGUAATIVIZAÇÃO NA PUBLICIDADE

dendo para a maximização, lembramos que há textos em que, além de explici-


tarem os percursos de SI e S2 (e, por vezes, também o de S3 -- o sujeito
beneficiário), com graus variados de complexificação, mostram a refigurativi-
zação, no visual, de traços semânticos contextuais que compõem o aporte-
predicado das figuras-ator sujeito e objeto, já expressas no verbal. Essa
redundância intercódigos,
geralmente tem fins per- v
\
:
suasivos. Tais refigurati-
vizações obedecem a pro-
cedimentos metafóricos
ou metonímicos, na forma
de uma narrativa encaixa-
da no texto global. É o que
se pode observar no texto
da Colônia Nuage (fig.2),
em que a cena da moça
andando de bicicleta sob a
chuva, num recorte verba I

~
do visual, refigurativiza
metaforicamente, no vi-
sual, o sema contextual / Colônia :\uage. Refrescante e geladinha como
refrescante/ que compõe um mergulho de corpo inteiro na natureza.

r"
o aporte-predicado do
ator-objeto Colônia Nua- ,
ge sob o ponto de vista do
.
processo, ou seja, do tem- ••••. (tollllli,I'II.t:..:\
~,,:-:' :",:uild"
t) '\ 11"" 11.1111111.
po aspeetualizado.
Fig.2
Já no anúncio da
Volkswagen (fig.3), os vários objetos (ou fonnantes plásticos) refigurativizam,
metonimicamente, no visual, traços semânticos que compõem o aporte-predi-
cado do ator-sujeito (S2) expresso no verbal, sob o ponto de vista do estado, ou
seja, do espaço aspectualizado.

Todavia, ainda com fins persuasivos, as refigurativizações podem reto-


mar camadas mais profundas do percurso gerativo. É o caso do anúncio da Lee
(fig.4), onde a cena que envolve os jovens refigurativiza metaforicamente, no
visual, o PN euforizado "pintando a vida de Lee", expresso pelo código verbal,
enquanto que o quadro O Menino Azul, de Thomas Gainsborough, além de
refigurativizar metaforicamente a virtualização do PN -- nem cufórico,nern-
SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO" 990· N' B e 9 19
LEONILDA RANZANI DE LUCA

'.

. Fig.3

disfórico ~- "pintar o mundo 'de azul", se inscreve como valor no objeto moda
lee azul, conotando /Ilobrez'a/ e farte/o

Como se pode notar por estes poueos exemplos, a implicitação/cxplicita-


ção de estruturas do planá do conteúdo estão sujeitas a uma gradação que sofre
eoerções das necessidades rnanipulatório-pcrsuasivas da comunicação, de um
lado, e da competência discursiva do sujeito enunciador,de outro. Esses
problemas li-
I.ee,quejá . gados COIll a

pntOu O mundo' explosão/rare-


fação de figu-
(te azul, lança ras da cena tcx-
agora a sua tual, entretan-
mõda,com to, só podem
todas as cores ser entendidos
quando se
do mundo. conhece a es-
trutura global

J&e.
que está por
detrás de toda
cena textual
Fig4
desse universo
20 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990· N' B e 9
A FIGURATIVIZAÇÃO NA PUBLICIDADE

de discurso. Todo texto publicitário é manifestação integral ou parcial de um


contrato entre o sujeito enunciador (fabricante) e o sujeito enunciatário (leitor-
comprador e/ou consumidor).

Mostramos, no quadro a seguir (Quadro I), a estrutura narrativa desse


contrato, sem no entanto pretender validade universal para esse. esboço de
modelo por nós apreendido na intertextualidade.

Não pretendemos fazer aqui uma leitura exaustiva do modelo (conforme


Quadro I), pois, se ele tiver alguma validade, falará por si mesmo. Algumas
observações, contudo, devem ser feitas sobre o mesmo:

1) de acordo com o algoritmo narrativo, a superfície global de todo texto


publicitário (da media impressa, relativo a bens de consumo), pelo fato
do mesmo ser um contrato entre enunciador e enunciatário, inscreve-se como
fase de manipulação (enunciados Ill, lI, I e 3, 2, 1, que compreendem as
estruturas modais e contratuais da manipulação) no PN de base de S2, cuja
performance principal, do ponto de vista do anunciante, é a compra do produto
enquanto fazer somático diferido no tempo; do ponto de vista do leitor-
comprador e/ou consumidor, a compra do produto, por um procedimento
retórico da enunciação, desloca-se para a fase da aquisição da competência
segundo opoder;

2) nos textos publicitários com estrutura mítica, são negociados dois


objetos: a mercadoria (cf.II e 2) e o mito (cf.III e 3). De um lado, o anunciante
quer vender uma mercadoria com valor de uso (cf.A e ª), porém o leitor não
deseja somente objetos de ordem prático-econômica: mais do que isso, ele

ª
deseja a realização dos mitos projetados por seus desejos. São estes desejos
que o anunciante propõe realizar (cf. e Q):
(a) investindo no objeto prático, valores de essência mítica (cf. ç e 0,
através da veiculação de um anúncio (cf. instância da enuncia-
ção do modelo); e
(b) persuadindo o leitor de que, se este adquirir o produto anuncia-
do, conseguirá a realização dos seus desejos; isto se dá, ao nível
do enunciado + enunciação enunciada, sob aforma de um
saber sobre o objeto e sobre a competência do leitor virtual -
espelhada no seu simulacro discursivo e que é interpretada pelo
leitor real (cf. I e 1).

SIGNIFICAÇÃO OUTUBRO/1990· N· 8 e 9 21
LEONILDA RANZANI DE LUCA

MODELO NARRATIVO MíTICO DA MANIPULAÇÃO


CONJUNÇÃO
DISJUNÇÃO
FINAL
INICIAL
FAZER TRANSFORMADOR (01 nSl U02)
(01US11l01)

I
(OI nS2u02) (OI nS2u02)
j/l
-e ...,Oo- A) F(Sl)-[(OIUSln02)-(OlnSlu02)) (
> a) F(S2)-i{Ol nS2U02)-(01 uS2n02)) Competênda

I
Ü
O .s:::J .I (COMPRA!. PAGAR)
alualizante
(qdo.compra o
..:'"'" i=
z
-c
[VENDER, RECEBER)
produto)

>
o
...:
;::: o
'",.
o: Competênda
B) Sl-0IF(Sl)-[S20uOvmo)-(S2nOv",,)1I ( b) F(S2)-(S2UOvmo)-(S2nOvmo)

I
'"
e, -e
o I I virtualizante
'"o« !S (FAZERPERSUASIVO) (FAZERINTERPRETATIVO) (qdo.lê a teXlO)

zo ...,oz <:
«
....I t;
;!;
C) F(Sl)-{(2uOvm;)-(S2nOvmi))
I > c) F(S2)-(S2uOvmi)-(S2nOvm;) Performance prindpal
mrnca(qdo. crê que é
.feflz. porque
(RECOMPENSAR) dER)
"- adquiriu o produto)

Q ,..,O si-c IF(S1)-S~O)] < > F(S2)-' (S2~O)


z..,!?
~oÜ
I (lazer emissiÍlo)
OBJETO- I !tazor Interpretativo)
DESTINAOOR SABER DESTINATÁRIO
~ w~ (SlnOnS2)

a:
w
a:
enunliadO ..,O
I
8
o
a: 111)Sl-0[F(Sl)-(S2)F!Ovm;)j -<: > 3) F(S2)-(S2~vml)
S
I
!S w I I a: :::J
!li ~ a.

.
(CRER-SERfTER) w
O ::J
z
U. (FAZER-SERfTER) a: ..,Z
>
U
'"
cc
::>
w
11)SI -O[F(Sl)-(S2"'OvPlmo)j < 2) F(S2)-(S2Wüvp/mo)j :!

I
u C§. I I
'"
ª
õ (FAZER-PODER) (COMPRAR)
w
o ::J

..:z....I .~
O z
W
I
(PNc da gfjuta
I) Sl-0[F(Sl)-(S2Wüvmo))
I < > 1) F(S2)-(S2f!Ovmo)
I PNcdallfilkJ.lO\
e,

ª
51· sujeito (FAZER-SABER) (FAZERINTERPRETATIVO) S2 - sujeito
operador operador
::>
:z 52 • sujeito de 111e 11:estruturas modais implícitas 3, 2 e 1: estruturas contratuais . S~ - sujeito de
w estado explid1asou implid1as estado
I : estruturas modais explicitas
Estruturas de manipulação segundo o saber

01- Objeto da vaíceemesouravei (ainheiro). 02" Obj.de valor éátiCO (bens de consumo) 11 ov; _Obj. de valor mítico E3 OVwrra" Obj. de valor prático e modal.(bens de
oonsumo) OvInO - Objeto de valor moda! (querer, saber, pOder)

Quadro I
22 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N. 8 e 9
A FIGURATIVIZAÇÃO NA PUBUCIDADE

Para tanto, o anunciante vale-se de uma estratégia discursiva, de caráter


retórico, através da qual transforma o PN de base ao modo do ser -que é a
compra do produto- em PN de uso ao modo do parecer, necessário à aquisição
do objeto mítico. Desta forma, o objeto de ordem prático-econômica (o produto)
passa a ter um estatuto modal: representa a modalidade do poder-ser/ter (cf.III
e: 3).

No texto publicitário, qualquer enunciado de fazer ou de estado, com-


preendendo-se aqui todas as fases de cada instância do modelo proposto, são
suscetíveis de serem figurativizadas sob o estatuto de um fazer persuasivo,
valendo-se ou não de debreagens internas. Isso nos dá uma idéia das possibili-
dades figurativas do discurso publicitário: podemos imaginar quantos PNs de
base e de uso, cada qual com quatro fases (manipulação, competência, perfor-
mance e sanção) podem ser figurativizados com fins persuasivos, tendo-se em
vista a dimensão das práticas sociais que compreende desde a aquisição da
matéria-prima, passando pela produção do objeto, até o consumo final do
produto, uma vez que o discurso espelha essas práticas. Além disso, o recurso
aos procedimentos poéticos criam novas possibilidades de figurativizações.

Todavia, o texto publicitário concentra muito mais a sua figuratividade no


percurso de S2 que compreende os enunciados 1, 2 e 3 do modelo proposto, os
quais espelham os enunciados ª, º
e ~ tendo-se em vista o plano das práticas
sociais.

Faremos, agora, um recorte no modelo, representando os enunciados 1, 2


e J em forma de esquema (Quadro Il) com o fito de melhor especificar a relação
entre figurativização e instâncias do percursogerativo.

Antes de abordarmos esse esquema, convém observar que, a nível de


estrutura profunda, o discurso publicitário propõe como valor último a
/ascensão/, no plano individual ou no plano social. Tal/ascensão/ compreende
uma escalada por paradigmas míticos hierarquizados que respeitam a compe-
tência inicial (anterior à leitura do anúncio) dos diferentes grupos de sujeitos
visados pela propaganda, levando em conta as variáveis sócio-econômico-
culturais. Dessa forma, se compararmos dois simulacros discursivos de enun-
ciatários do texto publicitário -, veremos que um determinado valor (hipotá-
xico em relação ao arquétipo dos paradigmas dos valores que é a /ascensão/) a
ser alcançado por um sujeito f!, após a aquisição do produto ofertado, pode
inscrever-se na competência pressuposta de um sujeito ,ª,
que está num nível
SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 • N° 8e 9 23
LEONILDA RANZANI DE LUCA

,-----

h
TENTAÇÃO/SEDUÇÃO sl~ __ ..,.:;2 INTIMIDAÇÃO/PROVOCAÇÃO

81 _
rnOVOCAçÃOlmlMIOAçÃn l?<!
W
SEDUÇÃO/TENTAÇAO

COMPRAR "x" 1 \ COMPRAR "V'


CONSUMIR "x') S (\ S l CONSUMIR ·v·

COMPRAR "x' COMPRAR ·v·


~ CONSUMIR "x' CONSUMIR ·V"

~
+.
I
....., DOAR "."
CONSUMIR 'x'

ANHAR 'x" ~
COMPRAR ·V"

DOAR 'v'

COMPRAR "x'

~
w
:::!:
8

I
S ={ CONSUM'.':l"x" CONSI!~JR ·V" ) = S
COMPRAR "x" COMPRAR "V'

~ COMPRAR "X.} Z { COMPRAR ·v·


CONSUMIR" x" S ~S CONSUMIR "V'

L_
V
I lXl'M,"OM",UDAD'

h
C<Off~

PROBABILIDADE s2~ - -~ 51 INCERTEZA

~
L_
Quadro 11
24 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N' 8 e 9
A FIGURATIVIZAÇÃO NA PUBUCIDADE

superior da escala sócio-econômico-cultural. Aos enunciatários que já alcança-


ram a «felicidade plena», o anunciante propõe a manutenção desse valor,
/felicidade/. É o que se pode observar no texto dos cigarros Du Maurier (fig.6).

Representando esse valor arquetípico do discurso publicitário que vende


bens de consumo, em termos do quadrado semi ótico, temos:

1Xl
S
s1 ~---7 s2
ascensão descensão

s2~---7 s1
não-descensão S não-ascensão

É a partir da seleção do valor eufórico (s 1) e/ou disfórico (s2) que o sujeito


enunciador vai figurativizaro seu discurso. A seleção do valor eufórico vai levar
à figurativização do PN (comprar+consumir/doar «Y»); a do disfórico, à
figurativização do anti-PN (comprar+consumir/doar ((X»). Essa é a primeira
opção que o sujeito enunciador tem para construir os percursos figurativos do
seu texto, determinada, em termos de sintaxe modal, por um não poder-não
fazer + querer-fazer oa um não poder não-fazer + dever-fazer,

Tanto a seleção do valor eufórico quanto a do disfórico prestam-se aos fins


persuasivos do discurso publicitário (e, provavelmente, de qualquer discurso
manipulatório). Assim, o discurso publicitário pode figurativizar:

a) somente o valor eufórico (sI), projetando, a nível narrativo, o anti-


PN como uma sombra (cf.fig.6);

b) concomitantemente o valor eufórico e disfórico (sI e s2), jogando


com as relações intercódigos de redundância, complementaridade,
oposição (Cffig.5);

c) além de sI e s2, pode tambem figurativizar os termos complexos:

No anúncio da Lee (fig.4), encontra-se figurativizado, metaforicamente,


o termo neutro (S), através da figura do quadro O Menino Azul.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· N° 8 8 9 25
LEONILDA RANZANI DE LUCA

Conciliando os valores da estrutura profunda (Jascensãol e Idescensãof),


projetados no quadrado semiótico, com o arcabouço narrativo proposto no
esquema acima (Quadro Il), toma-se mais fácil visualizar, nos textos que
servem de exemplos,
quais relações do quadra-
do e quais percursos nar-
rativos (de S2 e S3) foram
figurativizados (Quadro
IlI).
Nos textos da Ger-
ber e dos cigarros Du
Maurier, ternos a figura-
tivização do PN euforiza-
do (comprar «y»); no tex-
to das linhas Lipasa, figu-
rativizararn-se o PN e o
anti-PN;já no texto da Etti
(fig.l O), embora o contra-
to proposto seja de natu-
reza idêntica aos demais
textos, ele está totalmente
implicitado. O que apare-
ce figurativizado é um PN
de uso do sujeito Enun-
Fi .5 ciador, ou seja, o PN da
produção do objeto e do
investimento do valor no objeto. Os enunciados narrativos correspondentes a
essa prática social estão fora do modelo global (Quadro 1), pois este tem como
ponto de partida a oferta do produto.

Quanto ao esquema (Quadro 11),por sua vez, cabe algumas observações:

I) ele compreende o percurso de S2 e S3:

- l2 quadrado: aquisição da competência de S2;


- articulação de quadrados: performance mercantil de S2 e
performance mítica de S3;
- 32 quadrado.performance mítica de S2 (= a sanção, ou auto-
sanção, do ponto de vista do destinador);

26 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBA0/1990 . N98 e 9


A FIGURATIVIZAÇÃO NA PUBLICIDADE •

A· ATOR + ACTANTE RELAÇÕES DO QUADRADO SEMIÓTICO E PERCURSO


TEXTO
B . PAPEL TEMÁTICO NARRATIVO FIGURATlVIZADOS (CONFORME O ESQUEMA)

--- ----- . ---- - --- - -- - -- -- ------ ------ - ------ - ----- - --------------- --- --- ----------- ----- - ----

A - Mãe: S2 Não comprar nem consumir "x" ou "y"


comprador + (SnS)-> comprar "y" (s1)->doar "y" (s1 +52)
3) Gerber não-consumidor
(fig!. 7)
B - bebê: S3 Ganhar "y" -> consumir "y"
consumidor
---------- -----------1-------------------- _

2) Cigarros A - Mulher: S2 Comprar "y" (s1) + consumir "y" (s2)


Du Maurier
(fig. 6) B - comprador +
consumidor
------ --
-------------1-------------------- -- ------------ _

A - garoto: S2 Consumir "x" (s2) -> não consumir "x" (s2) ->
1) Linhas consumidor ganhar "y" (s2+s1) ->consumir "y" (s2)
Lipasa
(fig. 5)
B - costureira: S3 Comprar "x" (s1) -> doar "x" (s1+s2)->
comprador comprar "y" -> doar "y"

L --~----~I
Quadro 111
2) S I e S2 são sujeitos complementares na estrutura de manipulação
primária: SI só obtém o lucro se S2 comprar o produto. SI é sempre o sujeito
manipuladore S2 o sujeito manipulado. Este último assume os papéis temáticos
de comprador e consumidor, na estrutura de manipulação primária; todavia, o
esquema só retrata o percurso de S2;

3) S2 e S3 são sujeitos complementares na estrutura de manipulação


secundária: S2 só consegue a sua performance mítica se S3 comprar ou
consumir o produto anunciado. Na estrutura de manipulação secundária, que se
realiza através de debreagens internas, S2 é o sujeito manipulador e S3, o
manipulado (S I manipula S2, para que S2 manipule S3). Essa estrutura de
manipulação secundária se instaura quando um dos sujeitos (S2 ou S3) não tem
a competência segundo o querer/o poder/ o sabcr-fazerjtcr/ser;
SIGNIFICAÇÃO - OUTUBAO/1990 - N' 6 e9 27
LEONILDA RANZANI DE LUCA

4) O arcabouço narrativo é o simulacro de um microssistema econômico,


do ponto de vista do comprador e/ou consumidor. Ele permite a inscrição dos
sujeitos em diferentes topos, de acordo com a competência inicial de cada ator/
sujeito (; figura nuclear complexa) e possibilita uma melhor compreensão dos
procedimentos de figurativização.

Em seguida, passaremos à comparação entre figuras de atores-sujeitos


para mostrar como o jogo semântico de superfície conduz o procedimento de
figurativização e iconização. Tomaremos quatro textos-ocorrência que recon-
textualizam a mesma figura lexemática: a mulher. Para o entendimento da cena
textual, todavia, é necessário considerarmos duas coisas:

1)0 problema da implicitação: de acordo -com o Groupe D 'Entrevernes


(1979: 125), «quando um conjunto figurativo ganha autonomia, basta uma só
figura para recordá-lo». No texto publicitário, os formantes plásticos (ou
figuras) que mostram a conjunção do sujeito manipulado com os objetos-valor-
(S2 Ov), alude por anáfora a todo o percurso figurativo que recobre as quatro
fases do PN de S2. Podemos dizer que a figura visual do sujeito (S2) realizado
condensa todo o percurso narrativo proposto no contrato;

2) o problema da manipulação e identificação espelhada: enquanto


espetáculo, o discurso publicitário é operador de uma dupla manipulação e de
uma identificação através de um processo de espelhamento. Pela dupla mani-
pulação, o discurso opera, por meio do seu impacto visual, a transformação do
não-leitor em leitor. Em seguida, uma vez seduzido ou provocado (querer-fazer
ou não poder-não fazer + dever-fazer, respectivamente), ocorre uma segunda
transformação, ou seja, de comprador e/ou consumidor virtual passa a compra-
dor e/ou consumidor atual (atual, porque trata-se aqui da performance modal,
da instauração de um contrato). Essa segunda transformação se dá graças ao
processo de identificação espelhada, de acordo com Lopes (1987: 87 a 89), pelo
qual os leitores reais se idcntificam,através dos mecanismos de embreagem
cognitiva, com os seus simulacros construídos que são os atores-personagens do
texto.
Feitas essas duas observações, voltemos aos textos-ocorrência e à figura
da mulher, lembrando que os atores da cena enunciada são simulacros de atores
reais: eu e você, que lemos o anúncio.
Com relação aos traços semânticos dos atores (Quadro IV), observa-se o
seguinte:
1) o único traço comum a todas as figuras-mulher é o traço
/ feminilidade/;

28 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/HI90 - NQ B 8 9
A FIGURATIVIZAÇÃO NA PUBLICIDADE

I I

VALORES COMPETÊNCIA (S200v) FINAL DE S2


COMPETÊNCIA INICIAL
TEXTO INVESTIDOS NO APÓS A PERFORMANCE PRÁTICA E
DE 52 (S2uOv)
OBJETO MíTICA

ATOR Ibom gostol ATOR ATOR


f-- >-,-- I--
1 Istatusl a:
w
w Irequintel ã: w
:::E
Ou ~
o Idiscernimentol
~ Irequintel
:::E
-e
o
-c -c lintensificação da felicidadel
z ::>
Imagicidadel ~
lMaurier a:
Ibeleza! o
8
lI:
w
W

'5 lelegância! a: '5


(Fig.6) ::>
:::E Isensibilidadel ~ ::>
:::E
~elicidadel º
o

Ifeminilidadel lI:
w Inutritiva! lalegria!
2
Gerber w
Iresponsabilidadel
linstinto maternall
<D
lI:
w
o
Isaudável/./'"
k:Idedicaçãol

. .«
Inão-dedicaçãol ~ :::E ••••...
:::E
!não-alegria!
:c
z
ã: V
(Fi9-7) «
o.. Iprática! »:: Iliberdadel
Inão-praticidadel

3 •...
Whisky
nr
z
-c lemancipaçãol ~
Ipureza!___... e
r-~~ Iseduçãol
Irequinte/"""""'-f.-!
:::E z
s, Irejeiçãol :c
,John Q
v~.--
lI:
w !não-sedutora!
:5 ~ lamorl
Pitt ::>
:::E
~eminilidadel Cf)
:;:
;;: Imagicidade0 1---5
:::E
(Fig.8 )

4 :il Ifeminilidade! :::E


a: ~
lI:
lI: « w
Charm
w lelegância! :c co
m
2
o
2 Icharmel
Ibeleza!
Cf)
,o Imagicidadel a:
(Fig.9 )
a: w Iseduçãol
:5
w lI:
:5 Inão-seduçãol rr;
-c ::>
::>
:::E Inão-charme! º
o :::E

L-
Quadro IV
2) os traços /disccrnimento/ e lelegância/ são comuns às
mulheres dos anúncios dos cigarros Charm e Du Maurier.

De acordo com Assis (1987:53), "o trabalho textual consiste na reconfi-


guração da parte variável de uma figura lexemática ou discursiva, em termos
de unta sintaxe actancial, resultante da realização de um PN". Essa reconfigu-
ração, ainda segundo () autor, pode incidir sobre o genérico ou o específico c

SIGNIFICAÇÀO ,OUTUBRO/1990 Nº 8 e9 29
LEONILDA RANZANI DE LUCA

deve ser encarada à luz de uma tipolo


gia discursiva.
Tendo em vista a permanência
de traços das figuras-ator, apresenta-
das nessa pequena amostra (figs.6, 7,
8 e 9), é possível afirmar que:
. 1) no universo do discurso pu-
blicitário, essa reconfiguração incide,
predominantemente, sobre a parte
específica do semema do ator, e rara-
mente sobre a parte variável genérica.
Dentre os textos citados neste artigo,
apenas dois deles apresentam reconfi-
guração do classemático: os textos do
Catchup Eui (fig.lO) e os da Coca
Cola (fig.ll);
2) à medida que certos traços
contextuais se incorporam à figura em

SIG,..FICAÇÃO OUTUBR0/1990 -11° 8 e 9


30
A FIGURATIVIZAÇÃO NA PUBLICIDADE

estado de dicionário e são realizados


em contextos específicos, tais traços
(tais como /discernimento/ e /elegân-
cia/, in Charm e Du Maurier), se
incorporam à base classcmática, en-
quanto definidores de uma suhclasse
de figuras.

Desta maneira, é o rcarranjo de


semas contextuais (rearranjo figurati-
vo) que vai gerar figuras ligeiramente
diferenciadas - figuras no sentido
narratológico,asquais,segundo Floch
(1983:5), provem da substância e não
da forma.
Esse rearranjo obedece a dois
procedimentos:

a) () da intcnsiflcaçâo de tra-
ços scrnânticos, podendo estes atin-
girem o seu grau máximo de iconici-
dade (cf. fig.S, refcrcntcmcntc ao tra-
Fig.9
ço scmânt ico/fclicidadc/);
h) o da substituiçâo de traços semânticos por seus contrários ou
contraditórios combinados ou não com traços complementares (relação de
implicação).

o rearranjo figurativo é condicionado pelo rearranjo classernático e


subclasscmatico. Estes últimos, por sua vez, vão gerar diferentes percursos
temáticos:

Núcleo sêmico + (classe mas + subclassemas) + semas contextuais

I I,.
- ----+-t:---4 Novos temas
Variações
mesmo tema
sobre o

Novos percursos
figurativos para o
mesmo tema

Por último, abordaremos mais uma vez os textos da Coca Cola (fig.ll) e
do Catchup Etti (fig.IO) com a finalidade de chamar a atenção para um aspecto
da problemática da construção discursiva t' textual do ator.

SIGNIFICAÇÃO OUTUBROl1990 "I' 8 e 9 31


LEONILDA RANZANI DE LUCA

Citando novamente Assis (1985: 575-582 ), a construção discursiva e


textual do ator pode ser vista sob duas hipóteses: «aquela, segundo a qual a
figura seria construída como um estado, como um lugar sêmio-discursivo
predominantemente aspectual» e «aquela, segundo a qual afigura uma vez
elevada, pelos procedimentos discursivos, ao estatuto defigura narratolôgica,
de figura-ator, apareceria como lugar por excelência da constituição e da
intersemíotlcidade, como ·uma instância semi-simbólica onde a disjunção
mundo natural/lingua natural se veria concretizada».

Considerando que, na conversão discursiva das estruturas narrativas, as


funções-predicados resultam em processos e as funções-junções em estados,
nossa primeira observação recaí sobre a possibilidade de se trabalhar a
figurativização da função predicado e da função-junção também no âmbito da
relação objeto-valor, pois parece-nos que a figurativização dessas funções é
vista, pela maioria dos estudiosos, somente no âmbito da relação sujeito-objeto.
Desta maneira, propõe-se extrapolar as relações actanciais intencionais e'
existenciais para as transformações ejunções relativas ao investimento do valor
no objeto. Cremos que os dois textos citados ilustram o que foi dito:

1) no texto da Etti (fig.lO), o objeto (Catchup) apresenta-se como uma


figura narratológicaem que, na conversão da função-predicado (nível narrativo)
em processo (nível discursivo), a aspectualização intervém como um ponto de
vista sobre a ação, enfatizando o tempo: o aspecto opera como uma
sobredeterminação temporal. Aqui, a figurativização do processo deixa visua-
lizar o rearranjo

[.@;'M3â3âM'iil.~ ;7:~~::h~~
figurativo: o traço

suposto é substituí-
do pelo traço Inatu-
rall, no estado 2.

Convém ob-
servar que este enun-
ciado narrativo con-
ta a produção de um
objeto. Pertence ao
percurso de SI (su-
jeito enunciador-ma-
Fi .10

SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/leeo • N" 8 e e


32
A FIGURATIVIZAÇÃO NA PUBLICIDADE

nipulador) e se inscreve na fase til-


manipulação do PN de base de S2.
sob um duplo aspecto:

a) como instância de enuncia-


ção-enunciada, pois denuncia como
o sujeito-enunciador investe o valor
no objeto, mesmo que seja ao modo
do parecer;

b) como objeto-va lor: enquan-


to estado final, a figura do Caichup
se erige em objeto-valor c é, ao
mesmo tempo, inscrita, pelo sujeito
cnunciador, no percurso de S2;

2) no texto da Coca Cola


(fig.ll), os atores-objetos -o prati-
co (coca cola) e o mítico (estilo de
vida)- são constituídos como um estado. Na conversão da função-junção (na
relação objeto-valor) a aspectualização intervém como um ponto de vista sobre
o estado, em que as considerações temporais ficam entre parênteses, nos dizeres
de Assis (op.cit.).

A segunda observação diz respeito à hipótese da construção da figura


corno um estado. Neste caso, a colocação entre parênrcscs do tempo traz sérias
dificuldades para a compreensão da Iiguratividade do visual quando se trata de
textos míticos e poéticos. É o que se observa no texto da Coca Cola, onde a
aspectualização do espaço (considerando a superfície global do texto) «apaga»
as referencializações internas entre os diferentes segmentos do texto visual e,
conseqüentemente, não figurativiza as transformações de estado eom referência
ao objeto coca-cola; este sofre uma transformação, ou seja, passa de um estado
sígnico -enquanto «alimcnroa=- a um estado simbólico, enquanto /ser que dá
vida/, uma vez que essa figura-ator sofre um rcarranjo classcmático. Esse
rcarranjo, todavia, não se dá numa perspectiva narratológica, pela colocação em
andamento de um PN, e sim pela deprecnsão de traços da expressão visual e
verbal que sustentam esse discurso ahstrato: a idéia de que «Coca-Cola dá
(mais) vida» e a sugestão para que o consumidor mude o seu «estilo de vida».

Nesse texto, os traços do objeto com função prática estão explicitados

SIGNIFICAÇÃO OUTUBRO/1990 N" 8 e9 33


LEONILDA RANZANI DE LUCA

pelo texto verbal. Já os traços com função mítica !nutritiva! e !que dá vida! estão
dissimulados pelos procedimentos de enunciação, pois trata-se de um saber
enganoso acerca do valor do objeto. Na análise deste texto, o caminho para se
chegar a esse saber enganoso é utilizar os procedimentos de análise da semi ótica
plástica.

Tendo em vista que otexto publicitário propõe sempre dois objetos -um
objeto com valor prático e outro objeto com valor mítico- no texto da Coca-
Cola ambos estão explicitados no verbal; a figurativização, no visual, diz
respeito, portanto, à refuncionalização do objeto coca-cola:

Estadol Estado 2

/artificialf ------>/naturalf + /nutritiva/ + /que dá vida/

Embora não seja possível demonstrar aqui a construção do sentido, neste


texto, podemos afirmar que é somente pela análise dos componentes eidéticos,
cromáticos e topológicos do visual e do verbal que se pode:

a) apreender os valores investidos no objeto prático (coca-cola),


que são os traços descritos acima no estado 2;

b) homologar a construção do objeto mítico, sugerido em ambos


os códigos, que é estilo de vida,

Pouco, ainda, se pode falar do percurso gerativo da expressão. Contudo,


parece certo que, neste texto, a figurativização - que resulta na construção do
objeto mítico e na refuncionalização do objeto prático- se dá, simultaneamen-
te, nos dois percursos gerativos: o da expressão e o do conteúdo. Tal afirmação,
é óbvio, requer uma análise mais precisa, utilizando-se instrumentos da semió-
tica plástica. Entretanto, fica-nos a idéia de que:

a) só podemos falar em percurso gerativo da expressão nas


linguagens conotadas, quando há a sobreposição de planos de
expressão e de conteúdo que, juntos, funcionam como forma
de expressão para um novo e último conteúdo;

b) essa forma de expressão, jogando com categorias eidéticas, to


pológicas e cromáticas, no texto plástico, talvez seja suscetível
de ser matematicamente formulável, por meio de homologa-

34 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 - N" 8 8 9


A FIGURATIVIZAÇÃO NA PUBLICIDADE

ções sucessivas entre quartas proporcionais -pois a geração do


sentido da expressão parece prescrever um ritmo que obedece
a uma topologia bem determinada. Assim, o percurso gerativo
da expressão do texto plástico (visual e verbal) constituir-se-ia
numa sobreposição hierárquica de sistemas semi-simbólicos.

A título de conclusão, nosso objetivo foi dar uma idéia de como ocorre a
figurativização/figuratividade no discurso publicitário a partir da seleção do(s)
valor(es) da estrutura profunda, procurando mostrar que o jogo de imagens e
figuras de um texto só pode ser compreendido e avaliado em funçâo do nexo
existente entre as instâncias semio-narrativa e discursiva.

Todavia, em discursos altamente redundantes que podem abusar da


implicitação, como o publicitário, só é possível estabelecer esse nexo a nível de
uma tipologia discursiva e não a nível de textos-ocorrência, lembrando que:

- a nível discursivo, podem-se criar relações de metáfora e metonímia


quando vários conjuntos figurativos se conectam com o mesmo momento
narrativo, fazendo uma figura valer por outra;

- nos textos poéticos, para a compreensão da Iiguratividadc, há que se


considerar, também, o percurso gerativo da expressão: quando o sujeito enun-
ciador não se pode valer de um dicionário figurativo, procura criar novos
percursos figurativos através de procedimentos semi-simbólicos. No texto
publicitário, tais procedimentos conduzem sempre a um saber enganoso relati-
vo à construção do objeto mítico ou ao valor investido no objeto;

- como disse Floch (op.cit.i, «por mais que as figuras estejam recheadas
de traços figurativos, elas não são uma imagem do mundo», no texto publici-
tário pode-se afirmar com certeza que elas simulam uma representação do
mundo para cumprir a sua função de persuasão -função que, muitas vezes,
ocorre através de figuras (não-signos) da expressão, que se tornam significantes
e passam a sustentar um discurso abstrato, como é caso do texto da Coca-Cola.

E, por último, uma dúvida: tendo em vista a reconfiguração de traços


contextuais (cf.fig.2 e 3), através de procedimentos metafóricos ou metoními-
cos, as metáforas e metonímias poderiam ser pensadas como instrumentos de
iconizaçâo das figuras abstratas do plano de conteúdo?

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· N· 8 e9 35
LEONILDA RANZANI DE LUCA

BIBLIOGRAFIA

FLOCH, J- M. "Figures, iconicité et plasticité" in: Actes sémiotiques -


Bulletin, VI - ENESS-CNRS, Paris, INFL, 1983.

GREIMAS, A. J. & COURTES, J. Sémiotique - díctionnaíre raisonné de la


. théorie du langage n. Paris, Classiques Hachette, 1986.

_________ . Díconárío de semiótica. São Paulo, Cultrix, 1983.

GROUPED'ENTREVERNES. Analyse sémiotique des textes.Lyon,Presses


Universitaires de Lyon, 1979.

LOPES, E. A metáfora: da retórica à semiótiea. São Paulo, Atual, 1986.

LUCA, LEONILDA RANZANI de. Aspectos da semiótica do discurso


publicitário. São Paulo, FFLCH-USP, tese de doutorado, 1983 (mimeo-
grafado).

SIL V A, I. A. da. "La construction de ]'acteur" in: Parret, N & Ruprecht,


H. G. - Exigenees et perspectives de la sémiotique: recueil d'homage
pour A . .T.Greimas. Amsterdamf Philadelphia, John Benjamins, 1985,
pp. 575-582.

_____ --------. "A construção do ator: do sígnico ao


simbólico" in: Significação - Revista Brasileira de Semiótica, 6janeiro
de 87, pp. 51-57.

36 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - NO B e9
Função Poética
e
Televisão

Anna Maria Balogh

1. Função poética e artisticidade

Ao empreendermos uma rápida usca nos guardados da memória, verifi-


camos a existência de conceitos arraigados no tocante ao que se considera
"artístico". Alguns dos conceitos de "artisticidade" revelam vinculações estrei-
tas com as funções "estética" e "poética".

Tanto o trabalho de Mukarovsky sobre a "função estética" (1), quanto o


de Jakobson sobre a "função poética" (2) acabaram por criar um parâmetro para
medir o grau de "artisticidade" de objetos culturais, sobretudo literários.

Como é sabido, a função poética se distingue pela projeção do eixo


paradigmático sobre o eixo sintagmático do discurso. Tal procedimento implica
a suspensão das disjunções sintagmáticas e a enfatização das conjunções
paradigmáticas. Como conseqüência, o discurso poético não é propriamente um
saber sobre as coisas do mundo, mas sobretudo um saber sobre si mesmo, a
ênfase na própria mensagem, como dizia Jakobson.

Mukarovsky já lembrava em seus escritos que a função estética nãonasce


do elemento isolado, mas sim da interrelação peculiar entre elementos. A função
estética predominante implica, para o teórico, a reconfiguração poética de
elementos não poéticos ou extra-estéticos na sua origem.

Há uma estreita vinculação entre os conceitos de função estética e poética,


propostos pelos teóricos citados, e a visão do poema manifesta por Octavio Paz:

SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 . NO8 •• 9 37


ANNA MARIA BALOGH

"... el problema de la significaciôn de la poesia se esclarece apenas se repara


que el sentido no está fuera sino dentro dei poema: no en lo que dicen las
pala bras, sino en aquello que se dicen entre ellas" (3).

Conforme já observávamos em outro artigo (4), o crítico tem uma visão


estrutural do poema, veiculada através de uma linguagem diversa da metalin-
guagem dos lingüistas, como neste trecho: " Cada palabra dei poemaes única.
No hay sinánimos. Única e inamovible. Imposible herir un vocablo sin herir
todo el poema; imposible cambiar una coma sin transformar todo el edificio"
(5).

A visão de Paz do discurso poético nos revela quão rígida e imóvel é a


estrutura do discurso regido pela função poéticà. A esta rigidez com posicional
corresponde uma possibilidade plural de relações (recontextualizações) entre o
destinador e o destinatário do texto, todas elas contidas no modelo imanente do
próprio texto, na sua configuração sui generis.

o conceito de «artisticidadc» também está profundamente vinculado ao


caráter único, irrepetível, irreprodutível de cada obra de arte, daí o seu valor
frente aos demais objetos (utilitários, reprodutíveis ...).

Em alguns casos, não é o caráter único da obra o gerador da artisticidade,


mas sim a sua utilização e contextualização imprevistas, como no caso dos
surrealistas, particularmente Duchamp, Muitos estudos do poético na literatura
se fazem também dentro desta linha de imprevisibilidade do uso literário
(artístico) da língua em contraposição à previsibilidade do uso quotidiano da
língua.

o caráter imprevisível do discurso artístico também está embutido nas


observações dos forma listas russos sobre a singularização dos aspectos própria
dos objetos artísticos. Do ponto de vista da recepção, a singularização dos
aspectos tem como resultante uma" desautomatização" da percepção do desti-
natário e um "estranhamente" diante da peculiaridade do discurso estético
singularizador.

Um discurso nestes moldes implica um contrato peculiar entre destinador


e destinatário. Dada a predominância do poético e da ênfase num conjunto de
relações intra e intertextuais teoricamente mais rico e mais informativo que
outros, o discurso estético oferece um desafio maior âcompetência do destina-
tário para desvendá-lo. Este desafio pressupõe a competência do destinadorpara
a realização deste texto peculiar (por essa razão, o destinador é considerado,
então, "artista").

38 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· NQ8 8.9


FUNÇÃO POÉTICA E TELEVISÃO

o discurso artístico, além de pressupor um contrato peculiar entre o


destinador e o destinatário, pressupõe uma configuração no mínimo pouco
corrente: é suficiente para chamar a atenção do leitor. Para muitos teóricos, a
regência da função poética no discurso leva diretamente ao desvio ou à ruptura,
criadores da novidade do texto e da surpresa do destinatário no ato da recepção.

Muito embora tenha sido contestado como padrão de poeticidade do


discurso, o conceito de desvio serviu para muitos estudos nessa área. Cohen, a
partir dos distintos tipos de desvio (cujo parâmetro é a prosa) analisa:a evolução
da poesia francesa. Segundo ele, a poesia francesa incorpora um número sempre
maior de desvios, cada vez mais radicais, à medida que se aproxima da
modernidade. Também Llorach analisa a poesia do basco Blas de Otero a partir
do conceito de desvio.

2. O brave-new-world vai surgindo

Hoje, passado há muito o impacto do ensaio de Jakobson, há uma


tendência para a retomada e a revisão do conceito de função poética. Tal como
afirma Barbero, há "una producción que cuestiona la centralidad atribuída al
texto-rey y al mensaje entendido como lugar de la verdad que circularia en la
comunicaciôn" (6).

o formalismo, a estilística e o estruturalismo se debruçaram sobre os


processos caracterizadores deste "texto-rey", A teoria semiótica converge
atualmente para o estudo das marcas da produção do texto no próprio texto,
através da análise da enunciação enunciada. Outra vertente tenta resgatar a
recepção como ato reprodutor-recriador do texto. Continuamos no texto, só que
agora como possibilidade de resgate de sua elaboração e também como
possibilidade de previsão (predictability) da sua recepção. O primado do texto-
rei está em xeque.

As mudanças de enfoque em termos de meta linguagem correm paralelas


a uma série de mudanças na evolução tecnológica que nos obrigam a redimen-
sionar muitos dos conceitos prévios sobre a arte.

A arte do passado exigia um período de elaboração e maturação ponde-


ráveis, bem como uma recepção de algum modo "festiva": ir ver, apreciar (no
museu, no cinema, etc). A evolução tecnológica dessacralizou a obra de arte
como tempo e espaço festivos e trouxe a TV para dentro de casa e o cinema para
os vídeo-cassetes domésticos (VHS).

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO" 990 - N· 8 e 9 39


ANNA MARIA BAlOGH

o nosso século, com as suas evoluções tecnológicas; implicou uma


aceleração ímpar do tempo, uma multiplicação ímpar de objetos de cultura e
comunicação, urna facilidade absurda de alcance e de manipulação destes
mesmos objetos pelo público.

Como conseqüência, as próprias formas de fazer e de consumir os objetos


culturais (artísticos?) resultantes destes avanços também se modificaram. Por
esta razão, constituem um desafio real para a reformulação dos conceitos de
artisticidade prévios, alguns dos quais mencionamos ainda que muito sucinta-
mente.

Alguns teóricos já começam a propor alternativas para o desvendamento


destas mudanças a partir dos novos meios (Bettctini, Alvarado), a partir das
formas de produção destes novos meios (Vilches, Calabrese), a partir das
formas de recepção próprias destes meios (Barbero, Bettetini). Nesta linha,
podemos fazer algumas reflexões sobre a televisão, tendo em mente o ensaio
sobre a função poética da linguagem.

3. Função poética e televisão

3.1. Artisticidade vs. Serialidade

A televisão, para fazer frente à voracidade da programação que permanece


no ar durante quase todo o dia e durante todos os dias da semana, tem programas
serializados. O modelo da produção em série vem da indústria, sendo mais
conhecido o da indústria automobilística, e visa à economia de trabalho e à
rentabilidade.

Na TV brasileira, grande parte dos programas são séries em diversos


formatos (novela, minissérie, seriado) com suas variáveis peculiares (extensão,
formato, horário). Todos manifestam padrões de repetição, seja a nível narrativo,
seja a nível figurativo. Tal fato levou Ornar Calabrese a chamar os programas
seriados de "rcplicantes" ou "repetidores", criadores de uma nova estética que
o teórico denominou "estética da repetição" ou neobarroca.

À luz de tal estética, Calabrese faz uma revisão das dicotomias hoje
existentes, relacionadas diretamente com o que viemos expondo, por ele
sintetizadas como segue:

40 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N28 e9


FUNÇÃO POÉTICA E TELEVISÃO

"El sentido común quiere que la repetitividad y la serialidad sean


consideradas en el polo opuesto y contrapu estas a la originalidad y a la
artisticidad", La obra de arte (pictórica, arquitectániaa, literaria,
cinematografica o teatral) es tal cuandoes "irrepetible", hasta el punto de ser
incluso "indecible" (es decir, tampoco repetible metalinguisticamente)."(7)

3.2. Unicidade/Totalidade vs.Descontinuidade/Fragmentação

Como vimos nas palavras de Paz, o texto regido pela função poética
fortifica sobremaneira as relações intratextuais, criando um sentido de totaliza-
ção e de integração, já apontado por outros críticos (8).

o texto televisual é necessariamentefragmentado e descontínuo, seja no


tocante à produção, seja no-tocante à recepção. Todo texto televisual, mesmo o
não seriado, deve necessariamente prever um número «x» de janelas para
comerciaise se apresenta ao telespectador invariavelmente como um espetáculo
interrompido.

o texto televisual não só é veiculado e apreendido em descontinuidade,


como também convive, a cada interrupção, com uma série de outros textos
diversos em sua natureza. Cada janela prevê a exibição de dez a treze comerciais
em média.

Ao que tudo indica, rompe-se, assim, o efeito ou parte do efeito poético


de coesão textual, e o texto televisivo cria, frente às inúmeras interrupções,
mecanismos próprios de suspensão, manutenção e reatamento de sentidos.

3.3. Singularização/Estranhamento vs.Repetição/Reconhccimento

o texto artístico, tal como visto pelos formalistas, pressupõe um contrato


entre destinador (responsável pela singularização) e destinatário (responsável
pelo desvendamento do texto a partir do estranhamente e da desautomatização
da percepção) que demanda constante reorganização da competência dos dois
actantes partícipes do processo. Nesse desafio, parece residir um dos grandes
deleites da fruição do objeto de arte.

o texto televisual, pelo contrário, como já apontava Vilches (9), se baseia


numa alternância desigual entre a repetição (elementos que já fazem parte da

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· N' 8" 9 41


ANNA MARIA BALOOH

competência do destinatário), que geralmente prevalece, e a novidade (mais


restrita e desafiadora da competência do destinatário, ainda que em doses
homeopáticas).

Partindo de dados similares, Martin Barbero aponta o prazer do reconhe-


cimento e da repetição que caracterizaria a recepção do texto televisual na
América Latina (10). Uma forma de recepção oposta ao prazer do estranhamente
gerado pela singularização do artístico.

o fazer do destinador e do destinatário do texto televisual parece estar


mais centrado na norma, enquanto que o fazer destes actantes no texto artístico
tende ao afastamento da mesma (singularização, desvio, ruptura).

Há no próprio texto televisual um conjunto de marcas pragmáticas que


funcionam como uma moldura ou grade redutora das possibilidades tidas como
próprias do texto poético. Elementos estratextuais, marcas pragmáticas, inter-
ferem na relação destinador-destinatário na fruição do texto televisual.

3.4'. Formatos e Extensão

Como dizíamos, a maior parte da programação de TV é serializada e


existem vários formatos padronizados, cada um deles com uma extensão
diversa. A novela tem em média 150 a 180 capítulos; a minissérie, 4 a 10
episódios; o seriado, um episódio semanal ou quinzenal. Este formato, o
seriado, pode-se estender em princípio ao infinito ou até que o espectador se
canse.

A extensão do texto poético já foi objeto de algumas reflexões que podem


nos fornecer alguns dados relevantes:

"0 que chamamos um longo poema não é, no fundo, senão uma


seqüência de poemas breves" dizia E.A.Poe. (...) Um longo poema
épico ou lírico é necessariamente lacunar, e partes inteiras desco-
nhecem a preeminência da função poética (11).

. Parece bastante difícil conservar a rigidez estrutural do texto poético e a


resultante coesão dos elementos intratextuais num texto de extensão muito
longa como os seriados televisuais.

42 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 . N· 8 e 9
FUNÇÃO POÉTICA E TELEVISÃO

A novela é um exemplo bastante significativo neste sentido. Trata-se do


texto mais longo e mais "poroso" dos textos serializados. A novela, tanto por ser
muito longa, quanto por ser fragmentada, incorpora dados da realidade quoti-
diana do destinatário na narrativa (Aldeíde pedindo sempre nota fiscal, os
personagens comentando a responsabilidade do voto em "Vale Tudo").

Além disso, a novela também incorpora minisseqüências narrativas de


merchandising (o pai de Édipo.em "Mandala", sofrendo ataque cardíaco, sendo
socorrido, levado, curado por intervenção de uma dessas unidades médicas com
helicóptero e outros avanços). Por outro lado, os roteiristas podem assistir aos
capítulos e modificar aspectos da novela em face de suas próprias reações aos
capítulos veiculados ou das reações do público.

Essa "porosidade" do texto televisual a incorporações coloca-o em


oposição à rigidez estrutural do texto poético.

3.5. Paratextualidade e Modalidade de Recepção

o texto poético contém em si o modelo imanente de sua recepção. A


riqueza da significação nele contida produz, como conseqüência, uma plurali-
dade de relações virtuais para a sua decodificação.

As modalidades de apreensão do texto televisual, diferentemente do que


ocorre com a fruição do texto poético, são ditadas em grande parte por elementos
pragmáticos, tais como a parasserialidade.

A parasserialidade "se refiere a todas aquellas 'notas al margen ' de la


serie: titulos, subtitulos, presentaciôn y portada, apertura y leit-motif musical,
la publicidad en torno de su emisión ... la información sobre cambios y ajustes
de horario, los comentarios en la prensa, etc; Son todos elementos marginales
que sin conocer a la serie actuan 'para-ella', enforma enmascarada, haciendo
de chivato y colocándose cômoda e impunementefuera de la norma dei género"
(12).

A maioria dos textos da paratextualidade se situam dentro do próprio


mosaico da televisão (chamadas das novelas, entrevistas de lançamento com
roteiristas, diretores e atores, etc.). Tais textos sancionam as modalidades
corretas de recepção dos programas aos quais se reportam, modalidades em
geral muito reduzidas em relação à pluralidade virtual do texto poético neste
aspecto.

$IGNIFICAÇÃO • OUTUBRO/1m· N" B B 9 43


ANNA MARIA BALOGH

3.6. Gêneros, Norma/Desvio e Recepção

A TV oferece ao receptor textos cujas alternativas de fruição se revelam


mais previsíveis do que as do texto poético, não só por causa da serialidade e dos
formatos pré-estabelecidos, mas também porque recorre com freqüência a
gêneros que já fazem parte da competência do destinatário. Tradicionalmente,
o melodrama se constitui no gênero por excelência da novela. O horário nobre
da Globo, até hoje imbatível, traz drama na novela das seis e das oito e meia e
reserva o horário das sete para a comédia, a farsa, o pastelão, a chanchada e a
experimentação em geral. A aventura e o policial respondem pela maioria dos
seriados.

Tal esquema de programação parece corresponder às afirmações certeiras


de Paolo Fabri, ao dizer:

"Mientras en la cultura culta la obra está, ai menos hoy, en contra-


diciõn dialéticá con su género, en la cultura de massa la regia
'estéticá' es aquella de la mayor adecuación ai género. (...) la
demanda de mercados de parte dei público (y dei medio) se hace a
nivel delgénero "(13).

3.7. Função Poética/Artisticidade vs. Função Fática/Comunicabilidade

Como podemos depreender das reflexões acima, o lugar da função poética


no texto televisual não é certamente o mesmo daquele ocupado pela mesma
função no texto artístico em geral. A longa extensão e a fragmentação dos textos
serializados (e as especificidades daí decorrentes) apontam para textos onde a
função poética predomina apenas ernflashesocasionais, em partes do texto, sem
manter a regência constante como nas obras nas quais a função poética tem
predomínio hierárquico.

Em textos longos serializados parece mais importante ter o espectador


cativo da mensagem, do que cuidar da originalidade 'da mensagem em si. Razão
pela qual a maioria dos críticos aponta a predominância da função fática no
discurso televisual. Muitas de nossas emissoras denunciam esta ênfase no
contato logo na sua apresentação, como demonstram o tão decantado "plirn-
plim!" da Globo, o "fique conosco" da Manchete ou o "quem procura acha aqui"
da SBT.

44 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· N0 8 e 9
FUNÇÃO POÉTICA E TELEVISÃO

Breves Reflexões Finais

Os pensamentos expostos parecem evidenciar a necessidade de se repensar


os conceitos sobre artisticidade existentes em face dos novos objetos culturais
que surgem, impulsionados por novas tecnologias.

A repetitividade e a reprodutibilidade não se restringem à indústria;


podemos detectá-las na fotografia, na gravura, no vídeo, no jornal. O estatuto
peculiar de tais objetos culturais merece análise dos que estão atentos à mutável
realidade que nos cerca.

O admirável mundo novo traz consigo a celeridade temporal, a multipli-


cidade dos objetos culturais, o raio de alcance brutal dos mesmos. A televisão
é parte deste mundo. O conjunto de mosaicos de programação das emissoras
constrói uma intertextualidade complexa, muito presente e sempre virtualmente
disponível ao espectador. Trata-se de uma rede intertextual na qual cada novo
texto surge relativamente normatizado pela situação no mosaico, pelo formato
no qual se atualiza, pelo gênero no qual se circunscreve.

Assim, se cada texto poético funda a sua própria "realidade" (função


fundadora do texto, Edward Lopes, ANPOLL, 1989), na televisão essa função
já está parcialmente formada no diálogo de cada texto com o mosaico do qual
faz parte.

Na "conversação textual" do destinatário com o texto televisual, a


comunicação fática é mais importante do que a originalidade do texto. Não é na
superior e singular configuração do texto que se situa o prazer do destinador do
destinatário. A televisão voraz e presente oferece um novo relativo c supõe uma
utilização reformadora e não revolucionária da competência prévia do especta-
dor.

Cada texto do mosaico se recontextualiza em face dos demais tipos de


textos com os quais convive pela capacidade de reprodução, absorção, remode-
lação, transformação numa relação intertextual voraz. Este universo tem milhões
de destinatários e, embora se caracterize aparentemente pela mesmice, esconde,
na verdade, uma transformação constante, uma dinâmica à qual a crítica deveria
estar mais atenta.

SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990· N· 8" 9 45


ANNA MARIA BALOOH

NOTAS

(1) Apud MUKAROVSKY,J.- Barcelona, Gustavo Gili, 1975,


p.195 e ss.
(2) Apud JAKOBSON, R. - Cultrix, São Paulo, 1969, p.127 ess.
(3) Apud PAZ,O. - México, Siglo XXI, 1969, p.5.
(4) Apud BALOGH ORTIZ, A.M. - S.Paulo, Suplemento Cultu-
ral, 1980, 172:3-4.
(5) Apud PAZ,O. - México, F.Cultura Econômica; 1970, p.45.
(6) Apud MARTIN-BARBERO,J. - Barcelona, Gustavo Gili,
1987, p.232.
(7) Apud CALABRESE, o. - Barcelona, Rev.Analisi, 1984, 9:7l.
(8) Apud DELAS, D. e FlLLIOLET, J. - São Paulo, Cultrix, 1975,
p.121 ess.
(9) Apud VILCHES,L. - Barcelona, Rev.Analisi, 1984,9:57-70.
(10) Apud MARTIN-BARBERO, J. - Barcelona, Gustavo Gili,
1987, p.232
(11) Apud DELAS, D. e FlLLIOLET, - J.São Paulo, Cultrix, 1975,
p.57
(12) Apud VILCHES, L. - Barcelona, Rev.Analisi, 1984,9:68.
(13) Apud MARTIN-BARBERO, J. - Barcelona, Gustavo Gili,
1987, p.238.

BIBLIOGRAFIA

BALOGH ORTIZ, A.M. "Octavio Paz: Conceito de Poesia" Suplemento


Cultural O Estado de São Paulo. 17.02.80, 172:3-4.
BETTETINI, G. La Conversación Audiovisual. Madrid-Milán, Frabr-
Bompiani, 1986.
COHEN, J. Estrutura da Linguagem Poética. São Paulo, Cultrix, 1974.
DELAS, D. e FlLLIOLET, J. Lingüística e Poética. São Paulo, Cultrix,
Edusp, 1975.

46 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBR0/1990 - N° 8 •• 9
FUNÇÃO POÉTICA E TELEVISÃO

EIKHENBAUM. B. Teoria da Literatura-Formalista. Porto Alegre.


Globo. 1973.
JlAKOBSON. R. Lingüística e Comunicação. São Paulo. Cultrix, 1969.
MARTIN-BARBERO. J. De los Medios a las Mediaciones. Barcelona.
Gustavo om, 1987.
MUKAROVSKY. J. Escritos de Estética y Semíôtíca dei Arte. Barcelona.
Gustavo om, 1977.
PAZ, O. EI Arco y la Lira. México. Fondo de Cultura Económica, 1970.
PAZ, O. Corriente Alterna, México. Siglo XXI. 1969.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 • N" 8 e 9 47


Por ummodelo
unificado da
cognição discursiva*

Paulo Eduardo Lopes

1- Introdução

Algumas tentativas têm sido feitas, recentemente, de sistematizar as


aquisições teóricas dispersas nos trabalhos dos semioticistas greimasianos
acerca dos elementos enunciativos do discurso, no rumo de um modelo unitário
e coerente como o que já se logrou elaborar para a descrição do enunciado. Há,
inclusive, propostas que querem ver as estruturas da enunciação tratada de
modo análogo às do enunciado: Barros'!', por exemplo, retomando idéias
lançadas por Hammad'ê', esboça uma análise das estruturas narrativas da
enunciação, atribuindo diferentes papéis actanciais às suas instâncias, segun-
do, ao nível das suas estruturas discutsivas,a enunciação seja tomada como a
realização do tema da produção ou do tema dacomunicação do enunciado-
discurso.

Sem pretender estender-nos, aqui, sobre as possibilidades e os problemas


abertos por tais propostas, reteremos alguns de seus pontos para enfocar as
funções enunciativas desempenhadas, nos limites do enunciado, pelas instân-
cias da dimensão cognitiva.

(*) - Resumo parcial do Capítulo IV da dissertação de mestrado A condição humana, Estudos de


semiótka da enundaçãoemMagritte,defendidaemsttembrodc 1989, na ~la de Comunícações e Artes (ECA-
USp).

SlGNIACAÇÃO - OUTUBRO/1990 • NR 8 • 9 49
PAULO EOUARDO LOPES

2- A dimensão cognitiva na
teoria-padrão greimasiana

A estrutura cognitiva elementar tem sido descrita como a relação entre


um sujeito e um objeto de conhecimento, estabelecida pelo enunciado:

s n °
Greimas e Courtês (3) reconhecem, ainda, que a dimensão cognitiva do
discurso, constituída pela integração desses enunciados elementares, pressupõe
necessariamente a existência de uma dimensão pragmática, que lhe serve de
referente interno e à qual é hierarquicamente superior. Com isso, consolidou-
se na teoria padrão o seguinte esquema do enunciado cognitivo mínimo:

-> dimensão cognitiva

0d -> dimensão pragmática,

onde:

SI = sujeito de estado I de fazer pragmático;

O, = objeto-valor descritivo;

S2 ~ sujeito cognitivo;

Os = objeto-valor de conhecimento.

A partir dessa concepção, as pesquisas levaram a distinguir-se diversos


tipos de sujeitos cognitivos, de acordo com os papéis temáticos manifestados no
discurso: informante; narrador, narratário, observador, etc. Os vários sujeitos

50 SIGNIFICAÇÃO - 0UTUBR0/1990 - NO8 e 9


POR UM MODELO UNIFICADO DA COGNiÇÃO DISCURSIVA

cognitivos seriam encarregados da construção do saber discursivo,


desempenhando, no que tange à dimensão cognitiva, as funções atribuíveis, em
última instância, a enunciador e enunciatário -- respectivamente, destinador e
destinatário implícitos da enunciação:

s n O

--> dimensãocognitiva

---> dimensão pragmática

onde:

S> sujeito da enunciação (enunciadorjenunciatário)

0= enunciado-discurso

3- Avaliação

A nosso ver, o principal problema suscitado pela multiplicação dos


sujeitos cognitivos a que levaram as pesquisas está em que tal fato - que
corresponde a um refinamento dos instrumentos descritivos da cognição discur-
siva- não se fez acompanhar, até agora, de um esforço de sistematização que
fosse capaz de articular os diferentes papéis temáticos entre si. Em outros
termos, pode-se fazer o inventário das várias instâncias cognitivas presentes em
dado discurso, mas fica-se sem saber exatamente como esse amontoado de
intermediários pode construir outra coisa que não um amontoado de conheci-
mentos díspares. Ademais, todo trabalho descritivo assim formulado corre o
risco de contaminar-se com as peculiaridades do discurso tomado por objeto,
generalizando o que não é senão particular (e vice-versa) (4). Buscando
contornar esses problemas, faremos uma rápida reflexão sobre a natureza
temática da dimensão cognitiva.

SIGNIFIGAÇÁO . OUTUBR0/1990 . N" 8 e 9 51


PAULO EDUARDO LOPES

4- Os níveis cognitivos

Como já deixamos registrado, Barros su,gere que a enunciação pode ser


contemplada como uma configuração que subsume dois percursos temáticos
complementares: o de produção e o de comunicação do enunciado-discurso. Se
considerarmos, em seguida, que a dimensão cognitiva é uma das componentes
da esfera enunciativa (assim como haveria uma dimensão pragmática e uma
dimensão patemica da enunciação), parece lícito afirmar, analogamente, que
todo ato cognitivo pode ser descrito como a produção e a comunicaçâo de um
saber. Assim, as diversas instâncias cognitivas seriam classificáveis segundo a
natureza temática do saber: o sujeito observador, por exemplo, encarregar-se-
ia de produzir conhecimentos: o sujeito informante, bem como o sujeito
narrador, estaria incubido de comunicar conhecimentos.

Alguma conscquências dessa classificação podem ser imediatamente


extraídas:

a) a dimensão cognitiva de todo discurso deverá ser descrita em


dois níveis complementares e necessários: o da produção e o da
comunicação do saber;

b) quanto às instâncias cognitivas, haverá pelo menos um sujeito


encarregado da produção, um sujeito encarregado da trans-
missão e outro da recepção do saber, ainda que, a nível actorial,
esses actantes sejam investidos num único ator, ou em vários
atores, ou pennaneçam implícitos na manifestação;

c) nâo poderíamos fixar, exceto por uma abstração metodológica,


apenas a função de produzir o saber para determinado actante,
ou apenas a função de comunicar o saber para outro actante;
basta lembrar que todo observador, para executar seu papel,
deve comunicar para si próprio aquilo que observa (5), do
mesmo modo que todo narrador deve observar um objeto para
saber o que vai comunicar: a produção e a comunicação de um
conhecimento são funções interdependentes, ativadas simulta-
neamente em cada ato cognitivo.

52 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N2 6 9 9
POR UM MODELO UNIFICADO DA COGNiÇÃO DISCURSIVA

5- Hierarquia dos níveis no modelo

Cabe, em seguida, indagar sobre o modo de articulação dos dois níveis


cognitivos entre si. Sempre ressalvando o caráter puramente metodológico da
distinção realizada, admitiremos que, assim como todo saber, para produzir-se,
requer a existência de uma dimensão pragmática como referente, todo saber,
para ser comunicado requer que se postule ter sido-previamente produzido.
Portanto, diremos que o nível da comunicação pressupõe o nível da produção
do saber, que lhe é hierarquicamente inferior.· ,

6- Esquema gráfiCO

Incluiremos as reflexões que realizamos no modelo esquemático produ-


zido acima. Para tanto, preservando uma terminologia que, em essência, é
predominantemente visual - cfe. observador, ponto de vista, perspectiva, etc. -
lançaremos mãodo conceito de espetáculo, já utilizado em semiótica, chamando
os níveis do gráfico de cenas:
-------
D) NÍVEL DA CENA DE ENUNCIAÇÃO NÃO ENUNCIADA
R
(saber sobre a representação) S nÓ E
p
I
R
ENUNCIAÇÃO(REPRESENTAÇÃO) I R
E
S
E
E
C) NÍVEL DA ~ns p
N
T
CENA DA NARRAÇÃO 13 s 14 R
A
ç
(fazer - saber) E A
o
S
~D' E o
8
N
S2 n Os n SJ
S

I/I
T E
B) NÍVEL DA A
R
V
CENA DA OBSERVAÇÃO ç A

(saber) O2 D
Dl / Ã A
J,
A,---------- O
-!,
A) NíVEL DA
CENA OBSERVADA
(ser/fazer)
r n °d u S2
I
P
O
S
E
S
P
E
T

Dl O 2 T
Á
c
U
A L
--- o
SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 . N' 6 e9 53
PAULO EDUARDO LOPES

7. Parâmetros de definição das funções cognitivas


o modelo assim produzido visa a sistematizar as operações cognitivas
que, articulando-se entre si, realizam o saber discursivo como uma totalidade
de sentido, diferente da simples soma dos saberes parciais de que o enunciado
se constrói. Trata-se, é evidente, de considerar que O trabalho enunciativo
consiste, dentro desta perspectiva, na contextualização dos conhecimentos no
interior de esferas cognitivas cada vez mais amplas.

7.1- Articulações contextuais

As funções exercidas pelas instâncias de cada nível podem ser compara-


das com aquelas dos três textos produzidos pelas propriedades necessárias do
discurso registradas por Lopes, em artigo publicado em outro número desta
revista (7):

- afundação da realidade a ser conhecida: função atribuível aos níveis da


Cena Observada (quanto aos contextos postos e da Cena da Enunciação Não
Enunciada (quanto aos contextos pressupostos do discurso);

- a predicação da realidade fundada: função desempenhada pelas instân-


cias do nível da Cena da Observação, que produziriam saberes locais e parciais
sobre determinados objetos;

- a interpretação dessa predicação: função das instâncias do nível da


Cena da Narração, incumbidas de coerentizar e dotar de sentido narra tológico
os saberes parciais que tem por objeto.

7.2- Aportes paradigmáticos e sintagmáticos

Tais propriedades podem ser, ainda aproximadas da definição das articu-


lações sêmicas que constroem o semema, na concepção de Assis Silva (8):
+ +
J; J
I SUI4c I r
aporte 1 I aporte de 2°' nível
I
~ ~
relativa à domínio de manifes- relativa às categorizações
percepção do tação da atividade noológicas 4<> Mundo
Mundo Natural humana de reconfigu- Natural pela Língua
ração da relação Natural
MNxLN

54 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990· N" 8 8 9


POR UM MODELO UNIFICADO.DA COGNiÇÃO DISCURSIVA

";.,
onde:
,-

SM = sernema;

Bs= base sêrnica, figura nuclear simples;


Se = semas contextuais;

Bc = base c1assemática.

A comparação entre as características dos ~c e da Bc torna tem claro flue"


enquanto os primeiros são dependentes da figura nuclear simples, produzindo-'
lhe um contexto mínimo, de curto alcance, a segunda é criadora de contextos
de amplo alcance, nos quais todos os contextos mínimos podem s~~ incluídos,
construindo um texto. Dito de outro modo, os semas contextuais inclue'm abase
sêmica no âmbito de um paradigma figurativo, cujas virtual idades são, por seu
turno, submetidas a uma seleção com base nas coerções do contexto sintagmá-
tico em que deve ser "costurado", produzindo uma isotopia de leitura.
Analogamente, os níveis do modelo cognitivo realizam diferenciados aportes
sobre os objetos de uma dimensão pragmática dc suporte, de tal forma que
podemos definir o seu funcionamento como segue:

- Cena da Observação: produção do saber por contextualiração paradig-


mática do objeto;

- Cena da Narração: transmissão do saber por contextualiração sintag-


mática do objeto.

o saber em trânsito no modelo pode ser tcxtualizado em qualquer nível


de seu percurso. Assim, podemos prever dois efeitos de sentido, segundo o nível
cognitivo focalizado na textualização:

- texiualização no nível da Cena da Observação = saber conotado (isto é,


diversos saberes paradigmáticos simultaneamente sintagmatizados, apontando
para diversas possibilidades combinatórias e leituras pluriisotópicas);

- textualizaçãono nível da Cena da Narração = saber denotado (isto é.


sintagmatização monoisotópica dos saberes produzidos, "costurados" narrato-
logicamente por força de uma recatcgorização classemática) (9).

SIGNIFICAÇÃO OUTUBRO/1990· N" 8 e9 55


PAULO EDUARDO LOPES

8- O ponto de vista: focalização e perspectivização

Cada instância da dimensão cognitiva, costuma-se dizer, impõe um palito


de vista sobre os objetos a serem conhecidos. Sabe-se que um ponto de vista
define-se como sendo, ao mesmo tempo, "uma decupagem e uma" valoriza-
ção"(IO)do universo de referência, ou seja:

- uma focalização, processo que funda a realidade de quc se vai falar e que
funda, concomitantemente, aquele que vai falar dessa realidade, estabelecendo,
portanto, a relação espectador/espetáculo; e

-úmaperspectivização, processo de predicação/interpretação da realida-


de fundada.

Como vimos, os processos cognitivos podem ser descritos enquanto


scleçõcse combinações de elementos paradigmáticos e sintagmátieos, os quais,
a nível profundo, organizam-se a cada vez segundo uma estrutura elementar
binária, Dissd podemos inferir que há sempre duas maneiras de atualização de
qualquer relação entre termos, e somente duas: pela compreensão das di [crenças
que os distinguem ou pela comprccnsãoidas identidades que mantém entre si.
Se tomamos de empréstimo a Bcnvcniste os conceitosdeforma (a capacidade
de lima unidade linguística de dissociar-se em constituintes denívc\ inferior) e
de sentido (a capacidade de uma unidade linguística deintegraruma unidade de
nível superior) (11\ concluímos, enfim, que o saber construído sobre um objeto
qualquer pode" ser entendido por um de dois modos:

- saber = forma do objeto;

-saber = sentido do objeto.

Entretanto, o conhecimento tem que ser atribuível a um sujeito, em sua


relação com um objeto. Na dependência do saber construído, poder-se-á
classificar a relação cogn,itiva como:

- Perspectivizaçâo analítica: o sujeito compreende o objeto


pela sua forma;

- Perspectiviraçâo sintctica: o sujeito compreende o objeto


pelo seu sentido.

56 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 . N"8 e9


POR UM MODELO UNIFICADO DA COGNiÇÃO DISCURSIVA

9- Verificação - relâmpago .

Vejamos, por exemplo" o, que ocürre com o, seguinte poema de Décio,


Pignatari: ' .

"FEMME
Elle s' ouvre
elle s'offre
elle souffre"

a) Iocalizaçâo: funda um objeto a ser conhecido ( "femme ") e um su-


jeito, do, conhecimento (que, no, caso" permanece implícito);

b) perspectivização:
- no, níve Ida Cena da Observação: o, sujeito, cognitivo observador
produz, por perspectivização analítica, dois contextos paradigmáti-
cos de integração, do, objeto:

FEMME
/ ""
"elle s'ouvre" "elle souffre"

"elle s'offre"

--~---- vs ---~----
"transitividade •• "reflexivídade ••

- no, nível da Cena da Narração: o, sujeito cognitivo narrador integra os


saberes antagônicos produzidos no, nível inferior, por um processo de perspec-
tivização sintética:

"transitividade" vs "reflexividade"

SI S2

S
"relacionamento"

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBR0/1990 - N' 8 e 9 57


PAULO EDUARDO LOPES

Se analisamos o plano da expressão do poema, descrevemos um outro


percurso cognitivo, em que há uma espécie de inversão de perspectiva:

- no nível da Cena da Observação, produz-se um saber sobre o sentido de


dois termos-objeto, por perspectivização sintética:

"s'ouvre" vs "s'offre"

r.

- no nível da Cena da Narração, esse percurso é refeito, por análise, sendo


compreendido como uma segunda isotopia de leitura do poema, que poderíamos
traduzir aproximadamente como: .

"sofrer é a conseqüência inevitável de abrir-se e oferecer-se ao


outro ", ou mesmo:
"sofrer está contido em abrir-se e oferever-se ":
1· .
"souffre " ~ "s 'ouvre" + "s 'offre ".
I .. H ,.'

58 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBR0/1990 • N° 8 e 9
POR UM MODELO UNIFICADO DA COGNiÇÃO DISCURSIVA

10- Resumo

Propomos, para visualização do conjunto, o seguinte gráfico:

-----> Espetáculo

enunciação
não enunciada

I pressuposta
enunciação enunciado
enunciada enunciado

cena da cena da cena


narração observação observada

perspectiv. perspectiv. perspectiv. perspectiv.


analítica sintética analítica sintética
l'

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N° 8 e 9 59
PAULO EDUARDO LOPES

11 - Ampliação do campo

o trabalho que expusemos em linhas gerais deveria enquadrar-se na


esfera de pesquisas mais amplas sobre o saber e a dimensão cognitiva do
discurso, tais como aquelas realizadas por Fontanille, em Le savoir partagé.
Começando com a análise do «núcleo sêrnico IsaberJ», ele desenvolve uma
tipologia cognitivaonde.distingue entre saberes "semi óticos" e saberes "meta-
scmióticos" e, entre estes, saberes meta-semióticos "inferenciais" ("cujo con-
teúdo é o funcionamento do percurso gerativo da significação") e saberes meta-
semióticos "transversais" (que permitiriam a integração das diversas "ordens"
de grandezas sernióticas no interior de um mesmo nível do percurso gerativo)
(12). Tendo em vista uma tal tipologia, nosso modelo cognitivo deveria dar conta

tanto da articulação de saberes propriamente "semi óticos" (ver nível da Cena da


Observação) quanto de 'saberes meta-sernióticos de tipo transversal (os quais,
em última análise, cuidariam da integração dos saberes semióricos no âmbito
de uma isotopia cognitiva produzida na Cena da Narração). Restaria, finalmente,
encontrar um lugar nesse modelo para a instalação dos saberes inferenciais,
capazes de abri o caminho dos estudos sobre o problema da conversão entre os
níveis do percurso gerativo.

NOTAS

1- Ver Teoria do discurso: fundamentos scmióticos, de Diana


Luz Pessoa de Barros (1988), págs. 136 a 140.

2- Manar Hammad. "1./ Énonciation: Procês et Systême", in:


PARRET, org. (1983), págs. 35 a 46.

3- GREIMAS & COURTES (1983), pág. 52.

4- Temos um exemplo de particularização de um fenômeno universal


da discursivização no seguinte trecho do Dicionário de semió-
tica, de Greimase Courtês:

"Assim entendida, a definição de espetáculo compreende, do


ponto de vista interno, características tais como presença de um
espaço tridimensional fechado, distribuição proxêmica, etc., ao
passo que, do ponto de vista externo, ela implica a presença de um
actante observador (com o que se excluem dessa definição as
cerimônias, os rituais míticos, por exemplo, em que a presença de
espectadores não é necessária)" (GREIMAS & COURTES,
op. cit., pág. 452 - grifo nosso).

60 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 • NO8 e 9


POR UM MODELO UNIFICADO DA COGNiÇÃO DISCURSIVA

o equívoco de considerar como facultativa a existência de certas


instâncias cognitivas necessárias à mise en discours parece-nos
uma decorrência do modo assistemático como a dimensão do
saber tem sido descrita.

5- O papel do sujeito observador é complexo: quanto à performance,


caracteriza-se por uma estrutura temática reflexiva (subsumindo
destinador e destinatário na construção do saber); quanto à com-
petência, possui uma estrutura temática transitiva (isto é, ele é o
delegado -- logo, o destinatário do sujeito enunciador, que lhe
confere o poder-observar em seu nome ou em nome de seu grupo
social).

6- Ao tempo em que não parece haver problema em instalar, como


instância cognitivas da Cena da Narração, a dupla narrador/
narratário, a natureza temática do saber produzido na Cena da
Observação, com características simultaneamente reflexivas e
transitivas (cfe. nota nº. 5), dificulta a aplicação do nome de
observador à dupla de sujeitos aí posicionada: o sujeito SJ seria
apenas um "desmembramento" de S2' ou antes, a explicitação da
competência paradigmática do observador S2' Talvez a melhor al-
ternativa seja conservar o nome de observador para S2 e adotar o
nome de "observatário" para S3' conforme sugestão do prof.
Eduardo Periuela Cafiizal.

7- Edward Lopes. ,.Articulações Contextuais do Discurso". Signifi-


cação. Araraquara, C.E.S., 1985, n° 5, págs. 15 a 33.

8- Ignácio Assis Silva. "A Configuração Semântica do Texto". Revista


de Cultura Vozes, Vol. LXIX, n? 3, págs. 171 a 180; e "A
Construção do Ator: do Signico ao Simbólico". Signilicação~
São Paulo, c.E.S., 1987, N° 6, págs. 51.a 57.

9- Evidentemente, quando dizemos que a textualização do saher


pode dar-se a partir da Cena da Observação, não se trata de
escamotear o trabalho cognitivo da Cena da Narração; trata-se, ao
contrário, da distinção entre dois diferentes programas narrativos
a serem cumpridos pelos sujeitos cognitivos da própria Cena da
Narração:
-- PN1: F (produzir saber conotado = textualização do saber ao
nível da Observação);

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· NO8 8 9 61


PAULO EDUARDO LOPES

-- PN2: F (produzir saber denotado - textualização do saber ao


nível da Narração).
Ressaltemos que, no caso de realizar-se o PNt ' a função classemá-
tica aparece como criadora de uma isotopia global que podería-
mos expressmar como "diversas isotopias de leitura são facultadas".

10- Greimas eCourtês (1986), pág. 171.

11- Émile Benveniste (1966), págs, 126 a 127.

12- Jacques Fontanille (1987), págs. 21 a 34 e 49 a 54.

BIBLIOGRAF1A

ASSIS SILVA, L 1975. "A Configuração Semântica do Texto". Revista de


Cultura Vozes, vol. LXIX, n° 3, págs. 171 a 180.
____ .1987. "A Construção do Ator: do Signico ao Simbólico". Significa-
ção. São Paulo, C.E.S., n° 6, págs. 51 a 57.
BARROS, D.L.P. de. 1988. Teoria do discurso: fundamentos semióticos.
São Paulo, Atual.
BENVENISTE, E. 1966. Problêmes de linguistique générale. Paris,
Gallimard.
FONTANILLE, J. 1987. Le savoir partagé. Sémiotique et théorie de la
connaissance chcz Marcel Proust. Paris-Amsterdam, Hadês-
Benjamins.
GREIMAS, A.J. & COURTES, J. 1983. Dicionário de semiótica. São Paulo,
Cultrix.
_____ . 1986. Sémiotique. Dictionnaire raisonné de la théorie du
langage. II~ Paris, Hachette.
HAMMAD, M. 1983. "L'Énonciation: Procés et Systême", in: PARRET
(org.). La mise cn discours. Revista Langages, Paris, Didier-Larousse,
n° 70, págs. 35 a 46.
LOPES, E. 1985. "Articulações Contextuais do Discurso". Significação.
Araraquara, C.E.S., n° 5, págs. 15 a 33.

62 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 - N° 8 e 9
A Intertextualidade
Conotada

Eduardo Peiíuela Caiitzal

Diz Roland Barthes que, diante de uma foto, "aconsciéncia não toma
necessariamente a via nostálgica da lembrança (quantasfotografias estão fora
do tempo individual), mas, sem relação a qualquer foto existente 110 mundo, a
via da certeza: a essência da Fotografia consiste em ratificar o que ela
representa". (1984: 127-128) Com base nessas palavras, tenho para mim que a
hipótese levantada pelo famoso sernioticista abre novos caminhos àcompreen-
são de mensagens fotográficas, embora seja conveniente acautelar-se da idéiá
de que aquilo que a foto representa se reduz à reprodução de elementos
exteroceptivos do mundo. É preciso admitir que as mensagens fotográficas
representam também aspectos ou traços do mundo e das linguagens que
interferem nos atos sociais que não são, forçosamente, visíveis. O fato de que
toda fotografia seja "um certificado de presença", como reconhece o autor da
Câmara Clara, não valida o princípio de que a presença de alguma coisa só se
manifesta quando se torna palpável.

Parece mais prudente conviver com o pressuposto de que o espaço do


discurso fotográfico é, no mínimo, lugar onde habita a suspeita, tal qual o
próprio Barthes insinua em fragmento que continua o trecho já citado: "Certo
dia, recebi de um fotógrafo uma foto minha, sendo-me impossível, apesar de
meus esforços, lembrar-me de onde fora tirada; eu examinava a gravata, o
pulôver, para descobrir em que circunstância eu os tinha usado; trabalho inútil.
Todavia, porque era uma fotografia, eu não podia negar que eu tinha estado lá
(mesmo que eu não soubesse onde). Essa distorção entre a certeza e o
esquecimento me deu uma espécie de vertigem, e COI/IO que uma angústia

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBR0/1990 - NO8 e 9 63


EDUARDO PENUELA CANIZAl

policial ( o tema de Blow-up não estava distante); fui ao vernissage como a um


inquérito, para enfim tomar conhecimento daquilo que eu não sabia mais a meu
respeito." (1984: 128). Mas talvez o pensamento de Barthes não se altere muito
se reformulo essa última frase e, mesmo conferindo-lhe um sentido coletivo,
digo que o que desejamos diante de uma fotografia é tomar conhecimento
daquilo que a própria representação oculta a seu respeito. Nesse' caso, a
mensagem fotográfica assume as características de um texto conotado ou, em
outras palavras, de um texto em que, quando menos, se esconde outro texto.

Metalingüísticamente falando, o termo texto se legitima no pressuposto


de que "discurso e texto têm sido empregados para designar igualmente
processos semióticos não-lingüísticos (um ritual, umfilme, um desenho anima-
do são então considerados como discursos ou textos), já que o emprego desses
termos postula a existência de uma organização sintagmática subjacente a esse
gênero de manifestação." (Greimas/Courtés, s/d: 126). Enquanto texto, uma
fotografia coloca em jogo, pois, os elementos fotografados e a disposição que
eles ganham no espaço da representação. Assim, por exemplo, diante desta foto
de Flávio Frederico - figura 1 -, não me será difícil identificar as relações que
esse jogO atualiza e, com base nelas, lançar-me ao exercício de interpretar, entre
outras, a projeção paradigmátiea responsável por essa rima que se instituiu a
partir da reiteração de ondulações coincidentes no espaço em que, sintagrnati-
camente, se ordenam diferentes representações de um corpo feminino. Não há
como negar, portanto, que, neste texto, o fotográfico, ao combinar representa-
çõcs de diversos momentos dos movimentos rotatórios e translatórios efetuados
pelajovcm fotografada e pela boneca se refletindo no espelho, transcende, creio,
os objetivos perseguidos por Hockney quando, referindo-se a suas próprias
produções fotográficas - figura 2 -, declara: .

"First of ali, I immediately realized /'d conquered my problem with


time in photography. It takes time to see these pictures - you can /ook
at thetn for a long time, they invite that sort of looking. But, more
importantly, J realizai that this sort of picture came closer to how we
actually see, which is to say, not all-at-once but rather in discrete,
separate gllmpses which we then build up into our continuous
experience of the world. Looking at you now, my eye doesn't capture
you in your entirety, but instead quickly, innervous little glances. I
look at your shoulder, and then your ear, your eyes (maybe, for a
m 01/1 ent, if I flOW you well and have come to tru..••t you, but even then
only for a moment], your sheek, your shirt button, your shoes, your

64 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N98 e 9


A INTERTEXTU"LlDADE CONOT ADA

~
•..

I I

"Mother". Foto David Hockney

S GNIFCAÇÃO OUTUBROI' 990 N9 6 e 9 65


EDUARDO PENUELA CANIZAL

hair, your eyes again, your nose and mouth. There are a hundred
separeted looks across time from which I synthesize my living
impression ofyou. And this is wonderful.lj, instead, I caught all of
you in one frozen look; the experience would be dead - it would be
like ... itwould be like looking at an ordinary photograph. "(Weschler,
1984:11).

Com variáveis desse procedimento recomendado por'Hockney, o texto


fotográfico de Flávio Frederico traz ao espaço da representação enunciados de
umrelato, mas, em razão de certas distorções, as ações capturadas pela câmera
se impregnam de valores conotados, já que a conotação "poderia ser interpre-
tada como o estabelecimento de uma relação entre um ou mais semas situados
num nível de superfície e o semema de que eles fazem parte e que deve ser lido
em nível mais profundo." (Greimas/Courtés: sld, 77). Vale dizer, por conseguin-
te, que a continuidade vivida pela jovem em seus movimentos existenciais tem
de ser lida na descontinuidade que eles assumem no espaço da foto. Em virtude
disso, o semema a ser lido em nível mais profundo produz significados que
alteram, por força, os conteúdos estereotipados de que, com frequência, se
servem os teóricos do discurso quando lidam com determinadas categorias do
universo semântico. Ilustra bem o problema, por exemplo, esta passagem do
livro Teoria do Discurso: "Retoma-se, como ilustração, o texto 'O vento no
canavial "já utilizado no item sobre o percurso gerativo, para melhor situar os
conceitos da gramática fundamental. Investindo o quadrado semiôtico com as
categorias semânticas do poema citado, tem-se:

s1 ~------------------~ s2
continuidade ruptura
morte vida
estaticidade dinamicidade

a si
não-ruptura descontinuidade
nêo-vki« não-morte
não-dinamicidade não-estaticidade

(Barros: 1988, 21). Quer me parecer, enfim, que o texto conotado que se
oculta nas mensagens fotográficas se legitima, semanticamente falando, em

66 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/l990· N" 8 9 9


A.INT ERTEXTUALlDADE CONOTADA

Foto Flávio Frederico

SIGNIFIC,t,Ç.'O OUTUBAO.19!lJ N° 8 ~ 9 67
EDUARDO PENUELA CANIZAL

sememas que se diferenciam daquelesque a semi ótica discursiva congela para


fazer suas interpretações do poético.

Além disso, o texto conotado que se oculta no discurso fotográfico se


reveste, por ser, ao que tudo indica, fruto de reorganizaçâo original dos
componentes de diferentes níveis textuais, de uma particularidade que deve ser
relevada: ele se firma, também, como um discurso fornecedor de conhecimento.
Digo isso porque, no tocante ao tipo de representação posto ern prática na foto
de Flávio Frederico, pode aplicar-se ao discurso fotográfico que aqui se comenta
o que Lotman estabelece quando se refere ao texto literário nestes termos:

"alie CWI concelve lhe process of obtaining knowledge as the


copying of a text in some kind of dif.ferent but somehow adequate way.
Ifwe represent ali object as a text ofthe zero levei, then our knowledge
ofthe object can be interpreted as a recodification ofthat text into a
different system of sign notation. Since ir is important 'that signs be
differentiaded from that which is designated in an objectively regis-
tered way, the greater the distinction the more useful the signs', then
the text, fixed in our consciousness or in some system of science, is
always a text isomorphous with the object, on the one hand, and
altercd in relatlon to the object, 011 the other. Ir isnot accidental that
one of the basic questions ofliterary representation ofthe real world
will be lhe question about the types and regularities of its deforma-
tion. There is no need whatsoever to recall that deformation in this
case is in no way equivalent to distortion. On the contrary, ir is a
means and a condition to knowledge. A map, as with any projective
model, is a deformation of a relief, if only because ir is a projection
of a three dimensional space into a two dimensionalspace. However,
a map is a means ofknowledge ofthe a actual relief. "( Lotman: 1975,
203).

Desse ponto de vista, na foto de Flávio Frederico se vislumhram aspectos


do ritual dionisíaco, configurações que, em razão da origninalidade do processo
organizatório, me fazem perceber que toda orgia - aí incluída naturalmente a
poética - constitui, no fundo, uma tentativa "pour se garantir contre la 'folie'
(pathologique] et I'angoisse de la mort en se livram à une 'folie' rituellement
provoquée (extase, possession]. Faire le fou pour ne pas l'être. Telle semble
avoir éfé lafonctlon de I 'orgie dionysiaque," (Bourlct: 1983,9-10). Nesse caso,
a estaticidade que se manifesta no texto fotográfico propriamente dito não

68 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 • Nº 6 e9
A INTERTEXTUALlDADE CONOTADA

serviria para caracterizar o lexema morte: isto é, a representação fotográfica dá


à continuidade do movimento existencial uma organização descontínua e, dessa
maneira, encena o ritual da morte para não ser mortal, foge das sombras, por
dizer assim, para permanecer na luz. Compreende-se, então, que "lo que
muestra la fotografia, una vez revelada la pelicula, es algo que no via el ajo o
que no pudo reterner la memoria:" (Paz: 1982, VI).

Penso, pois, que o texto fotográfico, ao permitir, de uma lado, a


organização de semenas que relativizam os valores da-categoria semântica vida!
morte e, de outro, a manipulação das gradações da luz, sempre mantém uma
relação com outro texto que se esconde. Daí a idéia de intertextualidade
conotada. Ou seja: um sistema ERC que se relaciona com um sistema C, tendo
este último sistema como plano da expressão o primeiro. Assim, se consideram
as manipulações da luz que se tomam necessárias para que a substância da
expressão fotográfica adquira forma, o texto denotado da intcrtcxtualidade - o
sistema ERC - é fruto, enquanto efeito de um processo de revelação, de várias
etapas ritualísticas. A esse respeito é relevante a posição assumida por David
Tomas quando estabelece vínculos entre os ritos de separação, de marginaliza-
ção e de agregação e a fotografia, já-que fotografar nada mais é do que separar
um objeto do mundo, marginalizá-lo na escuridão sombria de um negativo para,
ao final, agregá-lo, uma vez revelada sua imagem, ao mundo das práticas
sociais. Por isso, o texto fotográfico, sendo produto final de um complexo
cerimonial, representa

"the culturalization or socialization of two particular segments of


nature. It achieves this by reconciling their contrariness within its
structure. The two natural elements are light and absence.Some
explanation is need at this point, Light is ephemeral, but by revealing
all it creates order. As the agent of human perception it defines and
thus orders the world. lts nonexistence - darkness - denotes desorder.
Absence, on the other hand, defines the world in a complementary
manner. It denotesdisappearance, the passing from view, Perma-
nently ar momentarily, absence connotes movement. It is an empty
category but always defined in terms of its opposite - presence. The
four terms light, darkness, absence, and presence concern the faculty
of seeing. They relate to visual knowledge. The diagram below sets
out the four-elements relationship:

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBR0/1990· N· 8 e 9 69
EDUARDO PENUELA CANIZAl

Ught Absence

Presence Darkness

What was at first a seemingly arbitray relationship


has, with the insertion ofthe two related opposites, become a system
ofrelationships. (Tomas: 1982, 3-4).
n

David tomas mostra como a cerimônia fotográfica se realiza através da


articulação das oposições e de seu conseqüente trabalho de permutação. Mas
procura, também, dar consistência ao seu sistema de relações amparando-se,
principalmente, na antropologia e, em especial, na já clássica definição que nos
deixou Lévi-Strauss ao identificar os atributos específicos do ritual na reorga-
nização de uma experiência sensível no contexto de um sistema semântico.
Resulta aceitável, portanto, o argumento de que o ritual fotográfico "functions
to symbolically mark: the death of the subject by its optical and dimensional
transformation. Further, itfreezes the 'unstructured' subject during aperiod of
ritual and sacred isolation and finally marks the reintroduction or the
reincarnation ofthe subject imo society by means ofits 'restructuralization', in
the form of a new photographic state of social and symbolic timelessness and
spacelessness", (Tomas: 1982,9). Em trabalho posterior, o modelo é aperfei-
çoado e (Tomas: 1983) consegue dar-lhe maior valor sistemático com o auxílio
de idéias de Sontag, Bourdieu, Benjamin, Berger e Barthes, entre outros. Assim,
considera as relações luz-presença e escuridão-ausência como componentes de
um sistema isomórfico que, simplesmente, nos diz que podemos ver na
presença da luz e que não vemos napresença da escuridão. Mas se contrapomos
a esse tipo de isomorfismo o não-isomorfismo que se instaura a partir das
combinatórias luz-ausência e escuridão-presença cria-se, sem dúvida, a possi-
bilidade de poder ver na escuridão e, nesse caso, quero crer que o texto
fotográfico pode ser entendido, também, como a transformação donão-isomórfico
em isomórfico. Em suma, o discurso fotográfico, se se admitem esses pressu-
postos, aponta com sua textualidade denotada para um texto conotado em que
se vislumbram traços órficos.

70 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - NQ 8 e9
A INTERTEXTUALlDADE CONOTADA

Cada vez que me detenho no conteúdo dos versos em que Virgílio (1982)
expressa os momentos fundamentais do mito de Orfeu, insisto na idéia de que
a imagem de Eurídice na escuridão e o desejo que tem Orfeu de preservá-la
formam configurações definidoras do ritual fotográfico. Pouco' importa se
Orfeu, movido por pulsões ainda não muito bem esclarecidas, vela para sempre
a imagem que tanto ele queria livrar da escuridão, já que, em. termos de
significação, oreIevante são as gradações de luminosidade que ele enfrenta em
sua viagem ao reino dos manes e, ainda, as posições que ele ocupa nos
momentos decisivos de seu percurso. Neste ponto, as travessias de Orfeu
lembram de perto as andanças dos mortos descritas pelos' egípcios: longas e
tenebrosas jornadas durante as quais os protagonistas, tendo como única
companhia seus khaibits, tinham de traspassar as sombras densas assombras e
úmidas para conseguir chegar até as sombras exteriores. Talvez em razão dessa
experiência um poeta da 12a dinastia, ao dialogar com sua alma, refira-se à
morte desta maneira:

"La mort est aujourd'hui devant moi


comme la guerison devant un malade,
comme la premiêre sortie aprês une maladie.

La mort est aujourd'hui devant moi


comme le parfum de la myrthe,
comme lorsqu '011 est sous la voile, par grand vento

La mort est aujourd'jui devant.moi


comme le parfum du lotus,
comme lorsqu '011 se tient sur la rive de l'ivresse.

La mort est aujourd'hui devant mo;


comme UII chemin connu,
comme lorsqu 'un homme revient de la guerre vers sa maison.

La mort est aujourd'hui devant moi


comme un ciel que se dévoile,
com me lorsqu 'un homme découvre ce qu 'il ignorait. "

SIGNIFICAÇÃO OUTUBRO/1990· N" 8 e 9 71


EDUARDO PENUELA CANIZAL

Evidentemente nesse poema - copiado do Catalogue dedicado à exposi-


ção sobre a escrita que teve lugar nas Galeries Nationales du Grand Palais, em
junhode 1982 -, asformas do conteúdo não se engendram nos sememas (ou
metassememas, como querem os autores da Retórica Geral) de que boa parte
de estudiosos se servem para interpretar as metáforas da morte na poesia
ocidental. Por outro lado, convém notar que, neste insólito poema, la mort se
acha diante' do poeta assim como Orfeu diante de Eurídice, mas a morte será
'sempre um céu que se revela, isto é, as significações de um texto concitado que
se abre à leitura. Nesse sentido, o mito de Orfeu, independentemente do que, no
discurso fotográfico, represente o texto do sistema ERC, se configura como
universo semântico aoqual se vinculam as constelações conteudísticas
, . do texto
segundo ou ritualístico da fotografia, já que ele acolhe todas as características
essenciais dos ritos de marginalização.

Além disso, minha leitura dos versos de Virgílio trabalha com a hipótese
de que o fato de que Orfeu olhe para Eurídice não significa que ele a veja. De
modo que olhar não seria, no caso, sinônimo de ver e, partindo desse pressupos-
to, tenho de admitir que, na fábula de Orfeu, esses dois verbos formam
enunciados de estado cujas diferenças podem ser percebidas a partir desta
estrutura profunda
ccinjunção disjunção

não-disjunção não-conjunção

Quero crer que, com base nela, seja legítimo afirmar que o estado de
olhar tem suas raízes na disjunção, ao passo que o estado de ver tem as suas na
conjunção. Essa é, pois, a premissa em que me apoio para dizer que a
permanência a que se refere Tomas se relaciona com a temporalidade. Dessa
perspectiva, uma foto seria, em princípio, algo que resiste às erosões do tempo
e expõe, como comprovante dessa resistência, a imagem de superfícies olháveis
em que, de algum modo, se faz visível o narcisismo secundário tal qual o entende
Freud e, seguindo esse raciocínio, não deixa de ser promissora a idéia de se
aproximar do discurso fotográfico acreditando, com Lacan, que o "regard ne se
situe pas simplement au niveau des yeux. Les yeux peuvent três bien ne pas
apparaitre, être masqués. Le regard n 'est pas forcément la face de notre

72 SIGNIFICAÇÃO, OUTUBR0/1990· NO8 89


A INTERTEXTUALlDADE CONOTADA

semblable, mais aussi bien la fenêtre derriêre laquelle nous supposons qu 'il
nous guette. C 'est un x,1 'objet devant quoi le sujet devient objet," (Lacan: 1975,
245).

Por volta de 1700, Johan Heinrich Schulze, professor da Universidade de


Altdorf, percebe, depois de encher com giz, prata e ácido nítrico uma garrafa,
que "la partie exposée à la lumiêre noircit. Il appelle le produit qui noircit
scotophore (qui apporte les tenêbres ) par analogie avec le phosphore (qui
apporte la lumiêre], "(Keirn: 1979,7). Eis aí a raíz do fotográfico: fazer visíveis.
as escuridões e revelar suas riquezas significativas. Entre a luz e a escuridão se
movem as bússolas do ver e do olhar, mas o discurso da fotografia consegue
captar suas gradações tensivas e trazer à intertextualidade conotada que nele
instaura configurações em que, poeticamente, se enredam as sombras densas,
as. sombras úmidas e as sombras exteriores. Ou dito de modo mais sistemático:
configurações em que se interrelacionam os textos do narcisismo secundário
com os textos do narcisismo primário. Por isso, nós não sabemos muito bem "ou
est le subjectif, ou est l'objectif. Oubien ne serait-ce pas que nous avons
I 'habitude de mettre dans notre petite comprenoíre une distinction trop somaire
entre l'ojectif et le subjectif? L 'appareil photographique ne serait-il pas un
appareil subjectif, tout en entier construit à I 'aide d'un x et d'un y qui habitem
le domaine ou vit le sujet, c'est-â-dire celui du langage?" (Lacan: 1975,91).
Esse pode ser, enfim, um forte argumento para defender a inevitável intertex-
tualidade conotada do discurso fotográfico, se bem que aqui será utilizado como
suporte da ambigüidade e, por extensão, como suporte dos processos gradativos
e das tensões que eles geram.

Volto à fotografia de Flávio Frederico. Olho para ela e não sempre


consigo ver o que se coloca diante de meu olhar. Vislumbro nela sombras que
parecem fugir da nitidez e provocam, com sua indefinição, meu olhar, despertando
nele o desejode ver. Situo-me, pois, entre dois textos: o que se entrega à vista
e o que a instiga, isto é, o que se denota e o que se conota, Não me interessa,
contudo, prosseguir nesse vai-e-vem de incertezas. Prefiro, então, pensar que
olhar é um não-ver e, a partir desse dado, montar o seguinte jogo de. gradações
tensivas:
ver não-ver

ver (1)

SIGNIFiCAçÃO·
/\
OUTUBAO/l990·
ver (O)

N" 8 e 9
não-ver (1) não-ver (O)

73
EDUARDOPENUELA CANIZA!.

Retorno ao espaço da foto e constato que nele há lugares nítidos, áreas


com luminosidade, recantos escuros ou apenas turvos. Surpreendo-me com essa
gradação num primeiro instante, mas percebo, depois, que esses nomes me
servem para atribuir valores ao jogo de tensões acima esquematizado. Assim:

ver (1) luminosidade

ver (O) nitidez

não-ver (1) turvo

não-ver (O) escuridão

Posso organizar esse feixe de correspondências de outra maneira e


obter, por exemplo, o seguinte modelo:

ÓÊIXIS DÊIXIS
Narcisismo Narcisismo
secundário primário

Com base nele, não me será difícil sistematizar minha leitura organizando
núcleos de. sentido: de um lado, o sobredeterminado pelos componentes da
dêixis do narcisismo secundário - aí se incluem a boneca sentada, o retrato sobre
a parede, a cadeira, a jovem agachada ...-; de outro, o sobredeterminado pela
dêixis do narcisismo primário - há no centro da foto uma configuração
indefinida, arredondamentos que pertubam e turvam a visão, que não deixam
ver, embora prendam o olhar e desafiem as forças racionais do sujeito que fita...
-. Em suma, creio ser esse um instrumento que, com certo grau de precisão, me
permite identificar os textos que formam a intertextualidade conotada dos
discursos fotográficos.

74 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990· NO8. 9


A INTERTEXTUALlDADE CONOlADA

Referências Bibliográficas:

1- BARTHES, ROLAND (1984): A Câmara Clara, Rio, Nova


Fronteira.
2-. BARROS, DIANA LUZ PESSOA de (1988): Teoria do
Discurso. Fundamentos Semióticos, São Paulo,' Atual.
3- BOURLET, MICHEL (1982): ••L'orgie sur la Montagne", in
Dionysos. Le même et l'autre, no 1.
4- GREIMAS, A. J. E COURTÉS J. (s/d): Dicionário de Semiótica,
São Paulo, Cultrix.
5- KEIM, JEAN-A. (1979): Histoire de la Photographie,Paris,
PUF.
6- LACAN, J. (1975): Le Séminaire I. Les tcrits Techniques
de Freud, Paris, Seuil.
7- LOTMAN,JURI M. (1975): "Notes on the Structure of a Literary
Text", in Semiotica, 15:3.
8- PAZ, OCTAVIO (1982): Instante y Revelación, México,
Círculo Editorial.
9- TOMAS DAVID (1982): "The ritual of photography", in
Semiotíca, 1:2.
10- TOMAS DAVID (1983): "A mechanism of meaning", in
Semiolica, 46: 1.
U- VIRGILE, P. (1982): Géorgiques, Paris, Les Belles Lettres.
12- WECHELER, LAWRENCE (1984): "True to Life", in
Cameraworks, by David Hockney, N. York, AlfredA. Knof.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/l990 • NO8 • 9 75


Os Sublimes
Duelos
Amorosos

Flor Marlene E. Lopes

Apresento aqui algumas reflexões a respeito da comédia e da tragédia que


sublimam o discurso amoroso. Parto, essencialmente, dos.seguintes textos:
Werther, de J. W. Goethe; das evocações deR. Bathes,em Fragmentos de um
discurso amoroso e do curta-metragem, Carlota Amorosidade, de A. Ruiz.

A história de uma paixão é a impotência, a distância, o sofrimento, a


impossibilidade de estar com o outro. Esta incomunicabilidade está sobredeter-
minada por uma forte e ineludível epistemização de saberes e de crenças: há por
trás de tudo o imperativo de estar juntos.

Carlota A morosidade é a história de uma paixão, e, portanto, é a história


de um duelo obsessivo entre um estado efetivo em que se encontra o sujeito
apaixonado e um estado simulado que esse sujeito, Werther, projeta para si.
Aqui, o amor é pateticamente disfórico, de fato, não há nenhum idílio.

Esse conflito interno do sujeito, esse duelo entre duas realidades (essa
crise) exprime-se por um Iquerer-serl que passa a significar, então: uma
conjunção ao modo do parecer e uma disjunção ao modo do ser. Aqui, é claro,
esse Iquerer-serl que modaliza o sujeito apaixonado vem a ocupar o lugar de uma
carência, uma falta, um vazio existencial que é um anti-objeto de valor com o
qual o sujeito está em conjunção ao modo do ser.

SIGNIFICÁÇÃO . OUTUBRO/1990 . N° 8 li 9 77
FLOR MARLENE E. LOPES

A relação não é nem sensual, nem de comunhão efetiva e intelectual. A


separação das almas não é total por causa das particularidades desses dois
mundos não "objetiváveis", fruto eleuma construção imaginária do sujeito. As
coisas se complicam ainda mais, quando vemos as projeções que cada um
elabora de si. Os valores que o sujeito tem como desejáveis, irá projetá-los na
figura do ser amado .
.Nesse processo, nada envolve efetivamente a pessoa amada. No caso de
Werther, por exemplo, o seu objeto, Cartola, não tem o mesmo projeto de vida
que o apaixonado: ela é noiva (está em conjunção, ou, pelo menos, está em não-
disjunção) de Alberto, que figurativiza todos os valores que Werther quer
abandonar (/querer-não-ser/).

Incomunicabilidade trágica difícil de transcender, que faz da dupla


fantasmas sem nenhuma verdadeira e autêntica coesão. Há um jogo de imagens
que funciona, portanto, como uma grade epistêmica interposta, como um
sistema de interpretações e de crenças opacas que anulam toda possibilidade de
comunicação.

Amar, no caso de Werther, significa estar em crise, padecer atrozmente,


produzir um conflito, um desdobramento entre identidades contrárias. O ciúme
nasce precisamente no momento em que este não pode considerar a mulher
como seu objeto, ou a vítima de sua apropriação, mas deve constatar que ela se
tornou o objeto de algum outro.

Semioticamente,estas identidades têm que ser entendidas como dois


universos de valores, vale dizer, dois sujeitos delegados desses universos,
postos em conflito. Dito de outro modo, é a produção de simulacros, ao modo
do parecer:
- quando Werther ama Carlota, ele ama na verdade um simulacro: -
ele ama o Werther que ele deveria ser.
- quando Werther odeia Alberto, ele odeia um outro simulacro: - ele
odeia o Werther que ele não quer ser.
Mas a coisa é um pouco mais complicada do que isso, pois, no interior do
percurso narrativo, Werther é obrigado a chocar-se diversas vezes com a
"realidade", (ele se sente como uma marionete), com a dimensão de existência
efetiva (Fontanille), ao modo de ser, em que, como vimos, está em disjunção
com o seu novo universo de valores (ou melhor, os valores projetados em
Carlota).
78 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N° 8 e 9
OS SUBLIMES DUELOS AMOROSOS

Tudo se passa do seguinte modo: ao construir o simulacro dos valores que


ele !quer-ser!, e projetá-lo sobre a figura de Carlota, Werthertransforma Carlota
numa espécie de Destinador (isto é, de doador dos valores que Werther deve
desejar). É uma curiosa inversão sintáxica, também, que fica registrada nas
palavras de Roland Barthes:

"RAPTO. Episódio tido como inicial (mas pode ser reconstituído


depois) durante o qual o sujeito apaixonado t{ "raptado" (captura-
do e encantado) pela imagem do objeto amado ... " (pág.165j

Evidenciamos, então, que o sofrimento humano tem suas origens na


confrontação constante de dois eles, ambos imaginárics.O'que está em jogo no
interior desta estrutura é a apropriação imaginária, destrutiva e infeliz de um em
relação a seu outro, e como veremos mais adiante, se há libertação; como no caso
Werther, é que dará o último sobressalto que vai negar o ser, o objeto desta
apropriação dominante.

Assim, Wertheré o" objeto" do querer de Carlota (do simulacro de Carlota


que Werther constrói), e esse querer é um querer do Destinádor (um Dever-ser),
que é, justamente, o de impor um querer ao Destinatário, transformando-o em
sujeito que !quer-dever-ser/. ..

Diremos, pois, que Werther, apaixonado, mantém-se fiel aos valores


representados por Carlota (Destinador), simulacro ao modo do parecer de uma
verdadeira Carlota que não tem nada a ver com isso, que representa a encenação,
os movimentos e as aparências teatrais, os efeitos mesmo de um distanciamento.
Distanciamento contínuo que comporta a ameaça de onirizar toda a realidade.
Há em Werther um ir e voltar de um mar de sonhos, o mundo está envolvido
nestes vapores que perdem os indícios referenciais. Carlota aparece na metáfora
da existência, numa cosmogonia erotizante, numa mobilidade etérea que vai
torná-la o objeto, a sombra que se deixa contemplar, que vai dilacerá-lo, que o
vai confrontar com seu outro. Daí o sentimento incontornável de solidão e de
exílio.

Fidelidade e Espera da Salvação

Na dimensão do ser, entretanto, o sujeito Werther percebe que mesmo


cumprindo fielmente o" contrato" estabelecido com o" Destinador"(Carlota, ao
modo do Parecer), ele, Werther, que espera uma sanção positiva
de seu fazer, recebe, apesar disso, uma sanção negativa de Carlota (que sanciona

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBAO/1990 • N" 8 8 9 79


FLOR MARLENE E. LOPES

positivamente, em contrapartida, o fazer do anti-sujeito Alberto, "Destinatário"


de um anti-déstinador que são os valores representados por aquilo que Werther
Iq~er-nãcrserf).

A competência de distanciamento introduz em Werther o "ser


ascético" que faz o passo anti-social da ruptura, da quebra do jogo
dos espelhos, da aceitação e da encarnação dos recônditos arcanos da vida
e dascoisas, Certamente, a salvação não está na intersubjetividade, perdida para
sempre ...

Assim, por mais que Werther cumpra o "contrato" (imaginário),


Carlota ("real") não poderia sancioná-lo positivamente. De repente, Werther
percebe que não pode mais esperar nada de Carlota: foi abandonado. Segundo
Fontanille, esse momento caracteriza a paixão do desespero, em que o sujeito,
apesar de continuar fiel a seus valores, questiona a ação de seu Destinador.
Normalmente, esse "abandono" levaria o sujeito a uma crise de confiança; mas
com o apaixonado como Werther, isso não ocorre, ou ocorre apenas no nível
cognitivo, não no passional. Werther sabe que Carlota não passará a amá-lo,
qualquer que seja a sua ação. Mesmo assim, ele continua a querer ser amado. É
a figura passional da obstinação: Isaber-não-poder-ser/-/querer-ser/-/crer-
poder-ser/ (Fontanille).

Essa obstinação do amante é assim expressa por Barthes, em Fragmentos


de um discurso amoroso:

"(...) Ao mesmo tempo em que se pergunta obsessivamente porque


não é amado, o sujeito apaixonado vive na crença de que na verdade
o objeto amado o ama, mas não o diz (...).

"Averdade é que -paradoxo exorbitante- não paro de acreditar que


sou amado. Alucino aquilo que desejo. Cada ferida tem menos de
uma dúvida que de uma traição; porque s6 pode trair aquele que
ama, s6 pode ter ciúmes aquele que se era amado: o outro, casual-
mente,falha em relação ao seu ser, que é de amar, eis a origem das
minhas infelicidades ... " (págs. 161-162).

Constata-se um conflito interior dos actantes que faz o percurso narrativo


caminhar muito devagar. As paixões,como se sabe, dizem respeito sempre a
uma relação do eu e do outro. Mas o outro, neste estudo, é o interno, é o jogo

80 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990·H" 8.11


OS SUBLIMES DUELOS AMOROSOS

de espelhos que não permite a tensividade recíproca ou que não chega a


modificar o estado patêmico do co-actante "real". A origem da infelicidade de
Werther é epistêmica, surge de um estado de crença e é o que causa sua
insatisfação, ou seja, produz uma inversão: é.o saber que possibilita um crer;
ambos são inseparáveis. Ele sabe que Carlota é noiva, que possui uma série de
valores que não são os dele, como a futilidade por exemplo e sabe, que não há
uma verdadeira integração passional entre os dois. Mesmo assim, ele passa a
desejá-la. Então, é a partir deste saber, desta impossibilidade queWertherira
montar, construir e gerar seu imaginário, seus símbolos, etc. que o levarão a um
desdobramento interno e a estados patêmicos auto-reflexivos, como os diálogos
com ele mesmo.
.
e
'.

É essa mesma obstinação desesperada, esse círculo vicioso que põe


dispõe, que reitera duelos entre dois universos contrários, que, dialeticamente,
empurra o sujeito apaixonado para um caminho sem retorno.Wenher.como
todo amante, está num beco sem saída: uma vez instalada a crise amorosa, ele
já não pode mais voltar àquele que tinha sido; ao mesmo tempo, ele não
consegue realizar-se como sujeito em conjunção com seu objeto, isto é, ele não
pode concretizar a sua metamorfose (a sua transformação em outro ser).

Aos poucos, o apaixonado Werther vai-se retirando, por força desse


impulso obsessivo do mundo "real" do ser para ocupar-se cada.vez mais de sua
enunciação solitária. Podemos verificar como,no filme, as imagens vão ficando
cada vez mais impregnadas de sonho, de irrealidade - é o delírio de linguagem
de Werther. A única possibilidade de existência do sujeito em crise, passa' a ser
esse mundo povoado de simulacros. O mundo real vira apenas um pré-texto:
como diz Barthes,

"(...) O acontecimento, ínfimo, só existe através da sua


repercussão, enorme (...)"

"(...) O enamorado é um drama, se quisermos devolver a essa


palavra o sentido arcaico que Nietzsche lhe dá: '0 drama antigo
tinha em vista grandes cenas declamatórias, o que excluia a ação'
(esta tinha lugar antes ou atrás da cena)'. (...)" (págs. 81-82)

Como entender o suicídio de Werther? Uma revolta, uma punição


dirigida ao destinador (Carlota) que não cumpriu o Contrato de confiança,
abandonando-o? Uma desistência de perseguir os valores tão profundamente
desejados? Mas, de qual Carlota estamos falando, se a Carlota "real" já dava
mostras, pouco antes do desfecho, de dispor-se a aceitar o querer de Werther?

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/l990 • NO8 e 9 81


. FLOR MARLENE E. LOPES

Lampejo de consciência? Teria Werther compreendido que aquela que


desejava não eraa Carlota real, que era "bem insípida; a personagem medíocre
de uma encenação forte" (Barthes, pág. 23), mas, sim. desejava uma projeção
de seu próprio amor? Se isso pode sustentar-se, então Werther teria compreen-
dido que tudo o que ele desejava poderia ser destruído pela união com aquela
Carlota real, uma "estranha" que Werther não conhecia e não queria. A união
"de fato" corresponderiaçportanto, a um retomo impossível a um "eu" que

Werther negara .

. Mas a alternativa oposta- a realização do outro "eu" de Werther, a


personificação da PAIXÃO - seria uma outra impossibilidade. Diante disso,
como salvar-se? Pelo suicídio, é claro.

a
O suicídio é única chance que Werther tem de continuar a sua caminha-
da. Ele está 'associado, portanto, a um {Dever-serl indestrutível. Na visão de
Barthes, o s~icídio aparece como uma idéia de continuar vivo.

''As vezes, vivamente atingido por alguma circunstância fútil e


envolvido pela repercussão que ela provoca, me vejo de repente
. numa armadilha, imobilizado numa situação (num sítio) impossível:
sÓ há duas saídas (ou...ou então ...) e as duas estão igualmente
trancadas: dos dois lados só tenho que me calar. Então a idéia de
suicídio me salva, pois pode ser falada (e não me privo disso):
renasço e pinto essa idéia com as cores da vida, seja para dirigi-la
agressivamente contra o objeto amado (chantagem bem conheci-
da), seja para me unir a elefantasiosamente na morte ('descerei ao
túmulo para me abraçar com você')" (pág. 185).

Werther consegue, assim, percorrer até as últimas consequencia o


caminho de seu desespero: mantém-se fiel aos valores que ama (e agride a figura
que não soube representá-los) e, ao mesmo tempo, abate-se, desiste de procurá-
los nessa mesma figura - renuncia a uma Carlota que, ao modo do ser, é tudo
aquilo quanto ele não-quer.

Suicidando-se, Werther se muda: abandona o mundo das figuras cosmo-


lógicas e vai para o único lugar de existência facultado às paixões absolutas - o
mundo interoceptivo - e se metamorfoseia em amorosidade. Vai ao reencontro
do sentimento da vida, volta às forças da natureza, reinstala-se na sua mônada.

82 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 • N" 8 e 9


OS SUBLIMES DUELOS AMOROSOS

BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio, Ed.Francisco


Alves, 1981.

BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Novo dicionário da língua


portuguesa. Rio, Ed. Nova Fronteira, s/d.

FONT ANILLE, Jacques. "Le Tumulte Modale". Actes Semiotiques Bulletin.


Paris, GRS-L, IX, 39, 1986.

GOETHE, Johann W. Werther. S. Paulo, Abril, 1983.

GREIMAS, A. J.e COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo, Ed.


Cultrix, 1983.

PARRET, Herman. Le sublime du quotidien. Paris/Amsterdarn/Philadel-


phia, Ed. Hadês-Benjamins, 1988.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 . NU8 li 9 83


Alntertextualidade
em
Carlotal Amorosidade

Geraldo Carlos do Nascimento

Nossa leitura de Carlota/Amorosidade (1) não pretende, nem de longe,


ser exaustiva. Vamos investigar a obra, se assim podemos dizer, de um ponto
de vista determinado, para realçar um de seus processos de construção: a
intertextua lidade.

Fica evidente, mesmo para quem assistiu ao filme uma única vez, que
Carlota/Amorosidade relaciona duas obras':hastante conhecidas, embora bem
distanciadas no tempo, Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland
Barthes, e Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Quem leu os
Fragmentos, de Barthes, sabe também que o autor francês vai pinçar exatamen-
te nesta obra de Goethe boa parte do exemplário que lhe serve de corpus para
suas reflexões e comentários. Isso quer dizer que já antes do filme Barthes havia
estabelecido um vínculo relacional entre as duas obras. O filme, contudo, não
se limita à visão de Barthes, embora, de certa forma, mantenha seu enfoque.

No filme, os textos de Barthes extraídos dos Fragmentos são proferidos


pelo ator "boca" (2) e sofrem apenas algumas alterações para melhor adaptação
ao discurso fí1mico. Já o Werther de Goethe é, por assim dizer, traduzido ou
representado cinematograficamente depois de devidamente transformado em
seqüências temáticas - prólogo, prenúncio do suicídio, laboratório, estúdio
fotográfico e assim por diante.

O filme de Adilson Ruiz nasce, assim, da intertextualidade explícita que


mantém com essas duas obras, que constituem no dizer dos roteiristas, Maria
Bacellar e Bráu1io Mantovani, a substância do filme. Conhecê-las ou ,pelo

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 • NO8 e 9 85


GERALDO CARLOS DO NASCIMENTO

menos, ter uma noção do que elas representam culturalmente é indispensável


para uma interpretação mais abrangente do filme. Essa leitura é pressuposta ou
sugerida pelo autor do texto fílmico quando aponta essas obras como seus
referenciais básicos. O que não quer dizer, evidentemente, que elas sejam pré.
requisito para toda e qualquer leitura do filme.

,Mas se o espectador "comum" pode ficar liberado da operação intertex-


tual em relação a essas duasobras, certamente não escapa de outras. A ausência
de diálogos ou referências verbais, na maioria das seqüências, é preenchida por
canções e músicas, em geral populares, que sugerem e dão a dimensão do clima
emociona Ipor que passa o personagem, e o leitor do texto fílmico se vê remetido
a uma operação intertextual, ou seja, vai buscar apoio nas obras "indicadas" para
interpretar o plano de expressão que lhe está sendo proposto. Se duvidássemos
radicalmente do conteúdo da célebre frase de Bakhtin que afirma que "todo o
texto se constrói como mosaico de citações, todo o texto é a absorção e
transformação de um outro texto", teríamos, frente a este texto fílmico, de abrir
uma exceção, pois ele se constrói explicitamente a partir de citações. (3)

Evidentemente, a leitura do filme .nâo se esgota no reconhecimento dos


signos emprestados de outras obras. O espectador tem de convertê- los em
figuras, no sentido hjelmsleviano (4), que comporão o plano de expressão do
discurso fílmico para realizar novas semioses. Isso exige um apagamento ou
neutralização do plano de conteúdo anterior, e outros percursos de sentido
podem ser desencadeados. O espectador passa a operar, agora, no universo
intratcxtual da obra, e dependerá de seu maior ou menor grau de competência
a exploração de novas isotopias.

A rigor, o discurso fílmico só é lido quando se passa para o nível


intradiscursivo. Antes disso, o que a obra faz, o filme no caso, é apenas
estabelecer um código ou sistema básico para sua subseqüente leitura. Nesse
código, estão inclusas tacitamente toda a tradição cinematográfica, como os
cortes, as técnicas de montagem, os enquadramentos, a iluminação, etc., e os
"empréstimos" obtidos, via mecanismo da intertextualidade, de outras sernió-
ticas.

Em Carlota/Amorosidade a "desqualificação" dos signos obtidos via


intertextualidade começa, podemos dizer, a partir da transformação dos atores.
O papel actancial de Barthes nos Fragmentos, por exemplo, é conservado, mas
o ator que toma o seu lugar é uma "boca vermelha" de mulher, o que é
confirmado pelo timbre de sua voz. O texto proferido pela "boca" é, quase

86 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/l990 N· 8 e 9
A INTERTEXTUALlDADE EM CARLOTA/AMOROSIDADE

sempre, o de Barthes, mas não se refere mais ao texto do Wcrthcr de Goethe,


e sim.à sua tradução fílmica. Bastaria mudar tal relação para o sentido original
se alterar. Mas não é só; nesta "tradução" outras modificações foram efetuadas:
o jovem e romântico pintor Wertherpassa a ser um fotógrafo de moda; a pacata
Carlota, uma manequim descontraída. Do Werther de Gocthe conservam-se
apenas o tema fundamental - o suicídio por amor - e os lances principais dos
desencontros do personagem com Carlota, sempre filtrados e tcmatizados pela
leitura de Roland Barthes.

o filme inicia-se com o percurso terminal de Werther, instantes antes de


ele cometer suicídio, numjlashbackque não ocorre no epistolar livro de Goethe.
A partir daí desenvolve-se uma narrativa inusitada, articulada em função das
lembranças e devaneios do personagem, com a temporal idade marcada por uma
evolução sutil no relacionamento de Werther c CarJota. Os textos de Banhes,
sempre proferidos pelo ator "boca", aparecem como comentários em finais ele
seqüência ou, ao contrário, as anunciam. O espectador atento percebe que
muitos dos temas musicais, desenhos c inseriçõcs em cartelas, como as usadas
no cinema mudo, têm sempre a mesma função: traduzem para um outro código
o que o texto Iilrnico quer dizer ou insinua.

Há seqüências e cenas em cores e em preto c branco, c o preto e branco


muitas vezes aparece com tratamento diferenciado. O que isso significa? Não
é dado ao espectador mais do que reiterações para que ele tente vincular a esse
emprego algum sentido. Uma hipótese, ancorada na distinção temporal pelo uso
da cor presente no discurso cinematográfico, seria pensar num tempo "real" e
num tempo "imaginário", Como a narrativa tem um espaço noológico -- tudo
se passa na "cabeça" de Werthcr pouco antes de ele acionar o gatilho --, esse
tempo "real" teria de ser o da lembrança vivida (não cor) e o "imaginário", o
tempo onírico (cor), no qual ocorreriam as "perturbações" de Wcrthcr. A não cor
com tratamento diferenciado revelaria um plano intermediário: o das lembran-
ças vividas mas com alterações imaginárias. (O critério que adotamos para
estabelecer tal distinção foi uma maior ou menor proximidade em relação a uma
serniótica do mundo natural.)

Fica evidente o investimento tímico no uso da cor; mas, contrariando


nossa expectativa, a não cor é eufórica, a cor, disfórica, notadamente a cor
vermelha, que é predominante. Vemelha é a "boca"; o roupão de Carlota na
única cena em que Werther se aproxima fisicamente dela; a camisa que Werther
escolhe para usar no momento em que vai se matar. Vermelho é o telefone.
Vermelho é o sangue -- sempre sugerido, nunca realmente visto --que conota
perigo.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBAO/1990· N" 8 e 9 87


A INTERTEXTUALlDADE EM CARLOTA/AMOROSIDADE

o branco e o preto, constituintes da não cor, no entanto, ocupam em


momentos determinados dêixis diferentes, e podem ser vistos, também, como
um par de opostos -- enquanto constituintes da não cor eles são complementares.
Ocorre então, no nível da manifestação, uma sobredeterminação da carga
tímica. Assim, no texto fílmico, o máximo de euforia ocorre quando o branco,
neutralização de todas as cores, é predominante na não cor; e o máximo de
disforia acontece quando o preto, ausência total de
cores, manifesta-se com
o vermelho.

O exemplo mais bem acabado de tal dicotomia encontra-se na cena em


que Werther toca flauta para Carlota dançar (predomínio do branco) e naquela
quer Werther aparece pronto para a morte, vestido todo de preto sobre um
fundo vermelho. Os temas musicais Fascinação e a ópera Werther, que
durante o filme pontuam momentos eufóricos e disfóricos, tornam-se determi-
nantes para exprimir, nos termos de Werther, o embate entre vida c morte. Para
ele, que transformou a vida em sonho, a morte aparece como espetáculo. No
nível do parecer, vida e morte ficam com sinais trocados, e Tânatos triunfa.

NOTAS

(1) A motivação desta leitura decorre das fecundas sugestões apre-


sentadas pelo professor Eduardo Pefiuela Cafiizal no curso
"Poética da Intertextualidade Visual", ministrado na ECA!
USP, no segundo semestre de 1989. O trabalho foi apre-
sentado no Encontro de Semiótica literária e Outras Artes,
realizado em Rio Preto, em 13 e 14 de outubro de 1989, após
apresentação do filme Carlota/Amorosidade (direção de
Adilson Ruiz e roteiro de Maria Bacellar e Bráulio
Montovani).

(2) Uma boca focalizada em primeiro plano, ou sua voz em


off, interfere de tempos em tempos, mas sem padrão definido,
no texto fílmico.

(3) Apud Kristeva, Júlia, Semiótica do romance, p. 12.

(4) Prolegômenos a uma teoria da linguagem, p.5l.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 . N' 8 e 9 89


GERALDO CARLOS DO NASCIMENTO

(5) A temporalidade em Carlota/Amorosidade é complexa. O


tempo real (sem aspas) só evolui por projeções imaginárias
e o "real", não atual, dado retrospectivamente pela memória,
não tem padrão definido, pois sofre interferências dos
desejos de Werther

BIBLIOGRAF1A

BARTHES, R., Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro,


Francisco Alves, 1981.

GREIMAS, A. J. e COURTÉS, J., Dicionário de semiótica, São Paulo,


Cultrix, 1982.

GREIMAS, A. J., et alii, Ensaios de semiótica poética, São Paulo, Cultrix,


1975.

GOETHE; J.W. Werther, São Paulo, Abril Cultural, 1973.

HJELMSLEV, L., Prolegêmenos a uma teoria da linguagem, São Paulo,


Perspectiva, 1975.

KRISTEV A, J., Semiótica do romance, Lisboa, Arcádia, 1978.

LOPES, E., Discurso, texto e significação, São Paulo, Cultrix/Sec. da Cultura,


Ciência e Tecnologia, 1978.

LOTMAN, Y., Estética e scmiótica do cinema, Lisboa, Estampa, 1978.

METZ, c., Linguagem e cinema, São Paulo, Perspectiva, 1980.

90 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 N" 8 e 9


Sobre a Tipologia
dos Discursos

José Luiz Fiorin

As diferentes culturas procuraram sempre estabelecer tipologias discur-


sivas. O estabelecimento dessas tipologias teve, na maioria das vezes, uma
finalidade prescritiva. Assim, a poética sânscrita do período clássico, por
exemplo, é rigidamente codificada. Nela, cada gênero é constituído por regras
a que todos os escritores devem obedecer. Por seu turno, os próprios "estilos"
dentro dos gêneros seguem uma série de preceitos. Por exemplo, no "estilo"
gaudíya, o poeta tem que usar compostos rtôminais longos, que são interditos
no "estilo"vaidarbhí. A tipologia discursiva constituída pela poética do
sânscrito clássico tem um nítido escopo prescritivo. Também os estudos a
respeito dos gêneros elaborados no período do classicismo eram conjuntos de
normas que não se podiam transgredir. Distinguem-se assim os textos (confor-
me as regras dos gêneros) dos não textos (não de acordo com as normas). A
tragédia deveria, por exemplo, obedecer à lei 'das três unidades (de espaço, de
tempo e de ação). A infringência a essa norma descaracterizava o texto trágico
como texto.

As modernas teorias do discurso devem tratar do problema dos gêneros,


porque, depois de terem afastado dos estudos lingüísticos a idéia saussuriana de
que a parole é o "reino da liberdade e da criação" e de terem mostrado que há
uma gramática que preside à discursivização, ou seja, à atualização do sistema
lingüístico (seu funcionamento), não se admite a tese, calcada no individualis-
mo burguês, de que cada discurso seja único e irrepetível.

A questão datipologia discursiva traz em seu bojo duas ordens distintas


de problemas: a dos critérios de classificação dos discursos e a dos gêneros.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBAO/1990 • N° 8 e 9 91
JOSÉ LUIZ FlOR IN

Ao conceber a geração do sentido como um percurso que vai do mais


simples ao mais concreto e complexo, as teorias do discurso dão uma nova
dimensão ao problema da classificação dos discursos, uma vez que se podem
classificá-los com base em elementos estruturais situados nos diferentes níveis
do percurso, o que torna os critérios de classificação mais refinados e, portanto,
mais abrangentes. Se tomarmos, por exemplo, a teoria do discurso desenvolvida
pelo Groupe de Recherches Sémio-Iinguistiques de Paris, veremos que se
anali~a o percurso gerativo de sentido em três patamares: nível fundamental,
nível narrativo e nível discursivo. Acrescente-se ainda que esse sentido gerado
manifesta-se por meio de um plano de expressão e, ao manifestar-se, o discurso
torna-se texto.

Cada um desses patamares desdobra-se em dois componentes: uma


sintaxe e uma semântica.

No nível fundamental, a semântica apresenta-se sob a forma de catagorias


que articulam em última instância os sentidos do texto. Uma categoria semân-
tica compreende, em sua estrutura elementar, dois termos em oposição de
contrariedade. Cada um dos termos da oposição recebe, no discurso, um
investimento axiológico, sendo um considereado leufóricol e outrol disfórico/
. A sintaxe do nível fundamental opera com negações e asserções. Dada uma
categoria a vs b, dois encadeamentos de conteúdos podem aparecer no nível
fundamental: afirmação de a, negação de a, afirmação de b ou afirmação de b,
negação de b, afirmação de a.

No nível fundamental, poderemos distinguir textos que, utilizando as


mesmas categorias semânticas, apresentam investimentos axiológicos opostos.
Tomemos, por exemplo, o discurso dos ecologistas radicais e o dos desenvol-
vimentistas que têm em mira um modelo de desenvolvimento baseado na
exploração maciça das riquezas naturais. Ambos operam com a categoria de
base I natureza I vs I cultura I. No entanto, o primeiro considera a natureza um
elemento eufórico e a cultura algo disfórico, enquanto o segundo apresenta um
investimento axiológico oposto. Para este, a cultura é eufórica e a natureza,
disfórica.

Na sintaxe do nível narrativo, encontramos estados e transformações de


estado. Os enunciados de estado são relações de junção (conjunção ou disjun-
ção) que se estabelecem entre um sujeito e um objeto. As transformações são
mudanças nessas relações: passagem de um estado conjunto a um disjunto ou
vice-versa. Uma transformação de estado constitui uma narrativa mínima. Os
textos, entretanto, não costumam apresentar narrativas mínimas. As diferentes
92 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· N° 8 09
SOBRE A TIPOLOGIA DOS DI.SCURSOS

transformações organizam-se hierarquicamente em seqüências. A seqüência


canônica comporta quatro fases: a manipulação, a competência, a performance
e a sanção. Na primeira, um sujeito atribui a outro um querer e/ou um dever
fazer. Na segunda, a esse sujeito dotado de um querer e/ou dever atribui-se uma
competência, ou seja, um saber e um poder fazer. Na performance, o sujeito
investido de um querer e/ou dever, de um saber e de um poder realiza a
transformação principal da narrativa, isto é, a conjunção ou disjunção de um
sujeito com um objeto-valor. Na sanção, reconhece-se a realização da perfor-
mance c, por conseqüência, desvelam-se Segredos, desmascaram-se mentiras,
etc. Ademais, ainda nessa fase, podem-se distribuir prêmios ou castigos. As
diferentes seqüências narrativas de um texto podem encaixar-se, encadear-se e
suceder-se.

A sintaxe narrativa não tem apenas uma dimensão sintagmática, que


mostra como se ordenam estados e transformações, mas tem também uma
dimensão paradigmática, pois, exceto nos casos de circulação de objetos do tipo
saber, etc., a conjunção para um sujeito implica a disjunção para outro. Assim,
num roubo, há correlação entre uma aquisição e um desapossamento; numa
esmola, entre uma renúncia e uma atribuição.

Diferentes tipos de textos podem ser construídos se levarmos em conta a


sintaxe narrativa. Mencionemos alguns elementos dessa tipologia.

Há textos que destacam uma das fases da seqüência narrativa, implicitan-


do as demais ou relatando-as muito rapidamente. Pode-se, assim,constituiruma
tipologia, com base nas fases que os diferentes tipos de discurso privilegiam. Há
toda uma classe de discursos que poderiam os chamar tecnológicos (instruções
para o uso de aparelhos eletrônicos, receitas de cozinha, plantas de engenheiro,
bulas de remédio, etc.) que procuram transmitir a um destinatário (sujeito
operador) um saber fazer. O saber fazer, um dos elementos da competência do
sujeito operador, é manifestado sob a forma de um discurso particular, que se
apresenta como "manifestação da competência atualizada, anteriormente à sua
realização" (Greimas, 1983,p.160). Esse tipo de discurso privilegia a fase da
competência e, dentro dela, a modalidade do saber.

Já o discurso dos jornais sensacionalistas, que relatam crimes, escânda-


los, contravenções, explora fundá mentalmente a performance. Descreve com
detalhes como agiu o sujeito operador, mostra com minúcias requintes de
sadismo, conta quantas facadas recebeu o morto, etc. Esse discurso interessa-
se também pela manipulação, ou seja, pelos motivos (ciúme, defesa da honra,
SlGNJFICAÇÃO • OUTUBRO/1990· NO8 e 9 93
.iosá LUIZ FIORIN

anormalidades psíquicas) que levam à prática de determinadoato. O romance


policial, por sua vez, em geral privilegia a fase da sanção. No chamado romance
policial inglês, ocorreu um crime e é preciso desvelar o segredo, que consiste em
saber quem é o criminoso. O núcleo central do romance é o trabalho do detetive
no desvendamento do segredo. Esse tipo de discurso utiliza-se ainda de um
outro recurso: o segredo é desvelado ao mesmo tempo para as personagens e o
leitor. A verdade desconhecida tanto do leitor quanto das personagens caracte-
riza o'chamado romance policial inglês. Lembramos que as telenovelas também
se utilizam do efeito de sentido "segredo a ser revelado". No entanto, os
telespectadores já conhecem a verdade, que será desvendada apenas para as
personagens (ex.: Roque Santciro: o segredo de que a personagem-título não
morrera é conhecido apenas dos telespectadores e de algumas personagens e
parte das peripécias repousa no fato de que nem todos conhecem a verdade). Há
um outro tipo de romance policial que privilegia a fase da sanção. Nele ocorreu
um crime, sabe-se quem é o criminoso, mas não se sabe se ele receberá ou não
a sanção pragmática, isto é, o castigo pelo delito que praticou. Ocorrem
perseguições ao(s) criminoso(s) e o suspense reside em desconhecer se ele vai
ou não se safar, quando e em que circunstância será apanhado. Esse segundo tipo
não é o do romance policial .c1ássico, mas o do chamado "thriller". Nesse
subtipo, pode-se também enfatizar a performance e o suspense consiste em não
se saber se a ação planejada v~i'realizar-se ou não.

Um outro critério tipológico é o tipo de sanção pragmática (prêmio ou


castigo) que se aplica a uma dada performance. No conto maravilhoso e nas
narrativas conservadoras em geral, os bons são recompensados e os maus
punidos. Bons são os que seguem o quadro de valores estabelecidos e maus; que
não o levam em conta. Há um outro tipo, o dos discursos que procuram demolir
uma dada tábua de valores, em que os "bons"são punidos e maus, recompensa-
dos. Enquadra-se no segundo tipo urna novela como Justine, de Sadc.

A partir da possibilidade de se correlacionarem uma conjunção e uma


disjunção podemos estabelecer os seguintes tipos de texto: aqueles em que a
correlação se dá e aqueles em que não se dá. Os discursos que narram a
circulação do saber pertencem ao segundo tipo. Com efeito, a atribuição de um
saber a outro não implica uma renúncia a ele. Os discursos em que se dá a
correlação podem ser de dois subtipos: os de dom, em que se correlacionam uma
renúncia e uma atribuição (por exemplo, vidas de santo em geral: São Francisco
de Assis, Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce); os de prova, em quc se
correlacionam, apropriações e desapossamentos (as histórias de Arséne Lupin,
por exemplo).
94 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· N' 6 &9
SOBRE A TlPOLOGIA DOS DISCURSOS

Como há dois tipos de transformações, conjuntivas e disjuntivas, podem-


se estabelecer dois tipos de narrativas: as de aquisição (passagem de um estado
disjunto a um conjunto, como, por exemplo, as fotonovelas, que terminam
sempre com uma conjunção com o amor) e as de privação (passagem de um
estado conjunto a um estado disjunto, como, por exemplo, as narrativas em que
não há um [mal feliz, como as de empobrecimento, de perda de amor, etc.).

A semântica narrativa analisa os valores inscritos nos objetos. Há dois


tipos de objetos: os de valor e os modais. Os primeiros são valores descritivos
(objetos consumíveis e tesaurizáveis, como a riqueza, ou prazeres e "estados de
alma", como o amor); os segundos constituem-se das modalidades do querer,
dever, saber e poder fazer. Os prazeres e "estados de alma" são englobados na
classe lexical das paixões, que são efeitos de sentido das qualificações modais
que modificam o sujeito de estado, isto é, que explicam as relações que o sujeito
mantém com o objeto. Assim, um objeto modalizado pelo querer é desejável
para o sujeito de estado e essa relação manifesta-se pelo efeito de sentido desejo.
Da inesma forma, o objeto que pode não ser é evitável e assim por diante.

Do ponto de vista da semântica narrativa, podem-se elaborar, pelo menos,


duas tipologias. A primeira contém dois tipos: discursos em que se buscam
valores descritivos (por exemplo, a busca dariqueza ou do amor) e discursos em
que se procuram objetos modais (por exemplo, a procura do saber nas narrativas
de pesquisas). O primeiro tipo divide-se em dois subtipos: busca de valores
tesaurizáveis ou consumíveis (por exemplo, a busca do ouro, em westernsi ou
a busca de prazeres ou "estado de alma" (por exemplo, a busca da satisfação em
Os 120 Dias de Sodoma, de Sade). A segunda tipologia pode ser elaborada a
partir das paixões que movem as personagens a um fazer. Poirot, por exemplo,
em Assassinato No Campo de Golfe, afirma que há três tipos de crime: o feito
em função do dinheiro, o passional e o realizado por uma idéia. Com efeito, as
três paixões básicas presentes na novela policial são a cobiça, a cólera (que leva
à vingança) e o fanatismo. Daí temos três tipos diferntes de narrativa.

A semântica discursiva analisa os revestimentos mais abstratos (temas)


ou mais concretos (figuras) que recobrem as estruturas narrativas. Daí temos
dois tipos básicos de discursos: os temáticos (os dissertativos, por exemplo ), que
procuram explicar o mundo; os figurativos (as narrações, por exemplo), que
tentam simular o mundo natural. A semântica discursiva explica ainda as várias
possibilidades de leitura inscritas no texto, ou seja, as várias isotopias. Os textos
em relação às isotopias podem ser pluri-isotópicas, como o texto poético, ou
mono-isotópicos, como a demonstração de um teorema.
SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 . NO8 e 9 95
JOSÉ LUIZ FIORIN

A sintaxe discursiva visa a analisar as projeções de pessoa, espaço e tempo


no enunciado e as relações entre enunciador e enunciatário, isto é, todo o jogo
argumentativo presente no discurso (implícitos, figuras de retórica, recursos de
persuasão, etc.). Inúmeras tipologias poderiam fazer-se nesse nível. Citemos
algumas. Em primeiro lugar, discursos em que o enunciador está presente no
enunciado por meio de marcas explícitas, como o discurso polêmico; discursos
em que o enunciador se apaga atrás dos fatos, "ausentando-se" do enunciado,
corno o discurso científico. Como diz Orecchioni, parafraseando Barthes,
enquanto o polemista é "l'homme aux énonciations", o cientista é "l'homme aux
énoncés". Com relação ao enunciatário, tambémhá discursos, como o didático,
em que ele está explicitamente presente e outros em que está "ausente". Com
relação ao tempo, a tipologia está para ser elaborada. O tipo mais freqüente é
aquele em que a narração é ulterior aos fatos narrados (por exemplo, o romance
com narrativa no passado). Mas pode a narração ser também anterior (narrativa
preditiva, no futuro) ou simultânea (narrativa no presente, contemporânea da
ação) em relação aos fatos narrados. Nas memórias, por exemplo, o tempo da
narração não coincide com o tempo dos fatos narrados, enquanto no diário há
uma coincidência. Quanto ao espaço, há o discurso do aqui e o do não aqui. Em
geral, os romances de aventuras passam-se no não aqui do narrador, figurativi-
zado por terras longínquas e exóticas.

Quanto à relação entre o nível da enunciação enunciada e o do enunciado


enunciado, há discursos em que há coincidência entre esses dois níveis e
discursos em que existe uma discordância entre essas instâncias. O discurso
irônico é um exemplo dessa oposição entre os níveis da enunciação e do
enunciado, pois o que se afirma nesta instância se nega naquela.

Finalmente, o sentido constituído no percursogerativo une-se a um plano


de expressão para manifestar-se. O modo como o discurso se relaciona com o
plano de expressão funda tipos: discursos em que o plano de expressão
apenas veicula o conteúdo e discursos, como o poético, em que a expressão
patenteia o conteúdo, em que certas categorias da expressão são homólogas
a determinadas categorias do conteúdo. Outra tipologia poderia ser elaborada
a partir da quantidade de planos de expressão que manifestam o conteúdo:
discursos sincréticos, como o cinema e o teatro, são manifestados por vários
planos de expressão simultâneos; não sincréticos, como a literatura, são
manifestados por um único plano de expressão.

Os discursos podem ser classificados a partir de múltiplos critérios


estabelecidos a partir dos mecanismos de produção do sentido.
96 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/l990· N' 8 e9
SOBRE A TIPOLOGIA DOS DISCURSOS

Podemos voltar-nos agora para o problema dos gêneros. Por um lado,


o gênero é um objeto construído por uma abstração generalizante, Os textos
são objetos empíricos, representantes imupuros deste ou daquele gênero. Tal
texto tem tais e tais características de um gênero, mas não tem outras, e
assim por diante. Por outro, o gênero não depende de apenas um dos tipos
acima sugeridos, mas constitui uma constelação de propriedades específicas,
os tipologemas (Orecchioni, p. 170-171). Ostipologemas dependem de
níveis diferentes do percurso gerativo de sentido (da semântica ou da sintaxe
fundamental, da semântica ou da sintaxe narrativa, da semântica ou sintaxe
discursiva, do modo de manifestação). Dentro de cada nível estão
relacionados a aspectos diferentes seja da sintaxe, seja da semântica. Na
sintaxe discursiva, por exemplo, podem estar vinculados às projeções da
enunciação no enunciado (pcssoalidade, temporalidade, espacialidade) ou às
relações entre enunciador e enunciatário.

As tipologias elaboradas até hoje não são suficientemente finas para


apreender os múltiplos tipos de discursos que circulam numa forma-ção
social, porque foram estabelecidas com base num único parâmetro. Veja-
se, por exemplo, a distinção que Jakobson faz entre a lírica e a épica: a
primeira centrá-se no eu e a segunda, no ele. Tal oposição não é suficiente
para caracterizar esses gêneros, pois um depoimento policial também pode
centrar-se na primeira pessoa e não pertence ao gênero lírico. O estudo -dos
gêneros deve levar em conta dois elementos: centrar-se numa teoria do
discurso e considerar tipologemas dependentes dos múltiplos eixos
distintivos. O gênero será concebido com um semema: gênero 1: .t l , t2, t3,
t4, t5; gênero 2: tI, t2, t3, t6, t7.

A constelação tipológica que constitui o gênero é social. Varia, portanto,


de época para época. O que numa época era considerado discurso científico
pode não ser mais classificado assim, Os-critérios de d:lssifkaçiio pertencem ã
natureza da linguagem. Os gêneros são arranjos que dependem de fatores
sociais, ou seja, dos efeitos de sentido valorizados num certo domínio por uma
dada formação social.

Uma tipologia calcada nas teorias do discurso não pretende constituir uma
norma, mas, ao contrário, quer mostrar quais os mecanismos que geram os
diferentes tipos de discursos sociais: o científico, o didático, o religioso, o
político, etc.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBR0/1990· N" 8 e 9 97


GRaMAS, lit:J: e:COURTES, J. - Sémi.tique dictioonaire raisonllé de la
théoríe du I'ana=al:e.Paris, Hachette, 1979.

GREIMAS, A.J. - Du sens 11.Essais Sémiotiques. Paris, Seuil,1983.

ORECCHIONI, C:K. - L'énonciation: de la subjectivité dans le langage.


Paris, Annand Colin, 1980.

98 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBROf1990 • NO8 e9


A Sanção da Toleima: em
«Marquesª, Porque Eu
Serei Marquês»

Maria Angélica Seabra Rodrigues Martins

Em 1861, Machado de Assis publicou em A Marmota uma série de


artigos, posteriormente reunidos em Miscelânea (2,1962), na forma de um
opúsculo. Sob o título de«Queda que as mulheres têm para os tolos», o Autor
defrne aí sua filosofia acerca do relacionamento homem/mulher onde esta,
segundo os ditames da sociedade do século XIX, era apenas um meio utilizado
pelo homem, através do contrato matrimonial, para ascender social e po-
liticamente.

Nesse ensaio, Machado de Assis divide os pretendentes em dois tipos de


homem: o de «espírito» e o «tolo». Sendo feita sobre essa dicotomia a
estruturação em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1,1973) dos person-
agens Brás Cubas e Lobo Neves, no seu relacionamento com Virgília - trio em
torno do qual se instala o conflito nuclear do romance - selecionamos o
capítulo XLIII «Marquesa, porque eu serei marquês»(1,p.56), transcrito a
seguir, onde nos será possível identificar as modalidades, bem como os temas
e as figuras utilizadas pelo Autor para definir os papéis temáticos homem de
espírito e tolo, que polarizam o relacionamento de Virgília com os dois
pretendentes.

Desta perspectiva, o homem de espírito , por exemplo, será definido


segundo sua constituição modal (v.g. em termos da tensão entre crer e saber,

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBR0/1990 - NR 8 e 9 99
MARIA A.S.RODRIGUES MARTINS

querer e poder, fazer e ser), a partir de sua constituição temática (vitória


vs.derrota) e os contornos figurativos (horizontalidade vs. verticalidade, rapi-
dez vs. lentidão, acuidade prática vs. acuidade cognitiva, impetuo-sidade
vs.veleidade).

A seguir, transcreveremos o texto a ser analisado:


.
«Positivamente, era um diabrete Virgília, um diabrete angélico, se
querem, mas era-o, e então ... Então apareceu o Lobo Neves, um homem
que não era mais esbelto que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem
mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatu-
ra, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesaria-
no. Não precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de
família. Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem,
porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes in-
fluências. Cedi: talfoi o começo de minha derrota. Uma semana depois,
Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro.

- Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano.

Virgília replicou:

- Promete que algum dia me fará baronesa?

- Marquesa, porque eu serei marquês.

Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e


elegeu a águia, deixando o pavão com seu espanto, o seu despeito, e três
ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem
não queria dizer coisa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata
do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; éjustamente o
contrário.» (1, p.56).

Os valores, no texto, para Lobo Neves e Brás Cubas parecem não


funcionar na mesma hierarquia; pois, se para o primeiro, o narrador onipresente
sugere ser Virgília um meio que lhe proporcionaria ascensão político-social
(embora indiretamente também o fosse para si - «a candidatura de Lobo Neves
era apoiada por grandes influências», «me arrebatou Virgília e a candidatura,
dentro de poucas Semanas», «Marquesa, porque eu serei marquês»; para o
segundo, a moça aparece revestida de uma conotação carinhosa que, neste

100 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990· N' 8 e 9


SANÇÃO DA TOLEIMA EM· ••MARQUESA, PORQUE EU SEREI MARQUÉS ••

capítulo-texto, fornece ao leitor a impressão de um Brás Cubas enamorado, para


quem a candidatura é um objeto secundário: «diabrete angélico», «fiquei
perdido», «o lábio do homem não é como o cavalo de Átila, que esterilizava o
solo em que batia( ... »).
Desta forma, embora os valores pareçam hierarquicamente distintos, SI
(Brás Cubas) e S2 (Lobo Neves) são colocados como anti-sujeitos, um em
relação ao outro, porque disputam um mesmo objeto (valor, para o primeiro;
modal, para o segundo ).Se para Brás Cubas, Virgília é uma pessoa a quem está
ligado afetivamente, embora também deseje a candidatura, para Lobo Neves a
moça é um meio (objeto modaly através do qual obterá mais facilmente a
candidatura, seu objeto-valor.

o conceito de intertextualidade possibilita-nos, neste ponto, a confron-


tação do capítulo XLIII --«Marquesa, porque eu serei marquês»-- (1, p.56), com
o ensaio machadiano «Queda que as mulheres têm para os tolos», onde o Autor
define o conceito de mulher, na visão do «homem de espírito»:

«As mulheres são para ele entes de mais elevada natureza que a sua,
ou pelo menos ele empresta-lhes as próprias idéias, supõe-lhes um
coração como o seu, imagina-as capazes, como ele de generosidade,
nobreza e grandeza.» (2, p.967).

E sobre a personalidade do «homem de espírito»:

«Naturalmente tímido, exagera mais ao pé delas a sua insuficiência; o


sentimento de que lhe falta muito, torna-o desconfiado, indeciso, ator-
mentado.» (2. p.967).

«Respeitoso até a timidez. não ousa exprimir o seu amor em palavras:


exala-o por meio de uma não interrompida série de meigos cuidados,
ternos respeitos e atenções delicadas». (2, p.967).

o mesmo texto onde Machado discorre sobre sua filosofia acerca do


relacionamento homem/mulher explica, também, que o «tolo» (menos intelec-
tualizado), não possuindo os escrúpulos acima mencionados, é revestido de
sangue frio e segurança:

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO"990 • N° 8 e 9 101


MARIA A.S.RODRIGUES MARTINS

«Satisfeito de si, nada lhe paralisa a audácia. Mostra a todos que a ama,
e solicita com instância provas de amor( ...) importuna-a, acompanha-a
nas ruas, vigia-a nas igrejas e espia-a nos espetáculos. Arma-lhe laços
grosseiros (...) porquanto revela-lhe o instinto, que pela adulação é que
se alcançam as mulheres» (2, p.967).

«o tolo é um amante sempre contente e tranqüilo. Tem tão robusta


confiança nos seus predicados, que antes de ter provas, já mostra a
certeza de ser amado» (2, p.968).

«Como não é ele que ama, é ele quem domina. Para venceruma mulher
finge por alguns momentos o excesso de desespero e paixão (...) Logo
depois recobra ele a tirania, e logo depois não a abdica mais» (2, p. 969).

«De resto, como nos tolos tudo é superficial e exterior, não é o amor um
acontecimento que lhes mude a vida: continuam como antes a dissipá-la
nos jogos, nos salões e nos passeios. » (2, p.967).

Tal confrontação permite-nos traçar um paralelo entre o texto acima


mencionado e Memórias Póstumas de Brás Cubas onde Brás é o «homem de
espírito» e Lobo Neves o «tolo», insinuação feita pelo próprio narrador, quando
classifica o rival como menos intelectualizado -«nem mais lido»- compar-
ando-o a si próprio. Desta forma, deduz-se que Virgília, para Brás Cubas/
homem de espírito, não poderia ser um objeto modal, pois seu conceito de
mulher era elevado. Lobo Neves/tolo, entretanto, não considerando o amor algo
primordial, na verdade utiliza a chance propiciada pelo casamento com a moça
para alcançar seu verdadeiro objetivo: a ascensão político-social.

Apesar de Brás Cubas se ver como um portador de qualidades necessárias


a um vencedor (esbelto, elegante, simpático,mais lido - este último, o único
traço de uma competência adquirida), ele perde, permanecendo como sujeito
disjunto do objeto-valor. No percurso do sujeito Brás Cubas não ocorre a
realização, pois o sujeito de fazer sofre um bloqueio (conflito entre as modali-
dades do dever/querer e do saber/fazer) o que interfere em sua performance.

Em Lobo Neves sincretizarn-se dois papéis actanciais: o de sujeito de


estado disjunto do objeto-valor (para quem Virgília funciona como um objeto-
modal) e o de sujeito de fazer, competente, modalizado segundo um saber-

102 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBA0/1990· N' 8" 9


SANÇÃO DA TOLEIMA EM «MARQl,IESA, PORQUE EU SEREI MARQUÊS ••

fazer, que realiza sua performance (faz-ser) e obtém uma sanção positiva. Seu
programa narrativo principal se defme a partir de um programa narrativo
secundário, de uso - casamento com Virgília - que lhe tomará possível obter
Seu propósito: a ascensão político-social.

Um outro aspecto digno de nota é aquele ao qual a intertextualidade


conduz, explicando uma constante em Machado de Asssis onde o «tolo», além
de menos intelectualizado que o «homem de espírito», é também mais impetuo-
so e detentor de todos os louros:

«Por menos observador e menos experiente que seja, qualquer pessoa


reconhece que a toleima é quase sempre um penhor de triunfo» (2,
p.969);

«o tolo não se faz; nasce feitos (2, p.966);

«o tolo é abençoado do céu pelo fato de ser tolo, e é pelo fato de ser tolo,
que lhe vem a certeza de que, qualquer carreira que tome, há de chegar
felizmente ao termos (2, p.966);

«Ignora o que é ser corrido ou desdenhado» (2, p.966);

«o que opor-lhe como obstáculo? É tão enérgico no choque, tão igual


nos esforços e tão seguro no resultado!» (2, p. 966);

«Mulher alguma resistiu nunca a um tolo.x (2, p.966).

Diante de tal filosofia irônico-pessimista, o homem de espírito/Bras


Cubas obviamente seria um perdedor, enquanto o tolofLobo Neves, portador da
toleima --. «um dom, uma graça, um selo divino» - e a quem conviria um pouco
de vulgaridade, sempre venceria.

Em "Marquesa, porque eu serei marquês" convém, ainda, observar ojogo


semântico efetuado pelo narrador entre Brás Cubas/pavão/perdedor vs. Lobo
Neves/águia/vencedor, onde ocorre a sugestão de que o fato de Virgília ter
optado pelo segundo é o resultado de uma prova, da qual resulta a conjunção de
Lobo Neves com seu objeto-valor (que para ele funciona, antes, como objeto-
modal), enquanto Brás Cubas fica disjunto de Virgília e da candidatura.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· NR8 e 9 103


MARIA A.S.RODRIGUEf) MARTINS

Uma observação dos traços que caracterizam a águia e o pavão nos irá
conduzir a:

• PAVÃO ÁGUIA

* Horizontalidade * Verticalidade

* Ave terrestre * Ave celeste

* Vôos curtos e * Vôos longos e de


de pouca altitude grande altitude

* Beleza * (Não marcado)


* (Não Marcado) * Acuidade

* Garras impróprias * Garras apropriadas


para caçar para caçar.

104 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBR9/1 990 • N" 8 e 9


SANÇÃO DA TOLEIMA EM «MARQUESA, PORQUE.EU SEREI MARQUÊS ••

Em uma relação de contigüidade, os atores são apresentados como:

BRÁSCUBAS/pAVÃO LOBO NEVES/ÁGUIA

* Elegante * (Não marcado)

* (Não marcado) * Esperteza

* Simpático * (Não marcado)

* Hesitante * Impetuoso

* Esbelto * (Não marcado)

* (Não Marcado) * Ambição

* Mais lido * Menos lido

* (Não marcado). * Cercado por grandes


influências

* O que cede * O que não cede

MAS MAS

* Não concretiza seu querer * Concretiza seu querer

* Não age * Age

Apesar de os valores - esbelteza, elegância, simpatia, intelectualidade


- coexistirem em Brás Cubas com as modalidades (dever/querer e poder/
saber) este vive um conflito hiperonímico entre o crer e o não-crer, não
conseguindo , por isso, chegar à realização, isto é, ao fazer-ser. Fracassa,
porque é marcado pela veleidade: não age no sentido de manter a conjunção que
SIGNIACAÇÃO - OUTUBAO/1990 - N08 e 9 105
MARIA A.S.RODRIGUES MARTINS

acredita possuir com o objeto-valor, pois não crê em sua competência, o que
concede a Lobo Neves a oportunidade de arrebatar-lhe Virgília e a candidatura.

A expressão «com ímpeto cesariano» confere a «dentro de poucas


semanas» um caráter de transformação repentina que, aliado a «arrebatou- e a
«águia», evidencia a natureza impetuosa e atuante de Lobo Neves. No diálo-
go travado entre este e Virgília, entretanto, a impetuosidade da «águia» é
suplantada pela perspicácia de sua presa. Aqui ocorre um subprograma
narrativo que narra o fazer-querer, isto é, a instauração do sujeito modalizado
segundo um querer/fazer por ação de um sujeito destinador - Virgília - que
manipula um destinatário - Lobo Neves - tornando-o mais ambicioso:
- «Promete que algum dia me fará baronesa?
- Marquesa, porque eu serei marquês,»

Neste momento da narrativa em que Lobo Neves desempenha um papel


de objeto-moda I e Virgília, a função de um sujeito de fazer (realizado),
estabelece-se um contrato. Brás Cubas fica, então, disjunto do objeto-valor:
«fiquei perdido» (1, p.56).

A definição de «diabrete angélico», apresentada logo no início do texto,


fornece uma pista de que Virgília não se restringirá a um mero objeto (valor, para
Brás Cubas; modal para Lobo Neves); mas, no decorrer da narrativa passará a
sujeito de fazer competente, que realiza sua performance - fazer Lobo Neves
ficar mais ambicioso, através de um jogo de sedução/manipulação.

É patente, na escritura machadiana, a refinada crítica feita pelo Autor à


sociedade do século XIX, que relegava a mulher à condição de mero objeto, do
qual se servia o homem, mediante o casamento, para ascender social e politica-
mente. Machado de Assis, entretanto, exirapola, colocando este ser/angélico/
objeto na posição de fazer/diabrete/atuante, que utiliza as próprias regras da
sociedade opressora, subjugando seu opressor virtual: o homem, fruto desta
sociedade. A mulher, neste caso, é «diabrete» no sentido de um ser imbuído de
sagacidade; e em Virgília a acuidade da águia é a característica-chave.

Virgília, o «diabrete angélico», opta por Lobo Neves, pois crê na capaci-
dade do mesmo, que se mostra mais promissor que Brás Cubas, a fim de alcançar
seu objetivo de vida: ser poderosa e respeitada dama da nobreza. Logo, o
primeiro pretendente, marcado pela veleidade, não poderia servir a seus
propósitos ambiciosos, se comparado ao atuante - e de atuação manipulável
- Lobo Neves.

106 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 - N.8 e 9


SANÇÃO DA TOLEIMA EM ••MARQUESA, PORQUE EU SEREI MARQUÊS ••

o texto de Machado de Assis confere à mulher, objeto de disputa de dois


homens, características de ambos: o diabrete iguala-se em pensamento e
inteligência ao homem de espírito, mas o angélico faz com que ela se perca na
ambição do tolo.

Assim, embora em «Queda que as mulheres têm para os tolos», Machado


de Assis justifique a atitude feminina como fruto da própria sociedade em que
foi criadâ (<<Efetivamente o estranho que ler as suas missivas, nada tem a dizer;
na mocidade o pai da menina escrevia assim; a própria menina não esperava
outra coisa. Todos estão satisfeitos, até os amigos. Que querem mais?» [2,
p.971]), no mesmo ensaio o leitor se depara com um outro trecho que parece
esclarecer, singularmente, a opção de Virgília:

«Hoje, graças a Deus, a verdade se descobriu: veio a saber-se que as


mulheres escolhem com pleno conhecimento do que fazem. Comparam,
examinam, pesam, e só se decidem por um, depois de verificar nêle a
preciosa qualidade que procuram. Essa qualidade é... a toleima!» (2,
p.966).

REFER~NCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) ASSIS, J.M.M.de - Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo, Editora
Ática, 1973 (4! edição).

(2) ASSIS, J.M.M.de - "Queda que as mulheres têm para os tolos", in Miscelânea,
Obra Completa. Rio de Janeiro, Ed.José Aguillar, 1962 (voI. ill).
(3) BARROS, D.L.P.de - Teoria do discurso. Fundamentos semióticos. São
Paulo, Atual Editora, 1988.
(4) CASTELO, J.A. - Machado de Assis - Crítica. Rio de Janeiro, Livraria Agir
Editora, 1959.
(5) COUTINHO, A. - A Filosofia de Machado de Assis e Outros Ensaios. Rio
de Janeiro, Livraria São José, 1959.
(6) DESMEDT, N. E. - Semi ótica da narrativa. Trad. Ora. Alice Maria Frias,
Coimbra, Livraria Almedina, 1984.
(7) GRUPO DE ENTREVERNNES - Analisis semiotico de los textos -
Introducción, teoría, práctlca. Trad. Ivan Almeida, Madrid, Ediciones
Cristiandad, 1982.

(8) PEREIRA, L.M. - Machado de Assis - Estudo crítico e biográfico. Rio de


Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1955 (5! edição).

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· Nº 8 e9 107


Análise do conto
«UM ESPINHO DE MARFIM»
sob a perspectiva
da teoria
greimasiana*

Maria do Carmo Almeida Correa

INTRODUÇÃO

A narrativa que escolhemos para nossa análise encontra-se no livro de


Marina Colasanti Uma idéia toda azul (2), rotulado como «o Melhor para o.
Jovem» pela FNLIJ e premiado na categoria «Literatura Infantil» pela Associação'
Paulista de Críticos de Artes, em 1979. Se a premiação se deve à qualidade
literária inegável do texto, é difícil entender, por outro lado, a rotulação: Como
veremos, o conto analisado, "Um espinho de marfim" (ver anexo), por sua
ambigüidade, permite leitura em vários planos; o conhecimento da simbologia
utilizada pela autora apontou-nos um caminho. A profundidade de leitura que
esse modelo nos permite não descarta, é claro, a possibilidade de sua fruição
pela criança e pelo jovem; apenas nos alerta para o risco de se afastar
«comercialmente» certas obras do público adulto, que poderia delas desfrutar
de maneira mais plena.

Nesse livro, a autora recupera alguns temas e figuras próprios dos contos
de fadas tradicionais. Por que o faz? Tentareinos levantar uma hipótese após
análise, levando em conta, naturalmente, apenas o conto analisado.

(*) Trabalho de aproveitamento do curso de Semi ótica I do Programa de Pós-Graduação


em Estudos Literários do Instituto de Letras, Ciências Sociais e Educação da
UNESP, campus de Araraquara.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 • NV8 e 9 109


MARIA DO CARMO ALMEIDA CORREA
.~. -_._--------------------------

Na análise, tentaremos integrar os três planos: discursivo, narratológico


e lógico-conceitual. Daremos maior ênfase aos dois primeiros por serem estes
a porta de entrada através da qual se penetra até o nível das estruturas profundas.

Passemos ao trabalho.

SEGMENTAÇAO

Para facilitar nossa análise, dividimos o texto em oito seqüências, obede-


cendo aos seguintes critérios (cf.Everaert-Desmedt, p.14):

* organização lógica dos enunciados narrativos;


* alterações espaço-temporais;
* disjunções actoriais.

Primeira Seqüência: corresponde ao primeiro parágrafo. É a apresenta-


ção do ator unicórnio,

Segunda Seqüência: até «Desapontado, o rei ordenou a volta ao caste-


lo». Surge um novo ator, o rei, que se coloca como sujeito de um PN de captura,
onde o unicórnio é o objeto. A disjunção actorial (introdução do rei) é reforçada
pela alteração espaço-temporal: «um dia» delimita o tempo, e o espaço do
jardim é trocado pelo da floresta.

Terceira Seqüência: até «...aprisionando o unicórnio». Volta a aparecer


a princesa, em cujo quarto se passa a ação, e que atua como sujeito operador de
um PN de captura do unicórnio para o pai, que passa de sujeito operador a
destina dor.

Quarta Seqüência: até «...esquecidos do prazo». Ausência do rei,


presença do unicórnio, a ação volta a passar-se no jardim. É a performance do
PN iniciado na primeira seqüência, que tem o unicórnio como sujeito. Ao
mesmo tempo, a princesa passa a sujeito de um novo PN.

Quinta Seqüência: até « Virei buscar o unicórnio ao cair do sol».


Mudança do espaço, que volta a ser o quarto da princesa; presença do rei, que
volta como destinador do antigo PN da princesa (terceira seqüência), cobrando
cumprimento do contrato.

110 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· N· 8 e 9


ANÁLISE DO CONTO ••UM ESPINHO DE MARFIM. SOB PERSPECTIVA GREIMASIANA

Sexta Seqüência: até "A lua apagou-se". Ausência do rei e do unicórnio.


Aprincesa debate-se entre dois PNs.

Setima Seqüência: até" ... enfimflorido". Presença do unicórnio, alteração


temporal -- é dia (as seqüencias anteiores passam-se durante a noite). Marcada
pela opção da princesa.

Oitava Seqüência: último parágrafo. Presença do rei, alteração temporal


("sol morrente"). É a sanção a nível da enunciação.

ANÁLISE
PRIMEIRA SEQÜÊNCIA: O unicórnio como Sujeito

Como todo conto de fadas típico, este começa com uma situação inicial
eufórica, de paz (até excessiva) no reduto familiar; presença da heroína típica,
a princesa; do espaço típico, castelo vs.floresta; linguagem evocativa; indefini-
çâo temporal (verbos no pretérito imperfeito do indicativo). Causa, no entanto,
estranheza a presença do unicórnio, que pertence à mitologia cristã da Idade
Média e não ao contexto dos contos de fadas. Essa «intrusão- já sugere a
presença do «agressor», ou seja, daquele que vai' quebrar a paz familiar,
causando o «desequilíbrio» que desencadeará a ação.

Podemos observar que o ator unicórnio abre o texto como sujeitovirtual


de um PN de amor, onde tenta passar de um estado de disjunção a um estado de
conjunção com o objeto de seu desejo, a princesa. Temos, pois, de início o
enunciado de estado SVO, sendo S o unicórnio e O a princesa. O unicórnio
autodestina-se um PN de conjunção:

F(S) => [(SVO) -> (sI\O)]

o que nos autoriza a considerar o unicórnio sujeito virtual de um PN de


amor que tem como objeto a princesa? Em primeiro lugar, a sua posição de
sujeito sintático de verbos que remetem à idéia de desejo: «olhar, esperar, ver»;
em segundo lugar, o fato de estarem os verbos no pretérito imperfeito, o que
indica ação contínua, persistência na ação por parte do sujeito.

Já o estado disjuntivo (unicórnio Vprincesa) é marcado pela disjunção


espacial: de início, superior vs. inferior, o objeto ocupando lugar superior

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· N° 8 e 9 111


MARIA DO CARMO ALMEIDA CORREA

(janela), o sujeito lugar inferior (jardim); fechado vs.aberto (quarto vs.jardim);


a seguir, manifesta-se uma oposição entre o espaço claro do jardim, para onde
a princesa se dirige, e o espaço escuro da floresta para onde o unicórnio se dirige.

o sujeito permanece virtual, por ser movido apenas pelo querer, faltando-
lhe, por ora, a modalização do saber e/ou poder para se tomar sujeito competen-
te, daí o «fugir».

No plano discursivo, observamos que as figuras utilizadas sugerem um


ambiente eufórico, onde predominam aquelas que evocam luminosidade,
perfume, delicadeza: «amanhecia o sol», «cumprimentar o dia»,jardim, flores;
por outro lado, embora haja determinação espacial, não há umrecorte temporal
(os verbos no imperfeito indicam ação contínua), o que sugere um ambiente que
se imaginaria não sujeito às limitações do tempo, portanto, supostamente
eterno.

Os dois atores possuem papel temático bem definido nas histórias


tradicionais. O papel tradicional de princesa é confirmado por alguns verbos;
adjetivos e expressões utilizadas: - «cumprimentar o dia» evoca juventude,
alegria, cordialidade; - «pezinho pequeno»: delicadeza; - janela do quarto,
balcão: inacessibilidade.

Já com relação ao unicórnio, temos duas imagens superpostas: a do mito,


que no-lo apresenta como símbolo ao mesmo tempo de potência e de pureza,
invocando sempre a idéia da sublimação, opondo-se a idéia da renúncia à idéia
da posse (1); e a apresentada diretamente pelo texto, através dos verbos de que
ele é sujeito, como:

-cpastava»: ação própria de animais herbívoros, portanto considerado


dóceis e gentis (em oposição aos carnívoros);

-ofugia»: indica timidez;

-«olhava», «esperava vê-la», «lá estava»: ações próprias de um sujeito


que ama à distância;

-verbos no pretérito imperfeito: indicam perseverança.

Notamos que essas características - docilidade, timidez, contemplação,


perseverança - são próprias do amor cortês, cristalizado na literatura medieval,
amor este que se caracteriza pela impossiblidade de concretização no plano da
realidade material. Concluímos, pois, que nesta Primeira Seqüência já se

112 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N" 8 e 9'


ANÁLISE DO CONTO ~UM ESPINHO DE MARFIM. SOB PERSPECTIVA GREIMASIANA

encontra antevisão do desenlace da narrativa em que, como veremos, a realiza-


ção do amor se fará num outro plano que não o do tempo e do espaço como os
concebemos, senão, talvez, do tempo e do espaço mítico.

SEGUNDA SEQÜ~NCIA; O unicórnio como objeto de um PN de


captura.

Surge aqui o recorte temporal -aum dia»: que marca o início da narrativa
propriamente dita, prenunciando a ruptura da situação eufórica inicial.

Aparece um novo ator, o rei, que desempenha o papel temático adequado


aos reis dos contos tradicionais: é o dono do poder. «Quero esse animal para
mim». Observe-se como essa frase começa com o verbo na primeira pessoa e
termina com o pronome de primeira pessoa, fechando o círculo: ele se posiciona
como o centro de tudo. Também dentro desse papel temático, o rei é o defensor
da paz familiar, daí a preocupação em capturar aquele que se apresenta como
intruso a esse ambiente; é a luta pela preservação do status quo.

No plano narra tológico, observamos que, ao se deixar ver pelo rei, o


unicórnio instaura nele o «querem, tomando-se destinador involuntário de um
PN em que o rei é o sujeito operador e o objeto é o próprio unicórnio. De início,
temos um enunciado de estado disjuntivo. Ao instaurar no rei o «querem; o
unicórnio o atualiza como sujeito virtual de um PN de captura, em qUf1o rei
desempenha, no plano discursivo, o papel temático de caçador, extensão do seu
papel temático já mencionado. A seguir, temos um enunciado de estado
conjuntivo - «todos /\. unicórnio encurralado» - que, no plano da
veridicção, se mostra falso: parece/não é: «estavam certos/perdiam sua pista,
confundiam-se no rastro». O rei fracassa nessa primeira tentativa, visto que não
consegue obter a competência. Na verdade, seu PN fracassa por ele não se
preocupar em desenvolver um PN secundário, de aquisição de competência, por
se julgar naturalmente competente.

No plano discursivo, ao PN de captura corresponde o percurso figurativo


da caçada, representado por verbos como caçar, galopar, correr, encurralar,
acampar e por substantivos como caçada, cavaleiro, cavalos, cães, pista, rastro,
fogueira, pegada. Além de alguns verbos que, tendo o rei como sujeito,
recobrem o papel temático de «caçador», temos o verbo «ordenam que marca
o início e o fim da ação de caça, que reforça o papel temático de autoridade
desempenhada pelo ator rei.

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBROll990 - N° 8 " 9 113


MARIA DO CARMO ALMEIDA CORREA

Esse percurso figurativo em que predominam verbos indicativos de


movimentos bruscos e agressivos, atitudes autoritárias, espaço marcado pela
floresta, que evoca ambiente hostil e escuro, contrasta violentamente com a
seqüência anterior, onde predominam, como vimos, a suavidade e a claridade.
Esta 'Seqüência se nos apresenta disfórica por essemotivo e também pelo
insucesso do actante sujeito em obter o objeto-valor.

A nível da. intertextualidade, o espaço da floresta suscita no leitor uma


expectativa de aquisição, se não do objeto-valor, pelo menos da competência,
visto que, nos contos de fadas tradicionais, a floresta é o espaço em que se dá
a maturação do herói, que ali adquire, regra geral, o objeto .mágico que lhe
permitirá atingir o objeto-valor; a floresta costuma ser o espaço de iniciação do
herói. Aqui, essa expectativa é frustrada, onde coincide a frustração do sujeito
do enunciado com a do sujeito da recepção, ou enunciatário.

TERCEIRA SEQÜÊNCIA: O unicórnio como objetode novo PN de


càptura.
o rei, no entanto, continua na tentativa de adquirir competência para o seu
PN de captura, através da manipulação que passa a exercer sobre a filha: «E logo
ao chegar foi ao quarto da filha contar o acontecido». O fracasso do pai,
instaura o querer na princesa: <<Aprincesa, penalizada com a derrota do pai,
prometeu que dentro de três luas lhe daria o unicórnio de presente.» O rei passa,
assim, de sujeito operador a sujeito destinador de um novo PN (que se inscreve
no PN inicial a nível de aquisição de competência), em que a princesa exerce o
papel de sujeito operador.

O «fazer» que o rei lhe destina não é o da captura do unicórnio, mas o da


entrega do unicórnio a ele, portanto poderíamos, ampliando o sentido desse
contrato, dizer que lhe destina um PN «ser filha». O destinador(rei) instaura
nela uma competência parcial, através do «querem; ela própria se inscreve como
competente quanto ao «devem, ao lhe prometer o unicórnio de presente. Para
«podem entregar o unicórnio ao rei, ela deverá desenvolver um PN secundário
de captura (aquisição do «podem); mas, para capturar o unicórnio, ela deverá
passar por outro PN secundário, que a tornará competente para isso. Temos,
pois, dois PNs secundários hierarquicamente dispostos. No primeiro, ela se
torna competente para a captura através de um «poder» que emana de um «saber
fazem: ela recolhe-se dentro de si mesma (durante três noites trança uma rede
com seus próprios cabelos), portanto,a prova qualificadora vem do vencer a si
mesma e não a um ser externo, o que se contrapõe à tentativa frustrada do rei em

114 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBAO/l990 - N' 8 e 9


ANÁUSE.DO CONTO .UM ESPINHO DE MARFIM •• SOB PERSPECTIVA GAEIMASIANA

adquirir sua competência saindo de si e do seu espaço (Segunda Seqüência). Isso


nos remete à lenda, que diz:« (o unicórnio) sá pode ser capturado pela astúcia
de uma jovem que o adormece com operfume de um leite virginal» (1), tendo
aquio leite sido substituído pelos cabelos, também eles parte do ser que atua
como sujeito. Após essa prova, ela é sujeito competente, não ainda do PN
principal (ser filha), mas ainda de um segundo PN secundário, o da.captura. Ao
. lançar a rede aprisionando o unicórnio, ela passa fmalmente de de sujeito virtual
a sujeito competente de seu PN principal. Para tomar-se sujeito realizado, resta-
.lhe cumprir o contrato, entregando o unicórnio ao pai.

Comparando o percurso figurativo da «caçada» (Segunda Seqüência)


com o da captura realizada pela princesa, notamos:'

DISJUNÇÕES ESPACIAIS:
«floresta» vs. «jardim»
lugar estranho lugar familiar
lugar hostil lugar pacífico
lugar escuro lugar luminoso, claro

DISJUNÇÃO TEMPORAL:
tempo indefinido vs. tempo fixado por um
«durantes dias» número cabalístico:
I
«três noites»

DISJUNÇÃO ACTORIAL:
«rel» vs. «princesa»
papel temático de
autoridade
I papel temático de
docilidade

DISJUNÇÃO INSTRUMENTAL:

utilização de recursos utilização de recursos


«exteriores»ao ator: vs. «interiores» ao ator
cavalos cabelos
cães
cavaleiros

SIGNIRCAÇÃO. 0UTU1IROI1990· NO8.9 115


MARIA DO CARMO ALMEIDA CORREA

DISJUNÇÃO DE MODALIDADES DE ACÕES:

ações bruscas.agressívas: vs. ações delicadas:


«caçam «trançam
«galopam «vigiam
«correm «lançam

DISJUNÇÕES SONORAS:
verbos que indicam vs. ausência de evocações
sons fortes e contínuos sonoras
«galopam
«correm

Talvez esses percursos figurativos contrários nos dois PNs que têm por
objetivo il, captura do unicórnio nos permitam deduzir que o objeto figurativo
«unicórnio» não terá, no decorrer da narrativa, o mesmo valor para os dois atores
(reie princesaj.respectivamente sujeitos dos dois PNs figurativizados pela caça
e pela captura. Voltaremos a esse ponto no desenrolar de nossa análise.

QUARTA SEQÜÊNCIA: O unicórnio como sujeito e objeto de uma


performance de amor.

«PRESO nas malhas de ouro, OLHA VA o unicórnio aquela que mais


AMA VA, agora sua dona, e que dele nada SABIA.» Os verbos dessa frase com
que se abre a Quarta Seqüência, prenunciam as transformações que se efetuarão
a seguir. Vejamos:

- «preso»: particípio, coloca o unicórnio como «objeto», o que situa no PN


narrado na seqüência anterior;

- «olhava»: o unicórnio volta a ocupar a posição de sujeito, assumida na


Primeira Seqüência, exatamente através dessa mesma forma verbal (linha 3);

- «amava»: continua como sujeito, desta vez explicitando o que ficara


implícito na Primeira Seqüência: o seu amor pela princesa;

116 SIGNIFICAÇÃO, OUTUBR0/1990 • N0 8e 9


ANÁUSE 00 CONTO ••UM ESPINHO DE MARFIM- SOB PERSPECTIVA GREIMASIANA

- «sabia»: aqui, o sujeito sintático é a princesa, o que já sugere o seu


posicionamento futuro como sujeito de um PN em que será manipulada através
do «sabem.

Considerando o unicórnio como sujeito, temos, nesse inicio, um enuncia-


do de estado disjuntivo SVO. Paradoxalmente, a captura do unicórnio lhe
proporciona a aproximação com a princesa, o que lhe possibilita passar de
sujeito virtual a sujeito competente, modalizado pelo «podem, visto que o ato
de «olhar» começa a provocar uma transformação de modalização na princesa.
«A princesa aproximou-se»: ela passa a tomar conhecimento do unicórnio
através de alguns sentidos, como visão e tato. As imagens relativas ao unicórnio
sugerem mansidão, carinho, mas também dureza (lacre dos cascos, espinho e
marfim) e apelo a uma transcenderitalização (apontava ao céu). «A princesa
estremeceu, afrouxou os laços da rede»: a princesa exerce o «fazer interpreta-
tivo» e abandona sua competência para o outro PN (ser filha), o que lhe permite
tomar-se sujeito operador de um novo PN: o de «ser amante». Para adquirir
competência para essa performance, ela desenvolve PNs no plano cognitivo, ou
seja, que visam à aquisição de um «sabem sobre o unicórnio (objeto): «Quanto
tempo demorou a princesa para conhecer o unicórnio ?Quantos dias foram
precisos para amá-lo ?». Através da consecução desses PNs, o objeto «unicór-
nio» adquire um valor novo, passando do «secreto» ao «verdadeiro» sob o ponto
de vista do sujeito do fazer interpretativo, a princesa, que a seguir passa de
sujeito 'competente a realizado: «Na maré das horas... esquecidos do prazo».
Temos aí a performance do PN de «ser amante» da princesa, assim como a
performance correlata do PN do unicórnio. Ambos são reciprocamente sujeito
e objeto nesse PN de amor.

Ao abandonar o PN anterior, a princesa rompe o contrato estabelecido


com o pai, tomando-se sujeito de um anti-PN, portanto, anti-sujeito, visto que
ambos passam a disputar o mesmo objeto, o unicórnio que, para o rei, se nos
afigura ser um objeto pragmático (é preciso caçá-lo), ao passo que, para a
princesa, é um objeto cognitivo (é preciso conhecê-lo).

Temos, nesta Seqüência, SI V 0/\ S2, sendo SI o rei, S2 a


princesa e O o unicórnio. Nota-se, pois, que de uma relação hierárquica passa-
se a uma relação simétrica e polêmica: sujeito vs.anti-sujeito.

N a camada discursiva observamos que, na parte reservada à manipulação,


podemos destacar os seguintes percursos do ator unicórnio:

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBR0/1990· NO8 e 9 117


MARIA DO CARMO ALMEIDA CORREA

- da prisão para a liberdade:


«preso» -> «afrouxou os laços da rede»
«sua dona»
«malhas de ouro»
«retido»
- do distanciamento para a aproximação:
(no início está distante) -> «a princesa aproximou-ser
«olhava» -> «lambeu a mão»
- da horizontal idade para a vertlcalídader
_«preso nas malhas de ouro» -> «chifre único que apontava ao
céu»
(corpo na horizontal) «ergueu-se nas patas [mas»;

Esse percurso, complementado pelas figuras do último parágrafo, evoca-


doras de um ambiente bucólico, nos permitem avaliar euforicamente a passa-
gem do estado disjuntivo ao conjuntivo na relação S (unicórnio) -O (princesa).
No entanto, nesse último parágrafo, onde se realiza a performance, embora
permaneçam as figuras de liberdade (corriam com as borboletas) e de aproxima-
ção (abraçados, amor), no eixo da verticalidade a posição superativa volta a ser
assumida pela princesa (aela na grama, ele deitado a seus pés»), talvez para
lembrar que nesse texto o PN dominante é realmente o que tem por sujeito a
princesa e por objeto o unicórnio, depositário dos valores que ela lhe vai
gradativamente atribuindo.

É interessante notar que nesse parágrafo dedicado à performance, os


verbos encontram-se no pretérito imperfeito, como no primeiro parágrafo do
texto, evocando um desligamento temporal e, portanto, dando uma sensação de
irrealidade, como a mostrar que a realização através do prazer amoroso é uma
ilusão; sintomaticamente, fecha o parágrafo a palavra «prazo», intervenção do
enunciador, que, remetendo o enunciatário à promessa da princesa ao pai,
coloca em cena a oposição: parece/não é (a felicidade aí figurativizada é
«falsa»),

QUINTA SEQÜÊNCIA: Tentativa de se retomar um PN de captura.

Verifica-se aqui uma interrupção no PN de amor, já prenunciada, como


vimos, no final da seqüência anterior. O rei, dando continuidade a seu PN,
posiciona-se mais uma vez como destinador e vem cobrar da princesa o

118 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 • N0 8 9 9


ANÁLISE DO CONTO ••UM ESPINHO DE MARFIM. SOB PERSPECTIVA GREIMASIANA

cumprimento do contrato. Como sujeito de fazer interpretativo, «desconfia»


que o unicórnio já foi capturado, mas interpreta como «parecer/não ser» o que
é parecer/ser. De qualquer maneira, o rei suspeita que a princesa esteja se
colocando como anti-sujeito, esperando, através da ameaça, que se verifique
uma atribuição de objeto:

F(S3)==>[(SI j\OvVS2)->(SIVOv ;\S2)], sendo S3 e SI a


princesa, e S2 ele próprio. Para isso, a princesa deve renunciar ao Ovo

o rei continua no seu papel temático de «caçador» (efarejou o ar»), o que


comprova que, para ele, o unicórnio é um objeto pragmático, é a posse material
desse objeto que lhe interessa para confirmar seu «poder» (<<querosua palavra
cumprida» ).

A cena passa-se à noite, num espaço fechado, o que sugere «opressão»;


sendo o espaço o quarto da filha, tem-se a impressão de «invasão»: o rei não
conhece seu limite e não respeita o limite do outro. Já as figuras relacionadas
com o unicórnio lembram «integração» (<<confundia-se com os perfumesvà, o
que nos remete à conjunção da Seqüência anterior.

SEXTA SEQÜÊNCIA: Polêmica - a princesa debate-se entre dois


destinadoreS.

A princesa debate-se entre dois possíveis narrativos: o do «poder» e o do


«saber», portanto, um pragmático e um cognitivo. O que está em jogo é o próprio
valor do objeto: é preciso determinar se ele é pragmático ou cognitivo. É o
debate entre o material e o espiritual, que podemos observar no nível profundo,
desde a Segunda Seqüência que, na sua materialidade se opõe à espiritualidade
evocada pela primeira. Agora, essa polêmica atinge o auge, quando, a nível
narrativo, a princesa se debate entre os dois PNscontrários, em que ela
desempenha o papel actancial de sujeito operador. É interessante notar que no
segundo PN, o cognitivo, o próprio objeto é o destinador, ao passo que, no
primeiro, o destinador é externo ao objeto; ou seja, no segundo, o valor do objeto
é intrínseco.

A princesa é solicitada a agir, agora, como sujeito intcrpretativo,julgando


da veridicção dos dois PNs em que é manipulada: é preciso sancionar positiva-
mente um deles. Nos dois é modalizada pelo «dever» (<<ERA PRECISO
obedecer ao pai, ERA PRECISO manter a promessa. Salvar o amor ERA

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N" 8 e 9 119


MARIA DO CARMO ALMEIDA CORREA

PRECISo,». No PN «ser amante», o objeto lhe aparece como desejável (querer


amar), realizável (dever amar), legítimo (saber amar) mas impossível (não
poder amar). Já no PN «ser filha», que exige a entrga do unicórnio ao pai, a
performance lhe aparece como realizável, possível, porém indesejável e ilegí-
tima. A princesa, que já tinha interpretado e sancionado negativamente o PN em
que era manipulada pelo pai ( Quarta Seq.), vê-se forçada novamente a julgar
sobr~ esse PN, dada a intimidação do destinador. Percebe-se, pois, que a
situação de conjunção em que se encontrava na Quarta Seq. era instável, daí,
como vimos, as figuras que evocavam fuga à realidade (vôo, cavalgada,
bucolismo, atemporalidade).

Nesta seqüência, a princesa hesita entre dois objetos modais: o poder e o


saber. Na Terceira Seqüência, ela está em conjunção com o Om podere disjunta
do Om saber. Na Quarta, a nível aparente, está em conjunção com os dois, mas,
na Quinta, fica patente que eles são, por ora, incompatíveis. Mas, como no
segundo PN ela é modalizada também pelo querer, sendo que, no primeiro, há
muito ela deixou de ser assim modalizada, é preciso, por força, que ela adquira
a competência total para esse segundo PN, ou seja, que passe por uma «prova»,
para adquirir o poder, podendo, assim, passar da resistência passiva para a
resistência ativa (dever-fazer -> querer não fazer) com relação ao destinador
«pai». Entre a inodalização do crer e a do dever, ela momentaneamente perde
o saber. Readquire-o através de uma «prova qualificadora» (passar a noite sem
dormir, na mitologia oriental, é dar provas de força espiritual), através da qual
adquire a competência: agora ela SABE como adquirir o PODER para atingir
o Ov que ela QUER.

O percurso figurativo evoca tristeza (lágrimas, alaúde, «cantar a triste-


za», noite). A indecisão em que ela se debate é apresentada pela reiteração de
«era preciso», que nos mostra que a polêmica não era entre o «devem e o
«querem, como pode parecer à primeira vista; mas entre duas formas de
realização, a pragmática e a congnitiva, visto que a realdiferença entre os dois
PNs está aí.

Marcamos o final dessa Seqüência com a frase «o lua apagou-se», porque


aí termina a noite e, com ela, a fase da decisão. A Seqüência seguinte, por ser
eufórica, começa com a figura luminosa do sol que «mais uma vez encheu de luz
as corolas».

120 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - NO 8 e9


ANÁLISE 00 CONTO .UM ESPINHO DE MARFIM. SOB PERSPECTIVA GREIMASIANA

SÉTIMA SEQÜÊNCIA: PN da sublimação.

A repetição das ações executadas no PN do amor (<<ecomo no primeiro


dia ... » etc.) leva -nos a supor que a princesa optou por ser sujei to desse PN e que,
portanto, teríamos agora apenas a reiteração do PN «ser amante». Mas, como
teria ela adquirído o «podem? A resposta está na última frase: «E nesse último
dia, aproximou a cabeça do seu peito, com suave força, com força de amor
empurrando, cravando o espinho de marfim no coração, enfim florido». A
expressão «nesse último dia», indica que há um progresso, há uma diferença, e
que uma fase vai ser encerrada (último). A aproximação da cabeça ao seu peito
sugere o conhecimento através do amor, a força empurrando mostra que ela
adquiriu o poder (força) e essas figuras, sendo complementadas por «cravando
o espinho de marfim no coração, enfim florido», sugerem que o poder não lhe
vem só do amor, mas, essencialmente, da DOR; o amor já havia, O dado novo
é a dor, é a introdução do sofrimento que se inicia já ria Sexta Seqüência
(lágrimas), quando é preciso se fazer uma opção que culmina justamente nesta
opção que leva à TRANSFIGURAÇÃO. Que só agora ela atinge realmente seu
objetivo fica claro pela expressão «enfimflorido», Podemos dizer, pois, que este
é um terceiro PN que ela própria se destina, ou seja, o da transcendentalização.
Para entender bem isso, é preciso examinar mais de perto a figura do «espinho
de marfim». No 11 Q parágrafo, vemos que ele «apontava ao ceu»; além disso,
era o chifre «único», indicando, assim, ser o único caminho para a ascensão
espiritual. No Dictionnaire dcs symbolcs (1) vemos que o espinho dá uma
idéia de dificuldade, de «proibição exterior» e, em conseqüência, de um acesso
amargo e difícil. Por outro lado, tanto o espinho como o marfim são.símbolos
da pureza e da potência (como, aliás, o próprio unicórnio). A idéia de
transcendentalização pelo sofrimento ficará mais clara através do exame das
figuras utilizadas na Oitava e última Seqüência.

OITAVA SEQÜÊNCIA: Sanção.

O percurso figurativo que nos apresentou «espinho: e «marfim» prosse-


gue agora com «rosa de sangue» e «feixe de lírios». Desde o início da narrativa,
o unicórnio está relacionado à figura do lírio. Segundo o Dictionnarc (1), o lírio
é símbolo pureza, da inocência, da virgindade; diz mais: da pureza celeste. É a
«flor do amor, de um amor intenso, mas que, em sua ambigüidade, pode ser
irrealizado, ou reprimido, ou sublimado; se é sublimado, o lírio é a flor da
glória». Na tradição bíblica «é o símbolo da escolha do ser amado» mas é
tarnbémo-eabandono à vontade de Deus isto é, à Providência, abandono místico

SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 - N° 8 e 9 121


MARIA DO CARMO ALMEIDA CORREA

à graça de Deus».Já a rosa designa uma perfeição acabada, uma realização sem
defeito. «A rosa, por sua relação com o sangue derramado, parece, freqüente-
mente, ser o símbolo de um renascimento místico». Apesar de ter sido aproveitada
pela simbologia cristã, a rosa desde a Antiguidade é símbolo de regeneração. Já
a aproximação do branco com o vermelho simboliza a aproximação do profano
ao sagrado e combina as noções de paixão e pureza, de amor transcendental e
sabedoria divina. A figura do «sol morrente» (crepúsculo) reforça a aproximação,
ou mesmo a mescla dessas duas cores. E a palavra «sangue», em lugar de
«vermelho», reforça a idéia de sofrimento; a colocação da palavra «sangue»
antes da palavra «lírios», com que se fecha o texto, mostra o percurso do
sofrimento à pureza transcendental.

No nível narratológico, verificamos que a transformação final não é uma


transformação de enunciado de estado, visto que a princesa está com o unicórnio
e permanece com ele, mas é uma transformação de modalização: um enunciado
de estado «impossível» passa a ser «possível», pois o que se transforma são os
próprios Sujeito e Objeto, que se transfiguram. Assim há, de certa maneira, uma
fusão do nível cognitivo com o pragmático, visto que à princesa não lhe basta
«crer», é preciso «fazer»; não lhe basta «saber», é preciso «poder». Por isso ela
se autodestina um PN que integra o «fazer crer» e o «fazer fazer» através do
«saber fazer» integrado ao «poder fazer». Como vimos, a manipulação está
implícita, a competência ela a adquire através de uma busca dentro de si mesma
(Sexta Seq.), e a performance é realizada ao cravar o espinho no coração; no
último parágrafo é que se percebe que a performance é realizada num outro
plano, no espiritual ou mítico, visto que, para o rei, que permanece no plano
material, eles deixam de existir como princesa e unicórnio, e sua performance
permanece um mistério.

Talvez pudéssemos considerar esse último parágrafo como uma conti-


nuação ou reiteração da performance da transfiguração, mas nos parece que,
além disso, se coloca aqui uma sanção cognitiva advinda não do fazer interpre-
tativo de um sujeito destinador, mas do próprio enunciador que, ele mesmo, faz
sua opção e sanciona negativamente não a performance do rei (que não se
realiza) mas seu papel de sujeito que atribuía ao unicórnio um valor pragmático,
priorizando o «fazem através do «poder». O «castigo» que o enunciador lhe
impinge, negando-lhe o direito de realizar a performance, mostra-o como
sujeito incompetente, em contraposição à princesa que, ao colocar o unicórnio
como objeto do saber cognitivo, adquire a competência e é sancionada positi-
vamente, através da «transfiguração», como geralmente ocorre nos contos de
fadas, após a «prova glorificadora».

122 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· N' 6 e9


ANÁLISE DO CONTO -UM ESPINHO DE MARFIM. SOB PERSPECTIVA GREIMASIANA

BALANÇO FINAL

Num balanço final, diríamos que o unicórnio, embora apareça como


sujeito de um PN de amor, na verdade é o objeto em direção ao qual se movem
os fazeres. O fato de ele se posicionar também como sujeito de umPbl de amor
em que o objeto é a princesa, julgamos que seja para reforçar a idéia de que
somente ela é que poderia atingir esse objetivo, porque somente ela o enxerga
dentro de sua real perspectiva.

Por outro lado, é de se notar que a princesa é a única personagem que


EVOLUI, tornando-se, pois, o ator principal da narrativa. Podemos notar sua
progressão através de diversos indícios:

* passagem de objeto (Primeira Seq.) a sujeito (Terceira Seq.e outras);

* passagem de sujeito operador (destinatário) a anti-sujeito (de uma


posição hierarquicamente inferior a uma posição de igualdade);

* passagem de sujeito operador (Terceira Seq.) a sujeito interpretativo


(Quarta e Sexta Seq.);

* passagem de sujeito de um PNpragmático a sujeito de-um PN cog~itivo;

* passagem de um percurso figurativo de «docilidade» ao percurso de


«amor-prazer», até o de «amor-dor»;

* passagem da obediência ativa à resistência passiva; e, finalmente, à


.resistência ativa;

* passagem de sujeito manipulado pelo pai para obter um objeto para ele,
dentro do PNde1e, para um PN independente onde é manipulada pelo próprio
objeto, até um PN que ela própria Se destina.

Na estrutura profunda, notamos um percurso de MATERIALIDADE


para ESPIRITUALIDADE.

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N' 8 e 9 123


MARIA DO CARMO ALMEIDA CORREA

No quadrado semi ótico, temos:

materialidade espiritualidf

não-espiritualidade não-materialidade

A materialidade é figurativizada pela caçada, pelo unicórnio enquanto


objeto pragmático, pela manipulação pragmática; a não-materialidade se inicia
pelo amor bucólico e prazeroso entre a princesa e o unicórnio, até chegar à
espiritualidade, atingida nas duas últimas seqüências.

Apenas para concluir, diríamos que nossa leitura foi feita no sentido de
interpretar o texto como a representação do eterno percurso do ser humano,
figurativizado aqui pelo percurso da princesa: a constante busca da superação
de si mesmo, através do contínuo mudar-se, do constante transformar-se,
passando-se de um estágio a outro através do exercício do fazer interpretativo,
valorizando-se aqui não só o sofrimento como condição para a felicidade final,
mas também a necessidade de se assumir a própria identidade, a necessidade de
se fazer as próprias opções e de se confiar nos próprios recursos, embora a
solução mais fácil seja a de submeter-se ao poder estabelecido. Assim, o
percurso não é só da materialidade para a espiritualidade, mas também da
dependência para a independência, da submissão para a liberdade.

CONCLUSAO

Nos contos de fadas tradicionais, o herói parte para reparar um dano ou


suprir uma carência, sua ou do destinador. Passa por uma prova (qualificante)
de aquisição do objeto mágico (competência), por outra (principal) que lhe
permite pôr-se em conjunção com o objeto de sua busca (performance) e após
vencer uma última prova (glorificante), é sancionado pragmaticamente através,
geralmente, do casamento, que pode simbolizar ascensão pessoal, ascensão
social, realização através da integração com o outro, conquista da maturação,
etc.

Aqui, a ordem estabelecida nos contos de fadas é subvertida de várias


maneiras, mas a principal subversão parte do ator «princesa» que, agindo

124 SIGNIFICAÇÃO' OUTUBAO/1990· N' 8 e9


ANÁLISE DO CONTO «UM ESPINHO DE MARFIM» SOB PERSPECTIVA GREIMASIANA

inicialmente como «herói buscador», com a missão de proceder à reparação de


uma carência do pai, no momento mesmo de proceder a essa «reparação da
falta», clímax de toda narrativa maravilhosa, (prova principal), percebe seu
próprio estado de carência e subverte totalmente o percurso narrativo tradicio-
nal, provocando no enunciatário a necessidade de uma re1eitura do texto, vindo
o rei a assumir o papel de «falso herói», que falha, como todo falso herói, na
aquisição do objeto-mágico, como se vê na seqüência da caçada, o que já faz
antever o papel de agressor ou antagonista que assume após o ato de insubor-
dinação da princesa. É através da subversão da ordem estabelecida que a
princesa vence a prova glorificadora e atinge a «transfiguração».

Assim, parodiando o conto de fadas que, de acordo com modernos estudos


traduz em linguagem simbólica o percurso do homem (ser humano) rumo à sua
realização pessoal, figurativizada no final através da união com o elemento do
sexo oposto, no conto analisado a autora mostra que para se chegar a esse estado
de maturação não basta fundir realismo com pensamento mágico, como se faz
nos contos de fadas, mas é preciso principalmente «rompem com a ordem
estabelecida, a fim de se obter um novo tipo de conhecimento que leva à
realização do objetivo final do ser humano, seja ele qual for.

BIBLIOGRAFIA

CHEV ALIER, JEAN ET SEGHERS, ALAIN GHEERBRANT - Díctlonnalre


des Symboles.
COLASANTI, MARINA. Uma Idéia Toda Azul. Riode Janeiro, Nórdica,1979.
ELIADE, MIRCEA. Mito e Realidade. São Paulo, Perspectiva, 1972.
ELIADE, MIRCEA. Mythes, Rêves et Mystêres. Paris, Gallimard, 1975.
EVERAERT-DESMEDT, NICOLE. Serniótiea da Narrativa. Coimbra,
Livraria Almedina, 1984.
GREIMAS, AJ. e COURTES,J. - Dicionário de Semiótiea. São Paulo,
Cultrix.
GROüPE D'ENTREVERNES. Analyse Sémíotíque des Textes. Lyon,
Presses Univesitaires, 1979.
PROPP, V. - Morphologie du Conte. Significação - Revista Brasileira de
Semiótiea. Sãó Paulo, Unesp, nl!5,junho 1985.
ZYMMER, H. - Mythes et Symboles dans l'art et la clvilization de I'Inde.
Paris, Payot, 1951.

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/l990 - NO 8 e 9 125


MARIA DO CARMO ALMEIDA CORREA

«UM ESPINHO DE MARFIM»

Marina Colasanti

Amanhecia o sol e lá estava o unicórnio pastando no jardim da


princesa. Por entre flores olhava a janela do quarto onde ela vinha
cumprimentar o dia. Depois esperava vê-la no balcão, e quando o
pezinho pequeno pisava no primeiro degrau da escadaria descendo
ao jardim, fugia o unicórnio para o escuro da floresta.

Um dia, indo o rei de manhã cedo visitar afilha em seus aposentos,


viu o unicórnio na moita de lírios.

Quero esse animal para mi111. E imediatamente ordenou a caçada.

Durante dias o rei e seus cavaleiros caçaram o unicórnio nas


florestas e nas campinas. Galopavam os cavalos, corriam os cães .e,
quando todos estavam certos de tê-lo encurralado, perdiam sua pista,
confundiam-se no rastro.

Durante noites o rei e seus cavaleiros acamparam ao redor das


fogueiras ouvindo no escuro o relincho cristalino do unicórnio.

Um dia, mais nada. Nenhuma pegada, nenhum sinal da sua presença.


E silêncio nas noites.

Desapontado, o rei ordenou a volta ao castelo.

E logo ao chegar, foi ao quarto da filha contar o acontecido. A


princesa, penalizada com a derrota do pai, prometeu que dentro de
três luas lhe daria o unicórnio de presente.

Durante três noites trançou com osfios de seus cabelos uma rede de
ouro. De manhã vigiava a moita de lírios do jardim. E no nascer do

126 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N. 8 e9


ANÁUSE DO CONTO ••UM ESPINHO .DE MARFIM. SOB PERSPECTIVA GREIMASIANA

quarto dia, quando o sol encheu" com ai primeira luz os cálices


brancos, ela lançou a rede aprisionando o unicórnio.

Preso nas malhas de ouro, olhava o unicômio aquela que mais


~11I(Jva,
agora sua dona, e que dele nada sabia.

A princesa aproximou-se. Que animal era aquele de olhos tão mansos


retido pela artimanha de suas tranças? Veludo do pelo, lacre dos
casco e desabrochando no meio da testa, espinho e marfim, o chifre
único que apontava ao céu.

Doce língua de unicórnio lambeu a mão que o retinha. A princesa


estremeceu, afrouxou os laços da rede, o unicórnio ergueu-se nas
patas finas.

Quanto tempo demorou a princesa para conhecer o unicôrnio?


Quàntos dias foram preciso para amá-lo?

Na maré das horas banhavam-se de orvalho; corriam com as borbo-


letas, cavalgavam abraçados. Ou apenas conversavam em silêncio
de amor, ela na grama, ele deitado a seus pés, esquecidos do prazo.

As três luas, porém, já se esgotavam. Na noite antes da data marcada


o rei foi ao quarto da filha lembrar-lhe a promessa. Desconfiado,
olhou nos cantos,farejou a ar. Mas o unicõrnio que comia lírios tinha
cheiro deflor, e escondido entre os vestidos da princesa confundia-
se com os veludos, confundia-se com os perfumes,

Amanhã é o dia. Quero sua palavra cumprida, - disse o rei - virei


buscar o unicârnio ao cair do sol.

Saldo o rei, as lágrimas da princesa deslizaram no pelo do unicôrnio.


Era preciso obedecer ao pai, era preciso manter a promessa. Salvar
o amor era preciso.

SIGNIACAÇÃO - OUTUBRO/1990· N" 8 e 9 127


MARIA 00 CARMO .ALMEIDA CORREA

Sem saber o que fazer, a princesa pegou o alaúde, e a noite inteira


cantou sua tristeza. A lua apagou-se. O sol mais uma vez encheu de
luz as corolas. E como no primeiro dia em que se haviam encontrado
a princesa aproximou-se do unicômio. E como no segundo dia
•olhou-o procurando ofundo dos seus olhos. E como no terceiro dia
segurou-lhe a cabeça com as mãos. E nesse último dia aproximou a
cabeça do seupeito, com suaveforça; comforça de amor empurrando,
cravando o espinho de marfim no coração, enfim florido.

Quando o rei veio em cobrança de promessa, foi isto que o sol


morrente lhe entregou, a rosa de sangue e umfeixe de lírios.

* **

128 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO(l990 - NO 8 e 9


Verbo
Imagem
Leitura de Sargento Getúlio - Livro e Filme

Alécio Rossi Filho

INTRODUÇÃO

João Ubaldo Ribeiro, escritor baiano, autor de vários livros - Vila Real,
Vcncecavalo e o Outro Povo, Viva o Povo Brasileiro, entre outros - publica
em 1971 o romance Sargento Getúlio. Nele o protagonista, um sargento da
Polícia Militar de Sergipe, é encarregado de levar um prisioneiro político de
Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros. A ação se situa num período histórico
brasileiro, a década de trinta aproximadamente, e tem como contexto as disputas
dos partidos políticos com seus confrontos e coligações. Como sargento,
Getúlio serve a um chefe político do Partido Social Democrático. O romance
focaliza os conflitos vividos por essa personagem incapaz de compreender, em
decorrência de suacosmovisão maniqueísta, as alianças efetuadas pelos líderes
partidários. O contexto histórico assim definido, compõe um nível de leitura
que, neste romance, importa como plano de' expressão da auto-definição do
homem do sertão, situado em um determinado.momento histórico, conseqüente
de vários movimentos políticos e sociais.

O romance de João Ubaldo foi transformado em filme pelo diretor


Hermano Penna, tendo como ator principal Lima Duarte coadjuvado por
Fernando Bezerra, Orlando Vieira, Flávio Porto e Ignês M.Santos.

Neste trabalho pretendemos realizar uma comparação entre o texto


literário e o texto fílmico. Para isso estabelecemos duas etapas. A primeira terá
como objetivo uma leitura do texto literário enquanto tal. Na segunda etapa
preocupar-nos-emos em verificar como se processou a transcodificação no
filme de Hennano Penna.
SIGNIFICAÇÃO· OUTUBR0/1990· N" 8 •• 9 129
ALÉCIO ROSSI FILHO

Do Romance:

Fundem-se no livro Sargento Getúlio as figuras do narrador e do


protagonista, actorizados pelo Sargento Getúlio. A narração se dá
a partir de um discurso constante do narrador, no qual se misturam
fala e pensamento, falas do próprio sujeito do enunciado com
falas de outros atores amalgamados no discurso livre do primeiro,
existindo, ainda, momentos em que predomina o solilóquio.

Tal complexidade do discurso assim constituído é tematizado pelo


próprio narrador que coloca em dúvida a suacapacidade de discernir entre
pensamento e fala, entre o que é verbalizado e o que é pensado:

Não sei nem o que eu estou falando, ou o que eu estou pensando.


Quando estou pensando,. estou falando, quando estou falando,
estou pensando, não sei direito. (p.26)

As idéias, aparentemente desconexas, se entrelaçam uma encadeando


outra e outra, o que nos parece demonstrar o conflito interior do sujeito
decorrente das dificuldades na aquisição de um saber cognitivo visto que, até
então, seu saber pragmático lhe era suficiente:

o que eu não entendo, eu não gosto, me canso (... )

Não gosto que o mundo mude, me dá uma agonia, fico sem saber
o que fazer. (p.94)

A falta do domínio do saber o leva à impossibilidade do fazer, o qual até


então ele não questionava.

A narrativa se constitui, a nosso ver, de três Programas Narrativos


principais, sendo o terceiro (PN3), formado pelo dois primeiros (PN. e PN2).

No PN 1 um Destinador (o líder político Antunes, de Aracaju), delega a um


Sujeito (o Sargento Getúlio da Polícia Militar do Sergipe) a missão de conduzir
em segurança um Objeto (o prisioneiro político) de um espaço distante (lá),
caracterizado como disfórico (Paulo Afonso), para um espaço próximo (aqui),
considerado eufórico (Aracaju).

130 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/l990· N" 8 e 9


VERBO IMAGEM

A narrativa se inicia com o desenvolvimento deste primeiro programa, o


que leva a pressupor a existência de uma situação inicial em que estão
configurados os elementos virtuais para a realização do mesmo. Encontram-se
aí um sujeito destinador modalizado por um querer (ter o preso em Aracaju), um
saber (porquê) e um poder (tem em Getúlio um auxiliar de confiança). Antunes
persuade, por meio da manipulação (fazer/fazer), um sujeito operador que
realizam, após comprovar a sua competência, o traslado do preso. Tal situação
pressupõe, entretanto, todo um segmento anterior. No momento em que a a
narrativa se inicia; Getúlio se apresenta como um sujeito modalizado por um
dever fazer, pois realiza o querer de um outro sujeito (o Destinador). Como se
sabe, o dever se caracteriza pela assunção por um sujeito do querer de outro,
resultado de todo um processo de persuasão. Por isso, Getúlio, além de sujeito
segundo um dever (fazer), é também modalizado por um crer saber que se
manifesta pela sua relação política -acima de tudo de confiança - com o
Destinador e com o próprio Objeto de seu fazer (o preso). Ou seja, a relação que
ele estabelece entre o Destinador e o Objeto de sua missão é de uma oposição
simples, baseada em sua visão maniqueísta em que se distribuem os partidos
políticos de forma que o seu chefe encarne o bem e os demais, o mal. Daí por
que o seu saber, nesta etapa dei PN, deva ser entendido também na sua relação
com o preso. Getúlio é, portanto, signatário de um contrato fiduciário já
realizado entre ele e o Destinador. Ele crê em Antunes e emtudo que com este
se relacione. Sua posição política é determinada por Antunes: Getúlio é do PSD
e contrário ao PCB, UDN, aos integra listas, mesmo nada sabendo a respeito
deles. O saber manifesto por Antunes, em sua competência de líder, é aceito por
Getúlio, não como um saber científico e questionável, mas figurativiza-se como
um saber mítico. O chefe é tratado como ídolo a ser respeitado e imitado:

"Compro Quina Petróleo Oriental, como o chefe usa e sai todo besunta-
do, passeando na rua de João Pessoa, de roupa branca e um lenço no bolso e
dando aquelas paradas para conversar e explicar a situação (...)" (p.16).

No pequeno trecho acima, destacam-se alguns aspectos do fazer e do


saber de Antunes, desejados por Getúlio: o passear, que é a possibilidade de
andar sem um dever a ser cumprido; o conversar, a capacidade de manipular; o
explicar que, etimologicamente, significa des-dobrar e expressa as\ia superio-
ridade de quem domina um saber (sobre o mundo e sobre os homens).

A competência de Antunes como detentor do saber não está-enunciada


mas pressuposta na instância do estabelecimento do contrato. Mas' a natureza
deste saber se manifesta na própria performance do sujeito-destinatário. Por

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBROi1990 - N" 8 e 9 131


ALÉCIO ROSSI FILHO

outro lado, a escolha de Getúlio por Antunes para seu capanga, está fundamen-
tada em um tipo de saber específico que o sertanejo possui, e que se infere de
sua competência para a realização do PNl: trata-se de um saber essencialmente
pragmático que se manifesta em dois fazeres, saber matar e saber andar pelo
sertão. Praticamente desses dois temas se ocupa o capítulo I do romance.

Este saber pragmático é investido de sentido pelo destinador, detentor do


sabet cognitivo. Quando Getúlio se transforma em sargento e se põe a serviço
de Antunes, a sua capacidade de matar e o seu domínio sobre a geografia do
nordeste brasileiro ganham sentido: armai o chefe encarna o bem e Sergipe é o
centro do mundo. Getúlio passa a agir segundo o destinador, não lhe importan-
do, enquanto simples sujeito do fazer, se este bem é considerado também pela
sociedade como um todo. Por isso, como veremos, no momento em que aparece
tal questionamento, Getúlio começa a investir-se de novos papéis actanciais que
vão configurá-lo acima de tudo como Sujeito.

Tal transformação não ocorre de forma repentina. Mesmo nos capítulos


iniciais e ainda que de forma não muito clara, o sargento sabe da existência de
um outro tipo de saber de que ele não participa e que o seu contrato com Antunes
não "transmite: o saber formal, urbano, escolar, que aparece expresso pelo
lexema ginásio e é motivo de escárnio com relação ao preso. Apesar do tom
irônico de sua fala ("Tem ginásio, tem ginásio! Nunca vi ginásio fazer caráter .•.
p.2?) e de sua apreciação negativa, ele o intui como algo digno de consideração
e como uma carência sua. Ele não questiona o saber do Destinador, do chefe,
mas o saber do prisioneiro. Por isso, a essa carência ele opõe o seu caráter. O
Sargento Getúlio, então, a compensa por um fazer que comprove esse caráter,
essa competência; ele a compensa por um poder fazer que se figurativiza na
agressão.

Além disso, sabendo que o seu comportamento contrariou os valores e


normas da sociedade -tortura, assassinato, etc.-, Sargento Getúlio se justifica e
se coloca como simples sujeito operador, talvez tomado este em seu sentido
metalingüístico, quando admite estar cumprindo um "destino" do qual não
poderia fugir: " ...que o dia de todos nós vem. A hora de cada um é a hora de cada
um" (p.24).

Em síntese, destacamos três tipos diferentes de saber além do saber fazer


de Getúlio e que lhe configuram situações levemente polêmicas: o saber mítico,
ou mitificado, do chefe, o saber escolar (de posse do preso e dos verdadeiros
políticos) e o saber social, cujas regras ele sabe estar transgredindo. Na
seqüência inicial são os dois primeiros a serem questionados por Getúlio, e

132 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBR0/1990 • N" 8 e 9


VERBO IMAGEM

substituídos pelo saber fazer agressivo. Com o início do PN2, ocorre o


surgimento de um outro questionamento com a passagem do saber pragmático
para o saber cognitivo.

Ainda configurando esta situação inicial, gostaríamos de ressaltar alguns


aspectos como componentes do conteúdo posto da narrativa. Já no capítulo I,
avalia Getúlio:

Mas se não sou um sujeito despachado, ainda estava lá no sertão


sem nome, mastigando semente de mucunã, magro como ofilho
do cão.(p.14, grifamos).

Nesse momento, o sujeito crê ser, segundo o universo de valores estabe-


lecidos pela sociedade, um homem por tem um nome, e como resultado de um
traço de seu caráter, ser despachado. Estas duas idéias paralelas -ser homem e
ter nome- nos parecem significativas, visto que o prisioneiro não é nunca
chamado pelo nome, substituído no discurso de Getúlio por pronomes indefi-
nidos ou equivalentes (alguém, o um) ou por substantivos ou adjetivos pejorativos
(o coisa, o demo, o paciente, o comunista), Ouainda, em certos momentos, por
palavras criadas por Getúlio:

Perde a força os nomes, quando eu lhe xingo e por isso vou


inventar uma porção de nomes para lhe xingar( ...) Crazento da
pustema, violado do inferno, disfricumbado firiguficodo azeite.
(p.138)

Outra prova da competência de Getúlio surge quando a masculinidade


do preso é colocada em risco pela possibilidade da castração (episódio da
sedução, na fazenda de Nestor), evidenciando a sua situação de dependência
e, portanto, inferior à de Getúlio. Aliás, não é por acaso que essa relação esteja
marcada pela sexualidade, pois ela aparece em outras ocasiões como domínio
em que o conteúdo posto se revela. Este se manifesta graças à contradição
entre o parecer (firmado pelo contrato anterior no qual Getúlio é um homem
macho, corajoso, forte) e o ser que será descoberto ou conquistado no final da
narrativa, como o conteúdotransformado. No início, Getúlio sópode afirmar
coisas tais como:

Se eu sentisse saudade de homem, sentiria saudade dele (Târcio,


adjuvante morto em combate anterior). (p.33).

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 • NO8 e 9 133


ALÉCIO ROSSI FILHO

o sargento segue aí as normas que regem e defmem o homem macho. No


fmal da narrativa, no entanto, quando já se sente sujeito de seu querer, admite
saudades não só de Luzinete mas também de Amaro; ele é capaz não só de
reconhecer como verbalizar a relação fraterna que sempre mantivera com o
motorista, ou seja, com outro homem.

Tudo parece correr segundo o planejado, isto é, segundo o contrato


estabelecido ente Antunes e Getúlio, até a chegada da contra-ordem do Desti-
nador que, por vicissitudes de ordem política, exibe um outro querer, contrário
ao primeiro. Não mais um querer fazerfazer mas um querer fazer não-fazer; ele
quer que o sargento não leve mais o preso para Aracaju.

A contra-ordem rompe o contrato razão de PN I, com a desqualificação do


Destinador aos olhos do Destinatário, pois Getúlio não compreende o que se
passa, originando-se uma situação de conflito; para ele não se trata de uma
simples mudança de planos, mas da introdução de uma fissura na cosmovisão
fortemente codificada que o leva ao seu questionamento. Getúlio sente deses-
truturar-se e se lança à busca de explicações.

Nessa busca, o sargento descobre o seu estado de não saber, ou, mais
exatamente, ele descobre que sabe que não sabe. Esse estado de carência e, ao
mesmo tempo, de consciência dessa carência, se traduz imageticamente como
um "oco" interior, expressão usada por ele mesmo no segmento abaixo:

(...) o que é que eu vouficar pensando depois, sejá tenho pouco


para pensar e o pouco que eu tenho vai inchando na minha
cabeça e vai tomando conta dooco que tenho lá dentro? (p.l 01)

Subjaz aqui o motivo já aludido da formação escolar, razão algumas vezes


de escárnio por parte do sargento com relação ao preso. Intuitivamente, Getúlio
sente que o saber fornecido pela escolaridade é possuído tanto pelo Destinador
quanto pelo prisioneiro. Tal saber seria a fonte das decisões do Destinador e a
explicação do sentido delas. Nesse momento, ele se percebe realmente excluído
desse mundo e, portanto, pela primeira vez, o Destinador é visto como o outro.

Tal situação é denominada pelo próprio sujeito como estado de agonia.


Além do sentido usual de um estado dominado por um sentimento fortemente
disfórico, o termo escolhido evoca o sentido etimológico de corifronto,de luta.
Tal sentido sintetiza os movimentos contrários que se cruzam na interioridade
de Getúlio: de um lado, a resistência à negação cabal e definitiva da situação

134 SIGNIFICAÇÃO- OllTUBRO/l990 - N· 8 89


VERBO IMAGEM

anterior em que o chefe figurava com.o Destinador e de um saber verdadeiro, do


qual o sargento se considerava participante; de outro, a busca de um saber
através de um querer prôprio e que se manifesta como um querer MO dever.

Esta situação de conflito se apresenta como dois momentos. O primeiro


se estrutura como opção para o sujeito entre duas possibilidades: dever vs não
dever fazer (o querer do Destinador= soltar o preso).

A atuação do Destinador, neste caso, baseia-se no primeiro contrato,


geral, de confiança, firmado entre o chefe político e o sertanejo. Antunes espera
que a sua nova ordem seja cumprida sem questionamento e explicações: por isso
a envia através de mensageiros. Getúlio, a princípio, em vista da tropa enviada
para resgate do preso, desconfia da veracidade da ordem e resiste. É Nestor,
dono da fazenda, quem dirime a dúvida: "Elevaldo não contou, disse Nestor,
mas acho que a política entrou pelos contrários, mandaram buscar o homem"
(p.70)

O não contar caracteriza o saber não possuído por Getúlio como segredo.
É Nestor que se investe do papel actancial de adjuvante na interpretação das
coisas, o que leva o sargento à resistência. Aos seus olhos, o segredo e a mudança
de posição do Destinador significamo esvaziamento dos valores por ele
atribuído a Antunes. Pela primeira vez, Getúlio dissocia o ser do parecer do
chefe. Passa a distinguir entre o parecer homem forte, digno de confiança, dono
da verdade -tido até então como expressão de seu ser- e o ser homem não tão
forte nem digno. Tal dissociação se confirma quando, diante da resistência de
Getúlio, o Destinador se vê obrigado a realizar decisivamente um trabalho de
persuasão: em lugar de um delegado e conhecido do sargento, são enviados dois
e quase desconhecidos. Ao mesmo tempo, estes são forçados a descobrir um
pouco mais a realidade encoberta do segredo: revelam o não comparecimento
pessoal do chefe como cautela para que este não aparecesse como o Destinador
da ordem inicial dada a Getúlio. Em outras palavras, este se dá conta do seu papel
de parecer do chefe; por isso, são ele e o seu motorista quem vào presos.

Nesse segundo momento da persuasão o Padre Aço substitui o fazendei ro


Nestor no papel de auxiliar no fazer interpretativo do sargento. A persuasão
depende de firmação de dois novos tipos de contrato: o contrato enuncivo,
segundo o qual Getúlio deveria crer no discurso dos novos mensageiros como
um dizer verdadeiro; e o contrato enunciativo em que ele renovaria o seu
contrato com o Destlnador, cumprindo a nova ordem. Nem um nem outro se
realizam: Getúlio resiste.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO{1990· N· 8 •• 9 135


ALÉCIO ROSSI FILHO

Paralelamente ao desenvolvimento a esse PN, desenvolve-se, portanto,


um outro, o de aquisição de um novo saber baseado justamente no fazer
interpretativo do qual participam como adjuvantesNestor, Padre Aço, Luzinete
e Amaro. Com a posse desse saber, combinado com o saber pragmático da
primeira fase, Getúlio se faz Sujeito e Destinador de seus atos. Tal combinação
o leva à modalização poder fazer que equivale a não dever (fazer o determinado
por Antunes). Decide então conduzir o preso a Aracaju, o que converte o seu
antigo Destinador em anti-sujeito. A consecução desse projeto constitui o
segundo momento do PN2.

Como assinalamos no início deste item, o PN3 é constituído pelo PN I e


PN2, e se realiza como a conquista pelo ator Getúlio Santos Bezerra do
estatuto de Sujeito de seu próprio querer. Ocorre a transformaçao do Sargento
Getúlio de sujeito operador a Destinador, graças à sua modalização como
sujeito cognitivo. Assim, do seu estado inicial de crer saber e dever fazer, ele
passa a querer e poder fazer como conseqüência do saber não dever.

Enquanto o PN 1e PN2 se situam basicamente no nível pragmático, o PN3


é essencialmente cognitivo, confirmando desta forma a sua posição na estrutura
narrativa de momento nuclear da transformação.

O novo saber de Getúlio o leva a rever o seu passado individual e histórico:


isto equivale à conversão do conteúdo posto em conteúdo transformado.
Quando, no PN I, o sargento se refere ao seu ser (homem despachado e com
nome), sua visão ainda é filtrada pelos valores estabelecidos pelo Destinador
Antunes. A conquista de um novo saber, conseguido pela luta (que, como
assinalamos, define a sua situação de agonia), o leva à recuperação de sua
identidade como homem do sertão.

A sistematização de valores agora lhe é possível por ter ele conhecido dois
pontos de vista diferentes e contar, assim, com referenciais que lhe propiciem
organizá-los segundo uma nova ideologia. Nesse processo, a evocação de
motivos folclóricos regionais o conduz à sua identificação com mitos populares.

Ainda com relação ao momento da transformação do conteúdo posto da


narrativa, gostaríamos de ressaltar a aquisição da consciência de ser nada por
Getúlio para chegar realmente à condição de Sujeito. Isto se encontra expresso
por um dos valores simbólicos da cinza. Após a morte de Luzinete e de Amaro,
além de expressar o luto pela perda de ambos, o ato de Getúlio de passar cinza
pelo rosto representa a purificação e a origem de um novo ser: "É cinza e cinza
de tão queimada é limpa"(p.139), afirma Getúlio.
136 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 . N· 8 e 9
VERBO IMAGEM

Caberá a ele, como sujeito e destinador, a sanção de seu fazer. Esta se


manifesta, enquanto reconhecimento da mudança ocorrida, em um discurso
preparado para ser dirigido a Antunes:

Aquele homem que o senhor mandou não é mais aquele. Eu era


ele, agora eu sou seu. (p.84)

Seu discurso toma-se lírico quando ele se percebe dono de seu querer,
porém já está só. Sua companheira Luzinete (cujo nome evoca luz e saber),
dentro de um contexto mítico popular, se transforma em lua. Seu companheiro
Amaro, uma saudade. E ele próprio, um sujeito de SER com sua identificação
como homem do sertão:

Eu não tenho nada, tenho minhas pernas e a minha cara de cinza


e tenho essa terra toda. (...) porque quem me pariu foi a terra,
abrindo um buraco no chão e eu saindo no meio de fumaças
quentes( ...) (p.i53)

DO FILME
A passagem do texto escrito para o texto fílmico se dá com o aparecimento
de um novo ponto de vista que determina cada cena, cada fala, cada luz e
movimento. Com a figura do diretor, a narrativa passa, de certa fonna, por uma
espécie de filtro que determina seqüência e sentidos.

Como vimos no início deste trabalho, a narração em Sargento Getúlio


parece ser o palco do próprio conflito da personagem. A passagem, deste tipo
de narrativa (solilóquio, discurso-livre, etc), para a linguagem cinematográfica
deve, inegavelmente, sofrer algumas alterações. Não nos parece viável, pois
tornar-se-ia por demais denso, um filme em que se utilizasse somente tomadas
subjetivas e com um discurso contínuo. Hennano Penna utiliza-se para a
filmagem do diálogo - mesmo assim colocando em destaque por meio de
diversos recursos (iluminação, tomadas, etc.) - as falas de Sargento Getúlio em
um número de vezes muito superior ao que aparece no texto escrito.

Nas cenas iniciais aparece com maior evidência, que a apresentada no


livro, a diferença entre o que é pensamento e o que é fala da personagem e o
recurso utilizado para marcar esta diferença é a voz em off. É oportuno lembrar
que esta distinção no livro não é tão clara; o discurso é bem mais ambígüo quanto
a este aspecto.

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N" 8 e 9 137


ALÉCIO ROSSI FILHO

Cenas escuras feitas com a câmara no interior do veículo que se encontra


em movimento parecem substituir falas que caracterizam o clima tenso da
viagem e às referentes às condições precárias da estrada.

o que é no livro um discurso homogêneo, no filme sofre uma distribuição


em que se distinguem falas oralizadas e falas interiorizadas. Seria interessante,
em ~m momento posterior, verificar o critério usado para segmentar o texto
literário nestas duas modalidades de manifestação no texto fílmico. Isto porque
o texto em off ganha maior peso como reflexão avaliadora do sujeito, o que não
está evidente no texto original. Da mesma forma, as falas alheias, que na obra
literária aparecem aglutinadas pelo discurso maior, do protagonista, são devol-
vidas aos atores secundários.

o mesmo princípio de transcodificação se observa a nível de imagem. Os


interlocutários apreendidos como sujeitos enunciados no discurso do sargento,
·e reduzidos quase à mudez, no filme rcadquirem a sua individualidade. Assim,
logo no início, a câmara focaliza, além do sargento, a figura do preso em plano
americano, destacando, não a sua imagem enquanto projeção do sargento, mas
a sua apreensão de dependente da vontade alheia.

Essa leitura está corroborada pela trilha sonora em que uma composição
traduz a imagem visual:

"A vantagem de quem está no poder é judiar de quem está por


baixo. »

Percebemos, não só nas cenas iniciais, mas durante todo o filme, a


recuperação das falas pelos seus autores, acompanhadas, depois da mediação do
diretor, pelas imagens visuais actorializantcs.

O mesmo problema, há pouco apontado, do privilegiamento de uma das


posições do processo de comunicação, ou do emissor ou do receptor, pode ser
colocado ao longo do filme, em seu confronto com o texto original. Em outras
palavras, na medida em que no literário, os diálogoas são sempre valorizados de
acordo com a posição neles ocupada pelo sargento, no filme a escolha da
focalização pela câmera deve (ou deveria) estar subordinada a uma escolha
significativa. Na seqüência em que levam o preso amarrado ao carro, Amaro é
focalizado pela câmera enquanto canta acanção popular Marcha Soldado. Tal
escolha na focalização valoriza o emissor da cantiga. No livro, pelo contrário,
o que se destaca é a admiração do sargento pela competência de seu motorista
138 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N' 8 e 9
VERBO IMAGEM

em brincar com palavras. Já na seqüência da estadia no mosteiro, focaliza-se o


sargento admirando-se de uma competência similar de Amaro, a competência
de saber rezar. Tanto no livro quanto no filme, graças à escolha de focalização,
o tema em foco é a surpresa do sargento.

Ainda com referência a esta questão, gostaríamos de salientar a escolha


do ator cujas características específicas valorizam visualmente os temas reali-
zados pelo protagonista - como exemplo, lembramos a expressividade de sua
cabeça em tomadas em dose.

Relacionado também com a questão da dicotomia enunciado/enunciação,


podemos destacar a trasnformaçãode trechos, temas e motivos; recorrentes no
texto literário a nível de enunciado, em motivos de eomposiçõcs da trilha
sonora. A apresentação dos letreiros iniciais se faz acompanhar de uma
composição sobre urubus que, no romance, aparecem como comentário do
sargento. De certa forma, a significação dos urubus enquanto asseio é destacada
como linha isotópica do filme, na medida em que também há correspondência
entre música e imagem, pois o filme focaliza urubus voando no céu.

Já a quadra sobre o macaco voador é aproveitada no filme tanto como


enunciado quanto como parte da enunciação. A cena em que o Getúlio ri com
Amaro da singularidade desse macaco, existente no livro, é respeitada no filme,
entretanto é com esta canção que se encena o mesmo. O contraste entre as duas
composições musicais, a nível de enunciação do filme, enquanto escolha do
diretor de um componente do enunciado literário, chama atenção. Por que teria
ele optado por uma letra que fala de problemas rasteiros como a dominação do
homem pelo homem para a abertura de seu filme? E por que, em contraste, ele
o fecha com uma composição em que o lúdico, o imaginário está privilegiado?

Durante o desenvolvimento do filme,há quatro ocorrências de canções na


trilha sonora: uma na seqüência inicial em que se faz a contraposição das
vantagens/desvantagens do dominante/dominado: no momento mais dramático
do filme, durante a permanência de Getúlio no mosteiro há uma canção em que
o sujeito avalia a sua vida como um destino traçado; durante a caminhada do
sargento e do preso para Aracaju, ocorre uma nova canção versando sobre as
dificuldades enfrentadas.

O denominador comum de ambas está no fato de que, além do aprovei-


tamento de alguns motivos do texto literário ("cada casa é igual a um prato de
comida, macaco voador, Luzinete igual à lua"), elas se referem ao sentido

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBR0/1990 - N" 8 e 9 139


ALÉCIO ROSSI FILHO

conotado do contexto ou da seqüência que elas acompanham. A composição


que fala de Luzinete, sincretiza o valor simbólico e a função actancial que ela
desempenha na narrativa. No momento da decisão fundamental de Getúlio a
canção da trilha sonora aproveita a configuração espacial da cena - corredores,
passagens e escadarias pelas quais caminham Getúlio, o padre e Amaro, à noite
- para atribuir-lhes valores conotativos referentes à situação dramática vivida
pelo ~ujeito. É quase labirinto.

A significação atribuída às músicas na seqüência em que são apresenta-


das, parece nos levar a uma abstração e a uma simbologia mítica regional.
Percebemos a passagem de composições relacionadas com o desenvolvi-
mento pragmático para outras que salientam o nível cognitivo, a qual, como
vimos anteriormente nos programas narrativos, corrobora o percurso narrativo
do sujeito em sua transformação. Resta lembrar que, além das letras, a escolha
de rimos regionais e de vozes com timbre característicos calha bem com a
configuração do ator.

Feitas estas considerações gerais, passaremos a comentar algumas cenas


que nos parecem refletir momentos importantes na conclusão de um PN ou na
passagem de um PN para outro.

Como já abordamos algumas passagens da seqüência incial em que são


caracterizados os atores e a situação inicial, nos deteremos agora em cenas do
PN2 e do PN3. Do primeiro destacaremos o momento em que se dá a fusão entre
PN I e PN2. Como sabemos esta fusão corresponde ao momento em que se dá
o aparecimento da contra-ordem do qual se origina um novo PN (não levar o
preso a Aracaju) provocando o conflito do sargento.

Seqüência importante e com ótimo resultado na transformação do texto


literário para o filme, é a do discurso de Getúlio a Padre Aço, quando o primeiro,
depois de saber que Antunes mudara de opinião e não poderia dar-lhe guarita,
decide conduzir o prisioneiro, indo contra a decisão do seu antigo Destinador.
Neste discurso ele percebe nitidamente os dois caminhos que poderia seguir.
Estas duas opções se transformam em duas situações opostas que se expressam
no filme pelo jogo na iluminação: o espaço cênico é dividido em duas partes,
sendo uma escura, na qual aparece iluminado e em destaque o ator Getúlio; na
outra há uma iluminação clara e um pouco amarelada onde forma relevo a
sombra do protagonista. A divisão pela luz e pela oposição ator/sombra reflete
os conflitos interiores vivcnciados neste momento pelo sujeito. Ressaltamos

140 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990· NO B e9


VERBO IMAGEM

ainda, os tons em ocre e amarelo que adquirem relevância, pois o diretor recorre
a eles em momentos de luta enquanto que o tom azul é destinado aos momentos,
às vezes líricos, em que se manifestam as reflexões do ator.

Outro componente significativo é o vestuário dos atores, mais específica-


mente de Getúlio. Na cena em questão, este tem os ombros cobertos por uma
manta, que, através do jogo de luz, projeta dois triângulos de cores opostas
dominando o espaço cênico. A relevância deste dado se evidencia graças à sua
contraposição, primeiro, ao vestuário usual de Getúlio - botas, calças cáqui e
camiseta que o caracterizam como sargento simplesmente - e, segundo, ao
vestuário civil - terno de linho branco, chapéu panamá branco - que sistemati-
camente marca o cidadão urbano e político. (Lembramos que na cena retrospec-
tiva em que Getúlio aparece como cabo eleitoral, ele enverga um terno claro
acompanhado de chapéu panamá e óculos escuros.) Além disso, o vestuário
usual de Getúlio, conforme expusemos acima, pode ser considerado como grau
zero, cuja conotação se realiza na cena em que ele se apresenta vestido com o
uniforme completo, isto é, com o paletó próprio, quepe e óculos escuros. Esta
cena focaliza o sargento e o motorista Amaro no banco dianteiro do carro .eo
prisioneiro, a pé, sendo arrastado por uma corda. Ironicamente, Amaro aparece
alegremente cantando a quadra Marcha Soldado.

Contrapondo-se a essas variantes do vestuário urbano (em contraste com


o rural) o caráter indiciaI da manta configurando os triângulos torna-se mais
claro. Este caráter indiciaI que torna o vestuário plano de expressão se reconhece
também na gestualidade e no jogo espacial. Para compreender isso, voltemos ao
segmento imediatamente anterior à cena em exame. O preso, Amaro e Getúlio
guiados pelo padre tendo uma. lamparina como luz, caminham como quem
procura, por corredores horizontais que lembram labirintos. Como já dissemos
a trilha sonora reafirma a indecisão através de uma composição. Logo a seguir
o grupo sobe ao quarto em que se passa a cena em questão. Neste quarto, em
nível espacial superior, temos o sargento deitado numa cama enquanto conversa
com Amaro, esta cena é realizada em plano americano o que contrastará com as
tomadas seguintes, em close, do sargento. Como plano de conteúdo, as primei-
ras não apresentam a dramaticidade que surge nos segmentos posteriores,
prenunciada, nos c1oses, pela expressão facial do ator .

Com a entrada do padre no quarto, que, como vimos no desenvolvimento
dos PNs, tem o papel actancial de adjuvante na interpretação do sujeito, esta

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 . N° 8 ,,9 141


ALÉCIO ROSSI FILHO

dramaticiade atinge plenamente a sua manifestação. Getúlio, ao saber da sua


nova situação, senta-se e sem seguida se levanta. Paralelamente a esta
seqüência gestual ele faz um discurso no qual decisivamente se afirma como
sujeito em que ele se denomina não mais como sargento mas, simplesmente,
como Getúlio Santos Bezerra.

Esta cena volta tendo como interpretante o segmento do seu encontro com
Luzinete em que Getúlio diz: ••...é que eu tinha me esquecido de quem era eu.
Mas, aquele dia do padre, eu vi que eu sou eu." Esta cisão, entre passado e
presente, tem seu desfecho na seqüência final.

Do final optamos pela seqüência que vai da oblação de Getúlio com as


cinzas até o desfecho. Dela foi menos feliz a solução encontrada pelo cineasta
para traduzir as histórias criadas por Getúlio sobre o Esquadrão dos
Encourados. Em compensação, são admiráveis os trechos da oblação e o
do desenlace.

A seqüência anterior à oblação focaliza Luzinete se distanciando no


quintal em busca de dinamite; embora não apareça corno cena, este segmento
finaliza córn a sua morte. Sobrepõe-se a esta imagem o som da cena posterior:
o grito de Getúlio, tomado em plano americano, como expressão de sua raiva e
dor pela morte de Amaro. (No livro, ele explica: "Quando eu gritei que se ouviu
em todo Estado de Sergipe, desde lá no São Francisco até no Estado da Bahia,
de bandinha por bandinha, foi.por causo de Amaro que eu gritei, que era meu
irmão. Luzinete é a lua, mas Amaro? Não é nada."(p.139) De imediato, aparece
Getúlio gritando, em seguida as cinzas no chão, suas mãos e a oblação.

Uma seqüência de closes mostra o rosto de Getúlio coberto de cinzas. O


seu ponto alto está constituído, de um lado, pela gestualidade do ator que realiza
uma seqüência de movimentos de cabeça, acompanhados por um jogo do olhar
lembrando, talvez, de uma forma trágica, uma ave de rapina (o carcará?);de
outro, primeiro, pelo silêncio denso do ator enquanto, segundo, na trilha
sonora surge um batuque cadenciado e, terceiro, pela luz que descreve um
percurso que vai da cara do.atoriluminado "naturalmente" até perder-se na
sombra fazendo sobressair o contorno da cabeça projetada pela contra-luz.

Do desfecho destacamos o trecho composto pelas cenas do discurso


de Getúlio que, no filme, se desenvolve ao mesmo tempo em que o ator
amarra o preso ao tronco de um coqueiro movimentando-se ao seu redor.
A correlação entre imagem e som produz um belo resultado, pois, a nível

142 SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990· N2 B e 9


VERBO IMAGEM

de imagem, a relação dominante/dominado se expressa de forma original.


A raiva e força com que Getúlio amarra o prisioneiro rodando ao seu redor
com a corda tesa indiciam bem o seu querer.

Este, concomitantemente, é expresso pelo seu discurso dirigido ao preso


que aí representa, ao mesmo tempo, o próprio anti-sujeito (Antunes) e o
desdobramento do sujeito enquanto vontade de afirmação de sua autonomia.

As tomadas são feitas, em sua maioria, em planos de média distância, em


contraste com o desfecho em dose do aboio de Getúlio. É importante ressaltar
que, no texto literário e já no capítulo lI, nas lembranças do protagonista, a
figura do boi de barro adquire, de forma sutil, uma carga mítica considerável.
No filme, esta só é retomada no final, com o aboio. Por outro lado os elementos
primordiais terra, água e fogo são sublinhados de forma sincrética a em seu
discurso. Encontram-se, portanto, amalgamados os componentes principais
configuradores da essência do sertanejo, reconquistado por Getúlio durante a
sua performance na narrativa toda.

CONCLUSÃO

Pelo tempo disponível e peIa extensão do trabalho, varros aspectos


importantes na transcodificação foram dcixadosde lado. Por exemplo, a
atuação provável do escritor na elaboração dos diálogos adicionais em quese
observa a preocupação em tomar certas falas de Getúlio mais explícitas no
filme. O romance é um texto denso, enquanto, no filme, esta densidade se dilui
principalmente pela redistribuição de elementos da enunciação no enunciado.
Ou peIa tona lida de emociona I da trilha sonora, que, retomando componentes da
enunciação do livro, os situa num contexto levemente irônico, mas conservando
a eonotação popular, de algo simples, ingênuo da figura do sertanejo que o
desempenho de Lima Duarte soube muito bem sublinhar.

BIBLIOGRAFIA

BALOGH, Anna M. A Análise do Nível Superficial da Narrativa do Filme


"Blade Runner: O Caçador de Andróides" de Ridley Scott, Signifi-
cação - Revista Brasileira de Semiótica. 5:5) -85. S. Paulo, 1985.

BALOCH, Anna M. Reflexões Sobre Tradução Inter-semiótiea. Significação


- Revista Brasileira de Serniótica. 3: 117-138. S. Paulo, 1982.

SIGNIFICAÇÃO" OUTUBRO/1990 - Nº 8 e 9 143


ALÉCIO ROSSI FILHO

BARTHES, Roland et alii - Communications n2 8. Paris.

BASBAUN, Leôncio - História sincera da República. 41 ed. S. Paulo, Alfa-


Omega, 1976.
BERNADET, Jean-Claude - Trajetória crítica, S. Paulo, Pólis, 1978.

BOSI, Alfredo - Históri-a concisa da literatura brasileira. 2l ed . S. Paulo,


Cultrix, 1972.
o

CAMPOS, Haroldo de - Morfologia de Macunaíma. S. Paulo, Perspectiva,


1973.
GREIMAS, A.J. - Sémantique structurale, Paris, Larousse, 1966.

GREIMAS, A.J. & COURTES, J. - Dicionário de semiótica. S. Paulo,


Cultrix, 1983.
GROUPE d'Entrcvemes - Analyse sémiotique des textes. Lyon, P.U.de Lyon,
1979.
MELLO e SOUZA, Gilda - O tupi e o alaúde, uma interpretação de
Macunaima. S. Paulo, Duas Cidades, 1979.

RIBEIRO, João Ubaldo - Sargento Getúlio. 8ª ed. Rio de Janeiro, Nova


Fronteira, 1986.
XAVIER, Ismail- Sertão mar- Glauber Rocha e a estética da fome. S. Paulo,
Brasiliense, 1983.

Filme:

Sargento Getúlio (1984?) - Direção: Hennano Penna. Roteiro:Hennano


Penna e Flávio Porto. Diálogos adicionais: J.Ubaldo Ribeiro. Trilha Musical:
Papa Poluição. Elenco: Lima Duarte, Fernando Bezerra, Orlando Vieira, Flávio
Porto, Ignês Maciel Santos. Blimp Filmes e Embrafilmes S/A.

Agradeço à Proj- Tieko Yamaguchi Miyazaki pela colaboração


na elaboração deste trabalho.

144 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990· Nº B e9


Poesia Latina:
Anotações Lingüísticas
e Fonoestilísticas

Alceu Dias Uma

"Falo, e as palavras que digo são um som


. Sofro, e sou eu.
Ah! Arrancar à música o segredo do tom
Do grito seu!"
FERNANDO PESSOA

Este escrito não é propriamente um artigo, ainda que breves mas antes,
o relato do que foi dito em junho de 1988, numa reunião do Centro de Estudos
Semi óticos, que o acolhe em sua revista. Resulta das notas recolhidas em poetas
e pensadores para servirem de exemplo e ponto de referência àquela fala, bem
como da própria fala, que aparece aqui com acréscimos e em melhor forma, já
que tempo me foi dado para repensar os pontos ali esflorados e para melhor
redigi-los. Resulta também das observações que lá foram feitas pelos colegas
presentes, a resposta às quais achei por bem incorporar ao texto, a fim de que
fique mais legível e, conseqüentemente, seja de mais utilidade, se utilidade ele
tiver, conforme é do meu desejo.

Ao professor de latim que por mais de duas décadas teve que contentar-
se com o latim rudimentar dos principiantes, reduzido, por absoluta falta de
condições externas e de uma didática por pouco que seja apropriada, ao
arcabouço frasal do idioma, é um grande conforto poder voltar aos primeiros
anos da vida acadêmica, quando o trabalho, quer o de ensino, quer o de pesquisa,

SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 . N° B e9 145


ALCEU DIAS LIMA

ainda se fez com textos e não com enunciados esparsos, limitados estes, por seu
turno, à função de lugar das primeiras determinações morfossintáticas que a
gramática escolar da tradição de ensino põe à disposição. Não que um tal estudo
deixe de ter o seu encanto. É que, circunscrito aos seus próprios resultados, pu
seja, sem os textos, sem no mínimo uma referência a efeitos estilísticos no "
produto final que são os textos, ele se toma à origem de um grande
descontentamento, na forma da inquietude que dão os empreendimentos come-
çados mas não levados a termo, como a comprovação de que o preço da obra
inconclusa é a frustração.

Muita coisa boa e bonita se produziu nos últimos três decênios em matéria
de reflexão sobre poesia, de que me socorro. Penso em particular no Jakobson
de "Lingüística e poética" (1960), edição brasileira de 1969, em Ivan Fonagy,
com seu bonito ensaio "Le langage poétique: forme et fonction" (1966) e em
Greimas, com "Pour une théorie du discours poétique" ,(1972). Isso sem
esquecer, é claro, o L. Hjelmslev das "Semiotiques connotatives"(1968), que
continua sendo o ponto de partida mais sólido eprodutivo de toda metalingua-
gem poética.

É o que me autoriza a dizer que a poesia, ou talvez melhor, o poético -


o dos poemas em linguagem verhal, por exemplo, não o desta oudaquela poética
de autor - enquanto fazer humano incide no momento preciso em que o
homem, o poeta opera, realiza, faz, num gesto preciso, fundador e fecundoc--:
não esquecer que essefe defecundo é o mesmo defêmea <femina - separação
no signo, entre o útil (o poder ser utilizado para exprimir outra coisa que não é
ele mesmo) e o não-útil, entre oser para e o simplesmente ser. Para Iembraruma
experiência das mais caras, a da roça, fica como se aquilo que há bem pouco era,
entre as mãos de uma ordeira dona de casa, o cabo da vassoura, cavalgado no
instante seguinte pelo filho de oito anos, virasse, num passe de mágica, fogoso
e recalcitrante corcel a corcovear pelo terreiro, não obstante os protestos
matemos. A comparação parece tanto mais apropriada quanto há de se conside-
rar que o lúdico é condição sine qua non da poesia. Mas o nome que melhor
convém, segundo os escritores latinos aos produtos do poeta r é canto. As Odes
(Ode: nome comum da língua grega, significa nesse idioma, canto e foi nas
línguas modernas que se especializou em teoria poética como sendo certo tipo
de composição de natureza poemática) de Horácio chamam-se nas edições
latinas Q. Horati Flacci Carminum Liber (Primus, Secundus, Tertius,
Quartus). Esse carminum, genitivo plural de carmen,-inis,é a nominalização
de cano, "cantar", do mesmo modo quefluo, "correr", deriva o nomeflumen, -
inis. O [r] em lugar do [n] explica-se pelo proeedimento normal pelo qual a

146 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990· N° 6 e 9


POESIA LATINA: ANOTAÇÕES LINGüíSTICAS E FONOESTILÍSTICAS

língua se autocorrige do pouco estético acúmulo de 3 nasais próximas que


*canmen acarretaria. As línguas por mais que em constante evolução são ciosas
da manutenção de sua própria feição, responsável pela identidade de cada uma
delas. Daí o cuidado até caprichoso com que procuram fugir dos efeitos menos
felizes quer de som quer de sentido. Tautologias, tautofonias, se assim se pode
dizer, toleram-se, buscam-se até no livre e inteligente exercício do poetar. No
mais, evitam-se. Éo que fez o latim aí. O primeiro hemistíquio da Eneida fecha-
se, graças ao corte pentemímero, na sílaba -no .de cano. Realçado por essa
disposição métrica: cabeça e fim de verso e de hemistíquio, sílaba antes e depois
da cesura são posições de vedete, o sentido "cantar" do signo latino se faz
dominante no enunciado por força do artifício dito poético, cujo controle, é bem
verdade, não é exclusivo dos grandes poetas. Versejar é função mais de
habilidade e traquejo do que de talento. A recíproca não é aqui, como em tantos
casos, verdadeira: se bons versos não são necessariamente garantia de bons
poemas, um poema acabado não prescindo jamais da qualidade dos seus versos.
Cantar é, pois aqui, como nas Gcórgicas, 1,5: ..."Hic canere incipiam" e nas
Bucólicas, IV,1: "Sicelides Musae, paulo maiora canamus"; 1,77: "carmina
nulla canam", não uma metáfora tomada ao acaso para exprimir aquilo que o
seria tão bem com qualquer outro termo análogo, mas sim a designação real de
um fazer que tem mais de concreto do que de especulativo. Tende, pois, mais
para o técnico do que para o retórico, Uma vez plasmado no verso, cano a ele
se consubstancia, bipartindo-se em sub-unidades fônicas que segundo a métrica
latina, ou metalingüisticamente, se identificam pela seguinte descrição: ca-,
sílaba breve por natureza da língua latina, preenche a casa representada pela
última sílaba breve do tempo fraco do segundo dátilo, enquanto -no, longa,
também por natureza, ocupa a casa correspondente ao tempo forte, ou ársis, do
32 pé, um espondeu, no caso, além de anteceder como fim do hemistíquio,
conforme lembrado, a pausa métrica, que, porcair após o quinto meio-pé, recebe
o nome de pentemímera. Esta última circunstância é decisiva na ocorrência do
milagre poético (associado agora não ao substantivo poética, e sim a poesia,
como o produto do poetar). Graças a essa conjugação acumulada dos procedi-
mentos da poética romana (como arte de engendrar versos, poéticos ou não) é
que o outro sentido latino dicionarizado de cano, o de "celebrar pelo canto" se
instaura em Virgílio. E [káno], que só por força do sistema léxico latino é o plano
da expressão de" cantar", passa, primeiro a qualquer coisa percebida aproxima-
damente como [kanó] articulado a uma seqüência unitária sonora mais extensa
chamada já em latim uersus, e, por essa via, a ser não mais o signo apenas, mas
o símbolo (cf.J.P. Vernant, 1974:228) tautegórico do que exprime. Nada mais,
nada menos do que como o caboclinho de há pouco, escancha do num cabo de
vassoura transfigura, aos olhos da mãe, ou do velho que o contempla por trás da

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - N° 8 B 9 147


ALCEU DIAS LIMA

névoa dos muitos anos, gestos e ruídos ingênuos no patear e no fremir do fogoso
cavalo. A métrica é a gesticulação imitativa do poeta:

quadrupedante putrem sonitu quatit ungula campum


(EN: VIII, 5596).

Foi sem querer e por mera coincidência que a grande poesia de Virgílio
- o mérito é dela - veio ao encontro da minha pobre e despretensiosa prosa,
para confirmá-la, espero. Como se vê, ou melhor, como se ouve, Virgílio
reproduz, com a utilização de símbolos sonoros insisto, e na musicalidade do seu
hexâmetro, o ruído das numerosas patas percutindo surdamente sobre a terra
fofa - putrem campum - no avanço incontido da cavalaria, não como força
da destruição, mas da construção do futuro:

Tu regere imperio populos, Romane, memento!


(EN,VI,85 1),

como o menino, convocando a energia vital com que se fará homem, imita,
simboliza, com a boca o para ele atordoante alarido da sua cavalgada turbulenta
pela vida a dentro. Os símbolos do mantuano o são, quando apreciados à luz do
sentido poético, esteticamente consumido no momento da leirura do poema. No
mais, eles são a língua latina, aquela que o sujeito competente em latim
descreverá pelos simples trâmites lingüísticos da fonética, da fonologia, da
morfologia, da sintaxe e do léxico. E isso quaisquer que sejam os efeitos da
assonância ou da aliteração aí contidos, para falar apenas do plano significante.

A priori, nem os dados da lingüística descritiva nem os da estilística, ou,


nos termos de Hjelmslev, nem os da metassemiótica, nem os da semiótica
conotativa, são de si mesmos poéticos, no sentido de que sejam responsáveis
pela emergência do poema. Da mesma forma que dançar não é fazer os passos
coincidirem com o tempo da música, mas entregar-se de corpo e alma ao projeto
que uma outra vontade de harmonia concebeu envolvendo som e movimento.
Não há duvida de que procedimentos como os cb rima, da assonância, da
aliteração, pelo que toca ao significante, e os do plano do conteúdo, de que a
estilística tradicional fez um grande rol, nem sempre muito criterioso, é verdade,
são úteis, como vimos, à manifestação expressa do lúdico no texto, mais do que
os da língua, quando limitada aos recursos do sistema numa prática mais
propriamente prosística. Entretanto, o confronto entre o homo ludens e o homo

148 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 • NO 8 e 9


POESIA LATINA: ANOTAÇÕES LINGüíSTICAS E FONOESTILÍSTICAS

faber não se faz, nem mesmo se sustenta à custa dos rebuscamentos mais ou
menos explícitos do "estilo" tal qual descrito por retóricos e tratadistas. Entre as
figuras de Cícero, o mais poderoso e fecundo repositório delas,a julgar pelas
estilísticas, deixou-se de enumerar como tal a que mais eminentes efeitos
produz: a frase latina! Uma simples flexão de caso serve tão bem aos propósitos
da expressividade quanto uma onomatopéia: me miserum, duas formas em
acusativo, uma delas por concordância, estão por ai de mim! com toda a sua
força de exclamação interjetiva. É por aí que me é dado entender o dito de
Unamuno, para quem "poeta efilósofo são irmãos gêmeos, se é que não são a
mesma coisa". Efetivamente, para ambos, o problema não é o da simples
comunicação, a menos que por esse termo entendamos o passar, e com isso,
tornar um, não de algo mais ou menos exterior aos sujeitos do comunicar, mas
do próprio ser deles, de maneira que o seu comunicar venha a ser o do próprio
ser, o do próprio um, que será também o bom, o verdadeiro e o belo! Mas não
é a esse comunicar total e incondicionado que chamamos expressar? Há poucos
anos, as disciplinas da nossa escola de 12 grau, correspondentes ao aprendizado
da língua materna receberam, pretensiosa mas levianamente, confessemo-lo,
como tudo que se refere ao ensino, a designação substitutiva de comunicação
e expressão, sem que os burocratas plantonistas suspeitassem sequer que
. estavam consagrando no âmbito da escola pública e leiga uma distinação que,
a ficar nos rótulos, se perverte, e o faz precisamente porque, esvaziadas da sua
substância histórico-culLural, essas duas palavras perdem seu alcance cducacio-
nal e passam a servir à retórica malvada dos usurpadores do poder.

A razão desse encontro fraternal do filósofo que pensa com o poeta que
exprime é um dos primeiros desdobramentos do princípio da arbitrariedade do
signo: não há dependência, entre o lingüístico, seja qual for o ponto de vista sob
que o consideremos, e o poético. Refiro-me à força de coesão com que, por
exemplo, o conceito de adjetivo seleciona o de substantivo, ou, no domínio das
flexões, um acusativo do objeto determina, faz supor a presença do verbo
transitivo, ou ainda, pensando no que é específico de cada idioma, uma oração
interrogativa indireta condiciona-se em latim à existência de um subjuntivo,
mas não em português, por exemplo. Isso prova que sem a dependência, não há
idiomas. Quais sejam elas,porém, é impossível estabelecê-lo a priori, isto é,
dedutivamente. É o mesmo que dizer, como faz Benveniste, que a relação entre
significante e significado é necessária por força da convenção social que situa
cada signo num sistema, vale dizer aqui, num idioma. Fora dessa convenção
maior, quer a chamemos língua ou competência, não há significação lingüística
possível. Que o nosso ouvido chegue a captar cá e lá sons que parecem
reproduzir acusticamente, ou seja, por analogia e não por convenção lógica

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 - NO B e9 149


ALCEU DIAS LIMA

aquilo mesmo que designam, é um fato tão esporádico e aletaório na massa dos
de natureza convencional que a sua existência há de ser tomada já como o
primeiro sinal da sua natureza não lingüística, ou se o for, a sua descrição se fará
pelos mesmos procedimentos por que se tratam todos os demais fatos da língua.
Ninguém é tão ingênuo a ponto de pensar que a descrição fonética do verbo
ronronar tenha alguma coisa a ver com o "rumor contínuo, produzido pela
traquéia do gato, especialmente quando está descansando", ou que ele possa
ocorrer em enunciados portugueses, a não ser que se submeta à conjugação, para
fins de concordância e coerência em número, pessoa, tempo e modo, além de se
conformar às determinações adverbiais possíveis.

Assim é que, por mais luminosas e abrangentes que sejam as reflexões de


Unamuno, como quer que as manifeste, no enunciado que acima destaquei, ou
neste outro, ainda mais corajosamente apaixonado: "O mais trágico problema
da filosofia é o de conciliar as necessidades intelectuais com as necessidades
afetivas e com as volitivas" ou ainda neste em que se sente que o filósofo cede
de vez o passo ao seu irmão poeta apesar da prosa: "afilosofia é um produto
humano de cada filósofo, e cada filósofo é um homem de carne e osso que se
dirige a outros homens de carne e osso como ele. Efaça lá o que fizer, filosofa,
não com 'a razão apenas, mas com a vontade, com o sentimento, com a carne
e com os ossos, com a alma e com todo o corpo. Filosofa o homem ",elas ganham
em operacionalidade se produtos culturais tais como obras da filosofia e de
poesia, além de referidos aos indivíduos de carne e osso que os conceberam,
forem recebidos e apreciados como efeitos do dizer, ou seja, como as realizações
de uma competência dada. Vê-se por aí que nem a filosofia é tão ambiciosa cm
seu propósito de explicar o mundo que não caiba entre os projetos com que um
homem sonhou algum dia, nem uma ciência mais reconhecidamente setorial
como a lingüística, tão particular que, temendo ser obscura, vá buscar o seu
estatuto na hipertrofia terminológica de outros domínios e noutros excessos
pretensamente formais. Mais do que nunca continua válido o voto de Hjelmslcv
por que a investigação científica pura salde a sua dívida para com a sociedade.
O resgate para o compromisso social de quem trabalha com as letras são os
textos corretamente lidos e postos ao alcance da compreensão de todo cidadão
sensível, ainda que de média instrução. Lidos com profundidade e clareza,
atentando-se a que esses dois requisitos não se excluem, antes se correlatam
como a premissa e a conseqüência. Para que registrar como claro o que é mesmo
é carente de densidade? A clareza, que faz parecer simples o que é na verdade
muito complexo, diz respeito à exposição, não à matéria exposta. Só se obtém
com c1evado grau de abstração especulativa, a qual supõe por sua vez, aptidão
inata para o pensamento dedutivo e indutivo, aquele que diante de uma

150 SIGNIFICAÇÃO - OUTUBR0/1990 - NO8 e 9


POESIA LATINA: ANOTAÇÕES LINGüíSTICAS E FONOESTILÍSTlCAS

quantidade imensa de dados é capaz de pressentir com a força de uma intuição


que somente depois é tomada análise e comprovação, o princípio e a constante
coerentizadora do que à primeira vista era só flutuação e heterogeneidade.
Afastada está, pois,como sendo mais um fruto de inspiração perversa, a
malévola insinuação de que possa haver um tipo de instituição universitária,
cuja vocação fosse apenas ensinar, sem ter como objetivo maior e primeiro a
pesquisa no seu mais alto grau possível. A existência de fato de estabelecimen-
tos com tal característica no Brasil -no Brasil se convive com absurdos ainda
maiores e mais generalizados - não justifica que eles se tolerem a não ser como
fruto de situação social aberrante, a ser, portanto o quanto antes no mínimo
reorientada e nunca legitimada sob nenhum pretexto. Tanto mais que as
circunstâncias em que tal prática adquiriu legalidade são paradoxalmente as de
um país vivendo sob regime de exceção, o que em palavras mais simples e
diretas significa sem constituição, vale dizer, sem o padrão sobre o qual se
assenta não esta ou aquela lei, mas o princípio mesmo do legislar.

Seja como for, a proposta de que a leitura dos textos seja muito exigente,
mas prescinda dos graus e títulos acadêmicos, parecerá radical demais a quem,
com espírito de corpo, considere como privilégio dos portadores de diploma a
última palavra sobre poesia. A verdade universitária só justa quando ratificada
é

pelo respeito à qualidade e não vice-versa.

E a qualidade exige - a qualide, não a mera legalidade institucional -


que, ao falar de poesia latina, ainda que a sua presença se faça por meio de à Iguns
versos apenas, eu não me limite a apontar neles aquilo que é quando muito o
plano da expressão, ou melhor, pensando com L. Hjelmslev, a substância do
plano de expressão, formada pelos dados da língua, da civilização e da métrica
latinas. Tratando-se de uma cultura antiga, fica muito fácil passar, a pretexto de
erudição, esse equívoco, que outra coisa não tem sido muito ensino de literatura
das línguas clássicas. Sejam estas duas seqüências iniciais de um poema de
Tibulo, composto de 68 versos:

Quis fuit, horrendos primus qui protulit enses?


Quam ferus e uere ferreus ille fuit!
(I, 10,1-2).

Pondo de parte por ora o fato de que são versos c considerando só aspectos
morfossintátieos e semânticos dos dois enunciados que a pontuação permite ler,
identificam-se aí duas frases, cuja leitura (tradicional) é a seguinte: Em vez de
introduzir um -is, "este" como antecedente do relativo qui, o que resultaria em:

SIGNIFICAÇÃO - OUTUBRO/1990 - NO 8 e9 151


ALCEU DIAS LIMA

Quis fuit is I
qui protulit horrerulos enses primus.

"Quem foi este I


que usou horrendas espadas (sendo] o primeiro",

em vez disso, numa visão mais moderna, inspirada em Benveniste (1966) com
o princípio de que unidades lingüísticas de um nível se tornam subunidades do
nível superior, não se aerescenta nada, simplesmente se justapõe, como predi-
cativo defuit toda a seqüência que eomeça em horrendos:

Quis fuit (horrendos primus que protulit enses]?

"Quem foi (o que, primeiro, usou horrendas espadas Z]"

em que a unidade sintática entre parênteses inteira é um dos termos sintáticos


(catalisador) ée fuit. Quanto à segunda frase, pode ela ser lida pelo correspon-
dente literal aportuguesado, sem maiores perdas para o código do idioma
original:

Quam ferus et uere ferreus ille fuit.


"Quão fero; e verdadeiramente deferro ele foi"

Pelo que toca à mensagem verbal, ou seja, excluído da passagem todo procedi-
mento figurativo, quer do significante quer do significado e opondo-se ao -quis
interrogativo o quam exclamativo que torna retórica ou conotada a pergunta e
ainda, lembrando Um outro dado comum da civilização romana, em que cada
cidadão crê que o uso primeiro de todo e qualquer instrumento ele o recebeu das
mãos de um deus inventor, podemos resumir assim o conteúdo do enunciado
contido nas duas frases:

"Qualquer que tenha sido a divindade que inventou armas de


guerra, ela só pode ter sido um ente desalmado e insensível".

É essa significação nuclear, racionalmente concebida, que o idioma


latino, isto é, a língua materna dos romanos, denota por força do seu estatuto
social de sistema de signos; convencionais e arbitrários, (não motivados a priori
por nenhum significado). É o que permite que um tal conteúdo possa ser
traduzido cômoda e integralmente em qualquer outro idioma. É aí que tomam
origem e força vital os elementos da significação individual, tais como os que

152 SIGNIFICAÇÃO" OUTUBR0/1990 " N° 8 e9


POESIA LATINA: ANOTAÇÕES LINGüíSTICAS E FONOESTILÍSTICAS

o poeta Tibulo põe em jogo, de vez que dá a esse conteúdo expressão pessoal
e até mesmo corporal, pelo recurso a procedimentos auditivos, por exemplo. É
claro que o emprego de componentes fonéticos e prosódicos para fins de
significação direta, isto é, sem ser pela intermediação dos signos que formam,
sendo menos usual e mais exigente e delicado, pois não está sujeito à determi-
nação prévia do sentido, acaba por favorecer o jogo das simulações com que o
individual parece emergir do social.Não importa que elementos de métrica e
,
r'
prosódia estejam de alguma forma codificados. Não existem, como ocorre para
outros aspectos dos idiomas, dicionários de rimas e de outros procedimentos
fônicos, que os ponham em relação com os significados que supostamente
indicariam. Seja como for e qualquer que seja o desenvolvimento que tenham
os estudos de métrica e prosódia, eles nunca deverão servir à mera constatação
de que por exemplo, o dístico de Tibulo em apreço contém muitos efeitos
aliterativos e assonantes. Nem mesmo indicações mais precisas como as de que
a assonância em semivogais parece, por suas características físicas apicais,
homologar-se ao sentido "agudo", "penetrante", que ensis lexicalmente evoca.
Não é a maior ou menor elaboração do plano de expressão que confirma ou
invalida a existência de um poema. Da mesma forma, não basta declarar quc o
"caráter de uma língua é determinado pela maneira em que é usada, em
particular na poesia e na filosofia" e que, como conseqüência, ':um grande
escritor ou pensador pode modificar o caráter da Ifngúa c enriquecer seus meios
de expressão sem afetar-lhe a estrutura gramatical". A expressão poética
começa por certo nos processos de elaboração do significante. Mas começa
apenas e não há nenhuma garantia de que plano de expressão sofisticado dê
como resultado poema bem feito.O estudo da expressão poética só terá valor se
servir à verificação vez por vez de como é que esse esforço de afirmação do real,
do indivíduo decame e osso diante de entidades menos concretas e menos
palpáveis, mas não menos consistentes que formam o tecido social, se realiza.
É pela afirmação da sua identidade pessoal, concreta, o que ele obtém graças ao
talento com que manipula os meios de expressão do idioma matemo, que o
poeta, por que não o filósofo?, confirma, pelo simples fato de que se serve de
códigos, li solidez dos laços com que se mantém ao mesmo tempo a identidade
de um povo.

SIGNIFICAÇÃO· OUTUBRO/1990 • N° 8 e9 153


ALCEU DIAS LIMA

REFERtNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENVENISTE,E. - Problêmes de Iinguistique générale. Gallimard, Paris,


1966.

CHOMSKY,N.- Lingüística cartesiana. Vozes/Edusp,1972.

FONAGY, L - "Le langage poétique: forme et fonetion" in Problêmcs


du langage. Gallirnard, Paris, 1966.

GREIMAS, A.J. - Sémantique structurale. Larousse, Paris, 1966.

GREIMAS, A.J. - Essais de sémiotique poétique, Larousse, Paris, 1972.

HJELMSLEV, L. - "Scrniotiqucs conotatives", in Prolégomênesà une scicncc


du langagc. Minuit, Paris, 196K
JAKOBSON, R. - "Lingüística c Poética". In Lingüística c comunicação.
Cultrix, 1969.

UNAMUNO, M. de - Del scntimicnto trágico de la vida. Espasa-Calpe,


Madri, 1972 (3ª edição).

VERNANT, J.P. - Mythc ct socíété cn Grêce ancicnnc. Maspéro,


Paris, 1974.

Citações latinas das Edições Les Belles Lettres

154 SIGNIFICAÇÃO. OUTUBRO/1990 . NO 8 •• 9


.~ ..
-
Impresso na Gráfica do Campus de Araraquara

Você também pode gostar