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Princípios de Economia Política

III) ganhos do comércio

Para um economista, comércio internacional é sinónimo de acesso ao maior


mercado do mundo. E como as trocas são a base de toda a actividade e
desenvolvimento económico, a ligação ao maior mercado do mundo sig-
nifica acesso às maiores oportunidades de desenvolvimento que existem.
Estas ideias são simples e óbvias, mas embatem contra a realidade. O
que observamos ao longo de toda a história do Mundo é a existência de limi-
tes ao comércio e de barreiras às transacções internacionais. Muitos países
(ou mesmo todos!) criaram impedimentos ou barreiras ao comércio com os
outros países, sobretudo às entradas de bens estrangeiros. Esta «protecção
da invasão» dos produtos vindos do exterior tem, ao longo dos tempos,
justificado uma acesa argumentação sobre a questão de ganhos e perdas do
comércio. Este fenómeno, chamado de «proteccionismo», é paradoxal.
Por que razão se verifica exactamente o contrário do que a Economia reco-
mendaria?
Para compreender a razão deste paradoxo deve analisar-se umas
questões mais debatidas no comércio internacional: quem ganha e quem
perde com o comércio? No fundo, a questão de ganhos e perdas na troca
(qualquer troca) é muito simples de avaliar. Neste caso a situação é a
seguinte:
Quando dois países trocam, ambos ficam melhor do que antes. Mas é
claro que, embora o país como um todo fique melhor, nem todos os seus
habitantes ganham com o negócio. Há quem fique pior, e esses vão sempre
defender a tese de que os estrangeiros estão a atacar o país com os seus pro-
dutos. Porque este é um dos problemas mais antigos e um dos erros mais
teimosos que a Economia tem defrontado, vale a pena olhar um pouco mais
para ele. Um exemplo ajuda a compreender a questão.
Considere-se que, a partir de agora, um país («país exportador»)
passa a poder vender um bem ao país vizinho («país importador»). Como
sabemos, devido à nova possibilidade de transacção, o equilíbrio eco-

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nómico anterior na zona vai ser totalmente alterado. A perturbação que


representa o levantamento da antiga proibição no comércio do bem entre
os vizinhos vai-se repercutir por toda a estrutura dos dois países. Um novo
equilíbrio irá surgir. [Note-se que aqui está apenas a considerar-se um
bem; como é óbvio, tem de existir um outro bem que o país importador
vende (exporta) ao país exportador, para poder pagar as importações que
faz deste bem.]
Em particular, há quatro entidades que, de uma forma mais intensa,
serão afectadas pelo novo comércio. Dois são, obviamente, os que vão fazer
a transacção. Os produtores do bem no país exportador, que vendem, e
os consumidores do bem do país importador, que compram, são os mais
interessados. Repare-se que estes dois ganham com a troca. Os produtores,
que vendem, só o fazem porque conseguiram encontrar clientes que lhe
comprem mais caro o seu produto. Pelo seu lado, os consumidores só se
interessaram pelo bem do vizinho porque ele era melhor ou mais barato do
que eles tinham antes.
Em resultado da troca, é fácil de ver que o preço do bem vai subir no
país que vende, o exportador, e descer no país que compra, o país importa-
dor. A troca, como é óbvio, só se motivou porque o bem era mais barato no
exportador, o que atraiu os compradores do vizinho, e mais caro no impor-
tador, trazendo para lá os vendedores do outro país. No final, vai existir
um único preço do bem, igual nos dois países, e que será intermédio ao que
antes existia em cada um dos dois países.
Mas há mais dois tipos de pessoas que são afectados pela relação estabe-
lecida, neste caso apenas devido ao acréscimo de concorrência. Esses são os
que perdem com o movimento que o preço teve em cada país. Também aqui
«não há almoços grátis».
Os grupos que perdem são os consumidores do bem no país exporta-
dor e os produtores do mesmo produto no país importador. Estes perdem.
Os consumidores do país que exporta têm de passar a comprar o bem mais
caro, pois o preço subiu. Não só o bem é comprado mais caro pelos cidadãos

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do país exportador, como ele agora é menos abundante no país, visto que é
exportado mais caro. Pelo seu lado, os produtores do bem no país importa-
dor também sofrem porque vêem o bem mais barato do vizinho roubar-lhe
os clientes.
Assim, em cada um dos dois países há quem ganhe e quem perca. Nós
sabemos, pelo raciocínio que vimos acima que, no total, os dois países ficam
melhor devido à troca. Isso quer dizer que, no país exportador o que os
vendedores ganham é mais do que os compradores de leite perdem e, igual-
mente, no país importador o que os compradores ganham é mais do que os
vendedores perdem.
Mas aqui nasce um problema muito curioso de escolha política que,
como vimos na secção anterior, pode ser analisado pela Teoria Económica.
Trata-se de uma situação onde a «autoridade», o funcionamento do sis-
tema político, influencia o «mercado». E, além disso, os mecanismos de
funcionamento do poder político podem ser elucidados com recurso aos
princípios económicos.
Em qualquer país, os produtores do bem são normalmente poucos,
conhecem-se e podem organizar-se. Pelo seu lado, os consumidores do
bem confundem-se com a população em geral; além disso, a multidão de
pessoas que consome o bem tem muito mais preocupações para além do
preço de um bem particular, enquanto que, para os produtores do produto,
esse preço é crucial. Assim, é de esperar que os produtores tenham inte-
resse e facilidade em se organizar, e façam todos os esforços possíveis para
defender os seus interesses, afectados por uma variação pequena do preço
do bem. Pelo seu lado, nunca devemos encontrar motivação suficiente para
que a miríade de consumidores se manifeste para garantir ou contrariar a
mesma alteração no preço do bem.
E este facto de organização política é verdade, quer no país exportador
quer no país importador. Assim, no país exportador, os produtores irão
fazer toda a força possível para garantir as suas exportações para o vizinho,
enquanto os seus compatriotas consumidores, que perdem pela subida

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do preço do bem no país, não conseguem organizar-se para se opor a ela.


Politicamente, pois, no país exportador vão dominar as forças favoráveis ao
comércio externo, o que é bom para o país.
Mas nem sempre o jogo político é benevolente. No país importador,
também os produtores são os que têm mais facilidade e interesse em se
organizarem para defender os seus interesses. Só que agora esses interesses
são garantidos pela eliminação do comércio, o que prejudica o país como
um todo. E não é de esperar que os consumidores, que são os grandes
beneficiários, venham a conseguir mobilização suficiente para se opor aos
interesses dos produtores.
É por esta razão, originada na estrutura política do país, que resulta o
fenómeno corrente de os exportadores serem muito populares em todos
os seus países e, pelo contrário, nos mercados onde o país importa, os
produtos estrangeiros serem abominados, apesar de os consumidores os
preferirem. É por esta razão – o poder da mobilização nos produtores e a

A EXPORTAÇÃO É BOA OU MÁ? – Este raciocínio explica também uma outra


questão curiosa: toda a gente sabe que exportar é bom para o país e impor-
tar é mau. Mas porquê? Importar e exportar é, apenas, comprar e vender ao
estrangeiro. E comprar e vender não são coisas boas nem más. Aliás, o que
se pode dizer é que a razão porque exportamos é para ganhar dinheiro, para
podermos importar. Por isso, importar é a única razão de todo o comércio
externo. De onde veio então essa fúria exportadora?
É claro que exportar é bom para as empresas, que assim conseguem um mer-
cado maior para os seus produtos. E, aliás, até é, em certa medida, mau para
os consumidores, que agora vêem os estrangeiros comprar os nossos produtos,
o que fará subir os preços desses produtos. Por outro lado, importar é óptimo
para os consumidores, pois passam a ter acesso aos produtos externos. Mas os
produtores detestam a importação, que os obriga a concorrer com os produ-
tores externos.
É por isto, e só por isto, que os empresários de todo o mundo, usando de todos
os meios ao seu dispor, tentam criar a ideia «económica» de que a exportação
desenvolve e a importação atrasa. Os seus lobbies, e os jornalistas e políticos
«amigos», vendem esta treta continuamente. Afinal o que se passa é que o
«interesse nacional», que tanto motiva os empresários, é, apenas, o do seu
bolso.

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falta dele nos consumidores – que em todos os países vemos sempre subsí-
dios à exportação e barreiras à importação, mesmo que isso seja contra os
interesses do país todo.
E não se diga que isto só se passa nos países democráticos. É ver-
dade que, numa sociedade como a ocidental em que há liberdade e meios
para cada um exprimir os seus interesses e procurar influenciar o poder,
este fenómeno é mais saliente. Mas desde o Egipto antigo, passando pelos
fenícios e atenienses, pelo Império Romano e pela Idade Média, até aos
navegadores de 500 e os «mercantilistas» de 700, este fenómeno foi uma
constante. O «proteccionismo», assim se chama ao esforço de combater as
importações, já era um monstro secular quando a Economia saiu do berço.
Assim se vê a razão porque se colocam barreiras ao comércio. No
entanto é essencial ter consciência de que, mais do que um sinal de má
vizinhança, as barreiras às trocas, quer internas quer internacionais, são
sempre uma má ideia para o próprio país que as impõe.

IV) a vantagem comparativa

Mas não é verdade, de qualquer maneira, que a existência de troca inter-


nacional sugere sempre a ideia de que o país poderoso vende tudo, fica rico
e os pequenos países, pobres, que não lhe conseguem vender nada, com-
pram-lhe tudo e ficam espoliados? Não será melhor os países pequenos e
pobres protegerem-se e produzirem internamente o que consomem?
Esta ideia mantém-se como um dos erros mais antigos e teimosos que
a Economia defrontou na sua história. No entanto, ele foi resolvido logo nos
inícios da Teoria Económica, em 1817, por um dos pioneiros já nosso conhe-
cido: o grande David Ricardo. No seu livro, ele apresentou um dos teoremas
mais elegantes da Economia, a ideia da vantagem comparativa. O resultado
desse teorema é que, mesmo que um país fosse mais eficiente que os outros
em todas as produções, teria ainda interesse em trocar com os outros, tal
como um país que fosse menos eficiente em tudo.

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A maneira mais fácil de perceber esta ideia é considerando um caso


prático. Suponha-se que existe um doutor que é, simultaneamente, o
melhor médico e o melhor dactilógrafo da aldeia. Será que, embora ele
seja muito melhor, não é melhor ele contratar um dactilógrafo? É claro
que, embora faça bem tudo, ele não tem tempo para tudo, e por isso deve
especializar-se naquilo a que ele seja relativamente melhor. Embora ele seja
melhor médico e melhor dactilógrafo que o jovem dactilógrafo, a sua vanta-
gem como médico, em relação a ele, é muito superior à sua vantagem como
dactilógrafo (na verdade, o rapaz pode dactilografar mas não poderia tratar
ninguém). Por isso, o médico deveria dedicar-se à medicina, pagando ao
dactilógrafo para ele lhe escrever os relatórios. Assim, embora os relatórios
fiquem pior dactilografados do que se fosse o médico a fazê-lo, toda a gente
fica melhor, porque cada um se especializou naquilo que era, relativamente,
melhor.
Note-se que um dos grandes benefícios da vantagem comparativa não
é apenas a eficiência produtiva que se obtém imediatamente, mas sobretudo
a «vantagem dinâmica» que se consegue para o desenvolvimento do país.
O primeiro efeito da vantagem comparativa é que se deixam de produ-
zir internamente bens que são produzidos lá fora mais baratos. Por isso o
país ganha porque tem acesso a formas mais eficientes de produção. Mas o
grande ganho vem da reestruturação produtiva que se segue. Os recursos
(terra, trabalho e capital) que estavam empregues nas produções inefi-
cientes ficam livres para se dedicarem a produtos onde são mais capazes,
exportando-os por sua vez.
É claro que esta reestruturação tem os custos da transformação do
tecido produtivo, sobretudo desemprego e falências. E são estes custos que
levam muitos a não quererem enfrentar esta abertura de mercados. Mas
estes custos mais não são do que uma manifestação do conflito estabilida-
de-desenvolvimento. No final, depois de se modificar o tecido produtivo,
o país fica mais desenvolvido e os trabalhadores e investidores voltam a
produzir, desta vez melhor.

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