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Simbine, A. J. Concepções da deficiência em Moçambique: embates entre versões ocidentais e contemporâneas

Concepções da deficiência em Moçambique: embates entre versões ocidentais e


contemporâneas

Conceptions of Disability in Mozambique: Shocks between Western and Contemporary


Versions

Concepciones de Discapacidad en Mozambique: Enfrentamientos entre Versiones


Occidentales y Contemporáneas

Alexandra Justino Simbine1

Resumo

Moçambique é um país onde a formação da personalidade é marcada pelos aspectos culturais e tradicionais, onde o
conceito sobre a deficiência é carregada de crenças tradicionais e a prática profissional de Psicologia encontra
embates entre o conhecimento ocidental e local. O presente estudo tem como objectivo discutir a importância do
conhecimento das diferentes concepções da deficiência na prática profissional de Psicologia em Moçambique. Para
isso, baseou-se na pesquisa bibliográfica para mapear concepções da deficiência no ocidente, narrativas para colher
informações sobre concepções da deficiência na sociedade moçambicana e a entrevista para abordar práticas
profissionais de Psicologia em Moçambique. Durante esse processo, foi possível verificar que há sempre um perigo
quando a história é contada de um lado apenas. Conclui-se que para melhor lidar com aspectos sobre a deficiência é
preciso partilhar os conhecimentos ocidentais, assim como os tradicionais moçambicanos, de modo que seja possível
ter uma prática profissional mais acessível e acolhedora.

Palavras-chaves: Deficiências. Psicologia. Socioespiritual. Cultura.

Abstract

Mozambique is a country where the formation of a person’s personality is confronted by both cultural and traditional
aspects, where the concept of disability is fraught with beliefs and professional psychology practices encounters
clashes between western and local knowledge. This study aimed at discussing the importance of knowing the
different conceptions of disability in the professional psychology practices in Mozambique, and it was based on
review of relevant literature map conceptions of disability in the Western, narratives to gather information about the
different conceptions of disability in Mozambican society and interviews to address some professional psychology
practices in Mozambique. During this process it was learnt that there is always a danger when the told story is only
one sided at the risk of getting biased results. And it was concluded that in order to better deal with aspects of
disability, it is necessary to share western knowledge as well as Mozambican traditional so that it is possible to have
a more accessible and welcoming professional practice in relation to people with disabilities.

Key words: Disabilities. Psychology. Socio-spiritual. Culture.

Resumen

Mozambique es un país donde la formación de la personalidad de una persona se enfrenta a aspectos tanto culturales
como tradicionales, donde el concepto de discapacidad está plagado de creencias y las prácticas profesionales de la
psicología chocan entre los conocimientos occidentales y locales. Este estudio tuvo como objetivo discutir la
importancia de conocer las diferentes concepciones de la discapacidad en las prácticas de la psicología profesional
en Mozambique, y se basó en la revisión de la literatura relevante sobre las concepciones cartográficas de la
discapacidad en Occidente, narrativas para recopilar información sobre las diferentes concepciones de la
discapacidad en Sociedad de Mozambique y entrevistas para abordar algunas prácticas de psicología profesional en

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Universidade Eduardo Mondlane.

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Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(4), São João del-Rei, outubro-dezembro de 2020. e-3109.
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Mozambique. Durante este proceso se aprendió que siempre existe el peligro cuando la historia contada es solo
unilateral con el riesgo de obtener resultados sesgados. Y se concluyó que para abordar mejor los aspectos de la
discapacidad, es necesario compartir el conocimiento occidental y el tradicional mozambiqueño para que sea posible
tener una práctica profesional más accesible y acogedora en relación con las personas con discapacidad.

Palabras clave: Discapacidades. Psicología. Socio-espiritual. Cultura.

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Introdução de sujeito/subjetividade aparece fortemente


na literatura de Chiziane.2
Na sociedade moçambicana, quando Encontra-se no contexto moçambicano
uma criança nasce com algum tipo de profissionais de Psicologia que fazem
deficiência, esse acontecimento é concebido acompanhamento a pessoas com deficiência,
como um infortúnio, o que, por vezes, sendo sua prática é perpassada pela
circunscreve e dita a vida dessa criança e de dualidade de conhecimentos ocidental e
sua família. Não obstante, a deficiência da local (moçambicano). Este estudo focaliza a
criança poderá ser igualmente interpretada importância em se mapear as diferentes
como um castigo que resulta de um pecado concepções da deficiência no ocidente,
cometido por um ancestral ou até dos seus assim como na sociedade moçambicana; seu
progenitores. Pode ainda ocorrer que a papel na pratica profissional de Psicologia,
deficiência resulte de uma maldição, uma trazendo os perigos da história única3 sobre
sanção ritual que é declarada publicamente, a deficiência, compondo algumas narrativas
sendo que esta, para ser efetiva, terá que ser sobre a concepção desta no ocidente e em
moralmente justificável. Por isso, o África, em particular em Moçambique.
acontecimento de uma maldição ou sua mera Segundo Moraes e Tsallis,4citando Conti
ameaça é considerado um valioso elemento (2015),
na preservação e na reposição da ordem
social. Seguindo a nigeriana Chimamanda Adichie
Nas culturas africanas, e em particular (2009:107), Conti (2015) nos alerta para os
perigos das histórias únicas. É que tais
moçambicanas, a pessoa está em contato histórias guardam de antemão os lugares nos
com os poderes espirituais e é por meio da quais os outros devem se encaixar. São formas
prática dessa espiritualidade que os de classificar e de categorizar os outros que
africanos acessam as suas divindades não lhes oferece nenhuma oportunidade de se
(conjunto de mitos, ritos e simbolismos), o reinventarem. As histórias únicas, por serem
repetitivas, empobrecem o mundo. Adichie
Deus supremo (dono do ceu) e o sagrado, e (2009) nos faz ver, com delicadeza e precisão,
encontram nas suas práticas de como somos herdeiros das histórias únicas.
espiritualidade e rituais uma linguagem que Filha de uma família de classe média, Adichie
vai além da consciência e da psique humana, convivia com Fide, oriundo de família pobre.
eles entram em contato com a energia Sua mãe sempre a advertia que Fide era bem
pobre, não tinha o que comer. Era tudo que ela
organísmica do próprio indivíduo, conhecia de Fide. Sua pobreza extrema. Era
protegendo-o dos seus efeitos uma história única. Um dia, ao visitar a casa
autodestrutivos. Essas práticas estabelecem do menino, Adichie fica surpresa de ver um
nos indivíduos ou nas comunidades um lindo cesto feito por sua família. Eles eram
sentido para a vida, isto é, um resgate a esse criativos, habilidosos! Isso ela não podia
esperar, nem sabia que era possível. É que as
ser humano ecológico e ético (Barros, 2011). histórias únicas apagam mundos, fazem
Essa visão que o africano tem em relação à
pessoa que transcende a dimensão biológica, 2
psicológica e social parece-nos mais Chiziane, P. (2006). O sétimo juramento (4a ed.).
Moçambique: Ndjira Editora..
completa e complexa e requer uma atenção
3
especial da parte dos ocidentais e da Chimamanda Adichie (2009) fala numa palestra do
TED sobre o perigo das histórias únicas.
Psicologia Contemporânea. Essa concepção
4
Morais, M., & Tsallis, A. (2016). Contar histórias,
povoar o mundo: a escrita académica e o feminino
na ciência. Polis e Psique, 6(1), 39-50.

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desaparecer possibilidades de vida, de interpreta e evoca seus próprios fenômenos


existências. Elas povoam o mundo com psicológicos.
repetições do mesmo.

Método
Há anos que os fenômenos
psicológicos na África são interpretados
Para a realização deste estudo,
com base numa Psicologia Ocidental, ou
recorreu-se à pesquisa bibliográfica,
seja, alicerçados em métodos, técnicas e
narrativas e entrevista, sendo que a pesquisa
instrumentos cientificamente estabelecidos
bibliográfica possibilitou fazer o
no ocidente. Essa psicologia, apesar de
mapeamento das diferentes concepções da
subsistir por bastante tempo, encontra na
deficiência no ocidente e na sociedade
África um terreno cheio de contradições e
moçambicana; as narrativas permitiram
embates que precisam ser levados em
colher informações sobre as concepções da
conta.5 Como elucida Boia Efraime, citado
deficiência em famílias que convivem com
por Serra (2014), os psicólogos
pessoas com deficiência, sendo usadas como
moçambicanos podem logo vir a descobrir
forma de produção de conhecimentos; e as
que, como terapeutas, o “remédio” da
entrevistas foram dirigidas a profissionais de
psicoterapia ocidental pode ter pouco valor
Psicologia, cujo objectivo foi perceber a
em certos contextos, especialmente se eles
importância do conhecimento da concepção
supõem que são os únicos a que indivíduos e
da deficiência na sua prática quotidiana. O
comunidades em crise têm acesso. Segundo
critério usado para identificar o tipo de
Honwana (2002),6 em todos os países
entrevistado que precisamos foi a
africanos existem múltiplas formas de
experiência na área de atendimento à pessoa
interpretar e intervir nos fenômenos
com deficiência.
psicológicos. Seguindo com Honwana,
buscamos pensar como cada cultura gesta
Modelos da deficiência: entre o Ocidente
suas próprias relações com o mundo, com a
e Moçambique
sua existência.
Assim, tomar a Psicologia Ocidental
As pesquisas no campo dos estudos da
como modelo hegemônico na interpretação
deficiência que se empreendem em
de todos os fenômenos psicológicos é um
articulação com autores e autoras
equívoco, é construir um comum na partilha
brasileiros/as, como Diniz, Medeiros &
de experiências que, paradoxalmente, não
Squinca, 2007, indicam que há diferentes
dizem respeito à experiência de ninguém.
modelos de deficiência, historicamente
Cabe sublinhar um outro modo de partilhar
construídos que também se encontram
as experiências feitas no plano sensível, de
presentes em Moçambique. Assim, os
forma local, encarnada, levando em conta o
modelos biomédico, social e feminista são
modo como cada povo se relaciona,
apresentados como modos de articular a
deficiência, cada um deles com perspectivas
distintas e efeitos diversos.
5
Em África, o sujeito é formado por aspecto não A deficiência era entendida, segundo o
apenas biopsicossocial, mas também fenômeno modelo biomédico, como uma lesão que
cultural (espiritual). impõe restrições à participação social de
6
Honwana, A. M. (2002). Espíritos vivos, tradições uma pessoa. Assim, era localizada no corpo
modernas: possessão de espíritos e reintegração biológico e encerrada no indivíduo. Esse
social pós-guerra no sul de Moçambique. Maputo: conceito, para além de ter sido ampliado, foi
Promédia.

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deslocado, passando a compreender não individual, mas sim um problema coletivo,


apenas o corpo com lesão, mas também a social e político.
estrutura social que oprime as pessoas com O que parece relevante sublinhar é que
deficiência. O primeiro desafio foi o de as diferenças corporais – sejam elas
desconstruir e desafiar a hegemonia qualificadas como deficiência ou não – são
biomédica dominante, aproximando os expressões da diversidade humana,
estudos sobre deficiência de outros saberes entretanto, a existência de corpos com
já consolidados, como os estudos culturais e diferenças marcantes sempre despertou a
feministas. Um dos resultados disso foi que curiosidade, o espanto ou a indiferença das
se abriu um debate sobre como descrever a pessoas em diferentes sociedades (Foucault,
deficiência em termos políticos, e não mais 2001).
apenas de diagnóstico. No entanto, o que esses discursos
Do ponto de vista histórico, não se sugerem é que o corpo reduzido apenas às
trata de afirmar que tais modelos da diferenças é fundamental às narrativas pelas
deficiência se superam, mas, antes, que se quais as pessoas com corpos sem diferenças
entrelaçam no contemporâneo, nas práticas marcantes fazem sentido de si mesmas. É
cotidianas, no Brasil e em Moçambique. como se a narrativa sobre os corpos com
Apoiando-se em Senna (2013), há pouca ou diferenças, que resulta na classificação dos
nenhuma referência feita aos percursos da corpos em normais e excepcionais, surgisse
deficiência em Moçambique, assim, os quando as pessoas com corpos sem as
modelos biomédico, social e feminista são diferenças buscassem uma identificação do
apresentados como modos de articular a seu corpo normal a partir do reconhecimento
deficiência, cada um dos quais com do corpo com patologias.
perspectivas distintas e efeitos diversos Para Erving Goffman (1988), os
Para o modelo biomédico da próprios ambientes sociais estabelecem
deficiência, cuja história, segundo Martins parâmetros e valores sobre a expectativa do
(2006) remonta ao continente europeu, a normal e do patológico e,
deficiência é articulada em torno do discurso consequentemente, quais tipos de pessoas
médico e é afirmada como falta, deficit ou têm maior possibilidade de serem
lesão. Trata-se, conforme Martins (2006), de consideradas membros normais de cada um
concepção moderna de deficiência, que no desses ambientes. Esse processo
ocidente corresponde à laicização da classificatório se dá no jogo quotidiano das
deficiência em prol de sua apropriação pelo relações sociais e pela construção da
discurso científico. Já a perspectiva social da expectativa de identidade social condizente
deficiência data do século XX e remonta a com um ambiente, ou seja, quando uma
movimentos sociais de pessoas com pessoa com características diferentes
deficiência, também no continente europeu, daquelas que se esperava encontrar em
em especial nos países de língua inglesa. A determinado ambiente é apresentada ou é
deficiência é então articulada não como vista fazendo parte dele, essa pessoa é
falta, ou como um deficit que marca um considerada estranha.
corpo individual, ou seja, é afirmada como Segundo Diniz, Medeiros e Squinca
uma forma de opressão social numa (2007), em resposta à hegemonia biomédica
sociedade que marginaliza e exclui a sobre o tema, os estudos sobre deficiência
diversidade corporal. Trata-se, nesse surgiram como uma especialidade das
domínio, de considerar outra gramática para humanidades em saúde, cujo compromisso
a deficiência: não mais uma questão teórico era demonstrar que a experiência da

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desigualdade pela deficiência resultava mais traz aspetos ligados ao cuidado em relação à
de estruturas sociais poucos sensíveis à pessoa com deficiência, também colocando
diversidade que de um corpo com lesões. O em cena questões ligadas à
modelo social da deficiência – principal família/acompanhantes, tendo em conta a
marco teórico dos estudos sobre deficiência sua localização. Destarte, traz à cena
– subverteu a lógica da causalidade proposta questões antes invisibilizadas por uma
pela International Classification of militância protagonizada por homens: as
Impairments, Disabilities and Handicaps perspectivas das mães e mulheres que
(ICIDH):7 não eram as lesões a principal cuidam de pessoas com deficiência, além
causa das desvantagens, mas sim a opressão das contribuições conceituais feministas
social aos deficientes. (que rediscutem a questão da autonomia
A demanda do modelo social da presente no modelo social da deficiência,
deficiência era por descrever as lesões como por exemplo).
uma variável neutra da diversidade corporal O modelo social da deficiência traz
humana, entendendo o corpo como um uma perspectiva que a afirma como uma
conceito representativo da biologia humana. falha do ambiente em acolher e habilitar
O sistema proposto pela ICIDH, por outro esses corpos. Dessa forma, afirmam que,
lado, classificava a diversidade corporal diante de um ambiente corretamente
como consequência de doenças ou arranjado, a pessoa com deficiência poderia
anormalidades, além de considerar que as ser absolutamente autônoma e eficiente. A
desvantagens eram causadas pela maior crítica feminista se dá,
incapacidade do indivíduo com lesões de se principalmente, sobre estas duas categorias:
adaptar à vida social. Para o modelo social, a a da autonomia e a da eficiência, afirmando
ICIDH retirava a força política do conceito que esse modelo de pessoa com deficiência
de deficiência, pois o fundamentava em não dá conta da multiplicidade de histórias
termos estritamente biológicos: era a que compõem o ser deficiente. Assim sendo,
natureza que determinava a desvantagem, e demonstram que uma militância que se faça
não os sistemas sociais ou econômicos apenas pelo geral, pelo homogêneo,
(Diniz, Medeiros & Squinca, 2007). negligencia uma infinidade de casos. Ou
Em suma, encontra-se no movimento seja, sua abordagem permite refletir que é
feminista as consequências principais da preciso entender as questões locais que
deficiência para este estudo, ainda que sem agem sobre a deficiência e das pessoas que
descartar os avanços do modelo social, pois cuidam/acompanham as pessoas com
deficiência em Moçambique. Assim, com o
7
A publicação da International Classification of auxílio do movimento feminista, emergiram
Functioning, Disability and Health (ICF ou CIF, em questões culturais e tradicionais sobre a
português) pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), em 2001, é considerada um marco no
deficiência, pois, nele destaca-se o fator
debate sobre deficiência. O documento é uma cuidado localizado, que parece ser
revisão da International Classification of fundamental para o estudo, uma vez que
Impairments, Disabilities and Handicaps (ICIDH), permite abordar questões a respeito da
primeira tentativa da OMS de organizar uma importância da família/acompanhantes8 no
linguagem universal sobre lesões e deficiências,
publicada em 1980. Entre as várias modificações
cenário da deficiência a partir do lugar.
propostas pela CIF, uma das mais desafiantes foi o
8
novo significado do termo “deficiência”, que de Neste trabalho iremos usar a expressão
uma categoria estritamente biomédica na ICIDH família/acompanhantes para marcar o grupo de
assumiu um caráter também sociológico e político pessoas que convivem e cuidam das pessoas com
na CIF. deficiência.

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Tendo mapeado esses modelos da


deficiência e o movimento feminista, é de se Interpretações culturais da deficiência na
notar a ausência de menções às concepções sociedade moçambicana
africanas da deficiência. Não é pretensão
neste texto desqualificar a ciência ocidental, As interpretações tradicionais10 sobre
tampouco considerá-la desnecessária, mas crianças que nascem com deficiências são
sim fazê-la compor com os saberes citadas como sendo as que perpetuam a
localizados e ou práticas de cuidados que discriminação e o estigma, sendo que é
dão origem a distintos modos de subjetivar a necessário que haja um deslocamento por
deficiência, tais como se fazem presentes em parte de toda a comunidade, incluindo a
Moçambique. família dessas crianças e as próprias
É importante desmitificar o conceito crianças, para que ambos se desloquem e
hegemônico da deficiência, que a produzam juntos um outro modo de se
circunscreve ao deficit e à falta, seja de um relacionar com isso que as concerne, é
órgão, seja de uma função sensorial – um preciso que haja um movimento de
membro, um movimento – na aposta de transformação subjetiva recíproca.
tornar essa discussão mais distribuída. Por As famílias têm frequentemente o
certo, a concepção biomédica9 da hábito de ir consultar um curandeiro,11 logo
deficiência, bem como outras concepções, nos primeiros dias, depois do surgimento da
como aquela que advém do modelo social da deficiência (do nascimento, de um acidente),
deficiência, comparece no cenário para tentar atenuá-la ou fazê-la desaparecer
moçambicano, no qual também importam as por meio de um ritual de “purificação” e/ou
questões relativas à acessibilidade. O
movimento de tornar a deficiência uma 10
Interpretações tradicionais refere-se à atribuição do
questão política e social, incluindo nesse significado aos acontecimentos com base nas
campo um nós, isto é, uma coletividade, faz- crenças culturais (com maior destaque a
se presente também em Moçambique. Nesse espiritualidade). A evocação dos fenômenos
domínio, pode-se pensar que não cabe a espirituais é tida como um fator primordial nas
vivências da sociedade moçambicana.
pretensa humanista afirmar que todos somos
11
iguais, cabendo um esforço em marcarmos Curandeiro é a palavra usada para denominar a
aquilo que singulariza nossos modos de ser e pessoa que trabalha com a medicina tradicional. Em
outras culturas, aplica-se essa designação a pessoas
estar no mundo. que usurpam o lugar dos médicos e exercem a
Dessa feita, compreende-se que o Medicina sem título nem habilitações. Podem
perigo da história única, neste estudo, reside parecer charlatães que, espertos e com sua
justamente no fato de que deixa de lado as pseudociência, se aproveitam da credulidade de
outras histórias que podem rechear mais as pessoas incultas. Essa definição não se coaduna
nem pode ser aplicada aos especialistas em magia,
concepções dos conceitos, visto que os pois o curandeiro africano é um profissional
modelos definidos para a tentativa de dar acreditado. Como único conhecedor da Medicina, a
uma explicação sobre a deficiência comunidade não só o estima como o considera
espelham-se apenas em médico e social. imprescindível. Portanto, é mais lógico chama-lo de
Realmente, eles trazem explicações “médico”, uma vez que domina a Medicina
tradicional e, oficialmente, está autorizado a exercê-
plausíveis, mas colocam de lado as questões la. Não é charlatão, nem nenhum impostor. Embora
culturais e tradicionais de cada sociedade, os seus diagnósticos e terapêutica nos pareçam
principalmente da africana (Moçambique). suspeitos, temos de admitir que não podem ser de
outra forma numa sociedade em que a doença tem
uma causalidade mística e só magicamente pode se
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Ver Diniz, D. et al. (2007). curar (Altuna 2014, pp. 560-561).

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de um remédio especialmente preparado por transforma-se em outro ser, existe de um


esse profissional. Diante de tal situação que modo diferente, é outra coisa sem
se descortina – a presença duma figura que é semelhança neste mundo. Por essa razão,
considerada até como alguém que está escolhemos designar os mortos como os não
capacitado para a resolução de questões que humanos, em articulação com o texto de
afligem essa sociedade, curandeiros e ou Latour.
praticantes da medicina tradicional,12 surge a As pessoas em Moçambique
inquietação sobre o lugar e o papel que o continuam tendo uma ligação muito forte
psicólogo assume nessa sociedade. com seus antepassados e fazem dessa
Despret (2011), psicóloga e filósofa conexão uma prática cotidiana. Aqui
belga, convoca a pensar sobre a também é interessante pensar na ideia de
interagência, a dar estatuto de agência aos ator-rede (Latour, 2012), a partir da qual as
mortos, a interrogar os vivos, a testemunhar coisas/pessoas são redes, são feitas de
como são as crenças e hábitos da sociedade articulações. No caso de Moçambique,
moçambicana. A cultura moçambicana pode-se avaliar que a rede que forma um
remete a essas interagências entre o mundo sujeito, essa dita rede de articulações, é
espiritual e o cotidiano, nas quais os mortos composta pelos mortos, os não humanos,
realmente têm um papel fundamental na além de outros muitos elementos.
constituição familiar, na sua maneira de Frequentemente membros de uma família se
viver e de se relacionar. Os mortos comunicam com seus mortos e os têm como
comunicam algo aos vivos, que executam parte integrante de sua família. Dependendo
determinada ação. Em vários momentos, os do nível de hierarquia, essa pessoa já morta
vivos agem de acordo com o que eles pode até ter um poder de tomar decisões no
acreditam ser a verdade, e uma de suas seio da família. Por exemplo: em algumas
crenças está na importância que se atribui regiões de Moçambique, é comum o hábito
aos mortos, ou seja, aos seus antepassados. de comunicar aos seus antepassados
Na sociedade moçambicana, os mortos têm qualquer evento que se pensa em fazer numa
capacidade de agir. Falamos dos mortos, determinada família, como casamento,
pois, colocando-os na posição dos não nascimento de uma criança, com a intenção
humanos (Latour, 2012). Eles nos fazem de pedir proteção e/ou até bênçãos. Por
pensar e fazer. A personalidade do povo vezes, essa informação é feita com base num
moçambicano é composta fortemente pelo ritual em que há comunicação com o morto,
poder da ação que os mortos representam na realizada pelo ancião da família ou por outra
sua cultura e consequentemente na prática entidade, que pode ser religiosa ou médico
cotidiana. tradicional.
Acredita-se na cultura moçambicana Prosseguindo com a narração do ritual,
que, com a morte, uma parte da pessoa deixa quando este é feito por alguém da família,
de existir para sempre, finaliza a realidade no caso o ancião, reúne-se a família e
humana e sua plenitude. É possível entender organiza-se uma pequena cerimônia, ou
que com “o fim de existir como vivente” o também com as pessoas visadas (curandeiro
homem fica em espírito. O sujeito morto ou uma entidade religiosa), no caso de
nascimento de uma criança com ou sem
12
Tradição médica tipicamente “local”, usada desde deficiência. Já quando é feito pela entidade
antes da introdução da biomedicina pela religiosa, o ritual específico obedecerá a
colonização ocidental, constituída por um repertório cada religião, dependendo se compactuarem
de praticas terapêutico distribuído e modeladas pela com essa crença.
diversidade cultural do país.

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Segundo Altuna (2014), no humano, o conhecimento, a atitude de se


pensamento bantu, a morte, apesar de relacionar com o outro. A centralidade da
destruição e desordem, aparece como um comunidade, o respeito pela tradição, alto
momento necessário da vida, que brota no nível de espiritualidade e envolvimento
nascimento e culmina no estado de ético, harmonia com a natureza, natureza
antepassado. Entre ser vivo e ser social da identidade individual, a veneração
antepassado, dá-se uma continuidade dos ancestrais e a unidade do ser são valores
ontológica. O autor defende ainda a ideia de que devem ser considerados integrados nas
que a participação vital transforma a vida anamneses psicológicas, nos
num ciclo que, em teoria, nunca pode psicodiagnósticos e na avaliação e
terminar. O antepassado, além de perdurar, intervenção psicológicas (Barros, 2011).
prolonga-se na sua descendência. Por vários anos de colonização, o povo
Acredita-se na permanência de um moçambicano se encontrou em muitas
princípio vital que perpetua a personalidade tensões sobre a legitimidade de suas raízes,
de cada sujeito e origina uma nova maneira crenças e valores. O colonizador, como a
de ser e de existir. Fica-se sempre ligado aos entidade que tinha como missão a
dois mundos porque esse princípio civilização desse povo considerado
existencial assegura a participação vital, o indígena, ultrapassado, por várias vezes
“eu” permanece participante. tentou acabar com as construções subjetivas
Em Moçambique, os mortos são os do colonizado, provocando, dessa forma,
verdadeiros chefes, guardiões dos costumes; uma desorganização e desconstrução dos
velam pela conduta dos seus descendentes, a valores étnicos destes. Mas com a
quem recompensam ou castigam segundo independência do país (1975), o povo tenta
observam ou não os ritos e costumes. A se recompor e se reorganizar culturalmente.
fidelidade às tradições, o respeito pelos E nessa reorganização as pessoas voltam a
anciãos e pelos mortos, o cumprimento das se relacionar fortemente com seus
cerimônias estão permanentemente sob seu antepassados. Suas crenças voltam a aflorar
controle, regulamentam as relações entre os e tomam uma dimensão cotidiana.
membros do grupo e todos reconhecem suas No entanto, esse sentido não está
regras. pronto, ele é sempre local. Em cada
É justamente esse conjunto de relações situação, constroem-se os sentidos das
entre vivos e mortos que se conecta com a coisas e, portanto, há também a produção de
chegada de uma criança com deficiência em um “pequeno mundo” naquele encontro. É
uma família moçambicana. Os itinerários da como quando Chimamanda Adichie (2009)
deficiência, isto é, os modos como esse fato nos fala dos livros europeus, dos
será vivido e experimentado pelas famílias personagens brancos que comem maçã, que
é, não raras vezes, enredado nessas relações são referências muito distantes do seu
socioespirituais. cotidiano.
Em nenhum momento pretendemos
Perspectiva da prática profissional de neste estudo desqualificar a ciência
Psicologia em Moçambique ocidental, tampouco considerá-la
desnecessária, mas sim fazê-la compor com
Tal como a Psicologia Ocidental, a os saberes localizados e/ou práticas de
perspectiva africana/moçambicana deve cuidados que dão origem à subjetividade do
abordar a aquisição da linguagem, da sujeito em Moçambique.
cultura, saúde mental, o comportamento

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Assim sendo, o trabalho do psicólogo seus métodos, técnicas e instrumentos, é


aparece em um mesmo sentido, pois o incapaz de interpretar, avaliar e intervir
profissional precisa se conectar com o eficazmente nos fenômenos psicológicos
mundo do paciente que está ali em africanos, visto que a realidade africana é
sofrimento, na sua frente, escutar essa completamente diferente e distante do
amplitude de conectar mundos. O encontro contexto ocidental. O homem africano é
terapêutico é um encontro entre esses essencialmente coletivista, espiritual e
mundos, e se as duas partes se permitirem religioso, não sendo necessariamente no ato
viver isso saem transformadas desse de frequentar uma igreja ou um dogma
encontro. Dessa feita, entende-se que para religioso, eles o são no sentido de honrar o
melhor lidar com aspectos sobre a que representa uma preocupação da
deficiência é preciso compartilhar os humanidade.
conhecimentos ocidentais, assim como os Esse pensamento não ignora a
tradicionais moçambicanos, de modo que tamanha importância da Psicologia
seja possível ter uma prática profissional Ocidental, mas implica não tomá-la como a
mais acessível e acolhedora em relação a única perspectiva possível de interpretar de
pessoas com deficiência. forma válida os fenômenos psicológicos,
particularmente quando se trata de
Considerações finais fenômenos psicológicos africanos. Sugere-se
que se tenha em conta a cultura do indivíduo
Durante o estudo, ficou muito em qualquer processo de avaliação e
marcado o lugar que se dá às crenças, aos intervenção psicológica, pois é com base nas
fenômenos socioespirituais em crenças e na tradição que este interpreta o
Moçambique. Por vezes, percebemos que os mundo. Assim sendo, todas as práticas de
mortos ainda continuam a ditar a vida dos Psicologia Ocidental, quando usadas em
vivos, e isso está marcado para cada culturas africanas, devem ser
moçambicano. Cada um tem sua forma de contextualizadas, no sentido de adequá-las à
lidar com essa realidade, mas ela está lá e se realidade do povo africano e, nesse caso
faz sempre presente na vida da pessoa. As concreto, à do povo moçambicano.
crenças interferem também nos conceitos O papel do psicólogo em Moçambique
que se dão às coisas/acontecimentos, por passa por essas tensões porque o psicólogo
exemplo, a concepção da deficiência, que é deve atuar nessa sociedade que coloca como
marcada por muitas angústias pelas pessoas elemento fundamental a concepção
com deficiência, assim como pela família. socioespiritual sobre a deficiência e outros
As angústias muitas vezes são provocadas tipos de transtornos, e não apenas na
pelo fato de sempre tentar se responsabilizar concepção globalizada pelo Ocidente, seja
os pais ou até mesmo a família, no geral, por pela Biomedicina como única solução para a
esse acontecimento, pois, vimos durante este cura, seja pelo modelo social como única
estudo que em África praticamente nada forma de intervenção.
acontece ao acaso. Então essa concepção Destarte, não se pretende escolher ou
produz a ideia de que há sempre um culpado determinar que concepções de deficiência
quando algo que se considera fora do normal são mais válidas, nem escolher
sucede, nesse caso, a própria deficiência. conhecimentos ocidentais, globais, como
Entre as duas perspectivas da melhores, nem os conhecimentos locais
Psicologia (Ocidental e africana), está moçambicanos como únicos, mas sim criar
evidente que a Psicologia Ocidental, com uma fusão entre eles – o que sairia como um

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Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(4), São João del-Rei, outubro-dezembro de 2020. e-3109.
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Simbine, A. J. Concepções da deficiência em Moçambique: embates entre versões ocidentais e contemporâneas

conhecimento “Glocal”, que seria a junção Incapacidade e Saúde. Cad. Saúde


de global e local – e compartilhar esses Pública, 23(10), 2507-2510.
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