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Duarte – A Individualidade para si (2013)

DUARTE, N. A individualidade para si. Edição comemorativa. Campinas - SP: Autores Associados, 2013.

Alienação:

(…) a passagem da socialidade em si à socialidade para si, isto é, o controle coletivo e consciente,
pelos seres humanos, das relações sociais como produtos humanos, é condição sine qua non para o
desenvolvimento da individualidade humana livre e universal. Somente fazendo-se um ser social
para si é que o ser humano pode desenvolver plenamente sua individualidade. p. 56-57

É frequente, no discurso educacional, a identificação dos termos “consciente” e “não alienado”.


Entretanto, uma ação pode ser totalmente consciente e ser alienada, isto é, a clareza sobre quais os
meios existentes e qual a sequência mais eficaz de procedimentos é condição necessária para uma
prática consciente; mas não é suficiente para que esta não seja alienada.” p. 57

Duarte coloca a contradição entre o desenvolvimento do gênero humano torna a humanidade cada
vez mais universal e livre, ao passo que os indivíduos se sujeitam a condições de alienação cada vez
mais presentes.

“a formação do gênero humano vem se efetivando ao longo da história, num processo de criação
das possibilidades de que a atividade objetivante, social e consciente, se torne cada vez mais livre e
universal. Essas possibilidades, entretanto, têm sido criadas e desenvolvidas tendo-se como
contrapartida a alienação dos indivíduos” p. 58

“Uma concepção histórico-crítica da formação do indivíduo não pode limitar-se a explicar a


formação de determinados processos cognitivos e comportamentais; ela precisa se posicionar sobre
o caráter humanizador ou alienador desses processos. Esse posicionamento, por sua vez, requer a
mediação de categorias que possibilitem o conhecimento de quais sejam as possibilidades máximas
de vida humana universal e livre, existentes numa sociedade, e de quais condições sociais cerceiam
ou até impedem a realização dessas possibilidades na vida dos indivíduos. O critério para que se
definam o que é humano e o que é alienação em relação ao humano é o das possibilidades já
alcançadas historicamente.” p. 59

“a alienação é primariamente um fenômeno social objetivo, um processo em que as relações sociais


impedem, ou ao menos limitam, a concretização das máximas possibilidades de vida humana na
vida de cada indivíduo” p. 59

Duarte se apoia em Gramsci para definir uma atividade verdadeiramente humana em contraste com
a atividade alienada, discutindo a liberdade como categoria das alternativas concretas,
possibilidades que são uma realidade que pode ou não ser atingida. Assim a alienação poda as
máximas possibilidades de serem atingidas, ex: “o fato de pessoas morrerem de fome quando
existem condições objetivas para que isso não ocorra”.

“Uma relação com o gênero humano que não contenha um posicionamento explícito e consciente ao
lado da classe trabalhadora e contra a burguesia terá grandes chances de aderir a concepções
fortemente idealistas e, portanto, alienadas do que seja o desenvolvimento livre e universal dos
seres humanos” p. 62

Duarte explica as categorias “materialismo” e “imanência”, ao trazer o processo do salto ontológico


do gênero humano nas suas relações histórico-sociais. Sobre o materialismo, ressalta que a
existência da realidade é anterior à existência da consciência, o que inclui não apenas a realidade
natural, mas também as relações sociais:
“Embora o trabalho seja uma atividade teleológica, isto é, a representação mental preceda o produto
que resultará da atividade transformadora, há todo um conjunto de processos e relações sociais, que
se desenvolvem a partir das atividades humanas, dos quais, porém, as pessoas podem não ter um
correto conhecimento. Nem por isso esses processos e essas relações sociais deixam de existir. Uma
correta explicação do que acontece na sociedade pode surgir muito tempo depois do surgimento das
relações sociais” p. 64

Duarte defende que para definir o “humano” é necessário distingui-lo dos demais animais em um
momento e “compreender como têm sido produzidas as características que, a cada momento
histórico, diferenciam o gênero humano do que ele foi anteriormente; bem como compreender as
possibilidades que se apresentam para o futuro da humanidade.” p. 62, sendo estes dois momentos
intimamente relacionados e para o segundo não basta listar as diferentes formas pelas quais o ser
humano “apenas comparando-se os traços comuns a todos os seres humanos com os traços comuns
a todos ps membros de uma ou mais espécie animal.” p. 66

Duarte traz um certo “aspecto positivo” da alienação: “Ao caracterizar essas possibilidades
máximas da vida, num dado contexto, a concepção marxista busca compreender as causas da
alienação, ou seja, do fato de que a vida da maioria das pessoas não apenas se distancie muito
dessas possibilidades como também, em muitos aspectos, de que esse distanciamento seja parte
justamente do processo que tem como resultado o desenvolvimento do gênero humano à custa dos
indivíduos” p. 67

Mas demarca a posição marxista ao trazer a finalidade do referencial: “Conhecer as formas mais
desenvolvidas de objetivação do gênero humano conecta-se, necessariamente, na concepção
marxista, a um engajamento na luta para que a vida de todos os indivíduos possa ser enriquecida por
essas objetivações e, reciprocamente, cada indivíduo possa dar sua contribuição pessoal ao
enriquecimento das objetivações do gênero humano.” p. 68

“se, por um lado, essa relação [entre apropriação e objetivação] gera aquilo que caracteriza a
especificidade do mundo da cultura diante do mundo da natureza, por outro, nas circunstâncias da
sociedade dividida em classes, tanto a objetivação quanto a apropriação do que foi objetivado são
marcadas pela contradição entre humanização e alienação” p. 69

Duarte reforça a contradição do duplo papel histórico da alienação, o negativo (exploração) e o positivo
(aceleramento das forças produtivas). O gênero humano se faz como um corpo inorgânico do homem,
sua herança histórico-cultural e não genética, cujas objetivações coincidiam com a formação subjetiva
dos sujeitos em atividades não alienadas até a divisão social do trabalho, à qual permitiu uma aceleração
das forças produtivas em detrimento do não reconhecimento subjetivo nas atividades que passaram a se
colocar de modo externo aos indivíduos. Socialmente, a humanidade atinge cada vez níveis mais livres e
universais de objetivações, individualmente, cada vez os sujeitos se afastam mais de reconhecer sua
contribuição subjetiva nas suas objetivações que se colocam de forma externa a ele. Marx discute como
o desenvolvimento das forças produtivas até o patamar global trouxe as condições concretas para que os
indivíduos consigam simultaneamente atuar sobre suas objetivações tornando necessária e possível a
revolução para um novo modelo não alienado.

A alienação empobrece os sujeitos e lhes extrai sua produção material e não material, mas,
contraditoriamente, ao ter suas relações sociais objetivadas como algo estranho, de forma externalizada,
os sujeitos podem lançar sobre estas relações sua atividade e transformá-las.

“Apenas por meio da era da alienação e seus mecanismos, são dissolvidas as comunidades locais e
restritas, ‘naturalmente dadas’, e só assim se desenvolve uma esfera cada vez mais ampla de relações
humanas, a qual finalmente abraça toda a humanidade (o mercado mundial). Esse processo,
simultaneamente, apresenta-se como a transformação de todas as determinações dos indivíduos
(características pertencentes à sua posição social etc.) - as quais, apesar de sociais em si mesmas, em
estágios iniciais do desenvolvimento apareceram a eles como traços naturais imutáveis, inseparáveis de
sua personalidade concreta – em algo separado deles e externo a eles, portanto, determinações sociais
que eles podem por si mesmos alterar por meio de sua própria atividade. Esse é indubitavelmente um
processo de despersonalização e esvaziamento, mas somente ele cria as precondições subjetivas para o
ser humano dominar suas próprias relações sociais e determinações.” (Markus, 1978, p. 49) p. 76

“Foi preciso, por conseguinte, que a sociedade desenvolvesse as relações entre os seres humanos de tal
maneira que estas se apresentassem perante eles como objetos, para que se tornasse possível que os
seres humanos pudessem tomar sua própria individualidade (síntese de relações sociais) como objeto
passível de transformação. Mas isso ocorreu por meio do processo de criação do mercado mundial, de
universalização das relações capitalistas, portanto, de redução dos seres humanos à unilateralidade
abstrata do valor de troca.” p. 76-77.

“Na sociedade alienada, essa apropriação das relações sociais objetivadas realiza-se, na maioria dos
casos, na forma de uma apropriação espontânea, isto é, as pessoas assumem naturalmente as relações
sociais, não se dando conta, na maior parte das vezes, do caráter histórico e, portanto, mutável dessas
relações. As relações sociais assumem a aparência de forças naturais às quais os indivíduos se
submetem, interiorizando-as por meio de uma identificação espontânea com a situação dada. Tais
relações, na história humana até aqui percorrida, não têm sido reconhecidas pela maior parte da
humanidade, e na maior parte das situações, como produtos da atividade histórica humana. É condição
indispensável para a realização plena da liberdade do gênero humano que os seres humanos submetam
as relações sociais objetivadas ao seu controle consciente.” p. 80

“Na sociedade capitalista, os seres humanos relacionam-se com as mercadorias não como produtos de
sua atividade, mas como seres que têm vida e poderes, assim como acontece nas religiões, em que os
seres humanos criam deuses e se colocam sob o poder desse produto de sua imaginação.” p. 81

“As forças sociais assumem uma forma objetivada alienada, a do capital. E, como se fosse uma força
autônoma, o capital passa a comandar toda a dinâmica social, transformando todas as atividades
humanas em meios para a obtenção do dinheiro, o representante universal da riqueza nessa sociedade. O
problema não reside, porém, no fato de as relações sociais assumirem a forma de objeto, mas no fato de
que esse objeto se transforme em sujeito (o capital) que comanda os sujeitos (os seres humanos) que,
por sua vez, se transformam em meios para que o capital atinja seus objetivos. Nessa situação, é
realmente impossível que a maior parte da humanidade deixe de acreditar na existência de um deus que
comanda nossas vidas. Não é por acaso que com o aprofundamento da crise do capitalismo neste início
de século verifique-se um recrudescimento do fervor religioso em suas formas mais alienantes. Assim
como o capital usa de todas as formas de violência para não se deixar dominar, também os deuses das
religiões assim se comportam.” p. 83

Duarte recorre a um trecho do Grundrisse para ressaltar que Marx não apelava a um retorno às
sociedades pré-capitalistas, as quais possuíam relações não alienadas, contudo que estavam muito
próximas as relações naturais e, portanto, não possibilitavam objetivações em suas formas mais livres e
universais. Estas, só se tornaram possíveis em uma sociedade cujas objetivações “superaram as
limitadas relações sociais nas comunidades naturais”, mas que, contudo, “se realizaram na forma
alienada de universalização das relações mercantis”. Duarte ressalta que “a individualidade livre e
universal não é um produto da natureza, mas da história” p. 85. Assim, Marx coloca como ridícula a
nostalgia da plenitude original das comunidades naturais (que não podiam se realizar de forma livre e
universal), mas igualmente ridícula a crença de que é necessário permanecer no esvaziamento da
externalização alienada das relações sociais.
“… no capitalismo existe uma contradição que só poderá ser resolvida com a superação da própria
sociedade capitalista, que é a contradição entre a criação das condições para a objetivação livre e
universal do gênero e a forma alienada pela qual ocorre essa objetivação”. p. 86

Duarte remeta aos Manuscritos econômico-filosóficos ao trazer a questão da superação da


propriedade privada como meio para objetivações não alienadas:

(…) O homem só não se perde em seu objeto se este lhe vem a ser como objeto humano ou homem
objetivo. Isto só é possível na medida em que ele vem a ser objeto social para ele, em que ele
próprio se torna ser social (gesellschaftliches Wesen), assim como a sociedade se torna ser (Wesen)
para ele neste objeto. (Marx, p. 109)

“O ser humano apropria-se do objeto, humaniza-o, nele se objetiva, transforma-o em objeto social e,
dessa maneira, desenvolve suas capacidades, assimila as características objetivas do objeto, que
passam a integrar as forças que o ser humano emprega em suas ações.” p. 87

“A individualidade desenvolve-se livre e universalmente na medida em que faz das forças


essenciais humanas objetivadas suas forças, sua objetivação, isto é, o indivíduo reconhece a si
próprio nas objetivações resultantes de sua atividade. Ou seja, ele desenvolve sua individualidade
objetivando-se e, neste sentido, sua individualidade transforma-se em objeto. Esse transformar-se
em objeto perde assim totalmente o caráter alienante e transforma-se no oposto da alienação, ou
seja, na plena humanização do indivíduo na sociedade” p. 87-88

Duarte coloca em questão como a uma atividade pode ser, ao mesmo tempo, consciente e alienada.
Ele defende que a consciência é um tema fundamental para a educação e recorre à Marx nos
Manuscritos de 1944 e n’O capital para definir a atividade humana como única, distinta da dos
animais, por ser uma atividade consciente. Recorre, depois, a Leontiev para discutir a diferença
entre a atividade humana e a animal, sendo a primeira decomposta em ações, cujos objetos não
coincidem imediatamente com o motivo da atividade (ex: ao acender o fogo para cozinhar, o fogo
se torna objeto da ação “acender o fogo”, mas esta ação não satisfaz a necessidade de alimentação,
ela é uma decomposição da atividade de cozinhar que visa a satisfação desta necessidade). Para os
animais, a necessidade os leva a agir sobre o objeto que a satisfaz, coincidindo o objeto com o
motivo da atividade.
Duarte dá o outro exemplo de Leontiev da caça em grupo, na qual um sujeito cumpre o
papel de batedor para espantar a presa rumo a uma emboscada. Assim, a ação de espantar a presa
parece ir no sentido oposto da necessidade de se alimentar, pois o sujeito se afasta do seu objeto.
Contudo, este afastamento é uma ação inserida em uma atividade social complementada por outros
sujeitos que promoverão outras ações para emboscar a presa e conseguir utilizá-la como objeto de
satisfação da necessidade coletiva de alimentação. Mas este exemplo não serve para distinguir o
homem de animais caçadores sociais, que conseguem utilizar esta mesma estratégia, mesmo sem
consciência.
Duarte ressalta a importância das ferramentas como objetos que não produzem a satisfação
da necessidade em si, de forma imediata, e que complexificam cada vez mais a atividade humana se
tornando objetos de ações que compõem um conjunto dentro de uma atividade.
“Produzir um instrumento é uma ação que, por si mesma, não satisfaz nenhuma necessidade
biológica imediata do ser humano. O sentido de tal ação é dado por um conjunto de outras ações nas
quais o instrumento virá a ser utilizado. Isso já mostra que, cada vez mais, a consciência, para
desempenhar sua função mediadora na atividade, foi desenvolvendo sua estrutura complexa
mediada.” p.91
“Esse desenvolvimento da consciência, como mediação no interior da atividade humana,
realizou-se por meio da linguagem, como objetivação do pensamento surgida na atividade de
comunicação” p. 91
Duarte apoiado em Leontiev discute como nas sociedades anteriores à divisão social do trabalho, a
estrutura da consciência humana era caracterizada pela unidade entre sentido e significado.
Portanto, o divórcio entre sentido e significado (ou talvez pudéssemos dizer, o aparecimento dos
sentidos sobre as atividades) se dá a partir da divisão social do trabalho que passa a produzir nos
sujeitos diferentes posições concretas nas relações sociais das atividades (cada vez mais
complexas). Assim, no exemplo dado, o significado social da tecelagem é partilhado socialmente
como atividade que produz o tecido como objeto que satisfaz às necessidades sociais, mas o sentido
sobre a tecelagem para o operário (meio para obtenção do salário) não é o mesmo do burguês (meio
para extração de mais-valia).

“Quando o trabalhador vende sua força de trabalho, as ações e operações que ele executa não se
alteram quanto ao seu conteúdo, isto é, seu significado. O que se altera quando a ação é
transformada em mercadoria é o sentido que ela tem para quem a vende e para quem a compra. Para
o trabalhador, ela tem o sentido de garantir a sua existência. Nem por isso ela deixa de ser uma ação
que exige a participação ativa da consciência do trabalhador, para que sejam alcançados os fins
pelos quais é dirigida. Para quem compra a força de trabalho, as ações do trabalhador no processo
de trabalho têm sentido de produtoras de lucro” p. 93

“A atividade humana, por ser uma atividade consciente, pode, portanto, decompor-se em ações cujo
sentido não é dado por elas mesmas, mas pela relação com o motivo da atividade. É isso que
permite, ao mesmo tempo, que haja um grande desenvolvimento da atividade e da consciência e, em
determinadas circunstâncias sociais, que o significado e o sentido das ações possam se distanciar
quase totalmente, transformando as ações em alienantes e alienadas” p. 93

Duarte expõe a dialética entre a produção de riqueza social e o desenvolvimento humano, a partir de
uma citação do Grundrisse na qual Marx demarca sua posição que supera tanto o conformismo com
o esvaziamento e o estranhamento da sociedade capitalista quanto a idealização ingênua e
romantizada sobre as sociedades naturais anteriores à divisão social do trabalho:

“Marx não se deixa iludir pela crítica anticapitalista romântica, que idealiza e naturaliza a oposição
entre relações sociais voltadas para produção e relações sociais voltadas para os seres humanos.
Marx entende, em primeiro lugar, que a humanização requer que a produção material se torne cada
vez mais livre, em relação à natureza e em relação à sua própria natureza humana. Em segundo
lugar, Marx esclarece que o conceito de riqueza não pode ser reduzido à sua forma burguesa,
portanto, alienada.” p.96

Duarte faz um traçado comparativo entre as possibilidades de satisfação das necessidades na


sociedade grega da antiguidade e da sociedade capitalista, sendo a primeira mais capaz de prover
possibilidades de satisfação e realização aos cidadãos (não aos escravos) que a burguesa, embora
que de forma muito mais limitada (dado o nível de desenvolvimento das forças produtivas e o
acúmulo cultural daquele tempo histórico).
“Na sociedade burguesa, o indivíduo não encontra a satisfação, ou melhor, só a encontra na
superficialidade e no imediatismo da vida cotidiana alienada, que tem no dinheiro sua forma de
objetivação por excelência e na posse de mercadorias, sua forma quase exclusiva de apropriação. A
perspectiva do comunismo é a de uma sociedade na qual tanto a satisfação limitada da antiguidade
quanto a insatisfação frustrante da sociedade capitalista sejam superadas pela dialética entre
desenvolvimento constante das necessidades das pessoas e realização imanente às atividades
executadas de forma livre e universal.

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