Você está na página 1de 8

Sobre reservas de 100%, Milei e

Argentina
Por Philipp Bagus - 13/04/2024

Tempo estimado de leitura: 6 minutos

Sem surpresa, os planos de reforma monetária de Javier Milei


são discutidos intensamente nos círculos libertários. Pela
primeira vez, uma verdadeira reforma libertária do sistema
monetário e financeiro está à vista. Um dos principais pontos
de discórdia é o plano de Milei de introduzir um sistema
bancário de reserva de 100%. Tal movimento seria
verdadeiramente revolucionário. O sistema bancário argentino
seria sólido e estável. A expansão prejudicial do crédito seria
descartada. Infelizmente, mas talvez não surpreendentemente,
banqueiros de reserva fracionária vieram a público criticar o
plano de Milei.

Neste contexto, encontramos um vídeo do economista


espanhol Juan Ramón Rallo que ele produziu em resposta a
uma breve nota de Jesús Huerta de Soto, respondendo por sua
vez a outro vídeo de Rallo, onde Rallo critica o índice de

https://rothbardbrasil.com/sobre-reservas-de-100-milei-e-argentina/ 14/04/2024, 16 45
Página 1 de 8
:
reserva de 100%. Huerta de Soto declarou que o debate está
encerrado e não vai continuar a responder. Sobretudo, porque
todos os argumentos de Rallo são tratados em detalhe no
conhecido livro de Huerta de Soto Moeda, Crédito Bancário e
Ciclos Econômicos (quarta edição).

No entanto, gostaria de comentar brevemente o vídeo de Rallo.

Rallo, seguindo sua teoria da liquidez feketiana, argumenta,


por exemplo, que a expansão do crédito impulsionada pelos
bancos de reservas fracionárias é limitada, quando não há um
banco central que possa socorrer os bancos, porque os bancos
tomam cuidado para não deixar sua liquidez se deteriorar
demais. Isso mostra, mais uma vez, como a abordagem da
liquidez obscurece a visão sobre o que é mais importante, a
saber, os efeitos da expansão do crédito gerada pelo sistema
bancário de reservas fracionárias sobre a estrutura de bens de
capital. Na verdade, a teoria austríaca do capital está
completamente ausente no vídeo e em toda a teoria de Rallo, e
ainda assim a teoria do capital é crucial.

Assim, em primeiro lugar, o vídeo não leva em conta a teoria


austríaca do capital e a teoria austríaca dos ciclos econômicos
desenvolvida por Mises e Hayek. Ele ignora o fato de que
qualquer criação de meios fiduciários por meio da expansão do
crédito de bancos de reservas fracionárias reduz artificialmente
as taxas de juros. Essa injeção de meios fiduciários pelos
bancos de reservas fracionárias sempre distorce a estrutura de
produção, pois a relativa diminuição da taxa de juros faz com
que projetos de investimento que não seriam rentáveis com
taxas mais altas, pareçam lucrativos. São empreendidos
projetos mais ambiciosos e insustentáveis com as escassas
economias da sociedade. Após o boom artificial impulsionado
pela expansão do crédito, inevitavelmente uma recessão se

https://rothbardbrasil.com/sobre-reservas-de-100-milei-e-argentina/ 14/04/2024, 16 45
Página 2 de 8
:
instala. E na recessão, os investimentos e ativos dos bancos
sofrem pesadas perdas. Os empréstimos inadimplentes
aumentam. Neste momento, os clientes perdem a confiança
nos bancos e vão en masse sacar os seus depósitos. É quando
surgem as corridas bancárias na ausência de um banco central
que possa socorrer os bancos. Ignorar a teoria do capital e que
toda expansão do crédito causa ciclos econômicos é o mesmo
erro que George Selgin comete, e que o professor Huerta de
Soto desmonta em detalhes no capítulo 8 de seu livro.
Portanto, o fato de os sistemas bancários de países dolarizados
como Panamá e Equador terem sobrevivido até agora não
significa que eles sobreviverão indefinidamente, uma vez que
estão sujeitos ao risco crônico de que seus bancos iniciem uma
expansão de crédito (em uníssono ou não). O mesmo risco
crônico também é enfrentado pela empresa Tether mencionada
por Rallo, que nada mais é do que um banco sombra que opera
com um índice de reserva de 10% e, embora tenha conseguido
sobreviver às suas corridas até agora, dada a liquidez dos
ativos em que investe, não há garantia de que não desapareça
no futuro, já que seu modelo de negócio está sempre no fio da
navalha.

Em segundo lugar, Rallo quer assustar os argentinos com o


risco de deflação e recessão crônica que 100% das reservas
supostamente gerariam. O medo da deflação é usado
justamente para justificar uma oferta monetária “flexível”, ou
seja, um sistema bancário com reservas fracionárias; um
sistema que cria grandes quantias de dinheiro (na forma de
meios fiduciários) para seu próprio benefício sem o
conhecimento ou controle de ninguém (aproveitando-se de
uma “senhoriagem” idêntica à do falsificador).

No meu livro Em Defesa da Deflação dediquei-me a desmontar


todos os argumentos contra a deflação em um mercado livre, e

https://rothbardbrasil.com/sobre-reservas-de-100-milei-e-argentina/ 14/04/2024, 16 45
Página 3 de 8
:
que geralmente são empregados para justificar a inflação. Por
um lado, a deflação de preços como resultado do aumento da
produtividade é uma coisa maravilhosa. É como um dividendo
de crescimento que é dado a toda a população. Por outro lado,
a deflação de preços como resultado de um aumento na
demanda por moeda é a solução para o desejo de aumentar os
saldos reais de caixa dos agentes econômicos. E como as
compras e vendas marginais que os indivíduos fazem para
atingir esse objetivo variam, o mesmo acontece com os preços
relativos, como consequência natural de suas avaliações
subjetivas. Finalmente, após uma expansão do crédito e um
boom artificial, e se não há um banco central para inflar a
oferta monetária, geralmente há uma contração do crédito que
gera forte deflação de preços. Essa crise de crédito é uma
reação do mercado à agressão monetária anterior dos bancos
de reservas fracionárias e acelera a recuperação, expurgando
os desinvestimentos mais rapidamente.

Mas, além disso, no sistema de dolarização na Argentina, com


uma taxa de reserva de 100% proposta por Milei, talvez os
preços nem caíam. A oferta monetária argentina aumentaria
com a entrada de dólares que inundaria a Argentina quando a
demanda argentina por dinheiro aumentasse. Não haveria
necessidade de ajustes artificiais e significativos de preços para
baixo, porque imediatamente dólares estrangeiros inundariam
o país.

Rallo destaca esse suposto risco deflacionário para justificar


sua neutralização com a emissão do meio fiduciário, ocultando
o fato de que a introdução do meio fiduciário como
empréstimos reduz artificialmente a taxa de juros e gera
desinvestimentos.

Além disso, apenas o índice de reserva de 100% imuniza o

https://rothbardbrasil.com/sobre-reservas-de-100-milei-e-argentina/ 14/04/2024, 16 45
Página 4 de 8
:
sistema das contrações bruscas da oferta monetária que a
reserva fracionária gera ciclicamente, forçando deflações e
recessões muito mais agudas e dolorosas (embora essas
contrações de crédito acelerem a recuperação ao liquidar os
desinvestimentos mais rapidamente).

Em terceiro lugar, a interpretação de Rallo sobre a criação de


bancos centrais está errada. Esconde o caso bem documentado
e paradigmático da criação do Federal Reserve nos EUA, que
surge a mando dos próprios banqueiros privados (J.P. Morgan e
Rockefeller) para conseguir um credor de última instância.[1]

Em quarto lugar, Rallo estende indevidamente o coeficiente de


reserva de 100% aos fundos mútuos do mercado monetário
quando estes não representam qualquer problema do ponto de
vista dos defensores de um sistema bancário com reservas a
100%.[2] Os fundos mútuos do mercado monetário apenas
garantem o retorno do que foi investido pelo seu preço de
mercado, não pelo seu valor nominal. Portanto, os fundos
mútuos monetários não podem ser equiparados a operações
que, fraudando à lei, ocultam um depósito à ordem com uma
compensação a qualquer momento de seu valor nominal (com
um contrato de recompra, etc.).

Em quinto lugar, vale mencionar também a recomendação do


professor Huerta de Soto de considerar como depósitos
empréstimos com prazo inferior a 30 dias. Um “empréstimo”
auto-renovado com um prazo de 1 segundo é equivalente a um
depósito à ordem e, portanto, também é obrigado a ter um
coeficiente de reserva de 100%. O mesmo vale para um
empréstimo rotativo automático de uma hora, duas horas ou
um dia. Agora, a questão é onde está o prazo em que o
instrumento financeiro que replica o depósito à ordem se torna
um empréstimo genuíno? E a solução prática e conservadora

https://rothbardbrasil.com/sobre-reservas-de-100-milei-e-argentina/ 14/04/2024, 16 45
Página 5 de 8
:
aplicável aos bancos privados proposta pelo professor Huerta
de Soto é o prazo inferior a 30 dias, onde geralmente começa a
demanda por empréstimos bancários comerciais. Por outro
lado, os particulares já estão sujeitos às penas do Código Penal
por apropriação indébita de depósitos e equivalentes em
detrimento da interpretação pelos tribunais das circunstâncias
particulares de cada caso. E em um sistema puramente
anarcocapitalista, a prática e o costume estabeleceriam a
fronteira temporal entre depósitos e empréstimos.

A conclusão paradoxal é que o banco de reservas fracionárias


induz a criação de credores de última instância (bancos
centrais) que, por sua vez, tornam o banco de reservas
fracionárias muito mais prejudicial. Os defensores das reservas
fracionárias acreditam ingenuamente que, ao eliminar os
bancos centrais, as reservas fracionárias e a expansão do
crédito de repente se tornam uma coisa boa. Mas, embora a
eliminação dos bancos centrais melhore as coisas para o banco
de reservas fracionárias aumentando os índices de reserva, ela
ainda não eliminaria seu pecado original: a criação de meio
fiduciário sempre gera ciclos desestabilizadores, como
demonstra a teoria da Escola Austríaca (Hayek e Mises) que

https://rothbardbrasil.com/sobre-reservas-de-100-milei-e-argentina/ 14/04/2024, 16 45
Página 6 de 8
:
Rallo ignora. Na menor crise, que mais cedo ou mais tarde
sempre resulta do desinvestimento induzido pela criação de
meios fiduciários, surge novamente a demanda popular de criar
um banco central para salvar os banqueiros e depositantes
afetados, e assim por diante, e assim por diante, novamente. O
banco de reservas fracionárias cria uma situação instável e
paradoxal que só pode ser resolvida definitiva e completamente
com o índice de reservas de 100% e a eliminação dos bancos
centrais. Por fim, quero ressaltar que qualquer pessoa
interessada no debate, antes de se posicionar, deve ler Moeda,
Crédito Bancário e Ciclos Econômicos, que está em sua oitava
edição, e meu próprio livro Full Reserve Banking versus the
Real Bills Doctrine, que será publicado em breve pelo Ludwig
von Mises Institute.

Artigo original aqui

______________________________

Notas

[1] Ver, por exemplo, Pelo fim do Banco Central.

[2] Ver, por exemplo, Bagus, P., Howden, D., & Gabriel, A.
(2015). “Óleo e água não se misturam”, ou: “Aliud est credere,
aliud deponere”. Journal of Business Ethics, 128(1), 197–206;
ou Bagus, P., Howden, D. & Gabriel, A. A Hubris dos Híbridos.
(2017) Journal of Business Ethics 145, 373–382.

https://rothbardbrasil.com/sobre-reservas-de-100-milei-e-argentina/ 14/04/2024, 16 45
Página 7 de 8
:
Philipp Bagus
Philipp Bagus é professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em
Madri. É o autor do livro A Tragédia do Euro. Veja seu website.

https://rothbardbrasil.com/sobre-reservas-de-100-milei-e-argentina/ 14/04/2024, 16 45
Página 8 de 8
:

Você também pode gostar