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A expansão do mercado de distressed assets


Entenda a história, o desenvolvimento e o papel social dessa indústria

 Guilherme Ferreira maio 2, 2021

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Gestão de Recursos, Explicando . distressed assets

Imagem: freepik
Se a década passada foi marcada por um período de forte expansão do
mercado de ativos distressed no Brasil, com destaque para os
chamados NPLs (non-perfoming loans, ou créditos inadimplidos), a atual já
aponta para consolidação e crescimento ainda maior — consequências não
apenas da demanda dos investidores por essa classe de ativos, mas também
da combinação única entre o ambiente macroeconômico brasileiro dos
últimos anos e a pandemia.

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Segundo o Banco Central, o volume de NPLs em 2020 no País para


créditos inadimplidos entre 90 e 180 dias atingiu a marca de 84,4 bilhões de
reais, dos quais 62,7 bilhões de reais para o mercado consumidor e 21,7
bilhões de reais para o corporativo. Parte desses empréstimos voltará a ser
paga em dia e outra será renegociada pelos próprios bancos. Mas uma
parcela será vendida a investidores profissionais que alocam capital,
expertise e capacidade operacional para recuperá-los. Essa fatia é composta
pelos chamados distressed assets. Nos últimos anos, esses investimentos
alcançaram rentabilidade, em muitos casos, em torno de 20%, o que
certamente contribui para atrair novos recursos e participantes.

Um mercado efetivo de distressed assets funciona como um amortecedor do


sistema financeiro e da economia durante as crises. Ao comprar ativos
problemáticos, o investidor distressed fornece liquidez ao sistema num
momento de grande incerteza e trabalha incansavelmente na renegociação
das dívidas atrasadas, facilitando a reabilitação de pessoas físicas e a
recuperação de empresas endividadas.

Para entender como esse mercado evolui e se torna cada vez mais relevante,
é importante relembrar sua história e sua profissionalização, muitas vezes
entrelaçada às grandes crises econômicas globais.

Crise Savings & Loans


A origem do mercado distressed remete à crise que se tornou conhecida
como Savings & Loans (S&L), nos anos 1980 e 1990, nos Estados Unidos. Na
ocasião, um terço das cerca de 3 mil associações de S&L do país quebrou.
Essas entidades — semelhantes às associações de mutuários no
Brasil — recebiam investimentos das pessoas das comunidades, e que
eram usados principalmente para financiar a compra de imóveis
hipotecados.

Na época ainda era corrente no país uma gíria que se tornou famosa a partir
dos anos 1950: a “regra 363”, segundo a qual os bancos supostamente
pagavam 3% aos depositantes, emprestavam com juros de 6% e, dada a
facilidade e altos ganhos da transação, os gerentes saiam às 3 da tarde para
jogar golfe. O cenário começou a mudar drasticamente quando o Federal
Reserve (banco central americano), no fim dos anos 1970, aumentou a taxa
de desconto dos bancos de 9,5% para 12%, num esforço para conter a
inflação.

Paralelamente, as S&Ls emitiam empréstimos de longo prazo com taxas fixas


de juros, mais baixas que aquelas que poderiam tomar emprestado.
Resultado: insolvência. Apenas entre 1986 e 1989, a
Federal Savings and Loan Insurance Corporation (FSLIC) fechou ou interveio
em 296 instituições, quando a recém-criada Resolution Trust Corporation
(RTC) passou a assumir essas responsabilidades.

A RTC criou então uma estrutura para vender e gerir esses ativos
problemáticos para investidores privados, com capacidade operacional para
fazer a cobrança. Criou-se, assim, uma classe de investimentos para quem
tinha apetite por risco e visão de longo prazo.

Grandes crises globais


Desde então, o que passou a ser notado é que os investidores
em distressed assets voltavam ao mercado nos momentos de crise, com
grandes volumes de inadimplência ofertados. Foi assim com o
chamado “efeito tequila”, a crise mexicana de 1994, causada pela escassez
de reservas e desvalorização do peso; na crise econômica da Rússia, em
1998, com a desvalorização do rublo e a moratória; na crise da
desvalorização do real, no início de 1999, que marcou a transição das bandas
cambiais para o câmbio flutuante; e com a bolha da internet, que explodiu no
início de 2000 e levou ao desaparecimento de muitas das chamadas
empresas “pontocom” após a grande queda das ações na Nasdaq.

O movimento seguinte viria em 2008, com a crise global que teve origem no
grande volume de empréstimos concedidos nos Estados Unidos para muitas
pessoas que não tinham como pagar, mas que podiam oferecer a própria
casa como garantia. Era o chamado mercado de créditos subprime, no qual o
volume de financiamentos era imenso. Muitos bancos, na ocasião, passaram
a misturar dívidas de alto e baixo riscos, o que resultou na criação
das CDOs (obrigações de dívidas com garantia).

O mercado europeu foi um dos principais compradores, levado pelas


análises positivas de algumas das principais agências de classificação de
risco. Quando muitos passaram a não pagar suas dívidas com bancos ou
fundos de investimento de todo o mundo, houve imediatamente um efeito
dominó no mercado, acentuado a partir da falência do Lehman Brothers, um
dos bancos de investimentos mais tradicionais dos Estados Unidos. Bolsas
despencaram globalmente e outros bancos anunciaram a perda de bilhões
de dólares. Na Europa, vieram na sequência as crises econômicas de países
como Grécia, Chipre, Irlanda, Itália e Espanha, quando praticamente todo o
continente passou a viver sob forte recessão.

Ao mesmo tempo em que as crises econômicas globais aumentaram o


volume de inadimplência nos mercados, também cresceu o número de
investidores preparados para comprar esses ativos, levando a sua expertise
para os locais mais afetados.

Distressed assets no Brasil


O Brasil passou por várias crises nas últimas décadas, mas nem por isso, pelo
menos até 2005, o País tinha um mercado de distressed assets relevante. A
primeira grande oportunidade para a criação de um mercado brasileiro no
segmento surgiu em meados da década de 1990. Grandes bancos passaram
a enfrentar sérios problemas financeiros. O caso mais rumoroso da época foi
o do Banco Nacional, cuja origem teve início com um rombo equivalente a
cerca de 600 milhões de dólares em suas contas. Para encobrir o prejuízo, os
administradores do banco acabaram forjando empréstimos fictícios para
equilibrar o balanço.

Para socorrer os bancos, o governo criou, em novembro de 1995, o Programa


de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro
Nacional, o Proer, com recursos de 20 bilhões de reais. Foi, na ocasião, um
movimento semelhante ao modelo americano dos anos 1980 quando da
criação da Resolution Trust Corporation. Ou seja, o que poderia ter sido o
nascimento de um amplo mercado de NPLs no Brasil acabou limitado à
esfera estatal.
O cenário começa a mudar em 2005, quando investidores internacionais
liderados pela Goldman Sachs começaram a olhar para o Brasil com maior
interesse. Foi o caso do Lehman Brothers, que comprou uma carteira
de créditos vencidos do ABN, que tinham origem em bancos como o Real, o
América do Sul, o Sudameris, o Bandepe e vários outros menores. Por conta
da crise de 2008 e do câmbio, os investidores internacionais acabaram
saindo do País ou reduziram muito seus investimentos. E
foi justamente nessa segunda metade da década de 2000 que começaram a
aparecer as primeiras empresas brasileiras na área.

O mercado de NPL ganha corpo


A partir de 2010, o mercado brasileiro começa a ganhar investidores locais
mais capitalizados, focados principalmente nos créditos de consumo. São
operações com pessoas físicas, como dívidas de cartões de crédito, leasing
de veículos, cheque especial, cartões white label de grandes varejistas, entre
outros, com ou sem garantia, em grandes
volumes, cujas cobranças eram feitas via call center e mala direta.

O período de 2010 a 2015 pode ser chamado de segunda fase desse


mercado, uma vez que já oferecia excelentes retornos, mas com transações
relativamente pequenas. Grandes vendedores não estavam ambientados
com as operações e os bancos privados ainda não ofertavam suas carteiras
de créditos inadimplidos.

Também no começo da década começa a emergir o mercado de créditos


corporativos, que passa a ganhar musculatura com o passar dos anos até a
virada de 2015, no início de uma nova fase marcada pela crise política e
econômica no Brasil, que duraria aproximadamente dois anos. Foi o período
do auge da Operação Lava Jato, com a desestabilização, por problemas de
corrupção, de importantes setores da economia, como energia (com a
Petrobras no centro da crise) e construção civil.

Ao mesmo tempo, o mercado de créditos de consumo passava por


dificuldades com o aumento da inadimplência. Foi quando ocorreram
algumas aquisições muito representativas, com grandes
bancos — como Itaú, Bradesco e Santander — comprando algumas
empresas da área. O ano de 2015 também marcou a entrada da
Caixa Econômica Federal no mercado de dívidas de pessoas físicas, mas um
ano depois o Tribunal de Contas da União suspendeu as operações por
entender que o repasse ao mercado, em torno de 24 bilhões de reais em
créditos inadimplidos, causava prejuízo ao erário.

Entre 2015 e 2018, principalmente, o mercado corporativo passa então a


realizar negócios de grandes volumes, com médias e grandes empresas,
contando com a participação de grandes bancos que já enxergavam a venda
desses ativos como solução para carteiras de inadimplência. Ainda na esteira
da crise econômica, foi um período de grande amadurecimento,
principalmente no segmento corporativo. Os bons retornos dos anos
anteriores atraíram novos investidores e o mercado passou a ter foco na
captação de recursos de terceiros por gestores profissionais especializados
nessa categoria de ativos.

Papel social dos distressed assets


Em razão da melhora do ambiente econômico a partir de 2018, os
investimentos na área vão além de NPLs, legal claims (ativos relacionados a
disputas judiciais) e precatórios, e passam a ser também direcionados para
ativos imobiliários, como terrenos, obras inacabadas e grandes estoques de
incorporadoras em dificuldades. Empresas de porte desse setor, no período,
foram salvas graças a quem estava disposto a investir diretamente nas
dívidas das companhias, numa aposta clara em sua recuperação. O mesmo
processo bem-sucedido ocorreu também com empresas de outras áreas.

O grande movimento global seguinte, o atual, veio no fim da década, com


a pandemia. Os estrangeiros, que chegaram a aumentar o interesse entre
2018 e o começo de 2020, deslocaram seus investimentos em busca de boas
oportunidades em outras partes do mundo, como Estados Unidos e Europa.
O mercado brasileiro, então, se voltou novamente para os investidores locais,
que acabaram tendo um papel social fundamental na recuperação de
pessoas físicas e jurídicas, provendo liquidez mesmo com um alto grau de
incertezas causado pela crise.

Em valor de face, estima-se que a inadimplência nos bancos brasileiros nos


últimos 20 anos seja superior a 1 trilhão de reais. Com empresas profissionais,
gestão eficiente e boa rentabilidade, é possível acreditar que esta
década será marcada por volumes crescentes de créditos inadimplidos
ofertados ao mercado, no varejo e no segmento corporativo.
Só não é possível prever quando será a próxima crise, mesmo porque a
atual nem acabou. Mas as oportunidades do mercado para antigos e novos
investidores em distressed assets são perenes e as suas responsabilidades
como provedores de liquidez na próxima crise serão ainda maiores.

Guilherme Ferreira (gf@jiveinvestments.com) é sócio


e managing partner da Jive Investments

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