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Apetece cantar, mas ninguém canta.

(querem celebrar mas não há nada para celebrar)


Apetece chorar, mas ninguém chora. (estado de dormência- estavam habituados)
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita. (querem revoltar se mas ninguém o faz)
Apetece fugir, mas ninguém foge. (querem fugir do regime mas não podem)
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre. (estão fartas, querem desistir)


Apetece matar, mas ninguém mata. (querem acabar com o regime mas não conseguem)
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,


Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!

Miguel Torga é um pseudónimo de Adolfo Correi da Rocha, o qual nasceu a 12 de


agosto de 1907 e faleceu a 17 de janeiro de 1995, com 87 anos. É considerado um dos
escritores portugueses mais influentes do séc XX, tendo recebido variadíssimos
prémios, como o Prémio Morgado de Mateus, Prémio Camões e o prémio
Internacional da poesia e foi nomeado várias vezes ao prémio Nobel da Literatura.
O nome deste seu pseudónimo surgiu em homenagem a 2 escritores: Miguel de
Cervantes e Miguel de Unamuno, daí o Miguel, e às suas origens serranas, pois o nome
torga é um nome de uma planta brava proveniente da sua terra.
A sua poesia reflete as esperanças e angústias do seu tempo, onde se encontram
críticas sociais, apontamentos de paisagem, esboço de cantos e aprovações culturais.

Dies Irae – é uma expressão em latim, que se traduz em português para Dias de Ira.

Este poema aborda como tema principal a angústia, medo e revolta que os
portugueses sentiam durante o tempo de ditadura, durante o Estado Novo. Assim,
este título sintetiza a temática deste poema, centrada na frustração, desespero e
angústia provocadas pelo regime político opressivo.

O sujeito poético começa as três primeiras estrofes por usar a palavra apetece o que
nos remete para as diferentes ações que o povo português quer fazer. No entanto, no
seguimento do verso, este diz que ninguém as faz, não são ações fazíveis. Há assim um
contraste, uma impossibilidade.
Assim surgem os últimos 2 versos de cada estrofe, onde o sujeito poético justifica a
razão para estas ações que os portugueses tanto querem realizar não serem fazíveis.
Diz-nos que se devem a um fantasma, mas que fantasma é este? O fantasma é o
Estado Novo, que se encontra em todo o lado, e não permite que os portugueses
realizem as ações que querem.

Por exemplo, na primeira estrofe diz que o povo quer cantar e chorar mas não o faz,
porque há um fantasma, ou seja, o regime da altura que impõe o medo à população,
que é repressivo.
Na segunda estrofe o sujeito poético diz que o povo quer gritar, o que está associado à
revolta do povo em relação a este regime e fugir, o que está relacionado ás tentativas
de fugir deste regime opressivo, mas não o faz pois “um fantasma limita todo o futuro
a este dia”, ou seja, o povo não o faz porque a sua liberdade é limitada pelo regime,
não são livres.
Na terceira estrofe, está mais presente uma reflexão pessoal que vai servir de
introdução à quarta estrofe. Nesta estrofe o sujeito poético diz que quer morrer e
matar, ações mais extremas, mas não pode pois a sua alma encontra-se em conflito,
por um lado está revoltada e quer a mudança mas sabe que nada pode fazer, pois
como vimos anteriormente o “fantasma” limita o seu futuro e impõe o medo.

Além disto, existe uma antítese nos dois primeiros versos das três primeiras estrofes.
As ações são sempre contrárias, havendo assim uma combinação de ideias contrárias.
Por exemplo, na segunda estrofe, o apetecer gritar, refere-se à vontade do povo de se
revoltar, e o apetece fugir, refere-se à vontade do povo fugir do país para escapar a
este regime. São duas ideias contrárias e que são usadas com o objetivo de mostrar o
desespero e o conflito em que os portugueses se encontram.
O mesmo acontece na terceira estrofe, é referido que apetece morrer, ou seja, os
portugueses querem desistir porque já não aguentam este regime opressivo, mas ao
mesmo tempo querem matar, ou seja, querem acabar com este regime.
Basicamente, a antítese é usada para demonstrar os conflitos que vão dentro da alma
dos portugueses. Estes não sabem o que fazer pois têm medo das consequências e do
que acontecerá se o fizerem.

Nas três primeiras estrofes estão presentes paralelismos anafóricos e sintáticos, ou


seja, nos 2 primeiros versos destas 3 estrofes há uma repetição literal das mesmas
palavras e, além disso, há um encadeamento de funções sintáticas idênticas. Estes dois
tipos de paralelismos também ocorrem nos últimos 2 versos destas 3 estrofes.
Estes paralelismos contribuem para a caracterização do estado de espírito do poeta e
do povo, que se encontram frustrados e em conflito, nestas 3 estrofes, por não
puderem fazer o que querem, por não serem livres.

Já na última estrofe, o poeta parece aceitar o tempo amaldiçoado em que vive, não
transmitido nenhuma esperança. Este considera que vive numa sepultura de grades
cinzeladas, que o deixa ver o futuro que não têm e o fim das suas angústias, ou seja,
ele reconhece que apesar de ter as suas vontades e os seus sonhos, o regime opressivo
em vigor, serve como uma prisão, não permitindo que essas vontades e sonhos sejam
concretizados, nem que as suas angustias sejam ultrapassadas. Por outras palavras,
nesta estrofe o sujeito poético perde a esperança de uma vida melhor.

No poema que analisei, a temática intrínseca ao poema são as representações do


contemporâneo. Como já referi, este poema representa a realidade do Portugal,
característica das representações do contemporâneo, mais concretamente da
realidade do Portugal do Estado Novo, criticando-o. Tal acontece ao longo de todo o
poema mas mais concretamente nos últimos dois versos das 3 primeiras estrofes,
onde este equipara o regime a um fantasma que influência negativamente a vida dos
portugueses, e também na última estrofe onde retrata o regime como uma prisão que
permite que hajam vontades e sonhos mas que não os deixa concretizar.
Estão também presentes expressões de revolta contra as injustiças da ditadura, como
acontece no primeiro verso da quarta estrofe, havendo assim uma voz contra a
ditadura, que defende valores estandarte, como a liberdade e a justiça, que são
características das representações do contemporâneo.

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