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Um estudo sobre o monaquismo

I - A FISIONOMIA DO MONGE

1. Si vis perfectus esse...

Em Mateus (XIX, 16-22), lemos a primeira definição do monge: “E eis


que alguém, abordando-o, disse: Mestre, que devo eu fazer de bom
para ter a vida eterna? E ele lhe diz: Por que me interrogas sobre o
que é bom? Um só é bom. Se queres entrar na vida, observa os
mandamentos. E ele lhe diz: Quais? Jesus responde: São estes: não
matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não pronunciarás
falso testemunho, honrarás pai e mãe, e amarás o próximo como a ti
mesmo. Diz-lhe o moço: Observei-os todos, que me falta ainda?
Jesus lhe diz: Se queres ser perfeito, vai, vende o que possuis, dá
tudo aos pobres, e terás um tesouro nos céus: depois vem, e segue-
me. Quando ouviu estas palavras, o moço afastou-se contristado
porque era muito rico”.

E aí está uma primeira definição ligada a uma primeira recusa. O


moço que Jesus amou, conforme está escrito em Marcos (X, 17-22)
recuava diante do chamado mais premente, porque era muito rico.
Foi por isso que Nosso Senhor, logo a seguir, acrescentou que era
mais difícil um rico entrar no reino dos céus do que um camelo
passar pelo buraco de uma agulha. Cumpre notar, entretanto, que o
moço rico do evangelho não se negava à perfeição. Ele mesmo
dissera, com impulsiva generosidade, que vinha cumprindo os
:
preceitos desde a juventude, o que se explica, segundo o Pe.
Lagrange, pela tendência enfática que os moços têm de falar no seu
passado recente. Desde a juventude, quer dizer desde sempre. Ou
desde os dias em que havia despertado no moço uma consciência
moral. Desejara e procurara a perfeição, quisera sempre orientar-se
para um verdadeiro fim, mas assustou-se e fugiu quando o Senhor
lhe apontou o caminho mais curto que lhe pareceu difícil demais.
Como dirá depois o teólogo, o moço rico do evangelho cumprira o
preceito, mas recuara diante do conselho.

Ora, duzentos e cinqüenta anos mais tarde, um outro moço, nobre e


rico, ouvindo numa igreja a leitura do mesmo texto evangélico: “si vis
perfectus esse...”, tomou para si o convite de Deus, saiu a vender
suas terras e seus bois, distribuindo tudo pelos pobres, e foi viver no
deserto da Tebaida, o mais pobre dos pobres, entre orações, jejuns e
espantosas mortificações. Esse moço foi Antão, o monge.

2 . Preceito e conselho

Não devo, entretanto, dizer que o monge se define simplesmente


pela escolha da perfeição. “Diz-se de uma coisa que ela é perfeita
quando atinge seu próprio fim, que é a sua última perfeição”. (Suma
Teo. II-II, Qu. 184, art. 1). Ora, a beatitude eterna é o fim último do
homem. Logo, não somente os monges, mas todos os cristãos
procuram a mesma perfeição. Explica Santo Tomás (Qu. 184, art. 3)
que a perfeição consiste essencialmente no preceito e
“secundariamente, a título de meio, no conselho”. Assim, o que
caracteriza o monge, por enquanto, não é a escolha do fim, mas a
:
dos meios; é a coragem de tomar o caminho mais curto e mais difícil;
é a aventura de levar a obediência até os extremos do conselho. Não
se contenta em evitar o que contraria a caridade, mas em evitar
também o que não a acrescenta. Mas escolhe os meios de um modo
especial, isto é, por já ver neles o fim, e faz dessa escolha um
estado. Não foi o gosto de se desfazer dos deleites da fortuna e dos
regalos da vida, mesmo os legítimos, que lhe pesaram no espírito.
Não por estoicismo que vendeu suas terras e seus bois. Antes
daquelas palavras sobre os meios disse Jesus: “um só é bom”.
Depois delas, acrescentou: “segue-me”. Tudo o mais então se torna
acessório – rebanhos e vinhas – se um só é bom. Todas as coisas da
terra serão reflexos de uma só bondade; e, assim sendo, mais vale
seguir a luz do que demorar-se nos reflexos ou correr no encalço
das sombras.

O moço rico do evangelho, cuja franqueza foi amada pelo Senhor,


não seguiu a superabundância do conselho, mas tendo amado o
preceito está certamente no céu. O bom Mestre, segundo Marcos,
fixou seus olhos nos dele, e amou-o. Está escrito. O que
absolutamente não está escrito é que Jesus tenha amado naquele
moço rico todos os moços ricos que, pelos séculos afora, irão
pensar que o preceito consiste na magra pontualidade, e na
mesquinha observância das condições mínimas exigidas pela Igreja.
Cumpre lembrar que a alma do preceito é a caridade. Amar a Deus e
ao próximo, eis os principais mandamentos.

Lendo as distinções de Santo Tomás, poderíamos acha-las murchas


e sem vida (porque são sóbrias e discretas), sobretudo se não lhe
apreendermos o sentido completo. Preceito, no vocabulário
:
corrente, tornou-se uma coisa seca, estrita, suficiente,
parcimoniosa, como um negócio que se regateia. Ir à missa aos
Domingos e comungar uma vez por ano: eis um preceito da Igreja.
Mas é bom saber que esse mínimo, oferecido por Deus, será inútil e
vão se faltar aquele máximo que é a caridade. Admite-se a liberdade
de não usar a abundância dos meios santificantes; mas o que não se
admite dentro da Igreja é o desprezo pelo fim. E é deste que cuida o
preceito.

Há enormes mistérios dentro da Igreja. Um deles, e dos mais


terríveis, a meu ver, é o preceito do mínimo. O homem do mundo,
vendo a Igreja por fora, aprecia a enorme sabedoria de sua tolerância
no que concerne à prática, mas acha esquisitíssima a vida dos
monges. Ora, um pouco de convívio na Igreja, modifica radicalmente
essa apreciação, mostrando-nos que esquisitíssima é a vida de
quem crê e não usa aquilo em que crê senão uma vez por ano.

Na verdade, a Igreja concede que pratiquemos essa singular


economia de meios; mas não transige quanto ao fim. Exige o
máximo, mas tem a imensa e maternal paciência de levar a sério a
presunção dos que se julgam suficientemente aparelhados para
dispensar o quotidiano auxílio de sua maternidade. Diria até que ela
sorri de nós, com essa história de comungar uma vez por ano,
reservando seu riso franco e desvendado para o dia de suas núpcias.

O monge, nessa ordem de idéias, é o homem que entendeu por


meias palavras o conselho do evangelho, e que decifrou o misterioso
sorriso de sua mãe. Por isso vai muito além do preceito. Ou melhor,
:
adivinha a verdadeira profundidade do preceito.

3. O máximo e o mínimo

Vimos atrás que está armado o problema de saber o que é o mínimo


e o que é o máximo. O moço rico que veio ao encontro do Senhor
queria a perfeição, a mesma a que Santo Antão se oferece; mas
desejava-se equilibrar entre a riqueza na terra e a riqueza no céu.
Não digo que ele fosse um calculador, dessa espécie ridícula que
julga ser possível enganar a Deus. Lá diz S. Marcos que Jesus o
amou depois de o ter olhado dentro dos olhos. Enganar ele não quis.
O que ele vinha buscar era a mesma vida eterna dos santos. E
certamente alcançou o que buscava, porque Jesus o amou. Mas,
naquele momento de sua vida terrena e carnal ele foi um calculador,
sim, um mau calculador, porque não soube distinguir a nova luz que
subverte todos os valores, transformando o mínimo em máximo, e o
máximo em mínimo.

O monge, ao contrário, é o homem para quem começa, a partir de


sua opção, a vida subvertida das bem-aventuranças. Ouve e
obedece. Vê o máximo no mínimo. Decifra a cruz. As terríveis
palavras cruzadas do evangelho. Segue a Cristo. Segue-o passo a
passo, de perto, deixando pai, mãe, terras, bois e vinhas, porque um
só é bom.
:
4. Ida e volta

Aliás, nessa impetuosa partida, sob a claridade de um novo dia, o


monge descobre que está trilhando um caminho de volta. “Redire ad
Deum”: eis aí um resumo da vida monástica. É uma volta a Deus pelo
caminho mais curto da forte obediência. É uma aventura, como
aquela a que o bom humorista alude muitas vezes, glosando a seu
modo as palavras evangélicas.

E agora vejo que cometi uma imperdoável omissão. Lá no capitulo de


um livro, em que enumerei alguns dos oitenta volumes que era
possível escrever sobre a simples idéia de volta, não mencionei o
“Redire ad Deum” do monge que, permitam-me a imagem, é rápida
e fogosa como a do cavalo que sente aproximar-se a paisagem
familiar que circunda a casa do senhor.

5. As promessas de Deus

Acrescento mais um traço a esse esboço que estou tentando,


valendo-me da continuação daquele texto de São Mateus. Nos
versículos 27 e 29 do mesmo capitulo lemos: “tomando Pedro a
palavra, disse-lhe então: Eis que tudo deixamos para seguir-vos; e
agora, o que acontecerá conosco? Jesus lhe diz: Em verdade vos
:
digo, quando o Filho do Homem sentar-se em seu trono de glória,
vós que me haveis seguido, vos sentareis também em doze tronos e
julgareis as doze tribos de Israel. E quem tiver deixado casa, irmãos,
irmãs, pai e mãe, filhos e campos, por causa de meu nome, receberá
o cêntuplo, e possuirá a vida eterna”.

De onde eu concluo, nesta face que agora lhe vemos, que o monge é
o homem que leva muito a sério as promessas de Deus. Em outras
palavras, sua vida se desenrola perto e diante das últimas coisas.
Seu caminho de perfeição é um estado, seus meios têm as marcas
nítidas do fim, transformando-se o conselho em preceito, e sendo
esse novo preceito uma regra, como se pode verificar nas primeiras
linhas da Regra de São Bento: “Escuta, ó filho, os preceitos de um
mestre...”

Os descendentes de Bento, Basílio e Pacômio são homens


escatológicos que vivem “em pé diante do Senhor”, atentos,
vigilantes, de cintos amarrados, lâmpada acesa, prontos para correr
ao encontro do Esposo. De todas as palavras da Sagrada Escritura
as que mais lhes concernem são as últimas: “Vinde, vinde Senhor
Jesus”.

Ou então, as palavras da esposa no Cântico dos Cânticos: “Eu


durmo, mas meu coração vigia. É a voz do bem amado. Ele bate...”
:
6. Vida nova

O que ficou dito até agora não basta para marcar uma diferença
essencial entre o estado do monge e o que a Igreja preceitua para
todos os batizados. O moço do evangelho, fugindo embora ao
caminho do conselho, já escolhera o bom caminho. Não se pode
dizer, creio eu, que desobedecera ao Senhor, mas que não largara as
rédeas ao ímpeto da forte obediência. E é em torno deste ponto que
se estabelece uma diferença entre ele e o monge. Antão, Paulo,
Macário, foram monges, porque ouviram melhor, descobriram a nova
lei do máximo e do mínimo, levaram a sério as promessas, viveram
as bem-aventuranças e voltaram a brida solta para a casa de Deus.

É evidente pois que o monge, a partir de sua decisão, passará a viver


uma vida nova. Uma nova conversatio, como diz a Regra de São
Bento. Seus costumes, suas atitudes, seus julgamentos, sofrerão
profundas modificações sob a nova luz que torna transparentes as
coisas do mundo para a expectação da última realidade. E, como o
característico desse estado consiste mais nos meios do que no fim,
é fácil prever que as tentativas feitas através dos tempos, pelos
eremitas e cenobitas (não falando nos sarabaitas e nos girovagos),
serão diversas e por vezes esquisitas. Este, ouvindo dizer que
tomasse sua cruz, vai corta duas traves, passando a andar pelos
caminhos com uma concreta cruz a lhe pesar nas costas. Aquele
outro irá para o deserto. Muitos praticarão macerações prodigiosas.
Mas debaixo dessa variedade de métodos vê-se que a nova vida, a
conversatio dos monges, tem um centro bem marcado: um só é
bom. A própria esquisitice dos meios serve para realçar a constância
do fim; e daí tiramos um traço a mais dizendo que o monge procura,
:
na confusão do mundo, aqui e agora, o que somente no céu se pode
desfrutar de modo perfeito: a unidade.

Etimologicamente monge vem de monos, um, no sentido de solitário.


Podemos agora tomar a raiz do vocábulo em sentido mais espiritual
dizendo que monos é unidade, e que o monge, como Maria, procura
centrar a nova vida em torno do único necessário.

7. Integridade

Quem diz unidade diz não-divisão. Ora, o casamento é uma divisão (I


Cor. VII, 33). O homem casado é dividido, tendo de cuidar das coisas
do mundo e de agradar a sua mulher. O “único necessário” não pode
pois ser realizado no casamento senão indiretamente, através de
recíprocas dificuldades e por meio da santificação mútua. Os
cônjuges não podem sequer dispor dos próprios corpos, nem estão
livres de formular promessas porque, no vínculo que os prende,
mesmo um juramento a Deus seria um perjúrio. Ou, se liberta, por
outro lado embaraça; se completa, também divide; se satisfaz,
também satura.

Mas não são essas desvantagens que impedem o casamento dos


monges. Não se trata aqui de uma questão de conveniência ou de
legislação, como no caso do celibato dos padres. A discussão sobre
as vantagens ou desvantagens da divisão só tem algum valor nos
:
momentos que precedem a escolha. Depois, já não cabe dizer que o
matrimonio é desvantajoso para o monge, porque sua escolha exclui
essa possibilidade. Há duas doações possíveis e uma exclui a outra,
pois de outro modo não seria uma doação.

E, se a vida de família, fundada no amor humano, tem agasalhos e


doçuras; se é bom muitas vezes ser dois; se é reconfortante mirar-se
a gente no espelho de um rosto amigo, que tem seguranças de mãe,
mimos de filha e ternuras de esposa; se é bom ter um corpo
prolongado, destacado, que anda pela casa, e vai, e vem, separado e
distante, seu e outro; se uma das maiores alegrias do mundo,
legítima, abençoada, desejada, exigida por Deus, é a de ver ao redor,
pela casa, uma porção de carinhas parecidas, nariz de um, olhos de
outro, como se nossa divisão se transformasse numa sub-divisão, e
andassem assim, vivos, inteiros, em torno de nós, a nos puxar pela
roupa, rindo, chorando, falando, as esquisitas somas de nossas
semelhanças, reflexos tornados carnes, e carnes nossas, nossas e
reflorescidas; se é possível, através da noite do mundo, um pouco de
calor e luz nesse acampamento em que o homem e a mulher se
entendam, gravemente, profundamente, santamente – mesmo assim
– admitida a mais perfeita compatibilidade e a mais harmoniosa
compreensão – mesmo assim o casamento, isto é, a convivência
conjugal, exclui a convivência monástica.

Aqui dividem-se os caminhos. Dividem-se as vidas. E o monge


escolhe a vida nova da unidade, sendo íntegro na sua doação,
indiviso na sua entrega, virgem no seu amor, uno, monos, e
verdadeiramente solitário.
:
Não pelo gosto da privação e do sacrifício; mas pelo gosto de seguir
o Cristo Jesus.

8. Voto e consagração

Mas a idéia de nova vida sugere logo a de um novo nascimento.


Haverá pois um ato, um feito, um gesto, que marquem de modo
inconfundível o momento dos primeiros passos. Volta ou partida, ou
um pouco ambas as coisas, o caminho do monge será marcado
nitidamente em seu início. Não podemos imaginar uma
transformação gradativa. Se o moço do evangelho quisesse ser
monge aos poucos, vendendo um boi por semana, ou um alqueire de
terra por mês, é pouco provável que levasse a empresa a bom termo.
Se é vida nova, novo é o nascimento. É preciso nascer de novo,
como disse Jesus a Nicodemus.

Mas o cristão já nasceu de novo, para a vida eterna, pela água do


batismo, não podendo assim a entrada na vida monástica ser um
segundo batismo senão alegoricamente. O batismo é um só.

Que caráter terá então esse limiar que o monge atravessa para a sua
nova conversatio? Entre Antão e o moço que voltou contristado não
pode existir a mesma diferença que separa um pagão de um
batizado, um sacerdote de um leigo. Os sacramentos são sete. Não
há outro sinal, que opere o que significa, e que sirva para marcar a
:
transição para a vida monástica. Não há diferença de caráter entre
um secular e um monge.

Por outro lado, porém, o estado do monge difere profundamente da


atitude de um cristão que formula bons propósitos. E difere,
justamente porque é um estado. Para Santo Tomás, o que marca
esta transição é a solenidade dos votos, pela qual se distingue o
simples voto (que é uma promessa, isto é, qualquer coisa de
potencial) do voto solenizado que é uma entrega total (II-II, Qu. 88,
art. 7). E esta solenidade não consiste somente nos gestos visíveis
dos homens, mas em “algo de espiritual em que Deus mesmo se
empenha, isto é, numa benção ou numa consagração espiritual”. Dir-
se-ia que o voto solene é maior e mais decisivo do que a simples
promessa pelo fato de ser, não apenas um compromisso a ser
cumprido um dia (como um noivado), mas uma atual e plena doação
(como um casamento) que a Igreja recebe e em que ela mesma
determina as condições. Para Santo Tomás a consagração ou a
benção solene não é a causa do estabelecimento no estado
monástico. É o sinal. Mas um sinal espiritual com que a Igreja
designa aquele que, por ela, se entrega a Deus definitivamente.

Este problema está longe de ser uma questão encerrada. Disputa-se


ainda em torno do conceito de voto, solenidade e consagração, não
estando ao meu alcance desenvolver agora as sutilíssimas
dificuldades em jogo.

Seja porém qual for o constituinte formal do estado religioso, resulta


sempre que o monge, a partir da profissão solene e da consagração,
:
está totalmente entregue a Deus. E cumpre notar aqui, para bem
apreendermos a importância desta doação, que o monge, de tal
modo crê nas promessas de Deus que se antecipa a elas, digamos
assim, atualizando suas próprias promessas, trocando o invisível
pelo visível, e o prometido pelo possuído. Por outro lado, porém,
Deus não se deixa vencer em generosidade por ninguém. Se o
monge avança é porque a graça de Deus o move, sendo sempre do
Espírito Santo a primeira moção; e também, se o monge abandona o
possuído, recebe no mesmo momento, não o cêntuplo que o espera
no céu, mas as abundantes bênçãos que o amparam na terra.

II - INTERMEZZO ANGUSTIOSO

Nas linhas que ficaram para trás andamos a perseguir uma definição.
Sentindo que ela ficou imperfeita, discutível e abstrata, e que nem de
longe recobre o mistério da vida monástica, debruçamo-nos agora
sobre os textos que contam as histórias extraordinárias dos monges
antigos. Corremos os olhos pelos feitos de um Basílio ou de um
Macário; pasmamos diante de um Simeão Stilita no alto de sua
coluna; detemo-nos a considerar a luta de um Hilário que durante
vinte e tantos anos fustiga as paixões de sua mocidade.
Acompanhamos Crisóstomo na sua caverna; Atanásio, no seu exílio;
e Marcela, e Paula, e Fabíola as grandes matronas de Cristo; e
Jerônimo que impressiona tanto pelo que faz quanto pelo que conta;
:
e tantos outros cujas histórias nos empolgam, nos espantam e – por
que não dizer? – nos assustam e nos entristecem. Se muitas vezes
essa leitura revigora a alma, noutras vezes, quando menos se
espera, por causa de nossa fadiga, ou por termos apostado demais
nos recursos da imaginação, sentimos que nos invade uma
sufocante tristeza.

A julgar por aqueles exemplos, a separação entre o conselho e o


preceito nos parece um abismo. O evangelho se parte em dois,
como se aqueles loucos tivessem esgotado toda a seiva deixando-
nos a palha. O fio da tradição parece partido, pela falta de nexo entre
a vida extraordinária dos Padres do Deserto e a vida ordinária que
vivemos.

Tão grande é a diferença dos meios que nos assalta a desesperada


idéia de uma profunda diferença entre os fins. “Muitos serão
chamados e poucos os escolhidos”. Como poderá um de nós, na
vida familiar, na profissão, na política, - na vida quotidiana apagada e
monótona – correr na mesma pista daqueles atletas? Como
poderemos aspirar ao mesmo prêmio? Como poderá a mãe de
família desejar a mesma coroa de uma Paula, que deixa pátria, família
e filhos, para procurar o chão da Terra Santa os traços da passagem
de Deus? Como poderá ser medida a perfeição, isto é, o fim, com o
mesmo côvado, se é tão desigual a medida dos meios?

O monge, a bem dizer, nos assusta ainda mais do que o mártir. O


extraordinário deste está na morte; o daquele na vida. O martírio
violento e rubro dos perseguidos se nos afigura mais razoável, mais
:
acessível, mais possível, do que o martírio lento e incolor dos
solitários. Um circo com leões é mais compreensível do que uma
caverna sem leões. Os apupos de uma platéia selvagem, mais
suportáveis do que a acabrunhante ausência do contato humano,
que até mesmo no ódio nos ampara.

Essas reflexões são insensatas. Os evangelhos têm respostas para


cada situação da vida; o preceito é santo; os caminhos são vários; as
moradas são muitas na casa do Senhor. Mas o fato de lá nos
evangelhos estar escrito o convite premente ao caminho mais curto,
e o fato histórico e incrível de muitos o terem palmilhado, deixa-nos
n’alma uma pesada angústia. Que? Não estaremos nós aqui, com
essa escolástica distinção entre preceito e conselho, tecendo
sofismas para fugir ao chamado de Deus? Não estaremos nós aqui,
como os moços ricos de todas as épocas, a imaginar uma
desmesurada agulha ou um microscópico camelo?

Ademais, a Igreja instituída por Deus estava completa com os bispos


e o povo. Onde inserir o monge na escada de Jacob? Há os pastores
e as ovelhas; a hierarquia e os fiéis. Onde meter o monge? De que
lado? Em que linhas? Se não têm ordens, é conosco, com os leigos,
que estão. Mas, logo reaparece a dificuldade quando observamos
que a vida extraordinária dos Padres do Deserto tem tudo, dir-se-ia
intencionalmente, para nos separar. O caminho deles nos assusta,
não somente por ser íngreme e rápido, mas por sugerir – tamanha é
a diferença – um termo diferente. A violência do conselho ataca a
essência do preceito, e tudo se afigura como se a perfeição, a
caridade, Deus, só pudessem ser atingidos pelas cinzas e pelas
macerações e pelas santas extravagâncias dos eremitas.
:
A palavra dos evangelhos, insistentemente gravada em Mateus, em
Marcos e em Lucas, soa em nossos ouvidos distantes e vaga como
as vozes em sonhos: “si vis perfectus esse...”.

E nós – que temos casa, família, filhos, livros, vitrola, etc. – nós
voltamos contristados.

III - SÃO BENTO

1. Fulgens radiatur

Ora, em meio dessa angústia, obscura, fulge radiosa a obra


conciliadora de São Bento. Antes de Santo Tomás, o mais tomista e
sensato dos santos vem mostrar praticamente a firme conexão entre
o extraordinário e ordinário, entre a aventura e a estabilidade, entre
os horizontes do deserto e as paredes do mosteiro. E essa paradoxal
proporção do que parecia desproporcionado, essa audaciosa
analogia ele a realiza em sua própria vida. Entre a caverna de
Subiaco e o mosteiro de Monte Cassino, São Bento traça com mão
robusta a linha da tradição. Entre os espinheiros do monte e a Santa
Regra, São Bento liga numa só linha o caminho da perfeição. A
:
violência torna-se discreta; os instrumentos adaptam-se ao homem;
o mosteiro, sem nenhuma diminuição de sua austeridade, reconcilia-
se com a cidade cristã.

Foi por ouvir os homens que Bento desceu de sua solidão, e Deus
quis provar a caridade do eremita consentindo na dura decepção de
sua primeira experiência entre os homens. No dia em que os maus
filhos de Vicovaro planejaram o parricídio, e concertaram os
detalhes, e deitaram veneno no vinho que ofereceriam ao pai, houve
certamente, como na história de Job, um tremendo diálogo entre
Deus e o Príncipe das trevas. Uma aposta entre os céus e os
infernos. E Deus aceitou o desafio.

E agora ali está o Judas tonsurado, que se curva pedindo a benção,


e que oferece ao abade a bilha de vinho envenenado. A história é
conhecida: o sinal da cruz vence as forças do inferno e, diante dos
lívidos assassinos, a bilha se quebra.

Mas o desejo de Satã não visava simplesmente a morte de Bento.


Que lucraria ele com a morte de um santo? Que parte poderia ter o
condenado nas alegrias do céu? Outro era seu plano. Outro era o
objetivo de seu desafio. A dúzia de almas que já colhia naquele
motim de monges era um detalhe, um nada, um palito para a sua
insensata fome de almas. O que ele queria, creio eu, era que Bento
descresse definitivamente dos homens. Não de Deus. Isto, eu penso
que ele não ousava esperar. Mas que desanimasse do homem, por
causa dos homens; que desprezasse a condição humana, a essência
do homem, a humanidade do homem que o Cristo aceitara e com
:
seu sangue resgatara. Este era o plano do Demônio.

Em outras palavras, ele queria destruir no germe a obra que já


farejava. Queria destruir Monte Cassino. Planejou adiantado; mas
chegou atrasado. Gastou mil e quatrocentos anos. Teve de mobilizar
todos os seus grandes recursos: animando Lutero, inspirando Hitler,
inventando a cruz quebrada (em desforra da bilha quebrada pela
cruz), propagando no mundo uma filosofia que descrê do homem,
em nome do super-homem, endurecendo com o ruído das metralhas
os ouvidos dos soldados, que vinham de outras terras, arrancar a
swastica das terras da Itália, arregimentando as traições, as
insatisfações, os recalques e todas as muitas espécies da
imbecilidade e da felonia.

Conseguiu derrubar as paredes do mosteiro. Monte Cassino já não


existe. Monte Cassino foi reduzido a escombros. Mas duas coisas
sobraram: a cripta onde os despojos do santo esperam a
ressurreição; e a obra imorredoura que, mais do que nunca, fulge
radiosa.

2. A obra civilizadora

Chamado novamente por outros discípulos, depois da sombria


experiência de Vicovaro, São Bento torna a obedecer à voz de Deus
pronunciada pela penúria dos homens. E com o claro gênio, somente
:
igualado por seu filho adotivo Tomás, que ele cede a Domingos e
retoma na hora da morte, Bento traça as bases singelas e robustas
do monaquismo estável sem imaginar talvez que, na
superabundância de sua abadia, estava incluído o que hoje
chamamos civilização ocidental. O que ele fundava era uma casa de
família, ou uma escola do serviço de Deus. O que ele fundamentava
era um estado de perfeição em que a ousadia e a discrição se
adaptavam aos arroubos do espírito e às fraquezas do corpo. Mas
indiretamente, sem o querer, pela difusiva força do que é bom, São
Bento amarrava fortemente as duas pontas quase partidas da
tradição, ligando a vida prodigiosa dos santos do deserto às
capacidades de nossa vida quotidiana. E, em conseqüência disto,
sua obra foi fortemente civilizadora.

Pela simples presença, mais do que por uma série de operações


calculadas, o mosteiro fertilizava e civilizava. Como o cristal de
arestas rígidas e faces límpidas faz com que tudo, dentro da água
salgada, se ordene e cristalize, assim também, pelo exemplo da
forma, pela dureza das arestas perdidas, o cristal de Monte Cassino
precipitou as salinas do mundo ocidental. Por acidente, evangeliza
enormes regiões. Batiza os anglos. Converte os germânicos. Enche o
mundo de heróis. Povoa a Igreja de santos. Pela simples presença,
sendo o que é, uma abadia, casa de orações, statio de perfeição,
família, escola de serviço de Deus, sem planos de conquista e sem
planos de expansão, sendo o que é, Monte Cassino acende um farol
que orienta as hordas bárbaras, mostrando àqueles violentos o
caminho da menos defendida das fortalezas: a casa de Deus. E os
bárbaros se tornam monges, mansos como cordeiros. E os romanos
de fina estirpe ombreiam na salmodia com os hirsutos e rudes
germanos, cujo olho azul viera buscar, através de léguas e léguas de
caminho, por florestas e montes, por travessias de torrentes
:
furiosas, por neves e calmarias, a luz de uma vela sobre o altar.

3. Ser, estar, ter e fazer

Se alguém tivesse dito a Bento, no dia em que ele tomou o caminho


de Monte Cassino, para fugir com seus filhos à inveja de Florêncio,
que sua obra se destinava a salvar a cultura clássica e a fundamentar
uma nova civilização, o santo ficaria muito espantado. E assustado.

O que ele tinha em mente era uma obra simples que se destinava
primordialmente a ser o que era. Das operações e das aplicações
extrínsecas desse patrimônio, que assim formava, o patriarca
certamente não cuidava. E foi justamente por isso, pela solidez de
sua própria natureza, e pela ausência de qualquer programa prévio
de apostolado e civilização, que as abadias beneditinas tiveram
sempre disponíveis enormes forças de fecundação para cada época.
Quando um grande papa, filho de Monte Cassino, planeja e organiza
nos mínimos detalhes a expedição evangélica à terra dos anglos, lá
estavam os monges para servi-lo, menos por alguma aptidão
especial às viagens do que pelo simples fato de lá estarem.

E não terá sido por mera coincidência que Tomás saiu de Monte
Cassino, para buscar no itinerário traçado por Domingos, uma
prodigiosa aplicação do patrimônio beneditino. O ser que o monge é,
Santo Tomás o aplicará, suberabundantemente, mugindo através
:
dos séculos; e quando tiver espalhado todas as sementes recebidas,
voltará ao ponto de partida, ao monte santo, e morrerá como uma
criança de quatro anos no regaço duma abadia.

E não será também por mera coincidência que Francisco, o mais


atraente e convincente doido de Nosso Senhor, foi procurar nos
espinheiros do Subiaco o antigo segredo para vencer a rebeldia da
carne.

E hoje, graças a obra de São Bento, que continua, e que se articula


na multiplicidade de outras obras, tendo atravessado a obscuridade
medieval, e a claridade medieval, sob o agudo olhar de Santo Tomás,
e sob o ardente olhar de São Francisco, continuando sempre,
transbordando sempre, com fortes oscilações de nave que atravessa
mar grosso, jogando nas ondas, entre Cluny e Clairvaux – hoje,
graças a essa obra continuada e mantida, nós podemos ler sem
sustos as vidas dos padres do deserto, porque está aberto e
desbastado o imenso campo das analogias, que veio enriquecer a
obediência ao conselho evangélico.

São Bento, com seu incomparável exemplo prático, libertou-nos do


univocismo, aproximando o que parecia distante e irreconciliável. O
extraordinário é inserido no ordinário. Ao quotidiano monástico,
substancia da nova conversatio beneditina, corresponde o nosso
quotidiano na vida familiar e profissional. A “petite voie” do grande
monge refloresce na santidade moderna de Santa Teresinha; e a
pedra transforma-se em rosas.
:
E nestes tempos angustiados, em que todos procuram o segredo do
homem no ter e no fazer, volta São Bento a ensinar nos seus montes
santos multiplicados pelo mundo, que o segredo fundamental do
homem está no ser e no estar. O grande problema do trabalho, em
torno do qual se enrola hoje um torvelinho de falsas doutrinas, como
assinalou o Santo Padre em sua encíclica, em nenhuma obra humana
está mais dignificado do que na legislação beneditina. E creio não
me enganar dizendo também que a Ação Católica só poderá
produzir bons frutos na medida em que a participação no apostolado
da hierarquia imitar a grande linha tradicional dos monges. Penso,
em suma, que o mundo cristão de nossos dias, se não compreender
o que é o monaquismo, ou não apreender o sentido do ser e do
estar, perder-se-á num ativismo insensato. Já pairam sombrias
dúvidas acerca do que o homem é, tornando-se dia a dia o que tem
e o que faz, como se essa infeliz criatura se tivesse tornado tão
excêntrica que andasse a correr no encalço do próprio coração.

4. O exemplo do abade

Sobre as possíveis aplicações do patrimônio no mundo moderno


poderíamos escrever muitos volumes. É impossível, creio eu, pensar
numa re-cristianisação dos povos sem esse elemento, que nas
situações mais criticas da história firmou a Igreja. Não digo isso
somente por causa do benéfico exemplo de vida austera e pobre,
que os monges trazem à cidade. Nem tampouco me refiro à invisível
ação da chuva de orações que caem sobre os nossos telhados.
:
Entre a ação puramente moralizadora, e aquela devida à
reversibilidade dos méritos na comunhão dos santos, há uma ação
mais específica que consiste na reestruturação da sociedade.

Abrindo a Regra de São Bento, no segundo capítulo, onde trata do


Abade, encontramos duas vezes uma misteriosa expressão que
ilustra bem a nossa idéia. “O abade – diz a Regra – deve se lembrar
sempre do nome que lhe dão”.

Esse preceito estruturador, trazido para fora da clausura, aplica-se a


cada um de nós, ao presidente da república e a mim, como uma
advertência de responsabilidade, e como um fundamental artigo de
fidelidade à condição humana.

5. O oblato

Neste ponto quero apresentar um personagem obscuro, e de


esquisito nome, que poderá ter grandes préstimos de apostolado,
enquanto souber imitar o mosteiro e o abade, lembrando-se sempre
do nome que dão. Refiro-me ao oblato.

Não é propriamente um monge. Não veste o hábito nem pronunciou


os votos solenes. Ou melhor, usa no peito um pedaço do hábito; e
:
guarda na memória o que prometeu, diante do abade: realizar na
cidade e na família uma conversatio análoga à dos monges; sendo
assim um pedaço do mosteiro, espécie de diástase espiritual, que
leva pelas ruas da cidade, não somente o exemplo moral, mas a
semente do ser monástico. É um pequeno mensageiro. Um modesto
colonizador. Sua ligação concreta e freqüente com a abadia facilita a
circulação da seiva que pode vivificar a cidade. Ele desce e sobe a
ladeira do monte santo, num ritmo mais rápido do que os monges,
indo e vindo, trazendo e levando, como um pobre cão de pastor no
meio de um rebanho anarquizado. Ladra às vezes com raiva; uiva às
vezes com melancolia; mas procura, o pobre coitado, ser fiel ao
nome que lhe dão. E, como aquele cachorro pintado nos anúncios
das vitrolas, conhece a voz de seu Senhor.

IV - MILES STATARIUS

1. A Regra

Não foi São Bento o inventor do cenobitismo. Muito antes dele, no


tempo de Santo Antão, já era costume reunirem-se os discípulos em
torno de um mestre a fim de procurarem o caminho da perfeição na
vida comum. Nos Atos dos Apóstolos encontramos um quadro de
singelo cenobitismo: “Todos os que tinham fé viviam juntos e
:
possuíam tudo em comum; vendiam seus bens partilhando (o
produto) entre todos conforme a necessidade de cada um. Todos os
dias, com o mesmo fervor, assíduos no templo, e partindo o pão em
casa tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração,
louvando a Deus e tendo o agrado de todo o povo. E o Senhor
acrescentava à massa, cada dia, aqueles que estavam salvos” (Atos,
II, 45-47).

Não foi também São Bento o primeiro a escrever uma Regra para os
monges. Antes dele, São Pacômio e São Basílio já haviam legislado
para comunidades religiosas.

Mas foi São Bento, certamente, que firmou o cenobitismo nas bases
em que até hoje se mantém. O comentário da Regra Beneditina
publicado sob os auspícios da abadia de Maredsous assinala três
elementos que para o comentador são características da obra de
São Bento. O primeiro é a precisão. Sua regra é clara e nítida. O
postulante, desde os primeiros dias, conhece “sob que lei vai militar”,
e sabe muito exatamente que compromissos toma a fazer a
profissão. O segundo elemento é a discreção. São Bento, com efeito,
não exige nenhuma austeridade extraordinária, prevê o alimento e
sono suficientes, divide as horas entre a oração, o trabalho manual e
a leitura, não sendo sua Regra concebida, nem para os heróis da
penitência, como a de São Columbano, nem para uma elite
intelectual, como a de Cassiadoro. Em suma, ele espera não
prescrever nada de rude nem de penoso em demasia. O abade deve
levar em conta a fragilidade terrestre, dispondo as coisas e
distribuindo os trabalhos com moderação e discernimento, de modo
que as almas se salvem, que os fortes desejem fazer mais do que se
:
lhes pede, e que os fracos não desanimem.

Mas é o terceiro elemento assinalado por aquele comentador, a


estabilidade, que marca de modo decisivo a obra de São Bento. Logo
no primeiro capitulo da Regra, ele analisa as quatro espécies de
monge e faz o elogio da forte raça dos cenobitas, isto é, dos que
vivem em um mosteiro, militando sob uma regra e um abade. E nesta
definição já estão contidos os elementos que constituirão os objetos
de voto: estabilidade (no mosteiro): conversatio morum (regra);
obediência (abade). Pode-se entretanto dizer que é no voto de
estabilidade que está a chave do monaquismo ocidental.

2. Sto, stare, stans

No sentido literal, estabilidade quer dizer permanência no mosteiro.


Significa fixidez, incorporação para sempre numa família. Mas o
sentido espiritual dessa palavra deve ser bem apreendido para
podermos avaliar, em toda a extensão, a obra do patriarcado do
ocidente.

Hoje, quando se diz estabilidade, a primeira idéia que nos acode à


mente é a de um modelo mecânico. Pensamos numa ponte, num
edifício, numa pedra solidamente assentada sobre sua base. Se
tomarmos um livro, por exemplo, direi que ele fica estável quando o
coloco deitado, de modo que o centro de gravidade esteja
:
amplamente inscrito no polígono de sua projeção horizontal. É
estável quando não pode cair.

Ora, a raiz daquele vocábulo tem uma origem com sentido diverso e
quase oposto. Essa palavra, que hoje tiramos da pedra para aplica-la
figuradamente ao homem, foi na origem tirada do homem e aplicada
às vezes, figuradamente, à pedra. Realmente, se pedirmos à ciência
dos filólogos alguns dados de empréstimo, veremos que o termo
latino stabilitas vem do sânscrito stâ, que significava estar em pé.
Segundo F. Bopf (Grammaire comparées de langues indo-
européennes, trad. frac.) o verbo sânscrito era da 1ª conjugação
principal, sendo tistâmi a primeira pessoa do indicativo presente, de
onde, provavelmente, deriva o latim testis, testemunha, lembrando o
sujeito que se levanta para depor.

No “Tostius Latinitatis Lexicon” de Forcellini, colhemos no verbete


sto o seguinte: stare ritto, o in piedi... opondo-se a sedeo e iaceo, e
com os sentidos figurados de ficar firme, permanecer, durar, etc.
Nota-se pois que o sentido próprio estava ligado à posição erecta do
homem e que o sentido figurado incluía atitudes morais de firmeza e
vigilância. Escolhendo uns poucos exemplos entre mil, temos no
sentido próprio, em Plauto: “Hos quos videtis stare hic captivos
duos, hi stant ambo, non sedent” (Cpt. Prol. v. 1) - “Estes dois
cativos que vedes aqui em pé, ambos estão de pé, e não sentados”.
Em Cícero: “Qui ausi aliquando sunt, stantes loqui...” (Bruto c. 77) –
“Que às vezes ousaram falar de pé...”. No sentido figurado temos em
Virgílio: Apud memores veteris stat gratia fact” – Mantêm-se gratos
pelos benefícios recebidos. Em Cícero: “Stare in fide” – Permanecer
fiel. E num sentido duplo, físico e moral, temos Suetonio:
:
“Imperatorem ait statem mori oportere” – O imperador deve morrer
em pé. E em Tito Lívio “miles statárius” é o soldado que combate em
pé, ou que não arreda do posto.

Vê-se pois que stare está ligado estreitamente à posição do homem,


derivando daí, quer no sentido moral aplicado ainda ao homem, quer
na designação de coisas que imitam a posição vertical do homem.
Estátua, por exemplo, deriva do mesmo radical, mas aplicava-se
somente à figura do homem de pé. Estátua eqüestre não podia ser
dito em latim, a não ser que se tratasse do Iniciatus que era ao
mesmo tempo cavalo e senador.

A posição vertical do homem foi sempre sentida como um glorioso


paradoxo, símbolo da excepcional situação desse misterioso ser
dentro da criação, resultando disso a enorme fecundidade desse
radical e sua imensa repercussão no campo das questões
espirituais. Entre os gregos o fato de ficar de pé era tão importante
que justificava a invocação de um deus especialmente propício às
crianças que pela primeira vez se firmam nos pés. Encontramos em
Santo Agostinho (Civ. Dei. lib. IV, 21) uma alusão aliás sarcástica, a
esse pluralismo dos deuses pagãos: “Que necessidade há de
recomendar à deusa Opis aos recém-nascidos, ao deus Vaticanus a
criança que chora, à deusa Cunina a criança que adormece, à deusa
Rumina a que mama, e ao deus Statilinus o que se firma nos pés?”

Estou com Santo Agostinho que eram deuses demais, os que


rondavam a vida de um garotinho em Atenas, mas de todos aqueles
o que mais se justificava era, sem dúvida, o que trazia no nome o
:
antigo radical que simboliza a atitude maior do homem.

Aliás, consultando a Table des Racine do Dictionnaire Grec-Français


de Bailly, encontramos o mesmo radical stô para ter-se em pé, com
uma série de derivações semelhantes às latinas. Coluna, por
exemplo, é stéle ou stylos, porque a coluna não somente é vertical
como de certo modo lembra a nobre função humana de firmar e
agüentar. Mais tarde voltará ao homem o símbolo dele saído, quando
Paulo dirá que os apóstolos são as colunas da Igreja, provando assim
que, para os antigos, a força das coisas mecânicas era, em última
análise, uma força do homem.

Mas é nas Sagradas Escrituras que os derivados de stô ganham um


especial relevo e um forte sentido espiritual. São Paulo aos Coríntios
(I, XV) diz : “Stabiles stote, et immobiles”. Acrescentando também:
“Itaque qui se existimat stare, videat ne cadat” – Aquele que se julga
em pé, olha lá que não caia. E São Pedro, na primeira epístola (V, 8)
aconselha a vigília nestes termos: “Sobrii estote et vigilate...” que a
Igreja adotou para a oração da noite, num curioso paradoxo que
convida o homem a stare justamente quando vai se deitar.

E com estes exemplos, depois de uma aventura penosa pela ciência


que não é de nosso ofício, descobrimos que estável, no sentido
clássico e escriturístico, dá ao mesmo tempo idéia de firmeza e de
possibilidade de queda; ou melhor, sugere a firmeza própria do
homem, sua condição, a verticalidade de seu corpo e de seu espírito,
que é uma empresa com suas glórias e seus riscos. Dirá Santo
Tomás a respeito do conceito de estado (no sentido de situação
:
humana): “nomen status videtur ad quandam altitudinem pertinere”
– a palavra estado sugere a idéia de elevação.

E no grego dos evangelhos encontramos o mesmo radical num


objeto que marcou a atitude vertical do homem de um modo
particularmente significativo. Refiro-me à cruz, que em grego é
staurós.

3. Uma nova definição de monge

É mais que provável que, no tempo de São Bento, a palavra stabilitas


tivesse ainda vivas todas essas ressonâncias que lembram a
contradição do homem e da cruz. E, se estou certo, o voto de
estabilidade, ao mesmo tempo que significava a permanência física
no mosteiro, abrangia também o forte sentido da atitude
escatológica pela qual a vida monástica era um estar de pé diante de
Deus como se lê em Jeremias (XXXV, I-10): “Porque guardaste os
mandamentos de Jonadab, vosso pai, a raça de Rechab não cessará
de produzir homens que permanecerão sempre diante de pé de
mim, disse o Senhor”.

E aí está uma bela definição para o monge, trazendo-nos à mente o


nome daqueles soldados que combatiam de pé, e não arredavam de
seus postos: o “miles statarius”.
:
4. Uma lição de Santo Tomás

Voltando ainda uma vez à Suma descobrimos que as lições de Bento


e Tomás se harmonizam perfeitamente; e ainda uma vez verificamos
que esses dois santos possuíram a virtude do bom senso em grau
heróico. De fato, se Bento, na ordem prática, propõem como primeiro
objeto de voto a estabilidade, Tomás, na ordem especulativa,
começa o estudo do monaquismo pela consideração “De officiis et
statibus hominum in generali”. (II-II, Qu. 183, art. 1-4); e começa por
dizer que status evoca a idéia de estar de pé, citando Ezequiel: “Fili
hominis, sta super pedes tuos”. E logo acrescenta que dessa noção
deriva a de retidão e elevação. Mais adiante ensina: “Estado, no
sentido próprio, é uma posição particular, não qualquer, mas
conforme a natureza do homem”.

Deste modo a escolástica, mostrando que a vida do monge é um


estado de perfeição, confirma este sentido do voto de estabilidade
da Regra de São Bento, que se refere não somente às pedras do
mosteiro, como também à vigilância e à prontidão.

Mas, a atitude de vigília não é própria do monge. Não é exclusiva dos


mosteiros; sendo, antes a clássica atitude de todo o cristão. No caso
do monge, porém, ela se constitui em estado, tendo sido
solenemente prometida e solenemente aceita pela benção
:
consagratória da Igreja. E é neste ponto que o monge se separa de
nós para melhor guardar o tesouro da estabilidade e seus derivados.
Adaptada e aplicada à cidade, a lição beneditina e tomista é esta: o
homem não pode descuidar-se de seu prumo, não lhe convindo
adormecer nos sarcófagos das fórmulas de equilíbrio mecânico que
são o ópio do povo. O regime do direito e da justiça, a eqüitativa
distribuição de riquezas, isto enfim que chamamos democracia de
inspiração evangélica, é uma situação que deve procurar
constantemente o antigo stô da verticalidade humana, e aferir todos
os seus valores pelo prumo da cruz.

5. A sonolência

Pode-se dizer, de um modo geral, que a sorte da civilização – desta


arriscada civilização que desceu um dia de Monte Cassino –
depende da capacidade de vigilância dos homens. Temos uma certa
tendência ao sono. Em todos os sentidos. As pálpebras de nossas
pobres virtudes são pesadas. A terra, com seu zelo multiplicado de
mãe devorante, atrai-nos. Convida-nos ao torpor. Oferece-nos o
premio do nada. Prepara-nos um tálamo nupcial à sombra dos
ciprestes. Convence-nos, com todas as forças da matéria, que a
posição horizontal é mais estável que a vertical. Diz-nos que o
fatigante stare dos santos e dos soldados não merece o esforço que
custa. Que durmamos, e que deixemos a vida correr.

Nas suas mais modernas propostas, o materialismo político,


:
confessado ou disfarçado, incita-nos a um completo abandono de
nossas prerrogativas de verticalidade, estendendo-nos no chão um
lençol que será um sudário, sob as ramas venenosas de um Estado
que chama a si, absorvendo-o em si, o status do homem.

Despojam-se todos os seus prumos, e no piramidal e estável


monumento das demissões humanas, o Estado Total concentra em
si as forças que os antigos punham nas suas colunas, nos mastros
dos navios, e na cruz de Nosso Senhor.

Os fenômenos lingüísticos acompanham muito de perto os


fenômenos sociais, e não é de estranhar que o mais desumano dos
monstros modernos tenha guardado o nome, a palavra, a raiz, pela
qual os homens até hoje se distinguiram das bestas e das serpentes.
E isto aconteceu porque os homens se cansaram da fatigante
vigilância. A liberdade obriga à vigilância. A salvação obriga ao
revezamento do plantão, porque o leão ruge em torno de nós.

Num magistral estudo sobre a crise da civilização, Belloc assim se


refere ao profundo desespero da sociedade pagã greco-romana:
“Quanto mais avança esta civilização pagã em seu desenvolvimento
– um rápido desenvolvimento que a transformará e a envelhecerá
num lapso de três séculos – mais profundamente penetra nela esse
desespero. Sentimos isto na progressiva letargia que entorpece os
homens, na esterilização de seu poder inventivo e sobretudo no
refrão contínuo de sua literatura (...) Entre mil trechos magníficos
que poderíamos escolher para ilustrar a profundidade desse
abandono, recordemos estes versos escritos pelo mais patético dos
:
poetas latinos:

Soles occidere et redire possunt

Nobis cum semel occidit brevis lux

Nox est perpetua una dormiunda

“Devemos notar particularmente este ‘dormiunda’ – diz ainda Belloc


– com suas lúgubres vocais. O grito é de Catulo. A sociedade greco-
romana agonizava. Mas isto é a metade, e a menos importante
metade da verdade, pois é preciso acrescentar que ela morria de
desesperança. E foi então que apareceu no mundo uma força que
teve a virtude de transforma-la”.

Esta esplendida passagem de Belloc tem entretanto um defeito, a


meu ver: o de sugerir, pelo menos assim isolada do contexto, a falsa
idéia de que o cristianismo venceu definitivamente a sonolência do
espírito humano, ou melhor, a funesta idéia de que a ação
civilizadora do cristianismo tem uma eficácia própria, necessária,
mecânica, que dispensa nossa vigilância. O homem continua sob o
peso do pecado original, e continua a encher os séculos com seus
bocejos, e às vezes com os estertores de seus pesadelos.

Não é em Catulo, nem em outro poeta pagão, mas num moderno que
encontramos esta pequena quadra citada por Unamuno:
:
Cada vez que considero

Que me tengo de morir

Tiendo la capa al suelo

Y no me harto de dormir.

6. Dois cochilos terríveis

Aliás, falando em sonolência, convém lembrar que os apóstolos


dormiram em duas ocasiões inauditas. Na transfiguração, segundo
Lucas, e na paixão, segundo o depoimento de três evangelistas. No
momento em que Cristo quer mostrar aos discípulos um fulgor de
sua glória, “Pedro e seus companheiros estavam acabrunhados de
sono”. Mais tarde, em Getsemâni, diz o Senhor aos seus discípulos:
“Ficai aqui enquanto vou adiante orar”. E começando a sentir tristeza
e angústia diz aos seus discípulos: “Minha alma está triste,
mortalmente triste: ficai aqui; vigiai comigo”. E tendo avançado um
pouco, prostou-se com a face em terra, rezando e dizendo: “Meu
pai, se é possível, afasta de mim este cálice. Mas não como eu
quero; e sim como Tu queres”. Voltando aos discípulos encontrou-os
a dormir e disse a Pedro: “Então, não pudeste velar uma hora
comigo?” Vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito, em
verdade, é ágil, mas a carne é fraca”. E retirando-se pela segunda
vez tornou a rezar: “Meu pai, se não pode este cálice desviar-se sem
que eu o beba, faça-se a Tua vontade”. E voltando a eles, achou-os
:
ainda a dormir porque seus olhos estavam pesados de sono. (Mat.
XXVI, 43).

É terrível imaginar-se esse momento em que o Filho de Deus clama


ao Pai e suplica aos homens: “Fiquem aqui, velem comigo, pois
minha alma está mortalmente triste”. Mas, de certo modo, este
mistério doloroso lança uma luz sobre o mistério da incarnação,
ajudando-nos a compreender que Deus se fez homem para melhor
suplicar aos homens, como um homem. “Então, não pudestes velar
uma hora comigo?”.

7. Sentinelas do Cristo

Ora, o monge, no seu estado, na sua estabilidade, é aquele que ouve


o conselho de Deus Homem na súplica do Homem Deus. Sentinela
do Cristo, propõe-se suprir e resgatar a sonolência dos outros,
velando e orando. No voto de estabilidade física no mosteiro está
portanto incluída a idéia central de estabilidade no coro, em pé,
atento, expectante, pronto para correr ao encontro do esposo que
tarda, e que virá em meio da noite.

O Ofício Divino é portanto o centro da vida do monge, pois é aí,


nesse momento e nessa atitude, que ele melhor realiza seu estado.
O sentido da vigília transcende agora, no coro, o ascético cuidado de
não cair em tentação, e desabrocha, para além da paixão, no louvor
:
que à glória de Deus é devido. Entre o horto e as núpcias, entre os
terríveis jejuns de Clairvaux e o laus-perenne de Cluny, o monge
paga uma dívida e canta. Ele é o “amigo do esposo, que fica em pé”
na estabilidade da vigília e do louvor.

8. A civilização

Disse atrás, a propósito do radical stô, que o homem viu sempre na


sua vertical um símbolo de dignidade. Os diferentes fenômenos
lingüísticos – que apenas esbocei por me faltar o hábito do ofício –
mostram singular concordância com os sentimentos de exaltação e
angustia que, em todos os tempos, preocuparam o homem a
respeito de sua condição. Disse também, se não me engano, que a
vida moral é vigilância contínua, não havendo nunca, enquanto há
vida, um termo perfeito, uma conclusão, um arremate, um repouso.
Cada problema resolvido é um novo problema aberto; cada situação
atingida é uma nova situação iniciada; cada fim é um principio.
Freqüentemente, fatigados, mortalmente fatigados desse rosário
ininterrupto de problemas, atitudes e situações que só acabam para
começar, e recomeçar, e continuar, como as águas de um rio –
freqüentemente tentamos trazer para a vida, isto é, para esse plano
dos atos morais, o critério e os métodos próprios dos atos artísticos
ou técnicos. Metemos as mãos nessa massa espalhada e fluida
numa insensata tentativa de esculpir momentos de vida, que se
imobilizem num termo, como se quiséssemos erguer uma
encruzilhada dos tempos a nossa própria estátua. Ou tentamos
trazer para os minutos da alma os ritmos da poesia e da música.
:
E esse esforço, que parece provir de uma transbordante vivência,
porém, na verdade, de uma sonolência.

A vida conjugal, por exemplo, começou numa festa que marcava o


termo de uma vida e o começo de outra. A festa é um patamar da
vida. É uma estação. Mas a vida continua e a festa fica para trás,
num álbum, num véu guardado, numa flor murcha. E a vida continua,
com seu desafio quotidiano, fastidioso, minucioso, num desgaste
terrível das reservas de amor que o noivado acumulou. Ou, pelo
menos, das reservas desse amor que parece tecido de poesia e de
música. E a fatigada impaciência procura substituir a ininterrupta
vida conjugal por uma série de romances, inda que esses volumes
formem as obras completas da infidelidade. E, se ainda maior é a
impaciência, não possuindo sequer capacidade para a literatura de
fôlego, será a vida conjugal substituída por uma série de anedotas.

O que é difícil, na vida, é não substitui-la por coisa nenhuma. O que é


difícil, na vida, é manter-se o homem de pé, consciente sempre de
seu estado, atento sempre aos ventos do mundo que tentam verga-
lo, esse pobre junco.

Na política, que também exige do homem a mesma verticalidade


vigilante, e fatigante, quando o sono pesa nas pálpebras, procura-se
uma solução técnica e cômoda, uma nova estrutura que funcione,
desde que se lhe dê corda, como um maquinismo fabricante de
bem-estar. Projeta-se na prancheta de desenha a épura de uma
:
sociedade humana ou pensa-se transformar a confusa massa de
atores indisciplinados numa apoteose wagneriana. Ou então, passa-
se quinze anos a fazer da vida política uma série de anedotas.

Muita gente tem a ingenuidade de crer que a civilização é uma


inabalável conquista garantida pelas invenções da mecânica. Temos,
por exemplo, o automóvel, logo estamos definitivamente senhores
das distâncias. Temos a geladeira elétrica, logo estamos
definitivamente senhores do calor. Temos o radar, logo não haverá
mais trevas para nossos olhos. E assim por diante.

Ora, Civilização é uma coisa muito menos garantida do que parece.


O que possuímos, podemos perder. O que sabemos, podemos
esquecer. E, se estamos de pé, podemos cair. Nossos sucessos são
precários e constantemente disputados pelo Príncipe que tenta
impor ao mundo um direito de conquista. Revendo os últimos
acontecimentos salta aos olhos a fragilidade da civilização. Bastou
um cochilo, para transformar o mundo num monte de escombros;
bastou, entre nós, um colapso de vigilância política, para que a vida
pública de nossa terra se transformasse num prolongado Joujoux et
Balangandans, em que nos furtaram o que nós e nossos pais
havíamos conquistado: o pão, a carne, o açúcar, e o direito de voltar
para casa dignamente. Bastou para isso que altiva a raça dos
batizados se curvasse muito baixo diante daquilo que o homem de
Deus aprendeu, com a igreja de Cristo e dos santos, a sempre
considerar com desconfiança: o Estado. Porque essa entidade,
como seu nome indica, facilmente se torna monstruosa, e
dificilmente resiste à tentação de absorver em si toda a capacidade
humana de stare, isto é, de ser vertical e digna.
:
Civilização, na verdade, é estar em pé. Em cada momento histórico o
futuro do gênero humano depende da atenção vigilante e consciente
de cada homem. E por aí se vê que o monge é um elemento
civilizador sendo um campeão de vigília. Transferindo
analogicamente a estabilidade beneditina para o domínio da vida
política, teremos a força indispensável a esse regime que chamamos
democracia cristã, e que se caracteriza por uma viva consciência da
realidade moral e do primado da justiça.

O mundo moderno padece de um singular escurecimento. Já o


disse, diversas vezes, e torno a dizê-lo. O homem não se lembra mui
exatamente o que é. Não se lembra sempre, como o recomenda a
Santa Regra beneditina, o nome que tem. E é por isso,
principalmente por isso, que nossa civilização corre um grave perigo.
Estamos ainda dormindo tendo apenas passado, no fragor das
batalhas, da modorra tranqüila para um sobressaltado pesadelo.

A ciência que o homem tem de si mesmo está em crise. A pergunta


da esfinge é respondida com uma coleção de disparates. O homem
não sabe mais o que é.

Ora, entre outras coisas surpreendentes, e diria até chocantes, que


nossa fé nos ensina, temos esta: se quisermos saber mais
exatamente o que é um homem, devemos erguer os olhos para uma
mulher.
:
9. Stabat Mater dolorosa...

Em verdade, a Virgem Santíssima, em cujos pés deponho este


pequeno trabalho, que andei compondo e escrevendo durante o mês
de maio, o seu mês, é a coroa da criação. Primeira remida, e mais
perfeitamente remida, ela abriu com seu assentimento os caminhos
do preceito e do conselho. Foi ela, a bem dizer, a primeira virgem
consagrada e o primeiro monge. E é nela que encontramos realizada
de modo perfeito a estabilidade monástica.

Para nos convencermos disto, basta abrir o missal na Festa das Sete
Dores de Nossa Senhora. Logo no Intróito, a primeira palavra que
nos salta diante dos olhos é esta: “Stabant...”. Estavam em pé junto
da cruz, sua mãe, a irmã de sua mãe, etc. Vejam bem o diálogo
tremendo destas duas atitudes: o filho da cruz, de pé, pregado no
madeiro que tem aquele mesmo radical misterioso, a raiz do homem,
da sua vertical; e a mãe, e mais as outras três mulheres, de pé,
formando por assim dizer o primeiro coro, diante da cruz.

Na coleta, a palavra reaparece para designar os santos que se


mantém de pé, ao lado da cruz:...“e pelas preces de todos os santos
que estavam fielmente em pé junto da cruz”. Fideliter astantium. No
Gradual, com uma nota de dor, pela terceira vez encontramos:
“Dolorosa et lacrimabilis es, Virgo Maria, stans juzta crucem Domini
:
Jesu, Filii tui Redemptoris”. No Tractus: “Stabat Mater dolorosa...”. No
Evangelho, novamente, a primeira palavra que lemos é: “Stabant...”. E
no Ofertório: “Recordare, Virgo Mater Dei, dum stéteris in conspectu
Domini...”.

Vê-se assim que as Sete Dores de Nossa Senhora aparecem no


Missal sete vezes ligadas aos derivados do vocábulo que se
encontra nos mais remotos documentos do mundo, sempre que está
em jogo um problema fundamental do homem.

Há, porém, nas Dores de Nossa Senhora, uma atitude especial que
merece muita atenção. Passa-nos despercebida primeiro; espanta-
nos depois. E é esta: a mais dócil e obediente das criaturas humanas
não deu um só passo e não pronunciou uma só palavra no sentido
de interceder por seu filho junto ao poder de Roma. Quem
intercedeu foi a mulher de Pilatos, por causa de um sonho. Não a
Mãe de Deus. Dócil e obediente à vontade do Pai, a mulher forte, a
criatura erecta por excelência, o cedro do Líbano, não quis nunca
submeter o sacrifício de seu Filho aos decretos do Estado. Em cada
statio da via-crucis a Virgem Santíssima afirmou a isenção da Igreja
e a primazia espiritual. Sua atitude vale um tratado.

10. As filhas de Santa Escolástica

Gostaria de abrir um largo capítulo para falar nas virgens


:
consagradas ao serviço do Senhor. Muita coisa do que já disse se
aplica tanto aos monges como às virgens, na medida em que ambos
imitam a atitude de obediência da Virgem Santíssima. Mas a entrada
da virgem no estado religioso parece-nos conter um elemento a
mais do que na profissão monástica dos homens. A magnífica
dramaturgia com que a Igreja cerca a consagração virginal, mais do
que no caso dos monges, se assemelha a uma festa de núpcias. Dir-
se-ia – não sei – que a união mais forte, mais íntima, mais livre de
qualquer função, mais próxima do céu. O pontífice fala à monja com
a voz do esposo: “Veni, electa mea, et ponam in te thronum
meum...”. E depois da imposição do véu insiste, no tom premente dos
noivos: “Desponsari dilecta veni...”. “Vem, ó bem amada, vem para a
festa de núpcias; já passou o inverno, a rola canta, recendem as
vinhas em flor”.

Se o monge é “o amigo que fica em pé, ao lado do esposo”, a monja


se apresenta como a própria esposa: “Estou desposada com Aquele
a quem os anjos servem, e cuja beleza o sol e a lua admiram”.

Digo por isso que as virgens consagradas desfrutam já, aqui e agora,
uma união mais perfeita do que os monges. Mas digo-o sem provas.
Não tenho certeza; e que Santa Escolástica me perdoe se deixo tão
mal esboçado o problema de suas filhas para voltar a São Bento,
terminando esta modesta homenagem que, a par a canseira e das
decepções experimentadas pelos esbarros em meus próprios
limites, trouxe-me já a recompensa de um acréscimo de veneração.
:
11. Conclusão

Tentei mostrar nas páginas anteriores o sentido, a extensão, e o


campo das aplicações analógicas da estabilidade, que constitui o
principal característico da Regra de São Bento. Focalizado nos seus
diferentes planos, explorando sob ângulos diversos, o conceito
revela uma riqueza enorme que se estende da fidelidade aos
compromissos humanos à fidelidade dos votos pronunciados diante
de Deus; que diz respeito à abadia, à casa de família e à cidade; que
vai do homem à pedra e da pedra ao homem; que se refere à posição
erecta de Nossa Senhora e à posição vertical da cruz.

A figura do monge, nesta tentativa de um esboço, surge-nos como


um marco. Vemo-la como o profeta viu: aquele que fica em pé diante
do Senhor. Apreciamos a profundidade e o alcance do humanismo
beneditino, tão semelhante ao humanismo tomista, compreendendo
que a atitude que verdadeiramente convém ao homem é aquela que
o eleva. E aprendemos, com São Paulo, que assim sendo não pode
haver descuido, pois esta atitude por si mesma implica a idéia de
queda.

E a rigor, podemos dizer que a lição dos monges, não foi perdida.
Apesar de tudo, a estabilidade beneditina ajudou o mundo a se
firmar, justamente nos momentos em que parecia perdido. Compete-
nos agora continuar. Exploremos e usemos o patrimônio de São
Bento, para bem servir à sociedade e à Igreja, nestes tempos
perturbados em que os falsos salvadores nos querem arrebatar o
status para formar um monumental monólito, uma nova pirâmide
:
egípcia que será, não o túmulo de um rei, mas o sarcófago de um
povo. Firmemos pois nossos pés; sejamos mastros de vigilância;
colunas de dignidade; torres de justiça. Contra o materialismo que
nos quer prostrar, e contra o falso espiritualismo que tem a
pretensão insolente de interceder por nossa Igreja, saibamos ser
monges, firmes, inabaláveis, como os soldados romanos que
combatiam de pé, sem arredar do posto.

12. “O imperador deve morrer em pé”. (Suetonio)

Mas vejo agora – um pouco tarde talvez – que posso ser acusado de
ter andado a fazer jogo de palavras. Dirão que tirei de um verbete de
dicionário, e de uma mera coincidência de palavras, abundantes
conseqüências, emprestando aos vocábulos mais do que realmente
contêm. Bem sei que isto é perigoso, e que, mesmo em relação às
Sagradas Escrituras, não convém fugir demais do sentido literal para
procurar sentidos ocultos e simbólicos.

No caso presente, porém, a abundancia de provas parece


demonstrar que a idéia de aproximar o voto da estabilidade do estar
em pé, em coro e diante da cruz, é verdadeira; e que é impossível
supor que no espírito de São Bento não escoassem todas essas
ressonâncias quando ele fez da estabilidade o objeto de um voto.

Mas eu deixei para o fim dois argumentos que me parecem


:
especialmente convenientes. Alias, a verdade é que só agora me
vieram elas à mente, quando no capítulo anterior – como se vê pelo
tom de peroração que lá ficou – tencionava encerrar este estudo. E
não oculto que tive uma grande alegria quando os encontrei.

O primeiro argumento é este: São Bento, ao sentir aproximar-se a


hora de sua morte, fez questão de ser levado para o Oratório, fez
questão de ser sustido pelos braços de seus filhos, e morreu em pé.
Eis como São Gregório Magno, em seus Diálogos, narra os últimos
dias do patriarca: “Seis dias antes de sua morte mandou abrir a
sepultura. Logo a seguir foi atacado de febres e começou a sofrer de
seus ardores violentos. Como a enfermidade se agravasse dia a dia,
fez-se levar no sexto dia por seus discípulos ao Oratório, onde se
prevenia para sua partida deste mundo com o Corpo e o Sangue do
Senhor; depois, amparando seus débeis membros nos braços de
seus discípulos, ficou em pé, com as mãos levantadas para o céu, e
exalou seu último suspiro murmurando uma oração”.

Agora vejamos o segundo argumento. Este vem dos evangelhos e


tem um certo sabor, que nos faz pensar numa coisa que está
constantemente e cuidadosamente velada nas escrituras: o sorriso
de Nosso Senhor. Voltemos ao texto de São Mateus que nos serviu
para definir a obediência do monge e que se refere mais diretamente
à obediência dos apóstolos. Depois da partida do moço rico, e das
palavras de Deus sobre o camelo e a agulha, eis que Pedro (a quem
competia sempre fazer tais perguntas) interroga o Senhor: E nós? E
Jesus lhes diz: “Em verdade vos digo, quando o Filho do Homem se
sentar no seu trono de glorias, vós também, vós que me haveis
seguido, vos sentareis em doze tronos e julgareis as doze tribos de
:
Israel”.

E aqui está a chave final de nosso problema. O prêmio oferecido


àqueles peregrinos, àqueles vigilantes, que ficaram de pé no coro,
ao lado do esposo, ao pé da cruz, nos caminhos da vida e na hora da
morte, o prêmio do cêntuplo e da vida eterna está ligado a essa
atitude final, de repouso, de termo atingido e de bem conquistado:
os apóstolos e os monges, no fim dos tempos, estarão sentados em
torno do Rei.

(A Ordem — Julho, Agosto e Setembro de 1947)

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