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Andar de ônibus

No meu trabalho, eu sou a única a chegar de ônibus. Pegar, tomar, andar de ônibus é um jeito
de estar no mundo. Isso porque andar de ônibus requer uma série de conhecimentos, práticas,
técnicas e malandragens que só um usuário experiente da cidade tem acesso. Digo isso não
com autoelogio, mas por experiência. É óbvio que um sujeito que atravessa a cidade em um
ônibus traz muito bagagem do que alguém que recebe um carro à porta de casa, que dirige seu
próprio veículo ou que é – de modo profissional ou amador - caronista. A primeira coisa que
um usuário de ônibus precisa é estar antenado ao tempo Chronos e ao tempo dos ônibus – faz
toda diferença você saber o horário do 4001 para saber se 2103 já passou ou vai passar. Outra
coisa são as relações interpessoais que acontecem no ponto, é crucial saber quem são aqueles
que tomam o mesmo ônibus que você naquele ponto, assim você sabe se está na hora ou
atrasado. Além disso, é preciso saber perguntar: “o 2103 já passou?” Um bom andador de
ônibus sempre sabe o horário ideal, o horário anterior e o próximo horário da sua linha, assim
pode tanto se atrasar ou se adiantar conforme a grade de horários. Ele sabe, mais ou menos,
quanto tempo leva para chegar do ponto a e b, e se quiser parar no meio caminho tem a
facilidade de conhecer todo o trajeto. É claro, dependendo onde você para, o trajeto para o
destino final de uma linha sempre poderá ser um mistério – o que mantém uma certa chama
acesa. O usuário de ônibus que se preze conhece os menores detalhes de cada carro, sabe que
pode ser aquele um ônibus em que motor é mais alto na frente ou aquele que ronca mais
atrás. Uns sacolejam mais no meio, outros dois bancos antes dos bancos finais. Além disso, no
caso de lotação, sabe onde é melhor se apoiar, diante de quem parar, em qual escada sentar:
onde esquenta e onde não. Na categoria ônibus intermunicipal ou interestadual há também
todo um saber. Onde estão as melhores poltronas, onde fica o banheiro, de qual lado bate o
sol, onde o motor ronca mais alto, onde os tarados não sentam. Uma viagem de 3, 6 ou 12
horas fica mais agradável quando você tem esses conhecimentos. Claro que em um ônibus
tudo pode acontecer. Comigo já aconteceu de tudo. Já estive me viagem de 36 horas, em que
o ônibus pegou fogo 1 vez e quebrou duas vezes. Já estive viajando com uma ex-detenta que
fez um rap de improviso a viagem toda em pé, acordando pessoalmente cada um para contar
que estava livre: “De quem é a liberdade? É a minha liberdade, senhora!”. Em seu rap-palestra
ela contou que tinha o sonho de ser secretária, ela dizia: “Eu vou chegar, vou pegar meu
currículo e vou ser secretária. Não, eu vou fumar um, vou pegar meu currículo e aí eu vou ser
secretária”! Prioridades que um usuário de ônibus entende. Descer de um ônibus é ganhar o
mundo, a rua, as oportunidades todas que aquela lata não permite alcançar. Num ônibus,
diferente de em um carro, você opera na lógica de uma fila de banco, você até pode estar
confortável, mas está sendo vigiado pela ordem tácita de manter-se civilizado, ciente,
presente. Não pode tudo, pelo contrário, se pode muito pouco. Uma vez estive em um ônibus
em que a briga comeu solta porque alguém usou o banheiro para evacuar – fezes no caso.
Uma das usuárias abriu um escândalo porque lá não era lugar de fazer isso, a outra
prontamente se defendeu: “paguei como todos, tenho direito, sim, de cagar”. O motorista
parou na rodoviária, trouxe um balde cheio de água para amenizar os odores. Sem querer,
derrubou tudo em uma mulher que estava na poltrona do corredor. Catástrofe. A confusão
estava armada. Meia hora lá fora, diante do guardinha da rodoviária para resolver. Como
acontece na vida, não resolveu. Uma ameaçou a outra, a mulher molhada ameaçou processar
a companhia, os outros passageiros gritavam que queriam ir embora. O ônibus seguiu viagem.
No ônibus se conhece as limitações da carne, as rodas rodam conforme força maior (são
tantas) e as paradas, ah, as paradas podem ser infinitas. Quando você anda de ônibus, você
vai. Independe de você. É esse movimento de ser levado, coisa que o mar ensina, te dá mais
tutano. Você vai no ritmo da cidade. Você está lá, refém da vida urbana, refém do tráfego,
entre quadro paredes, mas você está indo. Você sabe, mais ou mais tarde, você chega. O
ônibus ensina que o tempo é autocentrado, desconhece o seu reloginho cassio, a sua reunião
da manhã, aquele compromisso importante, o horário da sessão de cinema. O tempo é. Não
tem complemento. Uma vez peguei uma linha que saia de Butantã em sentido à Vila
Madalena, seu ponto final. Às sete da noite, o ônibus estava lotado, por isso, sentei na frente.
Papo vai papo vem como o motorista, ele me disse que não ligava para o trânsito, “uma hora a
gente chega”. Na hora de descer, estendi o dinheiro para pagar e ele disse: “imagina, hoje você
é minha convidada”. Não raro, os motoristas de ônibus são pessoas de bom coração, super
disponíveis e que sabem muito da vida. Em Bauru, pegava uma linha em que o motorista dava
todo tipo de conselho pros passageiros. Ele também sempre me pegava na porta de casa,
quando não dava tempo de descer até o ponto. Uma vez ele falou: “olha, você vai ter que
pegar no ponto como todo mundo. Sou seu amigo, mas o pessoal já tá começando a
reclamar”. Ele ainda me pegou umas vezes em frente de casa, até que troquei de linha.
Desgastou a relação. Já recebi muita gentileza de motorista, mas também já tomei muita
paulada. Não tem nada mais humilhante do que você correr atrás de um ônibus e o motorista
não te deixar entrar. É frustrante. Às vezes quando estou inspirada ou muito atrasada, enceno
uma coreografia de súplica, que costuma funcionar. Eu aperto as mãos em frente ao coração,
como quem reza, pedindo “misericórdia, me deixe subir neste ônibus”. Às vezes funciona, às
vezes não. O tempo é imperioso, mas o motorista de ônibus pode ser mais.

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