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Compreendendo a hiperatividade:
uma visão da Gestalt-Terapia
A new comprehension of hyperactivity: a gestalt therapy perspective
RESUMO
Sheila Maria da Rocha Antony¹ Objetivo: Oferecer uma compreensão da hiperatividade, a partir da te-
Jorge Ponciano Ribeiro²
oria da Gestalt-Terapia, bem como apresentar as implicações subjetivas
da hiperatividade no modo de sentir, pensar e agir da criança hipera-
tiva.
INTRODUÇÃO
A terminologia Transtorno de Déficit de Atenção/ Lesão cerebral Mínima (1947), Disfunção Cerebral
Hiperatividade (TDAH) tem sido utilizada para Mínima (1962), Reação Hipercinética da Infância
referir-se a pessoas que possuem dificuldade em (1968), Síndrome de Déficit de Atenção com ou
sustentar a atenção, inibir os impulsos e regular sem Hiperatividade (1980), Distúrbio de Déficit de
com consciência a atividade motora. O TDAH Atenção por Hiperatividade (1987), Transtorno de
constitui um dos distúrbios comportamentais Déficit de Atenção/Hiperatividade (1994).
mais diagnosticados da infância (3 a 5%) e isso se
deve, em parte, a erros diagnósticos contundentes É válido, ainda, destacar a diferença de termino-
devido à falta de compreensão daquilo que consti- logia empregada pelos manuais internacionais de
tui a essência de uma criança hiperativa. classificação de transtornos mentais e comporta-
mentais. A CID-102 utiliza o termo “Transtorno
A hiperatividade tem sido extensivamente inves- Hipercinético” (TH), enfatizando mais a agitação
tigada sob o ponto de vista de ser um transtorno, motora. Não nega a desatenção, mas justifica que
com um interesse específico direcionado para os a inclusão de crianças sonhadoras e apáticas nesse
critérios diagnósticos e para a etiologia. Pesquisas quadro introduz diferentes problemas e compor-
têm sido guiadas para encontrar uma causa bioló- tamentos a serem considerados. Já o DSM-IV3 usa
gica específica que explique a sua manifestação, a nomenclatura “Transtorno de Déficit de Atenção/
contudo, evidências conclusivas de lesão ou dis- Hiperatividade” (TDAH) que reúne 18 sintomas
função neurofisiológica são pouco substanciais e comportamentais reconhecidos em 3 subtipos: o
continuam incertas. predominantemente desatento, o predominante-
mente hiperativo/impulsivo e o tipo combinado
O transtorno já recebeu diversas nomenclaturas e dos dois anteriores. Assim, possibilita o diagnós-
parte dessa controvérsia se deve a essas mudanças tico de crianças predominantemente desatentas
terminológicas, que refletem tendências culturais, sem hiperatividade dentro da mesma entidade
teóricas e científicas na conceitualização da etio- nosológica. Guardiola et al.4, em pesquisa recen-
logia e nos aspectos essenciais do transtorno. Em te com adolescentes, concluíram que os critérios
2002, Lima¹ apresentou a evolução histórica das do DSM-IV superestimam a prevalência do trans-
nomenclaturas do transtorno que revela uma in- torno, uma vez que facilitam a inserção de outras
terminável dúvida quanto à sua definição: desordens.
Barbosa et al.5 fazem uma revisão da literatura so- Ao longo do estudo será apresentada uma com-
bre os transtornos hipercinéticos (THs), mostran- preensão mais abrangente sobre a complexidade
do a atual ambivalência de nomenclatura e cifras do fenômeno da hiperatividade, apoiada no en-
epidemiológicas, além de apontar para a necessi- foque da Gestalt-Terapia, a fim de elucidar as im-
dade de estudos retrospectivos que expliquem os plicações subjetivas do TDAH no funcionamento
sintomas e condutas, até então questionados pela motor, cognitivo e emocional da criança hiperati-
maior parte dos investigadores, a fim de delimitar va. A partir dessa discussão, será defendida a idéia
uma psicopatologia mais bem definida. Afirmam: de que déficit de atenção e hiperatividade são fe-
“Definir os limites quantitativos e qualitativos da nômenos distintos, com características funcionais
instabilidade motora resulta imprescindível para específicas a cada um e, por isso, não podem con-
deixar clara a diferença entre o normal e o patoló- tinuar a ser tratados como pertencendo ao mesmo
gico”. Também ressaltam o uso indevido do termo quadro clínico.
hiperatividade, apresentando uma distinção clíni-
ca entre sobreatividade, hiperatividade e hiperci-
nesia, destacando a hipercinesia como termino- Refletindo sobre o TDAH e suas
logia mais apropriada para explicar as alterações características básicas
condutuais motoras da criança.
A criança hiperativa em sua vivência cotidiana
As discussões científicas continuam acirradas acer- mostra uma necessidade de movimento contínuo
ca da etiologia e definição do transtorno quanto a e uma capacidade de atenção difusa, por meio da
ser uma desordem neurocomportamental. Arms- qual dirige a percepção a tudo e a todos (em um
trong6 enfatiza a complexidade do TDAH e a ne- curto espaço de tempo), distraindo-se com facili-
cessidade de uma visão multidimensional de sua dade. Não consegue esperar sua vez; interrompe a
origem, ponderando que o TDAH não pode ser fala dos outros; é impaciente, ciumenta, altamente
pensado como uma desordem médica, pois situa a emotiva, generosa, prestativa, afetuosa, dramáti-
fonte do problema dentro da criança, como sendo ca, alegre; quer mandar nas brincadeiras, opõe-
uma condição unicamente orgânica e biológica. se a ordens; frustra-se e irrita-se com facilidade,
“O problema reside no fato que omite ou dá insu- põe-se em situações de risco com certa freqüência;
ficiente atenção às questões social, política, econô- derruba (ou quebra) coisas por distração. Segun-
mica, psicológica e educacional que circundam este do Lima¹, esse quadro de manifestações afetivo-
termo desde o seu início. (...) De fato as causas do comportamentais aparece em todos os contextos
DDA são complexas e multifacetadas”. de vida da criança, sendo que o grau de hiperati-
vidade pode variar, sendo mais ou menos inten-
Tal visão é compartilhada por Bauermeister7 que so, conforme as condições da situação e a forma
afirma ser necessário entender a etiologia do como o meio familiar, social e escolar respondem
TDAH sob uma perspectiva evolutiva e sistêmica à criança.
que propõe que o curso do desenvolvimento do
transtorno é determinado pelas características da O DSM-IV3, para fins diagnósticos, exige que esse
criança (neurobiológicas e psicológicas) em inte- padrão comportamental (que são considerados
ração com fatores ambientais imediatos (família, sintomas), tenha surgido antes dos 7 (sete) anos,
escola, comunidade) e mais amplos (estruturas so- que persista, por, no mínimo, 6 (seis) meses e se
ciais, políticas, econômicas e culturais). Para o au- manifeste em dois ou mais ambientes. As diretri-
tor, não se pode atribuir uma causa unitária para zes clínicas e os critérios diagnósticos utilizados
explicar a amplitude das manifestações do TDAH. para definir o transtorno descrevem claramente
Debroitner e Hart8 complementam: características comportamentais que traduzem um
modo de ser-no-mundo, mais do que sintomas.
“Aqueles que ainda hoje investem na idéia de que Tais aspectos psicomotores não revelam um existir
o TDAH é uma doença (invisível) do cérebro es- mórbido que obstrui, desvia, modifica ou inter-
tão buscando uma explicação simples para um rompe o curso do desenvolvimento e o funciona-
distúrbio que é complexo e multidimensional. mento natural da criança. A hiperatividade não se
Acreditamos que a nossa obsessão nacional pela instala como um processo negativo ou doentio na
genética como fator para explicar as disfunções vida da criança, o qual retarda o desenvolvimento
sociais e psicológicas encontrou seus limites com psicomotor. Ao contrário, a maioria das crianças
o TDAH”. inicia precocemente a marcha aos 9 (nove) meses
e a aquisição da linguagem se dá no período nor-
mal (por volta de 1 ano de idade).
Barkley et al.¹² em suas diversas investigações tam- Compreendendo a criança hiperativa como
bém assinalam que há diferenças significativas en- uma totalidade em ação
tre a criança desatenta não-hiperativa e a criança
com comportamento hiperativo/impulsivo. O tipo Os resultados conclusivos de Lima¹ revelam que a
predominantemente desatento está mais associa- hiperatividade é a condição que define o transtor-
do com “sonhar acordado”, apatia, processamento no; não há propriamente um déficit de atenção,
lento de informação, confusão mental, timidez, mas uma hiperatenção; e que a criança hiperati-
hipoatividade, fraca recuperação de informação va tem uma hiperemotividade, uma reatividade
da memória. emocional intensa aos estímulos ambientais que
delineia um funcionamento psicológico próprio.
As diferenças comportamentais citadas marcam Sendo assim, a criança funciona “hiper” em todas
claramente a existência de uma configuração psi- as suas dimensões existenciais, configurando uma
cológica distinta para a criança com déficit de aten- gestalt neuropsicomotora em ação.
ção e a criança hiperativa. Como é possível incluir
uma criança inibida dentro de um mesmo quadro Considerando seu estado organísmico de perma-
psicológico ou psicopatológico de uma criança nente alta excitação, entende-se que a dificuldade
impulsiva? Cada psicopatologia revela uma tipo- de concentração é decorrente da “hiperatenção”,
logia e as manifestações patológicas dependem da definida como a imensa capacidade da crian-
personalidade, em interação com o ambiente, para ça atentar aos múltiplos estímulos sensoriais e
formar um determinado quadro clínico. É neces- ambientais. Olha para tudo que vê e quer ouvir
sário se pensar uma nomenclatura distinta que di- tudo que escuta, mostrando dificuldade em ele-
ferencie a criança que tem unicamente o déficit de ger aquele objeto que é mais importante em seu
atenção da criança com hiperatividade. campo perceptivo. Age como se “tudo estivesse
em toda parte”, percebe as partes isoladamente
Atualmente o TDAH não é mais considerado um sem integrá-las ao todo, não foca a atenção em
transtorno exclusivo da infância. Rohde et al.10 em detalhes.
seus estudos epidemiológicos estimam que entre
50 a 70% de crianças diagnosticadas hiperativas A criança revela uma atenção exagerada voltada
conservam certa sintomatologia na adolescência e para o ambiente, onde a percepção contínua do
na vida adulta, havendo uma diminuição no nível exterior sobrepõe-se à percepção de si mesma,
da inquietação motora, mas permanecendo a agita- evidenciando uma reduzida consciência de suas
ção mental, na forma de atenção difusa e no fluxo experiências internas. A atenção é difusa porque a
incessante de idéias. O fato é que a hiperatividade consciência é confusa, tendendo a não diferenciar
não tem cura porque é constitutiva da pessoa. Não nem discriminar suas necessidades em uma ordem
será superada, mas sim poderá ser manejada com hierárquica (problemas no processo de percepção
a ajuda dos pais, professores e profissionais que figura-fundo). Não é raro, os pais comentarem
venham a orientar o hiperativo sobre como regu- que o filho parece uma “formiguinha elétrica”
lar a alta excitação organísmica experienciada. que quer fazer muitas coisas ao mesmo tempo,
interrompendo uma atividade para passar a outra
Sob esse prisma, o TDAH deve deixar de ser en- repentinamente, sem permanecer o tempo neces-
tendido apenas como uma doença e passar a ser sário para fazer contato consciente com o objeto
visto como um temperamento que, devido a sua perceptual. A criança aparenta muitas vezes não
condição “hiper”, provoca certos desequilíbrios saber bem o que fazer, o que olhar, o que procurar
funcionais (como uma balança que tem um peso por não saber priorizar as suas necessidades.
em um de seus extremos e fica com uma parte
muito elevada e outra baixa demais). A criança O modelo de Chelune et al., citado por Hallo-
nasce hiperativa (quer seja por trauma no parto, well e Ratey16, enquadra o DDA como uma falta
problemas durante a gestação, uso de droga ou de capacidade de parar de receber mensagens,
álcool da mãe, fatores genéticos), não se torna hi- “a pessoa não consegue deter o fluxo incessante
perativa. A hiperatividade é parte da totalidade da de acontecimentos, respondendo cognitivamente
pessoa e, por isso, permanecem certas manifesta- a tudo”. Funciona como uma antena parabólica
ções, em maior ou menor grau, ao longo de sua que capta todas as informações sem filtrar, sem
vida. Será apresentador, em seguida, como se dá seguir uma hierarquia de importância. Em vez
o funcionamento global da criança resultante da de colocarem a síndrome como uma incapaci-
vivência da hiperatividade em seu organismo. dade de prestar atenção, enfatizam a capacida-
de da pessoa com DDA atentar para múltiplos
depois. Tudo é pra já! Os seus anseios têm que ser (“Que menino chato! Que menina esquecida! Faz
atendidos imediatamente. tudo errado! Derruba tudo, esse desastrado!”) por
movimentar seu corpo excessivamente, derrubar
A hipercinesia da criança pode revelar, então, a fal- (ou quebrar) as coisas por desatenção, constrói
ta do pensamento organizado, onde parar significa uma auto-imagem negativa com sentimentos de
cair no vazio da falta de uma forma que delineia e rejeição que sustentam uma baixa auto-estima e
demarca o seu corpo-eu. Nas palavras de Bergés, um confuso conceito de seu próprio corpo-eu.
citado por Levin18, “Tudo seria como se estas insta-
bilidades representassem a busca incessantemente Debroitner e Hart8 entendem que a criança hipera-
fracassada dos limites, como se o corpo carecesse tiva vivencia uma profunda alienação de si mesma,
de fronteiras”. Na linguagem gestáltica, a instabi- apresenta uma falta de consciência das próprias
lidade motora da criança hipercinética é apenas a necessidades corporais, não integrando as experi-
figura sobre um fundo desorganizado. Isto é, a hi- ências corpo/mente (não lê, interpreta e dá sentido
peratividade é a aparência, o sintoma de uma exis- aquilo que suas sensações estão lhe dizendo). A
tência desarmonizada, desregulada. As mudanças criança, assim, carece de um sentido de organiza-
constantes de atividade, as tarefas interrompidas, ção e integração por não colocar a consciência a
deixam contínuas situações incompletas (gestal- serviço de sua sensação-ação-interação.
ten abertas) que geram um estado de insatisfação
permanente. A sua conduta frenética insinua ha- Há uma tendência no meio psiquiátrico em colo-
ver uma falta, uma carência, uma necessidade es- car a hiperatividade como vilão para o surgimento
sencial a ser satisfeita. Antony e Ribeiro19 explici- de psicopatologias em adulto. Apontam uma pre-
tam que o fundo desorganizado diz do dilema da disposição da criança em se tornar um usuário de
criança “hiper” para apropriar-se de si mesma, do drogas, um alcoolista, podendo ainda desenvolver
seu corpo, o qual se mantém preso ao olhar con- um transtorno de personalidade anti-social, um
trolador do outro que não lhe permite a autono- transtorno bipolar, um transtorno de ansiedade.
mia, nem reconhece suas necessidades originais. A Há muitas expectativas negativas para quem é hi-
criança, na verdade, trava uma luta interna na qual perativo. Isso mostra o desconhecimento da natu-
tem de renunciar ao seu modo de ser, aos seus reza da hiperatividade e até da origem das outras
movimentos, ao seu espaço, às suas necessidades, psicopatologias. Não se nega que possa haver co-
em troca de satisfazer as vontades e expectativas morbidade, mas rejeita-se a idéia de que o TDAH
alheias, por não poder ser aquilo que é. potencializa a produção de comorbidades. O que
se constata, a partir dos atendimentos psicológicos
A afetividade da criança hiperativa se expressa de com os pais e a criança, é que o ambiente familiar,
forma intensa, levando a criança a responder ao juntamente com as características psicológicas
mundo com uma forte sensibilidade sensorial e particulares dos pais, cria perturbações emocio-
emocional. O seu funcionamento global “hiper” nais na criança que favorecem a formação de qua-
cria a hiperemotividade que provoca um alto dros mentais associados.
nível de reatividade diante de toda experiência
afetivo-emocional. A hiperemotividade gera vul-
nerabilidade emocional (chora com facilidade, to- A dinâmica interna e relacional da criança
lera pouca frustração, fica ressentida por qualquer hiperativa: uma visão gestáltica
motivo, explode em alegria); carência ou déficit A Gestalt-Terapia (GT) é uma abordagem funda-
de afetividade (quer ser a mais amada, o centro mentada em teorias de base holística que propi-
das atenções, a primeira em tudo, deseja receber ciam uma visão dinâmica e multidimensional
muito carinho e contato físico); e instabilidade do ser humano e do mundo. Alicerçada em suas
emocional (mudança repentina de humor – ora teorias de base (Psicologia da Gestalt, Teoria Or-
está rindo, ora fica irritada). ganísmica, Teoria do Campo, Teoria Holística de
Smuts), formula que o campo organismo/ambien-
A criança apresenta ainda baixa auto-estima e ati- te constitui uma unidade indissociável, uma tota-
tudes de imaturidade emocional. Apesar de, em lidade cujo significado emerge das inter-relações
muitas situações, mostrar ser imperativa, determi- entre as partes que compõem um dado todo. Tudo
nada com aquilo que quer, não aceitar ordens, ser está interligado, tudo depende de um outro todo.
mandona nas brincadeiras, ela guarda sentimen- Nada existe isoladamente, por si só. A pessoa
tos de insegurança quanto a ser aceita e amada existe em relação a um outro e a uma realidade
pelos outros, duvidando de si, de seu valor, de sua mundana. Tais fatores estão em constante intera-
competência e adequação. De tanto ser criticada ção, influenciando-se reciprocamente através do
processo de ajustamento criativo que visa à auto- risco a relação com o outro significativo. Formam
regulação do organismo. dinâmicas internas e relacionais que levam o indi-
víduo a manter no presente gestalten inacabadas
Os conceitos de contato e de awareness formam o do passado, impedindo-se de realizar um contato
eixo básico para a compreensão da forma de pen- saudável. Ribeiro²¹ reconhece nove processos de
sar, agir e sentir da pessoa. Awareness representa o interrupção ou bloqueio do contato para diagnos-
ato da consciência que apreende a totalidade dos ticar e compreender o funcionamento psicológico
fatos, dando significado aos eventos psicológicos da pessoa (fixação, dessensibilização, deflexão,
vividos. Contato é o processo psíquico ou compor- introjeção, projeção, proflexão, retroflexão, ego-
tamental pelo qual o indivíduo entra em relação tismo, confluência) e que tem os fatores de cura
consigo, com o outro e com o mundo em busca como seus correspondentes polares (fluidez, sen-
da diferenciação. Perls, Hefferline & Goodman²º sação, consciência, mobilização de energia, ação,
definem de maneira sucinta a dinâmica do con- interação, contato final, retraimento) que explicam
tato de união/separação, evitação/aproximação, a experiência do contato e todo comportamento.
identificação/alienação: “Primordialmente, contato
é a awareness da novidade assimilável e compor- Partindo para elucidar a vivência da hiperativida-
tamento com relação a esta; e rejeição da novida- de, considerando os fatores polares dos bloqueios
de inassimilável. O que é difuso, sempre o mesmo, do contato, temos que: a inquietação e a atenção
ou indiferente, não é objeto de contato”. Portanto, difusa representam um constante processo de flui-
contato representa um processo ativo e consciente dez da criança, que está em contínuo movimento
de ajustamento criativo que valoriza o indivíduo em busca de novos estímulos. Há um excesso de
como ser-em-relação. excitação que cria um alto nível de mobilização
de energia para a execução da ação, a qual é efe-
Os movimentos dialéticos representativos da ex- tuada pronta e impulsivamente. Assim, mantém
periência do contato ocorrem por meio da auto- um contato superficial com as coisas, trocando
regulação organísmica realizada pelo self no cam- incessantemente o foco da atenção ou ação de um
po organismo/ambiente. Esse processo revela um objeto a outro prematuramente sem manter a con-
fluxo dinâmico de ciclos sucessivos de satisfação tinuidade até o fechamento da gestalt. A criança
de necessidades, onde uma figura emerge de um raramente se satisfaz plenamente, não entra em
fundo indiferenciado. A interrupção sistemática retraimento, não alcança a harmonia organísmica,
e repetida do fluxo de formação e dissolução de experienciando um estado permanente de insatis-
figuras deixa gestalten abertas e necessidades não fação na troca com o mundo.
satisfeitas, o que gera desequilíbrio no funciona-
mento natural do organismo. A pessoa saudável Do ponto de vista dos mecanismos de bloqueio
sabe hierarquizar suas necessidades, reconhecen- de contato, destacam-se a deflexão, a projeção,
do aquela que é mais importante em uma dada si- a proflexão e o egotismo como os processos bá-
tuação e tenta satisfazê-la, escolhendo a ação mais sicos que organizam o funcionamento psicológico
apropriada, de forma a evitar danos a si e prejuí- da criança hiperativa. A deflexão se firma como
zo nas suas relações pessoais. Por exemplo, uma o processo psicológico que define o transtorno e
criança em sala de aula deve ser capaz de decidir suas manifestações comportamentais, onde a in-
se presta atenção naquilo que a professora está quietação e a hiperatenção (desatenção) caracteri-
a explanar, no que os colegas conversam ou nos zam um modo vago e superficial de fazer contato
ruídos externos à sala, a fim de efetuar o compor- com as coisas e com os outros, em razão da dificul-
tamento mais adequado naquele dado momento. dade em enfrentar situações de tensão. A projeção
Quando a necessidade dominante não emerge representa o mecanismo de defesa, de recusa em
com base na consciência, a pessoa não organiza a lidar com os aspectos não aceitáveis de sua perso-
atividade motora necessária agindo de forma ina- nalidade, construídos em base a introjeções nega-
propriada e insatisfatória, e assim cria distúrbios tivas (“Você é chato, não fica quieto. Você é deso-
no ajustamento criativo. bediente. Você está sempre aprontando, fazendo
coisas erradas”) que a impedem de agir conforme
Situações permanentes de tensão e angústia pro- as suas necessidades genuínas de movimentação
duzem bloqueios do contato entre o indivíduo e contínua e características próprias. A criança, por
o meio. Tais bloqueios são mecanismos psicoló- conseguinte, vive um eterno conflito interno entre
gicos com funções defensivas que visam inibir a os “não deverias” e aquilo que é originalmente o
consciência de sentimentos, pensamentos, com- seu modo de ser e agir (inquieto, agitado, dramá-
portamentos que geram ansiedade e colocam em tico), criando uma baixa auto-estima oriunda de
uma confusa imagem corporal que compromete funcionar em “alta voltagem”, respondendo ao
a sua ação-interação. O egotismo emerge como o mundo com hiperatividade, hiperatenção e hi-
processo psicológico que sustenta a personalidade peremotividade. A hiperatividade na sua aparên-
da criança. Refere-se às características de onipo- cia vem mostrar que, no agir excessivo, a criança
tência e auto-referência da criança, ao seu modo está à procura de si mesma, de se delimitar no
imperativo e voluntarioso de agir (não aceita a espaço para demarcar a sua individualidade. O
opinião dos outros, quer fazer do seu jeito mesmo seu agir intempestivo obstrui o pensar reflexivo
que errado), a sua necessidade de ser o centro das sobre o seu mundo interno. A criança carece de
atenções, a sua alta demanda de afeto, que torna a uma noção sólida de si devido à ausência de uma
criança ciumenta, competitiva e imatura emocio- imagem interna e externa confirmadora de sua na-
nalmente. A proflexão é um mecanismo de defesa tureza hiperativa.
secundário que visa compensar o sentimento de
rejeição, fazendo ao outro aquilo que gostaria que A criança hiperativa experimenta dois extremos
fizessem consigo. (rapidez na percepção x lentidão no pensamento,
hiperatenção x déficit de atenção, hiperemotivida-
A combinação dinâmica desses quatro mecanis- de x déficit de afetividade) que revelam uma dia-
mos revela os seguintes processos internos e rela- lética paradoxal de fenômenos, onde “o excesso
cionais da criança: a criança deflete por meio da cria a deficiência”, a falta, o desequilíbrio em uma
inquietação e da desatenção. Ao defletir com uma função oposta complementar.
ação motora excessiva que ocorre em simultanei-
dade com a atenção difusa, a criança passa a se Colocar o TDAH totalmente no domínio da pa-
comportar de forma inapropriada sem atender à tologia, não é correto. Há talentos oriundos dessa
necessidade prioritária. Sua ação desorganizada alta excitabilidade – a intuição, a atividade criativa,
advém da projeção, ao lançar no ambiente partes a afetuosidade, a vitalidade, a genialidade percep-
de si consideradas inaceitáveis (introjetos tóxicos) tiva – que devem ser exaltados e sobrepostos aos
que, por sua vez, cria perturbação na qualidade supostos déficits. São habilidades extraordinárias
da interação. Nesse ponto, a criança recorre à pro- que possibilitam à criança vantagens em ativida-
flexão como mecanismo saudável para reparar as des que envolvem grande esforço físico, rapidez
suas condutas inadequadas, sendo prestativa na de execução motora, de percepção, de raciocínio
esperança de receber em troca aprovação e afeto e criatividade. A natureza da criança “hiper” é ser
para compensar seu “Déficit de Afetividade”. O alegre, comunicativa, experimentadora, revelando
egotismo revela a luta da criança (já que não é muito mais elementos para ser considerada saudá-
aceito o seu modo de ser) para impor sua identi- vel do que doente.
dade perante o mundo: “Já que o mundo não me
aceita como eu sou, não me compreende e não O itinerário terapêutico gestáltico com a criança
atende as minhas necessidades de afeto, eu mesma hiperativa deve trilhar o resgate da consciência de
vou me nutrir, vou fazer o que preciso e quero. seu corpo próprio, de seus pensamentos e senti-
Ninguém manda em mim”. mentos, de forma a torná-la uma presença cons-
ciente no mundo. Aprender a fazer escolhas e as-
sumir responsabilidade por suas ações. Ser capaz
CONSIDERAÇÕES FINAIS de criar metas e planos para dar organização e sen-
tido a sua vida. Saber hierarquizar suas necessida-
A visão holística da GT leva a pensar a criança des, os estímulos auditivos e visuais para poder se
hiperativa como fruto de um mundo globaliza- ajustar criativamente ao meio. A visão gestáltica
do que está hiperativo e que, ao longo do tempo, exige que as intervenções transcendam a criança
provoca alterações neurofisiológicas no organismo e penetrem no seu campo holístico relacional, o
humano com implicações comportamentais e so- que requer um trabalho de conscientização com
ciais. Considerar a hiperatividade somente sob a os pais, professoras, comunidade para promover
ótica do modelo biomédico é reduzir a uma di- uma melhor integração social, oferecer um supor-
mensão unicamente neurológica a complexidade te educacional mais apropriado e um tratamento
da manifestação dos fenômenos. mais humano e respeitoso a essa criança.
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