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RESUMO: Este é um trabalho que visa traçar as relações entre o exercício da escrita e a
promoção de saúde mental e vida. Para tanto, tornam-se necessários diversos afastamentos
em relação às racionalidades médicas assentadas exclusivamente em uma perspetiva
biomédica e farmacológica. Neste movimento, interessa pensar a tecnologia da escrita em
seu eixo ontológico, apreendendo a escrita na sua interface subjetiva, no campo propício
aos processos de subjetivação da contemporaneidade — terreno fértil à emergência dos
afetos. Destarte, serão imprescindíveis as pistas presentes na corrente de pensamento
intitulada por Filosofia da Diferença, além das contribuições de Conceição Evaristo e sua
escrevivência. Sob essas instrumentalizações, pode-se encontrar intercruzamentos entre
as concepções a respeito da tecnologia escrita enquanto produtora de saúde, vida e mundos
possíveis de serem habitados.
PALAVRAS-CHAVE: Subjetivação. Ontologia. Afetos.
ABSTRACT: This is a work that aims to trace the relationships between the exercise of
writing and the promotion of mental health and life. To this end, several departures from
medical rationalities based exclusively on a biomedical and pharmacological perspective
become necessary. In this movement, it is interesting to think about the technology of writing
in its ontological axis, apprehending writing in its subjective interface, in the field conducive
to the processes of subjectivation of contemporaneity - fertile ground for the emergence of
affections. Thus, the clues present in the current of thought entitled Philosophy of Difference
will be indispensable, in addition to the contributions of Conceição Evaristo and her writing.
Under these instrumentalizations, one can find intersections between the conceptions
regarding written technology as a producer of health, life and possible worlds to be inhabited.
KEY-WORDS: Subjectivation. Ontology. Affections.
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PESQUISAS E DEBATES SOBRE A SAÚDE COLETIVA:
UM INTERCÂMBIO ENTRE BRASIL E PORTUGAL
INTRODUÇÃO
A Psicologia, enquanto uma ciência que se insere no campo da saúde, tem se
mostrado extremamente necessária no enfrentamento dos desafios contemporâneos ─
impasses na compreensão da subjetividade humana, das novas formas de sofrimento do
nosso tempo e etc. Defronte às inúmeras urgências de nossa sociedade, a inovação em
suas tecnicidades de cuidado são primordiais para maior abrangência da atuação do fazer
psi. Nisto, a Psicologia, em seus múltiplos pólos, aproxima-se e afasta-se de concepções
estritamente naturais, organicistas e biomédicas. Um dos objetos que tem se mostrado
a esta ciência é, ainda que estranho em uma primeira visão, a escrita como tecnologia
subjetiva. Pensar o gesto escrito, mais especificamente ao que tange o ramo da saúde
mental, ainda é novo e levanta muitas inquietações entre os profissionais do cuidado. A
escrita não seria um objeto de investigação da linguística? Se assim for, qual seria a relação
deste objeto com a Psicologia? Seria tal tecnologia direcionada apenas à transmissão de
mensagens? A escrita teria alguma efetividade no tratamento e cuidado clínico relativos à
saúde mental?
Estabelecem-se impasses no ato de pensar diferentemente a óticas nas quais a
escrita é tomada unicamente como ferramenta de comunicação, marcação de signos com
a finalidade exclusiva de transmitir uma mensagem, tornar comum uma ideia ou transmitir
um recado. Ademais, localizam-se também impasses referentes à tomada da postura
antimanicomial, que se entrelaça aos desafios da psicologia em seus compromissos ético-
políticos de transformação social, imbricados nos dilemas de repensar os serviços de sua
área de atuação. Isso, haja vista a necessidade de abandonar as práticas de internalização
de usuários em instituições totais, rompendo com dispositivos e racionalidades que ferem
os direitos humanos e a autonomia dos sujeitos. Defronte a essas questões de políticas
epistemológicas e posturas éticas, a escrita parece tecer pistas importantes ao cuidado
humano, mostrando-se também como instrumento de integralização de direitos cívicos
dos cidadãos (RAMOS, 2023). Dessa forma, tomar a escrita como objeto interessa para
saber a respeito das possíveis dobras que a subjetividade humana pode tangenciar. Sobre
essas inquietações de caráter epistêmico, ético e político, este manuscrito se confecciona
questionando o papel da tecnologia escrita enquanto objeto de investigação no ramo
da saúde e no campo da Psicologia. Este trabalho enseja tracejar a escrita no plano da
subjetividade humana enquanto aparato de instrumentalização e promoção de saúde.
OBJETIVO
O problema central de questionamento à reflexão é certa ultrapassagem das balizas
perspectivas sobre a escrita, de forma a sacudir e pôr sobre escopo de análise crítica
o gesto literário enquanto movimento da multiplicidade. Nesse sentido, a tarefa de olhar
para tal tecnologia para além de um movimento de comunicação é um ato hermenêutico
transgressor que possibilita descodificar o gesto literário a partir de uma posição ética e
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UM INTERCÂMBIO ENTRE BRASIL E PORTUGAL
crítica, dando notoriedade às emergências de novos modos de se apostar na escrita. Este
instrumento quando concebido como ferramenta ótica da vida dá cabo à possibilidade
de expandir um vivível. Tal ímpeto disruptivo também fomenta este trabalho, na mesma
medida que torna-se desejoso descobrir as múltiplas facetas daquilo que se toma como
procedimento de escrever. Sendo assim, sob um éthos da disrupção genealógica, este
trabalho toma a escrita como, não apenas tecnologia histórica e impregnada de território,
cultura e política, mas como procedimento da subjetividade humana e, nisso, nos indagamos
sobre as vicissitudes ontológicas da escrita em sua promoção de bem-estar e saúde.
Portanto, este é um trabalho que se interessa e endereça-se à multipĺicidade
imbricada em certa potência da performance sensível da escrita. Implicados em não se
limitar a inquirir a verdade daquilo que se conhece sobre esse objeto, este capítulo se
direciona em defesa da literatura enquanto ferramenta promotora de saúde. Assim sendo,
neste manuscrito, deseja-se tecer as relações entre escrita, saúde e vida, marcando as
operações dessa tecnologia no plano sensível da subjetividade humana.
METODOLOGIA
Este trabalho trata-se de um levantamento sistemático bibliográfico, que busca
instrumentalizar-se a partir das contribuições de autores como Michel Foucault (2020),
Gilles Deleuze (1997) e Conceição Evaristo (2019) para promover reflexões e análises
sobre o lugar social da escrita e suas intersecções com a saúde mental e a vida. Sobre o
desejo de ampliar as percepções a respeito da escrita e sua potencialidade, encontram-
se ferramentas teórico-metodológicas na perspectiva de uma psicologia crítica. Nessa
direção, as hipóteses foucaultianas se apresentam como disparadores de uma reflexão que
busca sacudir as cristalizações sobre esse procedimento, não o engessando em uma certa
teleologia comunicativa ou em um movimento para unicamente exprimir a razão. Todavia, a
escrita tem em suas potencialidades um emaranhado de linhas segmentares, forças que se
engendram e se dobram em seu tempo, marcando as lutas e as condições de possibilidades
enunciativas e inventivas de cada episteme histórica. Foucault (DELEUZE, 2013) parece ter
compreendido muito bem a capacidade da escrita enquanto um procedimento da estética
da existência, Deleuze (2013) o defende em suas análises como cartógrafo dos escritos:
É a partir das «lutas» de cada época, do estilo das lutas, que se pode compreender
a sucessão de diagramas ou seu re-encadeamento por sobre as descontinuidades.
Pois cada um deles mostra como se curva a linha do lado de fora [...]. Que curiosa
torção foi 1968, linha de mil aberrações! Daí a tripla definição de escrever: escrever
é lutar, resistir; escrever é devir; escrever é cartografar, ‹eu sou um cartógrafo…›
(DELEUZE, 2013, p.53).
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Ademais, far-se-ão imprescindíveis as pistas traçadas por Deleuze (1997) em sua
obra “Crítica e Clínica”, onde são encontradas provocações relativas ao ato escrito e sua
interface clínica, revelando suas múltiplas facetas que não desaguam somente em narrativas
históricas, mas atravessam também o campo da saúde enquanto possíveis produtoras de
saúde, vida e realidades possíveis de serem reinventadas por devires minoritários. Nesse
sentido, concebe-se a escrita enquanto possibilitadora de aberturas em um plano sensível
de transformação de si e do mundo ─ Deleuze (1997) defenderá que o escritor enquanto tal
é médico de si e do mundo.
Por fim, dando cabo aos objetivos deste trabalho, encontra-se em Conceição Evaristo
(2019), na obra “Becos da memória”, a utilização ético-política da escrita enquanto forma
de expressão de vida e sobrevivência nas experiências negras no Brasil ─ gesto intitulado
por “Escrevivência” pela autora. Ao afirmar o caráter criativo e transformativo da tecnologia
escrita enquanto força em seu germe de produção, Evaristo chama a atenção para a face
da subjetividade e sua multiplicidade tão presente em sua literatura. Tal contribuição povoa
certa ampliação das concepções de clínica na contemporaneidade, abrindo o setting
tradicional e provocando outros olhares à saúde e à vida.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Mediante as múltiplas facetas que os modos da escrita subscrevem, apresenta-se
uma ferramenta extremamente útil e possível de incidir sobre o plano sensível, no qual se
manifesta a multiplicidade do ser. Sob essa ótica, este é um trabalho que apresenta a escrita
enquanto gesto médico como uma dessas facetas. Nesse sentido, a incumbência deste
trabalho pode ser compreendida como um fazer médico circunscrito em uma concepção de
saúde específica: aquela que se afasta da tentativa de docilização dos órgãos e baseia-se
no desafio de traçar caminhos sobre o plano ontológico. Torna-se imprescindível, então,
diferenciar duas vertentes que possuem nomenclaturas próximas, mas cujos campos de
atuação e práticas destoam-se. Primeiramente, dentro das cristalizações da tradição de
uma racionalidade biomédica, pode-se conceber um “médico dos órgãos”: o local que
haverá de ser trabalhado por esse profissional é a dimensão estritamente biológica de um
corpo; seu dever será encaminhar à normatividade um organismo que outrora perdeu suas
funções produtivas necessárias. Segundamente, tem-se o “médico do corpo sem órgãos”,
cujo ambiente de trabalho é um plano sempre em vias de se reinventar, um plano que
tange o sensível e, por isso, exige o contínuo exercício de mergulho nas condições de
possibilidade de seu tempo; a preocupação não é ortopédica, mas ontológica, ao passo que
o trabalho é destinado a possibilitar encontros que aumentem a potência de agir e pensar
e, consequentemente, aumentem a capacidade do sujeito de afetar e ser afetado. Portanto,
uma das facetas do fazer literário incorpora o saber médico fora de uma perspectiva que se
inscreve diante do determinismo biológico: “Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente,
mas antes médico, médico de si próprio e do mundo.” (DELEUZE, 1997, p.13).
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Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada,
para traçar linhas de fuga. Para isso é preciso que a linguagem não seja um sistema
homogêneo, mas um desequilíbrio, sempre heterogêneo: o estilo cava nelas
diferenças de potenciais entre as quais alguma coisa pode passar, surgir um clarão
que sai da própria linguagem, fazendo-nos ver e pensar o que permanecia na sombra
em torno das palavras, entidades cuja existência mal suspeitávamos (DELEUZE,
2013, p. 180).
A base de todas as questões de estilo é que não existe em absoluto esta: dizer o que
se pensa. Pois o dizer não é somente uma expressão, e sim toda uma realização
do pensar que o submete às mais profundas modificações, exatamente igual que o
caminhar até uma meta não é somente a expressão de um desejo de alcançar senão
sua realização, e expõe a este desejo as mais profundas modificações. (p. 149).
Escrevo como uma homenagem póstuma à Vó Rita, que dormia embolada com ela,
a ela que nunca consegui ver plenamente, aos bêbados, às putas, aos malandros,
às crianças vadias que habitam os becos de minha memória. [...] Homens, mulheres,
crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de
minha favela (EVARISTO, 2019, p. 17).
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Assim, como uma carta destinada à favela, aos becos de sua memória, a escritora
traz vida e promove saúde à própria e aos seus iguais. Certamente, essas são algumas
das múltiplas funções ópticas da escrita, uma escrita que inscreve em seu movimento a
subjetivação da multiplicidade. Além disso, ainda sob a compreensão do intercruzamento
entre essa tecnologia e a subjetividade, Botton disserta:
Na verdade, todo leitor, enquanto está lendo, é o leitor do seu próprio eu. O trabalho
do escritor é simplesmente uma espécie de instrumento óptico oferecido ao leitor
para lhe permitir distinguir o que, sem o livro, ele talvez nunca fosse vivenciar em si
mesmo. E o reconhecimento em si próprio, por parte do leitor, daquilo que o livro diz
é a prova da sua veracidade. (BOTTON, 2011, p. 25).
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[...]
Escrever é uma forma de sangrar. Porque a vida é uma sangria desatada, né?!
(EVARISTO, 2020).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aqui, acreditamos que este trabalho se aprofunda e atualiza-se no momento de
sua produção. Pensar, refletir e compartilhar algo que nem nós mesmos sabemos sobre
a escrita, na verdade, no seu primado, é de alguma forma refletir sobre a vida ou de um
aspecto do viver. Não à toa todos os autores mencionados enfatizaram a tese da literatura
e vida. Visivelmente, o campo é incerto e vasto, sem destino claro no campo da afetação
e, em seus maus usos no que tange à afirmação da vida, pode se manifestar como uma
máquina mortífera e cruel, assim como bem mostram as literaturas de conchavo nazifascista.
Por isso, sempre é perigoso dizer que a tecnologia da escrita se endereça a algum efeito
específico, torna-se muito mais prudente apontar aos seus platôs ─ camadas territoriais de
tensões. O que de fato se apresenta muito fortemente é a forma que o movimento literário
abre campos intensivos e possibilidades inventivas através das palavras, explorando seus
sentidos. Diante da imensidão de possibilidades proporcionadas pela característica de
múltiplas facetas presentes na tecnologia escrita, apresenta-se uma máquina capaz de uma
infinidade de produções, o que engendra certo risco; perigo esse que deve servir para uma
psicologia social crítica como combustível e ponto de partida, ao invés de um cristalizado
ponto de chegada. Tem-se, nas palavras de Motta e Mizoguchi (2016), um direcionamento
frente à realidade caótica inerente às possibilidades presentes na subjetividade e seus
belos perigos que justificam um tônus ético-crítico:
“[...] se é perigoso, este mesmo mundo está também sempre em vias de se inventar,
e o cuidado de si parece fornecer importantes ferramentas ético-políticas a fim de
que uma ontologia crítica do presente possa consistir.” (MOTTA & MIZOGUCHI,
2016).
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REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Escritos autobiográficos. 1. ed. Teresa Rocha Barco, Madrid: Alianza
Editorial, 1996.
BOTTON, Alain de. Como Proust pode mudar sua vida. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 1997.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: O cuidado de si (Vol. 3). 8. ed. São Paulo:
Paz & Terra, 2020
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