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LEIA ÍlS TIVRÍIS DE


GASSAilDRA RIOS
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CASSANDRA BI()S

Não sigo nenhum caminho me-


todológico (na arte não existem
NICOLETA I\INF'ETA )
44*'rt-é
dogmas), também não sigo nenhu-
ma ciência especial, embora assim
pareç4.
Meus personagens são Amanda l
e Tarsa e Lo, Alexandre e Cris-
tina, Zeca do mato, Saviano, dr.
Samorra e Sâni, Eudemônia, Zar-
ka e o dr. Pereira, um homem e
rt
uma mulher, duas mulheres ou
dois homens; homossexualismo ou
heterossexualismo (o amor é uni-
versal), um cãozinÀo ou um pás-
saro, um monstrinho personifi-
cando a bondade, a pureza e a
inteligência, o belo ou o horrendo,
fazendo pano de fundo num cená*
rio, jardim, estrela, areiâ, árvore,
chuva, que têm mais valor e é a
verdadeira força poética da minha
autopenetração, na sua harmonia
com o ato sexual ou com um sim-
ples beijo.
O conteúdo emocional depende
sempre dos personagens que crio e
embora não seria fazendo com-
preenderem-me que eu explicaria
Compra e
minha obra, a minha literatura não
Venda de
é espelho de outros valores, mas
da minha própria inspiração. Po- Livros

deria simplificar dizendo, ela não e Usados

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CASSANDRA RIOS
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DISTRIBUIDORA RECORD
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RIO DE JANEIRO SÃO PAULO
Copyright by Cassandra Rios

Para
os entendidos

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Fscrever na primeira pessoa não quer dizer que ALGUMAS PÁ,LAYRINHAS PARA VOCÊ, AMIGO:
o autor esteja fazendo uma autobiografia.
Neste livro, por exemplo, há muitas coincidên_
cias_entre a personagem, a minha profissão e a
rninha própria personalidade, visto que sou extrema-
mente sentimental, entretanto nossós caminhos são
opostos. Eu sigo um rumo e a personagem do liwo Não pretendo ser apreciada pelo valor ético,
outro, eu amo de um modo e a minha persona_ estético ou lógico. O subjetivismo da valorização do
gem de uma maneira completamente üfôrente e rneu trabalho suprime a dignidade com que me de-
estranha. dico a ele.
Apenits isso.
Arte para mim é força da natureza, a ação fun-
damental da minha vida, só o pensamento exi§te,
interroga e responde.
Seria absurdo negar que o pensamento nasce
condicionado por fatores sociológicos, históricos e psi-
cológicos.
O meu modo de saber e perceber a vida como ela
é implica na desnudação do existente que eu devolvo
consciente do que fiz.
Meu trabalho é limpo, honesto, a inuísão pessoal
na minha maneira de sentir e ver, de compreender
e explicar, traduzir e oferecer no meu trabalho, o
essencial compreendido pela razáo e o acidental pela
sensibilidade, como explicaria a metafísica.
Os meus insights, ou minhas inuisões, fazem-me
sentir, como diria Platão, o ser alado, ágil e sagrado.
7
O policiamento moral, a conscientizaçáo dos Talvez tenham me condenado sempre porque a
rneus princípios e verdade última não me permitem nada condeno, mas respeito e sempre justifico.
congraçar o erro das idéias preconcebidas, dos juízos Consideram-me "terrorista do sexo", que escre-
rnal-informados das coisas sem acareação para o que vo só sobre homossexualismo, como se a minha
valem ser ditas. ínuisão, minha criatividade, não fosse livre, polífra-
Sim, há um objetivo em cada livro, mensagens, fa, versátil, mas presa de uma idéia fixa, de um
alertas colhem-nas muitos, de amor, de justiça, de Iibelo.
esclarecimento, não ensinamentos ou exaltação de Doloroso isso, mas perdoável num país que pre-
vícios, d"e atos depravados, mas a verdade nua pela cisa de um Mobral. É por esse motivo que vejo
sua motivação, na definição e conseqüência. rosas ao lado de repolhos e outros legumes malchei-
rosos. Liweiros expõem mercadoria em suas prate-
O erro é pago com lágrimas, com sa1 sobre feri-
leiras, não arte.
das, glorificação final para o que é belo, puro, justi-
ficável do amor verdadeiro que só o próprio amor É por isso, também, que combatendo os reuieu;s,
explica na sua força transcendental e universal. os pretensos críticos, jamais Ihes enviei meus livrosl
"comentários de rodapé" e "crítica de orelha" eu
Não apregoo falsas ilusões de desfechos açucara- mesma os faço e com uma vantagem, sei o que digo,
dos para sempre mal definidos, mas jogo a realidade sei o que escrevo e para tanto não é preciso elogiar,
que não traz a poesia da lua que vai morrer no mar, nem destmir o trabalho que me absorveu durante
pois que sumiu no céu por trás das nuvens que aden- riias e noites em claro.
sam no giro constante do mundo que se afasta à Vocação é: uia crucrs e aprendi no meu calvário
procura do sol. o que é certo, o que é crítica, quem é artista, quem é
Eu amo os personagens que crio, mas nem por critico.
isso os diünizo pela sensibilidade cega, derrubo-os Primeiro a essência, depois a forma, a origem
pela minha verdade, sem pretensões para desculpas de tudo, a inspiração, a prova final, a obra. Não
hipócritas, mas pela indução ao lógico e ao inevitá- existe faculdade que faça um artista; aprimora-o, é
vel. Jogo-os como a sentença que exclui o crimirroso indiscutível, mas o autodidatismo também, entre-
da sociedade para as tristezas incomensuráveis do tanto do crítico deve-se exigir Ciências e Letras,
resultado final dos seus erros. faculdade, diploma.
Pecados? Prefiro o vocábulo que define melhor Um verdadeiro crítico não "folheia", não se
os atos impensados ou os momentos de insensatez do baseia em algumas páginas lidas ao acaso, por obri-
ser humano, erro. E o que é certo ou errado? A per- BaÇão, não diz eu sou mais fulano, sicrano ou bel-
gunta milenar que levanta filosofia: trano, referindo-se a outros escritores, não diz "não
O amor de um ser pelo outro ou o modo de Ii, não gostei", um verdadeiro crítico lê duas, três,
amar. mais vezes se preciso a obra do autor, para depois

I 9
explicar sua crítica e não emitir sua opinião pessoal Não me envergonho de nada quanto ao meu
que fará seus amigos de igreiinha sorrirem satisfeitos trabalho, envergonho-me pelo assalariado-reviewer
e passarem a lhe dever favores. de meia-hora com suas pilhas de livros que não tem
O verdadeiro crítico leva meses para estudar, tempo de ler.
analisar e escrever sua crítica, por isso não as publi-
Vivemos num tempo de penúria. Não há mais
ca todos os dias.
nenhum deus. Vivemos das invenções de novas
Quanto aos professores de português, como disse bombas e novas máquinas. Nenhuma estrela anun-
Rodrigo Lapa, só vêem na obra literária "pasto filo-
lógico." cia a chegada de um Cristo. Faço apenas três per-
guntas :
Para um Harry Levin, Ernest Hemingway se
t sforça para não ser gramatical, a sua sintaxe é Como seria recebido?
fraca, a dicção inconsistente, e comete muitas trans- Como seria interpretado?
gressões literárias. Como morreria?
Para mim foram procurar pulgas nos pêlos bel-
Imagino! Sou tão pequena e tantos tentam fe-
líssimos e perfumados de um imponente poodle.
rir-me querendo através da minha luz aparecer no
Se apenas um poema, como disse alguém. pode meu caminho, através do meu grito Íazer ouvir seu
valer um prêmio na apreciação dos meia-dúzia, por berro, através da minha arte ser alguém.
que apedrejar numa guerra de destruição determi- A arte não é um puro jogo de forma, é inspira-
nado autor (óbvio não precisar citar), quando dcve-
ção. A forma é instável, o que fica é a essência, a
riam ver nos seus trabalhos a firmeza de uma voca- gramática é carreira de professor, o refinamento do
ção, a constância de um ideal, a força de uma arte meu trabalho depende da constância, do estudo,
que sobrevive a tudo, que procura lugar, procura escrever é a fundamentação da minha vida, sem isso
crescer e vencer, porque eterna é a insatisfação desta não existo, não me entendo e tudo o que vejo e sinto
que e§creve. fica sem significado, perde o sentido, a lógica de
Criança ainda me vi estraçalhada por lobos es- existir.
faimados que não passavam de reuiewbres que re- Das minhas mágoas como escritora surgirão
buscam frases pretensiosamente belas, homêns de sempre novas forças, o aprimoramento da arte so-
mil outras profissões, opinando com o luxo ridículo frida pela estética.
de enciclopedistas que decoram vocábulos e alinha-
vam "por ouvir dizer" idéias magras que morrem Enfim, tudo se transforma, só o espírito da obra
permanece. Eu fico.
na escassez de forças porque se empenharam em
aparecer através do autor, ou melhor, da obra a que Um sorriso para vocô, seja quem for.
atacaram como o acastelado senhor de letras, repe-
tindo o ridículo do "não li, não gostei,, ou folhôei
apenas por obrigação.

!0
11
,

A jovem de 1973 não se ilude facilmente, a não


ser que queira. O amor é um folguedo, experiência,
momento para viver. Ela sahe que muito mais a es-
pera e não se amarra e nem se detém.
Sabe libertar-se do que a aflige e o campo para
€rncontrar lenitivo para suas mágoas é vasto. As por-
tas estão todas escancaradas. Ela pode escolher como
e por onde evadir-se.
A emancipação da mulher oferece-lhe justifica-
tivas louváveis para o desaparecimento da beleza que
existia na ingenuidade, do rosto que corava pela sen-
sibilidade ferida na pureza do seu pudor.
Hoje ela é esclarecida, inteligente, psicologica-
mente evoluída para a realidade da vida .
Ela colhe o que ela mesma semeia. Segue sua
t,l, vocação, sua religião, seu impulso mais forte e ali-
cerça-se nos princípios morais doutrinados por suas
próprias conceituações do que é certo, do que não é
mais errado, mas sim o ultrapassado.
I Romperam-se grilhões, soltaram-se rédeas e a
mulher dos idos de trinta e dois vê esse novo mundo
I com olhos sofridos e assustados.
13
Os fracassos sucedem-se e a mulher vê a vida
, Serh que a emancipação trouxe para a nova ge_ a lhe fazer caretas.
ração um bem maior do que o que a influência ãos
preconceitos e norrnas sociais costuravam na alma Sofre, debate-se, consegue encontrar-se socorri-
das donzelas de então, que sonhavam e se prepara- da pelo bom senso, ergue-se e se firma, dentro do seu
vam para o amor com a subserviência da ainda um tempo, forçando aparência em ritmo com o momento
tanto quanto viva sensibilidade feminina? que enfrenta.
Será hoje o amor idealizado por convenciona_ Para Adriana todos os momentos são importan-
lismos do bem-estar físíco porque ó romantismo e a tes. Ela não vai ficar sentada fazendo tricô, a contar
moral perderam-se na liberalidade da escolha, no rugas, dias, anos, e nem desistirá da procura do
modo de viver e de enfrentar a sociedade? amor final, aquele último (depois de muitos outros
Será o amor definido como atração sexual, neu- que acontecerão, sem dúvida), que virá para ficar,
roser.carência afetiva ou doença de fácil .o.a, por_ o alguém que verá seu olhar saudoso quando se des-
que_é preciso acabar com a fragilidade e viver'áum pedir da vida.
duelo de conquistas do qual niãguém quer sair der- O enfoque da realidade da mulher com os seus
rotado? i
quarenta. anos.
Neste livro apresento o problema da mulher cle O medo da velhice, as transformações físicas que
trinta e sete anos que se apaixona por um jovem de ela verá e sentirá com dolorosa angústia quando a
dezoito: pele enrugar, a secreção dos hormônios escassear a
Para Adriana a ilusão começa a cerrar com progesterona, parar a secreção dos estrogênios e pre-
mãos avarentas as portas do horizonte, mostrando dominar os androgênios produzidos no córtex supra-
que a estrada encurta, que há pouco caminho para renal ou das gonadotropinas produzidas no lobo in-
percorrer, que é preciso viver mais intersamente e Ierior da hipófise.
a.companhar a agitação da época, misturar-se, par_ Adriana sente a realidade, mas não se abate,
trcipar, endurecer a alma quándo.se fizer o endirre_ seu espírito é forte e faz com que todo seu organismo
cimento das túnicas arteriãis, para não morrer de reaja, vibre, revice, enverdeça no apogeu da vida.
aflição esmagada pela sua emotividade da mulher Ela glorifica o momento que atravessa, pesando
dos dias de ontem. o passado e preparando-se para o futuro. Continuará
Para ela, no mundo conturbado de hoje, sal- sonhando, porque de sonhos e de esperanças é feita
vam-se apenas os Homens e as homossexuais ge- sua alma até que chegue o instante de adormecer
nuínas. para sempre.
U-ma ruga marca o poder do tempo-carrasco sob Você, leitor, encontrará muitas Nicoletas por aí.
seus olhos tristes e amedrontados.

_ O coração açucara-se e os sonhos começam a


virar pesadelos negros.
14 T5

h
Preciso retalhar para contar tudo. Não dá para
Íazer retrospecto e justapor acontecimentos e fatos
da minha vida, cronologicamente, com a mesma fa-
t
cilidade com que eu faria contagem regressiva do
dez ao zero.
Conforme imagens e lembranças surgirem, fa-
larei. Imagens e lembranças, lógico, serão sempre A gente age impulsivamente, conforme emoções
repr-esentadas por mulheres: as que passaram pela que nos pegam desprevenidos.
rninha vida. As brigas, os desentendimentos e as desconfian-
ças se originam muitas vezes de um mal-entendido,
de suspeitas por ciúme.
A causa de tudo: ciúme. Isso, em se tratando
de amor.
O ataque, comprova-se? é defesa, preservação,
medo de alguma coisa. Assim, a gente reage diante
de circunstâncias que estremecem os alicerces da
nossa personalidade.
Reestmturar esta personalidade e fincar firme
no caráter e na moral nem sempre é fácil, e quase
se pode dizer que mais parece inconseqüência, insta-
bilidade, indecisão; estas são as aparências que en-
ganam e que na maior parte das vezes nos levam a
manter uma atitude contrária à que deveríamos
tomar, isto é, retroceder, reconhecer a falha e peni-
tenciar-se por ela, pagar o preço exigido.
Então, se a gente inclina a cabeça, reÍaz a situa-
ção, procura redimir-se do erro, pode estar-se arris-
\8,

16
17
cando ser tida como uma fraca, despersonalizada ou vas para assegurar alguma coisa, ou que essa pessoa
ainda de caráter inconstante e sem firmeza. esteia subestimando a outra e ridicularizando-se
simultaneamente, antes, está construindo uma situa-
- _ Não se importar com isso, e, antes, impor-se, rei-
vindicar, é uma obrigação para o apriúoramento ção mais sglida, acima de qualquer complexo, reser-
do espírito e para o bem comum do indivíduo em vas ou melindres; vejamos assim: no comércio exi-
relação aos seus semelhantes. gem-se recibos, contratos, duplicatas, ações, promis-
Ora, retroceder, quebrar decisões, voltar atrás úrias, aval, etc. Consideremos as prouas docúnentos
nas atitudes tomadas precipitadamente não deve ser do amor, o recibo intelectual.
encarado como algo abominável, ou ser considerado mais importante na vida entre duas pessoas
.é o diálogo,
-O.
falta de segurança se realmente a pessoa que reco- o esclarecimento e muita corageà para
nhece sua falha tiver errado por qualquei moüvo, ser autêntico porque a verdade rasga tudo, si*u-
mal intencionada ou por irreflexão, desde que se "s estru-
lações, as fantasias, as ilusões, mas alicerça,
justifique. tura.
Entretanto, se houver dúvidas em relação ao Falhas da personalidade. Eu tenho muitas. No
que provocou emotivamente a atitude drástica, com- mundo em que vivo, das pessoas que eu menos co-
pete a ambas as partes oferecerem-se mutuamente nheço sou eu mesma. Difícil entender este meu desa-
oportunidade para chegar ao entendimento. bafo inesperado, esta filosofia que se originou de
Vamos que a oportunidade exista, que a chance
-é esperada. um estado de alma depressivo, angustiado, cheio de
Resta provar que não haüa ôu não have- revoltas e medos, pelas surpresas que a inconstância
rá mais razões para fatos que gerem tais aborreci- e a pressa trazem.
mentos, incorrer no erro é que é imperdoável. Tudo transcorre aceleradamente. A peregrina-
Então justapõe-se a necessidade de reformu- ção do pensamento e a meditação têm que se limi-
lar-se, transigir e exigir a prova para que justificada tar. O tempo carrasco nos chama para as coisas que
e esclarecida fique a causa da falta e para que a precisamos atender. Se me prolongo, torno-me enfa-
pessoa, cuja personalidade desmoronou num minuto donha, chata e acabo reconhecendo que não fiz coisa
de tensão, possa reassumir sua posição perante a alguma, que falei diante do mar revolto e por isso
outra. não fui ouvida. O ruído das ondas abafou minha
Provar é obrigação. Transigir, um dever! voz fraca.
Saber pedir desculpas é arte, desculpar-se, muite Quem poderia entender-me? É realmente difícil
fácil, lmas oferecer prouas e escapar das suspeitas, situar a razão disto, é necessário que eu apresente
uma imposição que dignifica, estrutura, alicerça e os fatos desde o princípio.
preserva o que nos pode ser de maior valor.
O importante é provar que não houve culpa **
,|t**
e resolver a situação definitivamente. Não se deve
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considerar falta de confiança o fato de se pedir pro-
18 19

h
Princípio! Ê irônico! Não aconteceu quando fui
gerada, nem quando completei dezoito anos e me
considerei maior de idade, o passado é uma estória
bem diferente.
Tudo começou na metade, se posso considerar
idade cronológica linha demarcatória dos limites
psicológicos da vida.
Para que falar da primeira boneca, do primeiro
beijo, do primeiro amor? , . . e a gente continua depoís de muito amar
Amor: uma busca incansável! sem saber etatamente o que é o amor. . .
Analiso o Amor. Tento definí-lo. Extravaso
todas as emoções, traduzindo-as em palavras. Trans-
mito aquilo que sinto, que está brotando ainda, num
crescendo infindável, lá do mais fundo da alma.
Arranco do coração o vibrar mais violento e da
mente o pensamento mais puro e autêntico. FaIo!
Conto sobre os sentimentos, as sensações, os temores,
os complexos, sejam eles quais forem. Preciso contar!
Quero estraçalhar a voz de cada expressão para que
se esgote a flor eterna! Absurdos! Imponderáveis
anseios!
Iivro teria um
Se eu quisesse publicar agora um
punhado de cartas que escrevi para uma criatura
fascinante!
Ah! minhas verdadeiras mágoas pudessem
se as
ser divulgadas, que gemido dilacerante amarguraria
o mundo !
Às vezes eu me amo pelo que faço, outras vezes
me odeio pelo que sou.

20 2T

.E
transformação que está se processando nas mu-
lheres.
Para não me tornar ridícula faço talvez como
muitas outras, finjo que também sou de hoje.
A multidão cala e a força do pensamento ex-
plode em bombas que mutilam inocentes. Gráficas
trabalham para imprimir diplomas e a flor no peito
do homem é a comenda da burrice.
z, A prática é uma teoria decorada que cava sete
palmos no terreno santo para o incauto que se en-
tregou às mãos do sábio. Tudo se industrializa. Ven-
clem-se lágrimas e sorrisos para tapes de propaganda.
A curiosidade vara o espaço em busca de novas
A mulher embrutece. A evolução cria monstros. formas de vidas e tesouros em outros planetas.
A igualdade degenera. O poder gera nulidades. O A gente ambiciona o mundo dos outros. Os
rnundo marcha com pés de soldados e a morte mul- rlovos mandamentos virão:
tiplica horrores.
O amor lorna-se sLogan medíocre e piegas para "Não cobiçar o mundo dos outros." Porque
falar da paz que não existe. Mas a gente aindã se cobiçar a mulher do prórimo, já era.
tlistrai com os suspenses dramáticos das novelas de A Bíblia Sagrada será o Código de Processo
tevê. Parece mais uma tentativa que esgota argu- Civil, com todos os seus livros de Direito Penal, Tra-
mentos para manter acesa a chama de um mito, o balhista, Direito de Família, etc.
Amor! Chego ao ápice, ao importante clímax do racio-
Aquele amor sem interesses, sem cálculos, sem cínio: Eu existo! Sinto que sou alguém. Que parti-
matemática, sem tempo, natural, recíproco ou não, cipo do Movimento Universal. Começo a entender
mas sentido com espontaneidade, porque a alma a razão da vida, o que nos leva a agarrar ilusões e
deve ser feita de amor, oferecer amor e receber amor. embriagar-nos com elas como se tivéssemos conse-
Matemática? Soma de conveniências, de inte- guido alcançar as estrelas; porque somos obrigados
resses, de comodidades. a imiscuir-nos na turba; porque temos sempre que
Por isso sei que amei a úItima mulher com a rros confundir com a multidão que marcha num
rnesma intensidade com que amei a primeira à pro- ritmo compassado pela existência em frente.
cura de uma definição. Existência! Essa estrada larga, sem horizontes,
Defini meu eu, entendi o que sou, conservei-me sem determinado ponto de chegada, sem tempo, não
sentimental, romântica e sonhadora e descobri a há hora marcada para estabelecer coisa alguma,
seguimos para o insondável e imprevisível.
22
23
Encontramo-nos sempre no meio do caminho. E essa figura projeta seu pensamento no papel
Nunca chegamos ao fim da jornada porque as som. através de palavras. É Vida, Razão, Lógica, Frustra-
bras nos envolvem, e jamais descobrimos o mund.o ção, Verdade, Mentira, Sonho, Realidade, Ilusão, ou
tlue fica por trás das pálpebras cerradas no derra- uma síntese de tudo quanto existe de humano na
deiro sono. criatura.
Em verdade, penso que caminhamos em retro- Talvez essa circunstância dure por um breve
cesso, embora ayancemos no tempo, pois nada mais espaço de tempo, talvez subtraia tudo de mim e passe
fazemos do que adentrar cada vez mais fundo o â ser eu mesma. É confuso. Não sei, não posso ana-
próprio ser, o interior de nós mesmos. lisar melhor, nem prever o futuro. Essa vontade está
lutando contra mim e me domina.
Estou encontrando-me. Começo a perceber o
que é a força maior que nos move, que nos orienta Sendo o que sou, aparento o que não sou. Há
ou nos atordoa, que nos conduz à claridade ou nos tipos acintosos que são identificados logo à primeira
soterra na escuridão. Eu me desloco e saio para o vista ou considerados "esquisitos" pelos menos err-
sol. tendidos. Eu passo despercebida.

Nasço de um cérebro. O ventre que me fecundou


A feminilidade não consiste no fato de a mulher
foi receptáculo do amor. E na minha carne brotou ser uma heterossexual ou uma homossexual. Sou
antiÍeminista. A muLher não precisa sair por aí em-
a chama mais forte: a idéia. Sou pensamento, essa punhando estandartes para gritar seus direitos de
é a força o resto é matéria que se move sob meu igualdade junto ao homem. Mais vale a mulher que
comando. reconhece e aceita os conceitos estabelecidos pela
Às vezes escrevo alguma coisa e então sinto diferença entre os dois sexos? e individualmente
como se pensasse como outra pessoa e leio o que luta pelas suas condições para que estas se tornem
escrevo sentindo-me eu mesma, analisando uma mais favoráveis e consegue tudo por esforço próprio,
criatura estranha. É como se a minha personalidade do que a que rompe laços, arma-se e reclama aos
gerasse outra figura e não há corte umbilical, mas berros por uma posição de igualdade, pois com isso
a preponderância, uma simbiose ou talvez, mais está compr,rvando sua inferioridade, caindo na sus-
arcertadamente, um desdobramento do meu eu.
peita de que no lugar do coração ela tem um tanque
de guerra.
O desligamento que há é intelectual, não é or-
Guerra ao homem? Por quô? As que muito gri-
gânico. Eu vivo nesse momento, mas como que sob
taram ou queriam aparecer fazendo sensacionalismo
o efeito de uma hipnose, adormecida, dominada por ou almejaram o que não tiveram capacidade para
outra vontade que conseguiu implantar-se no meu alcançarl posição que outras, em silêncio, desfrutam,
cérebro. É a força sobrenatural de um espírito to- respeitadas pelo sexo oposto e admiradas por terem
mando posse. seu valor reconhecido por mérito e honorabilidade.
21 25

ts
Não almejo nada. Viver simplesmente já é tão
ciificil, não pretendo deixar a situação que atravesso,
t,ngolír-me ou prostrar-me pelo desespero de ver
minha estrela da sorle apagar-se aos poucos, per-
dendo-me na escuridão do caminho.
O que sou além do que sou? Mulherr-feminina,
idealistá, sem invejar o homem a quem admiro por-
que jamais me senti um ser inferior, talvez eu seja,
apenas, tão-somente, dif erente. 3

Já montei as "palavras cruzadas". Escrevi o


artigo que falta para preencher a página da revista.
Revisei os textos. Diminuí o mais que pude o "Betsy
Ross", a imortal costureira, senão tomaria a página
toda e não sobraria espaço para o "Correio dos Lei-
tores". Está faltando a seção de "Horóscopo". Falta
f.azer a tradução do "Quarante Femmes Eclecti-
ques".
Sou Adriana Rezende. Parece nome importante.
Famoso. Muito conhecido. E é isso mesmo. Agora
tento manter-me no topo e escorrego, deslizo, quase
caio. Sou proprietária de uma firma que tenta fincar
alicerces e segue como barco à deriva, sem saber
riireito onde irá aportar.
Tenho esperança de que ainda se torne uma
grande organização, mas não acredito nisso, não,
não vai acontecer. É apenas uma birosca que amea-
ça falir a qualquer momento porque as tentativas
editoriais não dão certo.
Todo e qualquer novo lançamento quando
chega à praça já foi superado pela Editora Patriarca.

27

..l ,-r-
Tud.o que de lá sai é positivo, garanüdo, e o-s iorna- Os cartazes de putrlicidade, os panfletos, os
leiros ,ão t" arriscam na compra da mercad'oria de meios promocionais foram todos um fracasso. Algu.
novas ed.itoras, tudo que ganham reservam para as mas bancas deixavam os cartazes pregados por
compras da Patriarca. algum tempo, mas logo eram substituídos por outros
Bem, quem sabe se d'ep-ois de amanhã esta sala considerados mais irnportantes dos lançamentos da
não cresó"iá pu.u um quadrad'o e meio a mais e Patriarca!
eu não comece a ver algurn resultado positivo com É apenas uma revistinha infantil! Uma coisinha
o lançamento d.os novos números da revista? de nada! Um meio pobre de movimentar certo
Até agora só tive prejuízos' As negociações para pecúlio para subsistir depois de alguns fracassos.
a compra ãe direitos áutorais no exterior demorou' Apenas tentativa para ter uma vida decente. A luta
A chegada dos fotolitos, as traduções, tudo custou é árdua. Trabalho por uma equipe completa. Faço
rnuito dinheiro e o pior enfrento agora com os.dis- tudo! Desde as traduções às reúsões dos desenhos ás
tr:ibuid.ores, que nãó conseguern colocar as revistas charadas. O único empregado que arranjei foi um
nas bancas de jornais' letrista para os quadrinhos da revista, mas já estou
É o monopólio da Eütora Patriarca' Já recebi com receio de que terei que despedi-lo.
visita de um agente que fez proposta para comprar Assim, escrevendo matéria inédita na minha
minha firma. Primeiro eu ri' Depois comecei a sen- lista de livros publicados, assuntos completamente
tir que não teria pernas muito compridas nem elás- diferentes, como que dou um salto do ,,Sink The
ticai para saltar ãs obstáculos' Agora nem sombra Bismarck" para a "Galinha dos Ovos de Ouro,,.
pen-
de soiriso. Acho que estou sempre de cara feia, Sou o próprio Hesegias, o professor do suicídio,
sando no que vou fazer com o encalhe, que aumen- obrigado a viver, ernbora lhe seja penoso, para poder
lará com a saída do Próximo número' ensinar aos jovens a fugir desta vida infame.
Estufei o peito, julgand'o que iria ser séria con- Pensei em mudar de gênero. É! Eu ia escrever
corrente da Eáitora'Patriarca, e agora murchei in- um romance. Entrar na faixa da literatura de cordel.
teira, acreditando que vou entrar feito um peixinho Um livro sensacional. Até o título já fora inspirado
minusculo pela goeia d'a baleia gorda assim que ela pelas próprias agmras e minha vontade de morrer"
se dispuset sua bocarra' Não precisará Por achar que não vale a pena viver. ,,Hegesias,,,
,"qo"i vir ao " "rrÉgunhar
*"ri "n.ulço, ficará esperando -e mais em homenagem ao filósofo do suicídio. Mas nada
unia ond.a me levará para sua barriga estufada' histórico, nada didático. Romance. Quase policial.
Isto me cansa. Não quero nem imaginar o que Tenho aqui a primeira parte, creio que seria interes-
o futuro me reserva. E tenho med'o' Se eu tivesse sante, o personagem é contínuo de um escritório,,
vendido ainda sairia com algum dinheirinho' Agora vejo, o próprio, no subalterno da firma ao lado aten-

qualquer preço que alcancã será prejuízo tanto dendo tantas ordens, indo e vindo como se suas per-
investi. nas condicionadas a caminhar jamais se cansem.

28 29
"Hegesias". A idéia surgirá assim, sem mais nem partir para uma linha extrema, caso tenha real-
menos, querend.o criar mistério, tensão, suspense e mente que fechar as portas da minha editora de
*.r*ó ágo.u vejo-me ao invés de continuar a dar revista infantil.
vid.a ao interessante personagem, obrigada a aban- Já fui jornalista além de biógrafar. Já fiz de
donar tal idéia e revisar dez vezes os artigos que tudo nos jornais do país. Escrevi os'mais variados
escrevi para a revista sobre macacos, ursos, "Mulhe- artigos, críticas crônicas, contos. Fiz coluna social
res Fanãticas", curiosidades, e as cansativas monta- e até iá fui de firma em firma angariar anúncios.
gens de palavras cruzadas. Uma vez demiti-me porque não quis assinar
Não suporto mais escrever sobre a vida dos manchete que visava atacar um artista amigo meu.
heróis da Hiitória do Mundo, respeitando datas, se- I{ mesmo que não fosse, eu não seguiria ordens dadas
guind.o um esquema com estilo firme de profissional e já tentara escapar tantas vezes daquela espécie de
ãtidáti"u, descóbrindo coisas, fatos, documentos que sensacionaiismo barato e desurnano que acabei de-
outros autores não exploraram para não repetir sistindo. Eu estava certa de que haveria uma porta
cletalhes, como se repisá a Vida de D' Pedro I ou de aberta para o mundo feliz das crianças, escrevendo
Napoleão Bonaparte. Et."t são livros de encomend'a' coisas sadias e alegres, para oferecer bons momentos.
Sãó cansativos. trxigem demais da gente' Pesquisa' Algumas economias e uma idéia. Muita disposi-
Documentos. Não se pode cometer uma falha, ção e a ilusão do realizável. A chave com que abri
nenhum erro, nad.a que possa ser contestado, escre- essa porta está na minha mão, esperando que eu a
ver o que já mil v"'es, de maneira dife- feche definitivamente.
"r"r"rr".àm
rente t""aã será plágio. É mesmo difícil' É uma res- Não teria sido mesmo conveniente trabalhar
ponsabilidade seriíssima. Cansei' mais uma temporada antes de me aventurar e per-
Isso é Para urna cabeça como a do Fernando der o pouco que conseguira juntar?
Jorge. Verdãdeiro computador de datas e fatos his- Mas. . .
tóricos. É o rato de bibliotecas e museus, sempre pes- Vagas?! Jornalistas sobrando. Depois de muito
quisando, com os seus calhamaços debaixo do braço,
verdadeiías relíquias para o aprimoramento da café-com-leite e de vender algumas propriedades,
dois apartamentos que meu pai me deixara quand,o
cultura impressa.- Agorà está pesquisando a vid'a de
Santos Dumont.
morreu e outros dois que adquiri com muito sacri-
r'ício e economias (isso foi minha salvação na época
Um livro d.esses às vezes exige dois, quatro, cinco
do desemprego, da miséria, verdadeira miséria mes-
anos de pesquisas e revisões. Fernando Jorge mede
esse tempo com o entusiasmo de quem é capaz"de
rno), cheguei onde estou, nesta escrivaninha, farta
criar o mundo em cinco dias. Ele ama seu trabalho de viver! De esperar que a sorte me sorria outra vez
de biografo. como quando todos os jornais me requisitavam por-
que havia feito alguns programas de televisão e me
Admiro-o e desanimo. Cansei mesmo' Não es-
promovera com isso. São marés.
creverei mais biografias, livros de Histórias' Vou
3T
30

j
Trabalhando no que é meu é que não há nada.
Só prejuízo e dor de cabeça. Não tinha intenção de
ser concorrente d.e ninguém, mas interpretaram
assim, ou então os jornaleiros provocaram essa situa-
ção porque só acredito no que a Editora Patriarca
publica e não compram outra mercadoria além da
que ó distribuída por algumas outras editoras de
nome.
E quando chego em casa? sempre a mesrna per-
gunta:
4
f16s1çe dinheiro?
-Minhas jóias, minhas melhores roupas, tudo
vendido. Nada me sobra. E para salvar meu Volks
tive que enfrentar a fera. Seis anos aturando Elisa é prova de suprema
Eu já não agüento mais. Odeio ter que ir para tesistência física e mental. Brigas, desentendimen-
casa. Voltar para aquela moça incompreensiva e tos, um desencontro total de educação, de cultura,
exigente. de idéias. Nenhuma afinidade. A única esgotara:
Nos bons tempos, fartura, dinheiro sobrando Sexo.
para qualquer extravagância, sem freios, cansada de Por essa razã,o, acreditando que seria fácil con-
lutar para guardar alguma coisa no caso de surgir ciliar meu trabalho com o estudo, ingressei num
uma crise. Ela fazia da minha vida um inferno com cursinho à noite.
sua obsessão por fazer compras. Pretendia seguir "Ciências e Letras,,. Meu en-
Por isso a vida da gente, sem que se cogite, toma iusiasmo com a abertura da firma fora envolvido
novo rumo. Os problemas, os desesperos, as incom- tambérn peLa necessidade de preencher o horário
preensões, a falta de afinidade e colaboração trazem noturno, só para não ter que voltar para casa e en-
uma vontade de morrer, de fugir, ou de üorneÇar frentar [.lisa. Ver a cara dela que em outros tempos
tudo de novo nurn fim de mundo, corn ou.tro norne) eu achara muito bonita e agora não tinha atrativo
outras gentes, sem ambições, sem ilusões, amand"o nenhum, embora muita gente ainda ar-rastasse uma
o céu sem querer estar cruzando-o dentro d.e um asinha por ela. Eu queria arrastar tambórn, mas pâra
Lufthansa? amar o mar sem pretender um iate, voar sorrateiramente para o mais longe possível.
amar a terra sem querer cavar nela uma piscina e Inajá entrou na minha vida de maneira inespe-
deitar na grama sob a copa de uma árvore, que é rada. Chegou perto de mim e forçou a situação. Foi
bem melhor do que um guarda-sol de lona toda flo-
mesmo acintosa para atrrir meus olhos, para que eu
r{cla que o tempo gasta e desbota.
percebesse que existia uma mulher além de Elisa

32 JJ

,-l
cheia d.e atrativos e que estava interessada em mim' Inajá cercava-me. Percebendo que eu andava
Era bonita, não uma beleza de chamar atenção, ape- mesmo "desligada", eü€ não queria notar sua exis-
nas não era feia. Tinha pernas bem feitas e urn sor- tência, tomou a iniciativa.
liso provocante. Ficava sempre perto da minha carteira, e dis-
Inajá era professora do cursinho' Lecionava farçadamente encostava seus pés no meu, que eu
Português e Ingiês. Para falar a verd'ade, eu and'ava puxava para baixo do banco.
tão biiolada que quando comecei a freqüentar-aque- Surpreendeu-me ao entregar-me um teste que
la sala ond.e ie comprimiam cento e trinta alunos eu fizera e não assinara. Ela nunca vira minha letra,
entre os quais estavam apenas oito mulheres, não por isso perguntei:
reparei ná existência dela, e nem na da moça que -- Como identificou minha prova entre tantas
sentava perto de mim e que certa noite per5rn- outras?
tou-me: Eu sei muito mais a seu respeito do que ima-
-
grna.Reconheci sua letra porque no dia em que_você
Qual é o seu nome?
- Carolina, respond'i. Menü por prevenção'
Íez a matrícula ouvi sua voz. Ouvi tud.o o que disse.
- Achei absurdo e esquisito, além de que não era
instintivamente. Acho que falar com qualquer mu- prova feita na aula dela e sim na de outra profes-
lher me irritava. Elisa iá era dose para cavalo' Eu sora. Como ela estivesse encarando-me, perguntei:
estava esgotada, com ód'io d'e todas as mulheres pois Mas identificou como?
sabia dosieus artifícios e de suas artimanhas e como - Pela sua voz, iá disse.
escondem suas gaffas e o verdadeiro caráter para - E desde quando se identifica caligrafia pela
envolver-no, piru. nossa garganta sem dó, esfolan- - pessoa?
do-nos como "antropófagas famintas até que se pros-
voz da
{ss6 é uma longa estória que eu conto outro
trem cansadas.
dia. -
Eu não tinha disposição, nem ânimo, nem von- Ela continuou distribuindo as provas sem se
tade nem interesse de bater papo com ninguém' afastar do lugar ond.e eu me sentava.
C.fueria trabalhar e estudar a fim de encher a cabeça
Falava sobre ditongos, hiatos, regência verbal.
rirrn outras coisas que não fossem dívidas e a voz Prestei atenção.
tle I,llisa sempre exigindo mais e mais. Aquela voz
(luc rlrc torturava u"otuções, calúnias e lamú- O verbo bater exige um complemento, para
"om -
que o seu sentido fique completo. Objeto. Bater em
,1i,,, ,,'r. pé nem cabeça. Que eu tinha outras mu-
llrtlts, que era mentira que eu fora à Gráfica ou à alguém.
l,iloHrirÍiir, eue saíra mesmo para me encontrar com Virou-se para mim e disse:
,r11,q1,",,,. pot'isstl eu andava sem d.inheiro, pois estava Bater ern Adriana.
' u',l.rrl ;rrtrlo «rtrtra. Alguma puta sem-vergonha'
- Coitada!
-
35

l,l ff-E
camente. Estava mais velha, cabelos tingidos mais
Um rapaz das fileiras do fundo da sala achou para escuros. Eu mesma ao me olhar no espelho
graça. Ela riu e continuou:
notava a diferença dos anos, não tinha mais jeitinho
Bater na aluna. É um verbo transitivo. O de moleque. Sentia-me no meio do caminho.
-
complemento verbal liga-se ao verbo indiretamente,
isto é. por meio de preposiçáo, em, na. F;ntenderam? Bater. Verbo transitivo indireto. Bater em mim.
Uma direta. Uma intenção. Uma revelação. Caíra
. Fez uma pausa. Aguardou que alguém fizesse tlaquele olhar que batera no meu. Ela se afastou e
pergunta e prosseguiu:
apoiou-se na sua mesa. Suspirou fundo e soergueu
Então o verbo bater é transitivo indireto e o os ombros. A saia subiu. As coxas aparecerâm mais.
-
seu complemento, objeto indireto. Meus olhos bateram nas coxas roliças. Meus lábios
Oihou para mim significativamente, pálpebras ficaram secos. Era uma mulher. Desejável. Estava
descidas, as pupilas lampejando por entre os cílios, «-rlhando para mim. Senti meu sangue acelerar nas
numa expressão bastante irônica por eu me conser- veias. Uma força renovava-se. Reativava-se a energia
var indiferente ao que ela insinuava: queimada. Alguma coisa em mim começou a latejar.
Então, a regência verbal do verbo batur se Desviei o olhar.
-
faz indiretamente. Você disse que se chamava Carolina e não é
Deu alguns passos pela sala, voltou para o meu -
verdade.
Iado e como se quisesse definir demons.tratiuamente A moça que me dirigia a palavra sorria sarcás-
o verbo, estendeu a mão suauernente e com suaui- tica.
dade deu um tapinh a suaüe no meu rosto. Menti:
Embora o gesto fosse brincadeira, assustei e É verdade. Meu primeiro nome é Carolina,
recuei instintivamente. Todos riram e ela falou com -
Carolina Adriana Rezende.
rnuita graça:
Ela não acreütou. Não fiz caso. Eu estava em-
Há muitos modos de bater, mas o verbo baraçada com o olhar da professora. Estava toman-
- será transitivo indireto. Isto é apenas para
sempre do conhecimento de que os cento e tantos alunos
recapitular. Para lembrar vocês. Desculpe ter usado também estavam rqgrarando nas atitudes compro-
seu nome. É esse o seu nome, não é? Adriana? metedoras que revelavam bem o que nós.éramos.
__ Sim. Duas lésbicas identificando uma a outra.
É um nome muito bonito. E conhecido.
-
Fiquei calada. Não pensei que ela tivesse me
identificado com a imagem da tevê ou pelas minhas
colunas em jornais, apos mais de um ano de afasta-
mento. Aparecera rnuito pouco e nos meus artigos
não acompanhava fotografia. Fora coincidência
Inajá reconhecer-me. Eu mudara muito, fisionomi-
36 37
coorclenar o trabalho. Enumerar. Aos poucos eu
dana conta de tudo. Se relaxasse, estaria perdida.
Seria melhor pagar todo mundo, chamar o contador
e encerrar a firma.
Buda não admite nenhuma realidade. A reali-
dade estava me estrangulando. Por que eu não dava
uma de dóbil mental e não começava a agir como
- se fosse um ser invisível a gritar: Eu não existo, o
b que vocês estão vendo aqui é fruto de imaginação.
Ilusão de ótica pelos pensamentos que criarn ima^
gens, logo não lhes devo nada. Vocês estão inven-
tando minha existência. Buda lhes dirá e confirmará
o que digo.Eu penso, mas não existo, parem de pen-
Contrario Descartes com o seu "Penso, logo exis-
sar e eu deixarei de existir, se preferem Descartes!
to" e aceito Buda: "Eu penso, mas não existo, Por-
que o eu é uma ilusão". Cheguei ao escritório, vi Torcer! Torcer a filosofia. Filosofias! Uma re-
todo trabalho acumulado, quase vencendo o prazo manescente da outra, aprimoradas, contrariando,
de entrega à oficina; faltan'Io páginas a serem pre- seguindo o mesmo pensamento ou anulando tudo!
enchidas com artigos que não escrevi. Não senti meu Convencer-me como apregoou Asanga, explora-
corpo. Meu pensamento abrangeu tudo e num re- clor da consciência? que tudo o que existe não é senão
pente de desespero como que me vi gravitando no um sonho da nossa consciência.
espaÇo feito um asteróide sem mmo, perüdo.
Sozinha para dar conta de tudo. Um absurdo! Minha consciência gera pesadelos! perdendo
Uma loucura sem precedentes. Por que não: Já tempo. Idéias revoltas. Olhos iluminados alargando-
não ünha fazendo isso há mais de um ano? Agüen- me a mente. Retalhos de estrelas arrancadas do In-
tando, falhando uns meses a entrega da revista mas finito" Era a derrota. O cansaço. O desânimo. Estava
continuando, com esforço. A partir do primeiro só, lutando contra sombras. Explorando o vazio.
número da revista os lançamentos seriam semanais, Como Nagafirrna, entendendo que a única realidade
depois passaram para mensais, e agora nem por tri- é o vazio, um abismo insondável.
mestre dá tempo. É assim que uma pequena editora Largar tudo! E daí? Eu precisava ter coragem
vai morrendo. para deixar Elisa. O que sentia por ela? O que ela
Sentei, puxei a máquina de escrever. Fiquei de
significava para mim? Peso. Aborrecimento. Nervos.
cabeça inclinada sobre a escrivaninha".
Eu não existo! Não existo! E queria sumir. Uma irritação que prejudicava. Interferia no meu
Farta. Sem saber por onde começar. Era preciso trabalho. Era atraso! Não me dava apoio, colabora-

38 39
ção, nada. Não fazia economia, ao contrário, do- Coxas! Movem-se. Passeiam pela rninha mente.
brava os gastos e com nervos estraçalhados por la- Localização do texto. Compreensão. AnáIise e deter-
múrias e brigas ia me subjugando. Como um boneco, minação do tema. Estrutura. Conclusão. Comentá-
sem reagir, eu trabalhava para ela, para ela, para rio. Palavra. Pensamento. Idéia. Lembrança. Uma
ela! mulher. Inajá. Coxas. O poema das coxas dividido em
Descartes, Buda, Asanga, Nagafurna, Confúcio, movimentos que destaquei. As variações das impres-
Tao! Confúcio depois de Buda, Iao contemporâneo sões que me causou meu olhar preso às coxai de
de Confúcio, um pouco mais velho, funcionário do
Inajá. Gostei. Justifiquei pela perfeição do formato.
Príncipe Lou, espírito prático, preocupando*se com
A própria palavra traduz o simbolismo na análise
que significam as coxas de Inajá. Uma poesia.
os bens terrestres, nem místico, nem metafísico. $_o
Um poema! Localização do texto: As pernas dá Inajá
Vivendo-se em mundos difer:entes conforme as cren- no corpo de Inajá. Determinei o tema. Inajá é real.
ças. Em que mundo vivia eu segundo minha crença?
_C'ompreensão. . . é poético pensar nas coxas de Inajá.
Buda, Descartes, Nagafurna, Asanga, Confúcio, Uma poesia complementada pelas imagens que o
Tao, depois eu! Eu! E o meu pensamento puro, rneu pensamento cria acrescentando estrofes. Cada
olhando para os fotolitos, para o início do artigo que parte do corpo de Inajá é uma rima. E basta dizer:
pretendia escrever para encher a página da revista, COXaS!
pensando em Elisa, em dinheiro, no meu cansaço e Analiso o principal verbo que faz fixação do
na razáo por que trabalhava, gritei a. minha filosofia, vocabulário, bater! E.la bateu suavemente no meu
a minha verdade, o meu vazio, a minha consciência, rosto._O tempo e o modo, as mudanças na significa-
ti minha crença: "O mundo é uma merda! E eu sou ção. Houve; A intenção oculta na simulaçãoão ges-
um cocô! Penso e existo, penso e não existo, penso e to, a vontade de agarrar, de dizer: Sou como võcê,
está tudo vazio,, procuro e não encontro nada, os olhe-me, eu êstou aqui, ofereço-me, eu vibro, vocé
objetivos sumiram, não há amor, por que me preo- rne transmite coisas!
cupar com a felicidade de Elisa se isso não fará a Meu pensamento evoluía gramaticalmente de-
senhando a professora de português, e o altigo por
rninha felicidade? Nenhum filósofo para orien-
I

€'scrcver estava à minha frente" por que escolhôra


tar-me. A raiva explodindo dentro de mim pela inu- aquele assunto entre os que selecionara para desen-
tilidade dos meus esforços: Merda! Merda mesmo! volver? Catástrofe mental. Assimilação dê idéias:
O que sou eu para almejar tanto? As mulheres são vacas ou são cabras? No meio
Certo estava Voltaire. Nascemos entre fezes e delas eu continuava aceitando Buda: Não existo!
urina, com todo nosso orgulho. O excremento altera Talvez eu seja a cabra desgarrada. Mas, afinal, que
meu sângue! O composto fétido e pútrido traz acri- analogia poderia haver? Eu estava errada. Nunca
mônia para meu sangue, e meu cérebro queima poderia comparar uma rnulher a uma cabra, não
coisas horríveis! Tudo é merda mesmol Essa é a mi- pelo menos as que eu conhecia. Seria uma ofensa.
nha verdade moral! Para a cabra, naturalmente.
40 4t

L
A VACA DOS POBRES
Cabra não gosta de estar presa. Prefere esca-
Iar morros e lugares difíceis para comer o mato,
mesmo que seja nas piores condições, a comer a gra-
ma de campos bem cuidados. Pular e subir pelos
morros, Íazer bastante exercício é o que a cabra
quer, nada de ficar pastando, quietinha, sem liber-
dade.
A mais conhecida cabra'do Brasil é a moxotó
6 ou curaçá. Em Pernambuco e outros Estados do Nor-
deste se encontra o maior número dessa raça. Esse
tipo de cabra chega a ter uns cinqüenta centímetros
de altura e uns setenta de comprimento. Apesar de
ler boa carne, o que realmente se aproveita dela é
o couro que é o que mais se vende, sendo considerado
Você sabia que o apelido da cabra é "Vaca dos
pobres"? Isso porque ela tem um leite múto bom, um dos melhores do mundo.
sabe cúdar de si própria, não dá trabalho, come Não é só o bode que tem barba, não, a cabra da
qualquer coisa, é forte, tem saúde de ferro, quase raça toguemburgo, embora lhe faltem os chifres, tem
nunca fica doente. Deste modo não dá despesa e harba, sim e dá ótimo leite.
nem muito trabalho ao dono. Há outra raça também muito criada no Brasil,
Entretanto, uma cabra bem cuidada, evidente- a anglo-nubiana, mistura da raça inglesa e da nu-
rnente, dará melhor leite, melhor carne e melhor biana. É a mais mansa de todas e seu leite é gostoso
pêlo. e forte, bastante nutritivo.
Ainda há gente que fala mal da coitadinha da A cabra é um mamífero ruminante, fêmea do
cabra! Dizem que ela é tão gulosa que come tudo bode, pertence à família dos bovídeos (touro, etc.).
o que encontra na esperança de achar algo mais gos- Na Ásia, na Europa e na África üvem as cabras
toso. Por isso come até roupa pendurada em varal, selvagens. Seus chifres são ocos, o focinho peludo e
cartazes, galhos, folhas, feno, papel, tud.o enfim que repartido no meiol alguns bodes são desprovidos de
encontra ela mastiga. chifres. As fêmeas e seus filhotes sempre obedecem
O requeijão do Nordeste é feito do leite de cabra, aos machos.
com o qual aliás, se produz uma infinidade de tipos No Himalaia, justamente nos lugares mais frios,
de queijo e manteiga. sempre cobertos de neve, encontra-se a raça ibex, a
As cabras do Brasil são bisnetas de cabras es- mais conhecida das cabras selvagens. Mora perto de
trangeiras, mas podemos considerá-las bem brasi- precipícios e nas mais íngremes altitudes. É muito
leiras. difícil conseguir caçar uma ibex.
lU
45

,Ü_rr
A cabra ibex éum animal dos mais ariscos, sua Cabra? Mulher? A minha! Elisa é uma cabra.
agilidade é impressionante e seus pulos causam sur- De tetas secas. Não dá leite. Devora tud.o o que te-
presa aos alpinistas que escalam aquelas monta- nho. É rebelde. Eu queria uma vaca cor-d.e-rosa, de
nhas, tentando capturar exemplares da raça, e que tetas cheias, mansinha, de olhos tristes e brilhantes,
voltam na maioria das vezes de mãos abanando, e meti-me com uma cabra que é bem diferente das
sem nenhuma presa, pois a ibex, com o seu equilí- cabras sobre as quais falei no artigo que escrevi para
brio e sua agilidade notável, atinge lugares onde u a revista.
homem não ousaria ir. Escrêvia e pensava em Elisa. Quando cheguei
Embora muitas vezes consigam domestical a à parte em que falo sobre a visão da cabra ibex,
ibex ela é sempre rebelde, não obedece e cria plr,- o Jeu olfato aguçado e das suas quatro patas de exí-
blemas ao seu dono. mia saltadora, lembrei-me de Inajá. As pernas dela
A cabra ibex mede oitenta centímetros de altura alongaram-se e eu a vi executando um bailado ca'
e seus longos chifres chegam a ter um metro e qua- prídeo!
lenta e cinco de comprimento. É uma loucura! O telefone toca e Elisa chora-
Vocês ficariam indignados e chego até a pensar minga que foi obrigada a passar um cheque sem
que duvidarão do que eu vou lhes contar, mas creiane fundo para um cobrador que não saía da porta"
que é verdade: a ibex tem uma guardiã, uma senti.
nela. É! Exatamente! E mais ainda, uma sentinela - Quanto?
pu2sntos cruzeiros.
que assobia para avisar o grrpo de cabras casô des- - Duzentos crlzeiros!? Você quer me deixar
confie de algum perigo. Os mais temidos inimigos
da ibex são os leopardos-das-neves e os cachon'os - Onde gastou tanto dinheiro?
rnaluca:
selvagens. Onde? ! Você pensa que gosto de viver na
A visão da cabra ibex é perfeita, ouve muito berm
-
bagunça? Comprei papel contact para forrar os ar-
e tem olfato aguçado. Como se estivesse executando mários da cozinha. Estavam indecentes.
o mais simples passo de balé, ela salta de uma pecL'a Mas os armários não foram pintados recen-
para outra mesmo que esta esteja a uns treze metros -
temente? Não estava tudo bonito e limpinho? O que
abaixo e onde o espaço mal dá para suas quatro patas deu em você? Pensa que meu cocô é torrão de our:o
de exímia saltadora. que vend.o aos quilos para pagar suas extravagân-
Na Universidade de Coimbra há uma sineta que cias?
;rnuncia o começo e fim do trabalho escolar diár'ic, Naturalmente ela bateu o telefone. Ficluei espe-
à qual dão o nome de cabra. rando. Sabia que tocaria outra vez. Tocou.
Aqui no Brasil é mulher que berra muito! Onde você quer que eu arrume dinheiro?
- suas amigas vêm aqui e você não qller que
Depois,
elas digam que a casa de uma iornalista ó des-
cuidada, porão a culpa em mim, é claro.

46 4/
Mas não tenho dinheiro, Elisa. Paguei o le- Quanto tempo eu não fazia sexo com Elisa? Nern
- tive que terminar o serviço sozinha,
trista, estou sabia ao certo. Não tinha disposição, nem pensava
exausta, você nem pode imaginar quanto trabalho nisso. A lida diária exauria todas minhas energias.
tenho aqui na minha frente, e você só fica pensando E o arrepio passeou suave e leve pelo meu corpo
em bobagens, em gastar. e eu passei a mão pelo rosto, lembrando que a mão
Você tem que dar um jeito. Tem que depo- de Inajá havia pousado nele.
sitar -ainda hoje. Já imaginou o que me aconteceria Bater! Bater na cabeça de Elisa até que ela co-
se o cheque voltasse! Agora o caso é sério. É cadeia. meçasse a raciocinar direito, a compreender a situa-
Fui eu que bati o telefone dessa vez. Que ela ção, o mal que estava me fazendot Bater! Bater lrreu
fosse para a cadeia. Era o jeito. (-orpo contra o corpo de Inajá até gozarmos juntas.
O telefone tocou. Fiquei pensando. Novamente o telefone. A voz
Cabra mestiça, nem nubiana, nem inglesa, de Elisa foi ácido escorrendo pelo buraco do ouvido:
-
nem ibex, você é uma cabra ruminante, mamifera, Como é? Você não vai depositar o dinheiro?
desgraçada que está me enlouquecendo! -Fechei o escritório e fui. Eu não poderia con,
Ela fez que não ouvir-r, ou não entendeu. per- tinuar trabalhando. Uma idéia crescera em minha
guntou no seu modo duro: cabeça. Depois do Banco, fui para casa.
Você vai ou não? Elisa estranhou. E tentou me abraçar agrade-
-Haveria outradepositar
saída? Depois do cursinho eu cida quando confirmei que havia coberto o cheque.
teria que ir para casa de qualquer jeito. Não tinha Empurrei-a e fui para o banheiro. Demorei tomando
escapatória. lü bariho. Perfumei o corpo todo.
Deposito. Elisa mordiscou os lábios e resmungou, ferina
- nem quis saber onde eu ir:ia arranjar pelo esmero com que eu estava me arrumando.
dinhei-
ro. -Ela
Eram duas e meia da tarde. Telefonei para a Era verdade. Eu fora para casa com o pensa-
Gráfica. Pedi para mandar um mensageiro rleceber rnento amarrado em Inajá, e queria estar muito bem
no escritório. Expliquei que aconteceri algo impre- trajada nessa noite porque iria vê-la.
üsto e- que o cheque que eu havia dado paia rer ães-
contado na manhã seguinte precisava ser trocado.
Ilma diferença de duzóntos cruzeiros que eu cobri-
ria até o fim da semana. O dono e.a meu amigo,
concordou amavelmente, mas eu quase morri ãe
vergonha.
Odiei Elisa. Em meio a esse sentimento Inajá
s-urgru com o seu olhar insinuante e suas pernas que
despertaram em mim um desejo de sexo aãormecião. l
48
49
tudo muito bonito, entusiasmador, excitante, gostoso,
lr para depois um arroto azedo de ressaca e mau-
humor!
Virei as costas e afastei-me, convencend.o-me
pelas minhas experiências passad.as que não valia
a pena desejar mulher alguma. Para que começar a
coçar-me de novo se estava sarand.o da sarna que
+ Elisa me passara? A sarna mental! Aquela coceira
7 irritante que depois arde, quando a gente percebe
que o amor não era amor, era um pensamento que
simbolizou uma sensação.
Eu lamberia a mulher porque o mel do seu
olhar me atraía como a uma apis mellifica e depoig
sob o melado, encontraria um cocô! Contraí-me! Mi-
Mais uma fuga. Memorizar. Atualizar cultura e
aumentar meu campo de estudos avançando para nhas idéias conspurcavam minha mente.
outras ciências. Encher a cabeça com fatos históricos, Ela aproximou-se por trás de mim e disse bem
torcer a língua para aprender a pronúncia, e regis- perto do meu ouvido:
trar a grafia dos novos idiomas que estudava.
-Voltei-me para ela 1o..i*u,
Mandou passar hern?
Encher a cabeça, fartar-me com o olhar preso e perguntei curiosa:
nas coxas de Inajá, que parecia deliberar seu modo {e Não entend.i?
de andar e de aproximar-se de mim, percebendo, in- - Não é nad.a, não. Deixa. Tod.a noite você
tuitivamente, o que me provocava. f.az a- mesma coisa, me manda passar por cima.
Eu não queria olhar. O olhar seguia magnet'i- Afastou-se no meio de um grupo de alunos que
zado aos movimentos dela. Precisava concentrar-me. a rodeavam, inventando motivos para falar com ela.
Prestar atenção. Estava ali para aprender, recapi- Fiquei olhando-a curiosa. Era uma mulher interes-
tular e não perturbar-me com um desejo inconve- sante. Notei alguma menininhas evidentemente em-
niente e atiçado pelos trejeitos dela. polgadas pela mestra. Sequer percebiam que esta-
Durante o intervalo surpreendi-a olhando-me vam revelando suas tendências homossexuais com
de maneira persistente e reveladora, aliás, o olhar seus olhares insistentes procurando o olhar de Inajá.
dela estavâ sempre pousado em mirn durante as Cobiçavam-na. Zrtmbiam ao redor dela como abe-
aulas, o que me intrigava e comeÇava a criar sus- Lhas procurando mel.
peitas de que talvez ela estivesse apenas querendo Como eu custara para perceber o mundo cir-
comprovar o que eu era, divertindo-se. Senti medo. cundante. Estava dentro de mim, amarrada no meu
fC raiva. Eram todas iguais Elisa e ela. A princípio I.
eu, nos meus problemas, colhend.o às vezes impres-
50 51

.-
sões exteriores. E as coxas de Inajá alertavam-me, trapasso quando você oferece passagem e faz gestos
chamavam-me. Tiravam-me de dentro de mim. Eu rd
me mandando passar por cima.
estava olhando para fora. Observando o que me Ahl é sempre você? Pensei que toda noite
rodeava, abrindo os olhos de novo. Estava escápando. - invocasse comigo, mas não que fosse
alguém a
Do medo da derrota. Dos objetivos frustrados da mi- rnesma pessoa.
nha firma. Do fracasso da revista. Da ilusão de criar
É. Sou muito insignificante para ser notada
alguma coisa minha. De invadir o comércio e ser -
por você, por isso me mandou passar por cima.
autônoma. De misturâr-me ao mundo financeiro e
sentar numa poltrona confortável dando ordens a Se eu soubesse que se tratava de você não
contínuos e secretárias. teria-feito isso.

Estava sozinha e ia continuar sozinha. Olhando O que teria feito?


-Fiquei sem saber o que responder, percebendo
para Inajá, não querendo voltar para Elisa. Sendo
eu sem querer ser eu. Começar tudo de novo. Nascer aquele olhar transrnitindo sensações excitantes.
outra vez. Recebendo de volta o olhar de Inajá e sen- O que teria feito?
tindo uma contração gostosa arrepiar-me. Concluí: -Ela tornou a perguntar e percebi que se esfor-
I
Nascer homossexual outra vez, porque quando eu çava em parecer natural.
desejava alguém eu amava o que eu era. Bem, talvez eu não tivesse mandado você
Ela üera devagarinho, disfarçadamente, con- passar- por cima, talvez eu tivesse passado por cima,
versand.o com os alunos, despedindo-os. mand.an- ou então, bem o sentido de passar por cima seria
do-os para as salas de aula, avisando que o sinal outro, isto é, eu não agiria assim. . .
r.t
estava tocando. Sempre olhando-me. Continuei pa-
que faria então?
rada, como que à espera, com a certeza de que ela - 0Abriria a porta do meu carro e a convidaria
ia dirigir-se a mim mais uma vez.
para -uma conversa.
Estava perto. Diante de mim. No corredor só
nós duas. Algumas vozes nas salas de aula, um pro- Por que não faz isso?
- você estiver sem condução eu lhe
Íessor apressado que se atrasara passou por nós "
- Quando
ofereço. ..
Você me mandou passar por cima.
-Ela resolveu finalmente esclarecer quando in- Uma carona? [nfsrr.6mpeu-me.
- É. Pode ser. -
sisti:
- Hoje estou sem condução.
Não entendo o que quer dizer com isso, por
favor?.- .. - Então estou às suas ordens.
Eu sigo seu carro e fico acendendo e apa-
- Mas eu moro muito longe.
gando - os faróis, forçando você, pedindo passagem, - O que significa longe?
você cansa de minha insistência porque eu não uI- §i,
- No fim do mundo.
-
52 53
I

Eu conheço o fim do mundo. Ando sempre


-
por aqueles lados. Pode deixar que eu a levo direi-
tinho até lá.
Então você terá que matar as próximas aulas
- eu vou sair já.
porque
Mandei-a ficar esperando e fui buscar minha
pasta na sala de aula. Saímos.

Ela entrou no meu carro e eu me senti dona do


!, Universo. Não estava só. Estava começando de novo.
Era uma nova personalidade surgindo de uma alma
esfarrapada por decep,ções. A ilusão tomava conta.
Pincelava o mundo de azul e as palawas de Inajá
tinham ressonância de rimas cantadas em poesias
,\ que preambulavam o amor.
Eu estava namorando. Nada mais delicioso do
que envolver-se por um idílio em suas primeiras ma-
nifestações tímidas, medrosas, cheias de dúvidas, de
recato e ansiedad.e.
Você acredita em Deus, Adriana? Eu não
-
acred.ito.
O modo de dizer firmava suas convicções. A per-
,!
gunta veio de encontro às minhas divagações.
Às vezes acredito. Talvez quando preciso
-
convencer-me de que não estou sozinha, que existe
I alguma coisa, alguém, uma força maior e justa, in-
tercedendo por mim. Às vezes blasfemo. Não creio.
i Subdivido Deus nas sabedorias dos filósofos e dis-
r! cuto mentalmente com eles. Houve sempre um Deus
I
54 I
I
55
Você sabe q-ue sou, quem sou e por que
antes Daquele que ad'oramos conforme a época em - conversando.
estamos -o
O que nos atraiu? A sua curio_
que viveáos, sem limite de tempo' Atrô agora ouvi sidade pelo meu modo de ser ou sua tendência?
ÍàIar de Criáto e de Deus, mas talvez antes Deles que posso concluir? Vê como tudo é vago, impreciso?
O
existissem outros, sei lá. Tud'o que d'issermos será Se você responder, eu acreditarei. Àr ;;d-;;;;
vago, casual, não será uma definição ou uma asser- como respostas de Deus aos meus apelos o resultado
tivã iinal. Amanhã mudaremos de idéia' Eu tenho que alcanço nos meus empreendimentos, ou nos
fra-
minha crença por aquilo que sou e pego emprestado cassos. Quando Ele me atende é Bom, quando
u.
o Deus d.e tod.o -rráo para ser o meu quando quero sas rodam ao contrário, Ele é Mau. por que
t", or"r_
"oi_
entender que sou igual a todo mund'o, embora-reze tão de. . . travar amizade comigo? Do que p#;;;
outro credã. Entendeu-me ou fui prolixa e confusa? que está certo?
Entendi. Por curiosidade.
- E você? Por que não crê em Deus? Em que - Satisfiz?
- - Plenamente.
acredita? - dizer que já me analisou?
Em mim. Só em mim'
- Pode incluir-me? - Quer
Sim.
- Você ainda tem dúvid'a' Não afirma - Agora compete a você satisfazer_me.
nada' - Como?
Nem-sabe se crê em Deus ou não' - Posso dizer o que penso?
Pode-se afirmar alguma coisa? Que sei tudo?
Assim chegarei lá.
- Diga.
--aoestudei o suÍiciente, que sou sábia, que che-
Que já - Primeiro notei suas pernas.
guei final de todas as ciências para afirmar que - disse coxas porque seria
Não
ó"rrc existe, que creio, ou que não existe e que des- sexual. Muito evi_
dente. Um tanto chôcante. Falar au, p".rur- a"ü
cobri outro mistério, mas que é preciso continuar seria elogioso. Ela poderia aceitar po. lrãidude sem
pesquisando porque tudo é hipotético? Eu não sou achar que eu estaria sendo atrevida.
hipótéti"u, nem o que sinto. Isso é o que conta aggTa'
E daí?
Poiqrle as mudanças çlue se operam no meu espirito - São lindas. Roubei-as para
são inesperadas u sutpie"ndentes' Por exemplo, hoje - pensamento. Estudo, analisandomim. plantei-as
no meu
à tarde eu estava qúerendo firmar-me na filoso{ia o texto do
qu€ penso, a gramática da poesia que as suas pernas
do Buda e convenc"i-*" de que não existo, que tu«lo
sao.
é pensamento e sonho, para livrar-me dos meus pro-
blemas. Eu torço as filosofias conforme minhas con- Você
- E vocêétern um sorriso encantador.
gozada.
veniências. Agora congratulo-me com Descartes - V-gcê poderia ser meu deus.
"Penso, logo existo". Porque você está aqui' ; Gosto da sua
filosofia. Você a faz em poucas palawas, ;;d;
Ela ficou em silêncio. ",
56 57
como fala, na inflexão que usa. Você é uma criatura lor do rosto dela. Um calor que subia acima da pele
amargurada, sofrida, medrosa, não acredita nas pes- e tocou o meu rosto como vapor, penetrando meus
soas, por isso quer acreditar em Deus. Não tem muita poros.
confiança em si própria, por isso quer acreditar Afastei-me. EIa estava queimando de desejo.
numa força sobrenatural que interceda por você nas Agora eu acredito que existo. Sou uma coisa
horas em que sua personalidade fraquejar. Mas você -
imensa quãrendo envolver você e sinto-me penetrada
é capaz de se dar e de se tornar deus para algumas por algo telúrico, um calor de vida, a ardência da
coisas. Eu disse isso porque acredito no que vejo e no alma e do corpo de você.
que posso tocar. Eu a beijei de novo e ela se entregou ao beijo,
Por favor, gostaria que você comprovasse descerrando os lábios, espichando a Iíngua para tocar
isso, -
provando a mim mesma que existo. rr minha, as mãos agarrando-me nos ombros, afa-
Como? gando meu rosto, puxando-me pela nuca para que
-Estendi a mão. õ U"ilo fosse mais forte, mais demorado, dolorido.
Apertando minha mão entre as suas. Deslizei a mão. Foi um toque mágico que a des-
-Desse jeito eu avançava. Tudo o que eu queria pertou. Ela me empurrou quando colhi.o seio por
era tocá-la. Beijá-la. Aproximar-me sem filosofia, ãntre o d.ecote da blusa. Eu não fora longe demais'
sem crenças, sem Deus ou deuses, puramente ani- Apenas começava a percorrer os caminhos que me
mal, por um desejo que a presença dela fazia crescer. {ariam desbravadora daquele território capitoso.
Ela hesitou. Voltei para o meu lugar. Parara o carro no
Tem medo? Somos duas mulheres. Estamos acostamento de uma estrada estreita ladeada por ba-
-
filosofando. A sua crença e a minha. Que mal há naneiras, num lugar ermo, nos confins do bairro
em que segure ou aperte minha mão? Tem medo onde ela morava.
de quê? Que posso descobrir com isso? Que elas são Eu nem sequer sabia onde estava. Vi mais
macias? adiante um muro caindo aos pedaços e tentei pers-
Insisti, estendendo a mão. Nossas mãos se to- crutar a escurid.ão. Por sobre o muro vi cabeças de
caram, ela tentou desprendê-la. Apertei-a. Nossos estátuas e cruzes.
dedos entrelaçaram-se. Minha voz, percebi e senti, É um cemitério.
e ouvi quando falei, parecia até outra pessoa, não Fiquei olhando. Circunvaguei o olhar e me en-
eu, mais desprendida, corajosa, com pressa de reali- contrei ão lado dela, envotrvida pelas sombras do lu-
zações: gar desconhecido.
É macia. Você treme. Você é quem tem Eu disse que morava longe, no fim do mun-
-
medo. do. -
Aproximei-me. Ela desviou o rosto. Consegui Apaguei as lanternas do carro que eu havia
beijá-la. Ela ficou com os lábios cerrados. Senti o ca- parado quando estendera a mão para que ela pro'

58 59
vasse que eu existia, com intenção de chegar ao
ponto onde chegara. A escuridão fechou mais.
Agora estamos no vazio. Só um pouco de
-
luz mortiça que vem do misterioso infinito ãeixa-me
vê-la e perceber que estou na Terra.
T'ornei a acender as lanternas.
- Aqui deve ser perigoso. Onde estamos?
- Você não disse que conhecia o fim do murlí
- reconhece?
tlo? Não
Mas esqueci o nome. Até o fim do mundo 9
tem -um nome.
Então você vai ficar perdida
- Você vai me ensinar a voltarpor aqui?
e depois virei
mais-vezes até decorar o caminho. Saí do cursinho. Não sobrava tempo. Todas as
Ou até que eu aceite noites, onde quer que ela fosse lecionar, lá estava
- Em Deus, nos deuses?a sua crença? eu na porta, esperando-a. Inajá fazia com que eu
- No que você acreditar. esquecesse as atribulações diárias. Inteligente, cari-
- Ou até que você deixe de ter medo de ser o rrhosa, amiga acima de tudo. Compreendia-me.
-
queéenãonegue. E então, de repente, fiquei sabendo que estava
O que eu sou? noiva. Ela disse que me amava, que não tinha cora-
- Tem tendências homossexuais. É. gem de me deixar, mas que não podia desmanchar
- Não. Não sou. o noivado. Discutimos o assunto. As razões dela eram
- firmadas no respeito que devia aos outros, aos pais
e o medo de gente como eu. Eu tinha "um caso" não
podia desfazer o compromisso sem mais nem rne-
nos. O tempo de vida em comum tornara-me res-
ponsável por Elisa. Ela precisava de mim. Dependia
de mim. Eu não me pertencia de todo. Não era com-
pletamente livre. Minhas obrigações morais amarra-
vam-me a ela.
Afastei-me de Inajá durante um mês. Nem sei
como esse mês passou. Sei apenas que certa noite
parei em frente ao "cursinho", ela saiu e entrou no
meu carro. Nem sequer nos cumprimentamos. Era
ó0
61
como se tivéssemos telepaticamente marcado encon- E se ele for?
tro para aquela noite. - Não sei.
Nas proximidades da Cidade Universitária, para - Então esperemos amanhã para ver o que
onde me dirigi sem tomar nota do rumo que seguira, -
acontece
ela deu as primeiras palavras. Nossas rnãos entre- tr de repente, uma raiva da mulher insegura,
laçavam-se, dedos uniam-se e desuniam-se era um da homossexual desviando-se, enganando a si pró-
diálogo de mãos que tremiam de saud.ade. pria, iludindo um homem, dividindo-se cornigo, so-
f,6p6 você pôde ficar tanto tempo sem me Írendo e me fazendo sofrer, provocando-rne e exci'
-
ver? Acho que por sadismo. Por ter certeza de que tando-se sem que chegássemos a coisa alguma, na-
eu sofria. Imaginava-me esperand.o-a, olhando as quelas masturbações mentais, nos esfregas dentro
ruas à sua procura e deliciava-se com isso. do carro, das tensões por serrnos surpreendidas por
Ela seguira o que eu sentira. Fora exatamente outros que passavam pelo nosso caminho. A mão
assim. Deleitara-me imaginar Inajá ansiosa, contan- desceu para o rosto de Inajá. Não suavemente, sim-
do as noites em que eu não estava à espera dela. Era bolizando a ação de um verbo, mas definindo na sua
um masoquismo com a compensação do prazer do violência o gesto de bater. A bofetada doeu. Ela er-
sadismo. gueu a mão para a face que avermelhou e fitou-me
Preciso ter você. Sinto vontade de você, Ina- atônita:
-
já. Sei que nada haverá entre nós. Que nunca fica- Você me bateu? Por quê? Por que, Adriana?
- Porque você merece. Porque está me enlou-
remos juntas. Qre vamos sepârar-nos definitiva- -
mente, mas preciso ter você, ao menos uma vez. quecendo. Porque vamos separar-nos. Porque o nosso
caso não pode ser. Não sei, não sei. E nern quero
Sua voz me queima.
-Rodamos quase São Paulo inteiro. Meia-noite pedir desculpa. Tenho mesmo vontade de bater em
você.
tleixei-a perto da casa dela. O noivo deveria estar
impaciente. Ela não o esperara. Assim que me vira Beijamo-nos com sofreguidão. Não combinamos
entrara no meu carro. Regozijei quando ela contou: nada, Ela foi embora.
Nem vi se ele já estava lá. Fiquei cega. Es- Manhã seguinte, pulei cedo da camâ. Não fui
-
tava morrendo de saudade. Acho que ele não estava para o escritório. Dez horas estava tocando a cam-
não, senão teria nos seguido.
painha da casa de Inajá. A mãe dela atendeu' Inajá
estava tomando banho. Fiquei esperando. A mãe
E agora? dela desculpou-se. Teria que me deixar sozinha. Já
- Se ele não estiver me esperando em casa,
avisara a filha que eu estava lá. Ia à feira, eu não
- aparecerá.
amanhã me importaya de ficar folheando umas revistas?
Não quero saber. Vamos Íazer de conta que Absolutamente! Ela podia sair tranqüila, eu é que
-
clc não existe. me desculpava por chegar em hora tão inoportu-
Amanhã você vai me buscar? na.
-
62 63
A porta da r.ua fechou e a do banheiro abriu vergonha Inajá, e agora?
simultaneamente. Inajá olhou-me do alto da escada - Que
Ela pensa que estávamos estudando. Nem
onde apareceu. Eu estava no hall, bem em frente. pensa- nisso. Veio nos chamar para almoçar. Vamos.
Suba. Aproximei-me e fiquei esperando. Ela me abra-
-Deixei a revista sobre a mesinha e fui. çou. Senti que era um adeus.
\l -- O que deu em você? Era um adeus, nas mãos que levaram as minhas
* Quer que eu vá embora? i
rnãos para afagar-lhe as coxas, nas mãos que condu-
Ela segurou minha mão. ziram as minhas para os seus seios, nas mãos que ofe-
reciam todo seu corpo para que eu bolinasse, beijasse,
-- Não. Venha. Já que está aqui venha enxu- e possuísse.
gar meus cabelos.
Passamos a tarde juntas. Às cinco e meia saímos
Entrou no quarto. Sentou numa cadeira. Esten-
e ficamos rodando pela cidade até a hora em que
deu-mc o secador que ligou na tomada.
a deixei na porta do "cursinho". Despedimo-nos.
Ela estava de roupão de banho. Percebi que
estava nua sob o tecido macio. Passei a mão pelos Você é quem tem que me deixar porque eu
-
não tenho coragem. Você precisa sumir da minha
cabelos deia. Carinhosamente. O ar quente esvoa-
çava os fios úmidos. Inclinei-me. Beijei-a na nuca. vida, porque foi muito difícil forjar uma situação
Ela empurrou a porta com o pé. Num gesto rápido para enganar a mim mesma e aos meus pais, você
girou a chave na fechadura. Entend"i. Larguei o se- precisa me deixar, Adriana, mas não faça isso por-
cador. E estendi as mãos para ela. Ela veio para mim, que eu a amo desesperadamente.
«r rosto oferecendo a boca. Ajoelhei-me. Ah! Controvérsia, contra-senso, insegurança!
Inajá estremecia. A respiração irregular. O calor - Ficamos de mãos dadas e conversamos muito
do corpo dela aumentava. sobre a nossa situação. Nossos problemas pareciam
Bateram à porta. A mãe chamando-a pelo insolúveis. Os obstáculos, intransponíveis. Ela se ha-
nome. Afastei-me atordoada, ela recompôs-se. Ves- bituara a uma situação dissimuladora e eu me dei-
tiu o roupão às pressas. A calcinha continuou no xara absorver e aniquilar pelas manhas de Elisa.
chão. Joguei-a.num chute para debaixo da cama. Sete horas ela saltou do carro. Prometi voltar
Tudo acontecera numa vertigem. Inajá estivera sempre. Todas as noites. Fiquei cismando. Peguei
nua. Grudada em mim. papel e caneta no porta-luvas e escrevi uma carta.
Ouvi-a dizendo qualquer coisa para a mãe e os Uma despedida. Não podia encerrar um "caso" assim
passos que desciam a escada em seguida. Olhei-a sem dizer tudo o que eu pensava e sentia. Pretendia
assustada. não vê-la nunca mais.
Estava embaraçada. Teria a mãe dela perce- Pedi ao ascensorista do elevador do prédio onde
bido? !I ela lecionava que entregasse a carta.
& 65
Inajá: Entretanto) sott toda alma e o que conta são as
Todos os sentimentos passaram por mim, da 't minhas uerdades, não a hipocrisia dos espíritos m*
raiua à mais profunda tristeza. Como sempre a raz.ão drosos e deformados pelas imposições de uma socie'
se impôs e uenceu. dade medíocre e abafada.
Estendo a mão à palmatória e retiro-me. Não Abafada, represada, cheia de compleros! A
nego gue carrego comtgo o peso do mais arrasador sociedade, é claro.
lracasso. De alguru minutos para cá, minha cara e dis'
Realmente uocê não passa de uma índefínida e tinta professora, tudo tem cheiro de coisa deterio-
eu de uma couarde, íncerta, ínsegura,, gue nem rada, de mofo, de couardia.
mesmo sei a diferença entre um uerdadeiro amor e
As pessoas caem. Caem sempre no uulgar de
uma emoção forte. Carência afettua, por certo, insa- negarem a próprta natureza.
í.isfação, prazer pela auentura. De todo modo, aman-
d.o ou apenos deliciando-me pelo encanto do roman-
O med.o e a hipocrisia não merecem respeito,
ce, dos seus beiios e do olhar bonito, sei quando mas indiferença e lástima.
minhas determinações deuem ser irredutíueis. Isto, Taluez eu esteia sendo rude, taluez, trarutor-
naturalmente, forçada pelas ctrcunstâncias criadas nada pelo rompimento ineuítáuel, berre minha re'
por uocê, ou por nós, como quetra. uolta nes'tas palauras, como se tiuesse perdido o yais.
Você é infantil e tola. Tenta enganar aos ou- precioso dos momentos na reuelação de que tudo foi
lros e não faz mats do que destruir a si própría. um triste engctno.
Você está amarrada na mentira) no medo, na
Conselheira ou acusadora deploro sua atitude.
Pobre nciuo iludido que leuará. para a cama uma farsa e eu rne estrangulo pelos meus próprios erros.
mulher cuio espírito deformado criará. situações em- Durma Íza sua mentira e utua um sonho feliz,
baraçosas e i.nfelizes pelo seu desajustamento, a. orald nunca desperte para o pesadelo que a espera.
menos que consiga superar a si própria, retntegrar-se Sigo. Não posso parar porgue não sei deitar de
ao ambiente de onde uem e onde gostaria de fir- ser o gue sou: homossetual genuína à procura de
m(u-se. Será, uma luta. O que uocê é2 Não sei. Foi Ltma semelhante.
encantadora, delictosa e nada negou sua definída Adeus
natureza homossetual. E pena gue tente enganar a si Adriana.
própría e tenha coragem de desgraçar um pobre
rctpaz gue a ama e rtunca chegará a conhecê-la ple-
na.mente. Não escrevi e nem apareci mais. Quase dois
Quanto a mím, jamais deiraret de ser autên- meses depois encontrei-a casualmente na Vinte e
lica e de ter noção do que deuo fazer. Esta é a des- Quatro de Maio. Fingi que não a vi, mas ela veio
pedida, dura, fria, definttiua. Nada resta. Para nós cumprimentar-me. Os alunos que estavam com ela
ficou o resultado daquilo gue somos: duas nulídades. percóberam meu embaraço e o nervosismo de Inajá.
66 67
Fingi naturalidade ou forcei não demonstrar
que não éramos apenas simples amigas. Despedimo-
nos após troca de poucas palavras e nunca mais nos
encontramos novamente.
Eram três horas da tarde nessa última vez em
que vi Inajá. Eu não queria lutar por mulher nenhu-
ma, enfrentar noivo, sociedade, família, desfazer
lrma aparência que ela estava conseguindol arran-
cá-la do mundo dela para o meu? criar problemas.
Nada disso. O amor de uma mulher por mim teria
I

r0
que ser sem entraves, sem temores, sem complexos,
sem medos, natural, espontâneo, genuíno.
Eu estava indo para a Gráfica. Desisti em meio
do caminho. Rever Inajá mexera comigo. Meus pen- Às vezes a contingência nos obriga a um golpe
samentos embaralharam. Lembrei-me da carta que decisivo, sem explicações e desculpas, sem esclare-
t
lhe escrevera e me senti ridícula, boçal, desperdiçan- cimentos e sem transigir. Elisa desculpou-se sem
clo letras. A realidade é bem diferente da filosofia arte, eu tinha as provas e ela não podia escapar da
com que a imaginamos. Inajá parecia bem na sua verdadel a imposição que dignificaria seria ir-me em-
situação escolhida. Eu é que com o meu romantismo
bora para preservar o que eu tinha de mais valor:
piegas estava desajustada e pretensiosa na minha
rninha cabeça, serrados os chifres, é lógico.
conceituação moral daquilo que um indivíduo é ou
r:esolve ser. Ela não podia provar que não houvera culpa
Resolvi ir para casa. Tomaria um banho, café- e eu não me ridicularizei.
com-leite, conversaria com Elisa, que andava cada Fingi que não vi o homem, entrei no banheiro,
vez mais insuportável. Seria possível acertar os pon- lavei as mãos, entrei no meu gabinete, sentei por trás
teiros com ela? Não. Não tinha ilusões, nem me ani- da escrivaninha e fiquei pensativa, olhando para
mava. Eu precisava descansar. Ter apenas uma Elisa, sem vê-Ia. Ela falava, eu não entendia nada.
amiga que me acompanhasse no silêncio. Eu só me preocupava com o tempo que gastaria para
Decisão acertada seria fechar minha firma antes 1 arrumar todos os meus livros, juntar minha roupa
uma falência. Faria isso tão logo me desfizesse do e sair. Levaria tempo. Não ia agir precipitadamente.
de
Precisava calcular. Telefonei para uma Companhia
estoque de revistas que formavam pirâmides no mi-
núsculo escritório. de Transportes pedindo que mandassem uma camio-
neta.
Cheguei em casa. Entrei. Elisa saiu do quarto.
enrolada numa toalha. Na minha cama eu vi um Ela falava, rodeando-me. Exasperava-se. Não
homem deitado. queria que eu a deixasse. Ia morrer sem mim. Que

68 69
desplante! Não vi quando o homem saiu ou se ficou segurança de Inajá. Precisava encontrar gente. Defi-
lá no quarto, pois não olhei naquela direção quando I
nida. Como eu. Autêntica. Sair da fossa dos desen-
tive que andar pela casa recolhendo minhas coisas. contros. Eu não amava Elisa, não amava Inajá,
Eu te amo! Fiz isso porque você não me liga. amava alguma coisa superior a mim mesma. Um
-
Porque sei que você tem outra. Queria que sofresse' ideal que eu buscava sem ter estabelecido como seria.
Você me enlouqueceu. Reorganizaria minha vida. Trabalharia. Fincaria
E a cabra ficou berrando! raízes em novo empreendimento e não teria mais
Fechei a porta atrás de mim' Não sei quanto problemas, nem comerciais, nem sentimentais.
tempo demorei para fazer a mudança, só sei que A verdade era que por mais que eu quisesse
qrrarrdo cheguei ao escritório com tod'os os meus ba- provar o sabor do amor não conseguia amar nin-
gulhos suspirei aliviada. Suóm, era tudo sexo, necessidade de companhia,
À noite fui para um hotel. Precisava providen- horror à solidão.
ciar um lugar para morar. Tudo acontecera naquele Deveria sair com amigos. Procurá-los. Estava
dia. Seria ó meu dia negro ou outras portas ofere- muito afastada. Centralizara-me nas minhas preo-
ciam passagem para que eu seguisse novo rumo? cupações pessoais, devia interessar-me em ver como
Faltava mesmo era fechar a firma. Encerrar os outros viviam, como pensavam, o que sentiam e
minha carreira de editora e cuidar de mim sem ouvir lamúrias, confidências e coisas alegres, que
correr atrás de ilusões. tudo fazia parte da vida, e não isolar-me como
Começar de novo. Seria bom. Arranjar em- estava fazendo desde longa data.
prego, trocar de nome, viver sem tantos problemas O aconselhável era espichar as pernas para a
iufõcantes. Chamei por Deus, Ele não me ouviu. Não .'l 1

rua, buscar outros ambientes, esquecer-me de mim,


veio me dizer o que fazer. das coisas que só me diziam respeito, alargar minha
Às vezes o fracasso nos livra de preocupações vida em outras direções. Seria um modo de higieni-
das lutas contínuas e nos empurra para outros ca- zar a'mente. Rir, olhar o mundo como se ele todo
minhos que podem nos cond,uzir à paz. fosse uma piada e gargalhar até esquecer de mim.
Pensei assim e me forcei a acreditar que daí Era sexta-feira. Marquei com duas amigas:
Irara frente tudo seria azul, mesmo sem ürüeiro e Marta e Alice. Iríamos a uma buate cuja freqüência
sem ninguém.
I era só de entendidos.
** Eu estava com medo. Ia mudar completamente
+,i++ de ambiente. Ia ingressar no mundo onde só existia
** gente como eu: homossexual.
Animei-me, Marta e Alice haviam ficado muito
Precisava divertir-me. Queria parar de pensar. contentes quando eu thes telefonara e prometeram
Respirar. Esquecer a sem-vergonhice de tr''lisa e a in- t
que eu não me arrependeria dessa noite.
70 71
EI\TEI\DIDOS
Igualmente chegando a uma análise final, des-
cobrindo-se o que é ou o que torna uma criatura
homossexual.
De todo modo é um crime privar os homosse-
xuais da sua liberdade e considerá-los seres degene-
rados, anormais e nocivos à sociedade. Se uma mu-
lher se envolve amorosamente com outra mulher é
porque tem tendências. Se um homem se envolve
âmorosamente com outro homem é porque tem ten-
II dências. Dividamos o mundo então e vivamos em
paz, os homossexuais, os heterossexuais e os outros.
Não quero levantar um libelo, mas fazer en-
tender que considero a conceituação dos prevenidos
contra essa classe uma abominação contra o espírito
Barzinhos.r São Paulo está diferente. Minhocão, humano.
metrô, elevados cortando a cidad.e, trânsito cada vez A discussão sobre a "normalidade" prejulga
pior, poluição, ardendo nos olhos, fazendo mal à equivocamente o problema do homossexualismo,
saúde, alguns restaurantes freqüentados sô pot en- fundamentand.o-se em casos que deveriam ser estu-
tendidos. dados sob o ponto de vista social e não psiquiátrico.
Há no homossexualismo casos de anormalidade,
Entendidos!
bem como há casos de taras no heterossexualismo.
Um dos velachos do homossexualismo, o mais Por que um indivíduo heterossexual detesta às
espinhoso problema social. Um apelido mais decente,
vezes acerbamente o homossexuaM Preservação do
menos acintoso, aliás bastante aceitável. Entendído
machismo, medo ou quê?
exprime tanta coisa; esclarecido, douto, d.iscreto,
hábil, inteligente, lido, notável, perito, perspicaz, Provavelmente, por ter sido envolvido por aI-
sabedor. üsto, certon conveniente, entendedor, as- gum motivo, ferid.o na sua vaidad.e por um homosse-
sente. Mas define realmente assecla, partidário, xual que talvez tenha interferido na sua vida arno-
adepto, congênere. rosa tirando-Ihe o objeto da sua paixão ou envol-
vendo-se com um membro da sua família. Não seria
Mas há os que entendem e não são hornosse- lógico que reconhecesse a tendência da outra pessoa
xuais, não que aceitem, mas respeitam por um prin- eÍn vez de considerá-la vítima de uma influência
cípio moral esclarecido. Entender o quê? Aceitar o perniciosa e pervertedora?
quê?
Bem, esse é um destaque dos fenômenos so-
Para aceitar é necessário definir de modo final ciais entre os muitos problemas dos preconceitos em
o problema. Se não se define, combate-se? Para ex- geral.
tirpar como?
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Qualquer tentativa de explicação encontra uma conceituação errônea a respeito do homossexual.
controvérsia, mas é impossivel apresentar uma teo-
ria que seja definida, negativa ou afirrnativamente. Devido à falta de ambiente, todos os tipos se con-
Preocupo-me e oculto-me como se fosse real-
Íinam no mesmo lugar.
mente uma criminosa. Os problernas que enfrento "Ermida", funcionando normalrnente, a me-
provocam distúrbios emocionais e às vezes chego a
lhorzinha de todas as truates do gênero, disseram-
me. Ponto de encontro selecionado. Sem riscos, sern
sentir que sou anti-homossexual devido aos desa- perigo nenhum. Conhecida e freqiientada por gente-
gravos e à coragern que se precisa ter para conseguir
viver e andar de cabeça erguida.
bem. Curiosos ou na verdade homossexuais que se
disfarçam de turistas?
Não é humilhação ser homossexual, nem uma Sem riscos? Sem perigo? Senti a realidade pi-
tloença, nem um crime de perversão do ser como con- car-me dolorosamente. Criminosos visados, caçados,
ceituam, mas às vezes uma revolta interior que se perseguidos. Considerados capazes de tudo por índole
não leva ao suicídio, pede uma neutralização de fraca, por mau-carátei! Desmoronei de tristeza.Per-
todo ser, o comedimento absoluto, para que se torne ceberam meu constrangimento?
jndiferente, frio, assexuado, insensível, rnaterialista,
É, Adriana, infelizmente homossexual ainda
empenhando-se apenas em não aparentar coisa -
é considerado corno um rnarginal, um bicho, vicia-
alguma. do, anormal, rnau-caráter.
Essa sim é a verdadeira perturbação emocional, Não exteriorizei meu pensamento de revolta.
a deformação da personalidade, o mais sério mal que Nenhuma palavra o definira. A expressão do meu
destrói o espírito humano. rosto dizia tudo. Relutei. Pra que sair? Deveríamos
Entendidos! Judeus? Semitas? Negros? Mulatos? ser como tartarrrgas. Nascer com o casco e confinar-
Sararás? Cristãos dos tempos de Cristo? Terroristas nos dentro dele, isolando-nos.
do sexo? Os subuersiuos do amor? Insistiram. Explicaram, falaram e cada vez
Amor! Flor de espinhos que perfuma, narcoti- aquilo feria mais. É que às vezes cismavam com os
zando, e enfeita, ferindo, sangrando ! homossexuais e levavam todos errr carut, por causa de
Conforme a crenÇa, o mundo. O meu! Submer- alguns indivíduos inescrupulosos e de má reputação
so num sorriso falso, num olhar vago que não se de- que âpareciam na boate.
mora sobre nada. Enterrada na farsa, na simulação, Por mais que tentassem selecionar, como em
na arte de passar despercebida. todos os lugares de divertimentos públicos, acontecia
Ia para a dimensão aberta no espaÇo por um cle se infiltrar um outro indesejável.
I:âsgo de coragem ou de loucura, ingressar no terri- Eu estava com medo. l.lão queria ir. No meio
tório dos homossexuais, os mutantes de todas as épo- da manada branca eu seria um boi vermelho! Es-
cas. As figueiras estéreis do caminho. lava numa ambivalência irritante.
Boates onde travestis e homossexuais de todas as Apesar de conhecer muitas pessoas como eu, há
classes se misturam. A promiscuidade motivando a mais ou menos uns oito anos vivia afastada, num
ambiente onde só convivia com heterossexuais.
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Sentia como se estivesse saindo de uma caverna O que tem? E o que é andrógina?
para o labirinto insidioso d.e uma floresta. - Ç41'661erísticas másculas. Minha boca é fina,
Problemas como os meus não eram discutidos, -
voçê mesma díz às vezes que pareço um menino.
ao contrário, ignoravam, mesmo sabendo que eu Meu tipo diminui minha idade. Até que é bom ser
vivia com uma mulher e que não era simples ami- assim, parece que não envelheço.
zade. Tudo era feito criteriosamente, com discrição, HéIia ria, debochada:
respeito, nós duas sempre aparentando "boas ami- Seus lábios são firmes, retos, finos, seu quei-
Sâsr" assim fora minha vida com Elisa. No "cursi-
-
xo é de menina, e seus seios?
nho" é que tornara-me acintosa. Inajá, no seu modo Degeneração genética da carne. Brotou por
de ser, espontânea, sequiosa, pouco se importara com -
engano. Talvez sejam pólipos externos.
os possíveis comentários que a nossa "ligação" pro- E?...
vocara. Eu me sacudia. À minha volta erguia-se um - sexo?
nevoeiro de poeira. -
Fiz recapitulações. É bom recordar, analisar, -É.O pecado de gostar de ser assim, mulher
pesar o que fizemos e chegar ao resultad.o do que que -gosta'de mulher. Não troco minha vagina por
aprendemos. Tive muitos casos, aventuras, flertes e nenhum pênis.
problemas. Sempre na base do disfarce, do não sou Você é feminina. Não vejo nada másculo em
o que estão pensando e nem tudo é o que gostariam você.- Se visse não estaria com você, nem the olharia
que fosse. na cara, teria vergonha. Odeio homossexuais.
Lembrei-me especialmente de Hélia, uma judia Eu me alterava. Ficava com raiva dela e com
que tinha horror em falar com homossexuais, e di- nojo de mim.
zia-me envesgando de prazer, quando eu lhe lem- E o que faz comigo?
brava o que era: - Eu gosto de você, é diferente.
Você é diferente, não vive se exibindo por - E gostar de uma mulher, ter relações se-
-
aí, não aparenta, sabe fazer as coisas sem que os ou- xuais- com uma mulher, o que significa para você?
tros percebam. Detesto esses tipos acintosos. É uma delícia, com você.
Tipos acintosos! Mente destorcida. Inveja. Do - Só isso? Então acha que é vício? É por sem-
homem. Hermafroditismo-psíquico. Degeneração do -
vergonhice que estou aqui?
intelecto. Deformação da alma. Confusão de idéias. Não, não é nada disso, mas eu não sou ho-
Falta de cultura, de educação, de firmeza de caráter, -
mossexual, nem tenho tendências, foi você quem
«le autodefinição. IJm flagelo por sentir-se um ma- virou minha cabeça.
cho castrad.o. Eu? Mas nunca me aproximei de você, nun-
§{3s eu acho que sou até um tanto ou quan-
-
ca insinuei nada, foi você quem teceu toda a trama,
-
to andrógina. Veja bem meus traços, meus pulsos, trouxe-me à sua casa, pôs música pra tocar, disse
rneus ombros, minhas sobrancelhas, meu corpo. que ia mostrar-me umas poesias que escrevera, bur-
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lou a confiança de Elisa, mentindo que estava inte- Detestavam homossexuais e deitavam comigo!
ressada na minha opinião a respeito do seu estilo Curioso o que me acontecial sempre me envolvia
iiterário e acabou se oferecendo, praticamente for- com mulheres que nunca haviam tido caso com
Çou-me, perguntando por que eu hesitava em bei- I mulher. Infiltravam-se de tal modo na minha vida,
já-la se tinha nojo de você, se não me agradavâ seu cercavam-me com tanta persistência que eu acaba-
tipo, se eu não a achava desejável e bonita, que sabia I va caindo, depois de ter jurado que só me envolveria
o que eu era, que eu e Elisa éramos amantes e que outra vez com uma homossexual passiva, feminina,
você estava com vontade de ficar comigo. Desafiou- genuína! Talvez o fato de gostar de mulheres boni-
me, ofereceu-se de uma maneira irresistível. tas, vistosas, extremamente femininas e por ser ho-
Jsso foi uma fraqueza. Curiosidade. mossexual genuína, exercia atração sobre elas e me
-Deixei-a. Ela andou atrás de mim. Chorou. Não deixava iludir. Sempre errara!
sabia o que era, mas tinha certeza de que me ama\ra e Doía-me ouvi-las menosprezar homossexuais,
que era difíciI prosseguir sem mim. Não atendi seus pois eu era uma e como que prognosticava o dia em
lamentos. Repugnava-rie sua aversão pelos homos- que as deixaria, vingativamente.
sexuais e o como se referia a gente corno eu. Repug- Abominavam e depois choravam, demonstra-
nava-me pensar que ela fazia coisas inomináveis na vam um ciúme doentio e perturbador de um mo-
cama comigo, coisas que muitas vezes urna homos- mento para outro; súbito, seriam capazes de sair gri-
sexual não tinha coragem de fazer, e afirmava cini- tando pelo mundo que me amâvam, que pouco im-
camente que não tinha tendência. Entendi que ela portava o que pensassem os outros. Confusão?!
era uma carente. Eu não a amava. Deixara-me levar É que com o meu jeito discreto e calmo, seguro
pela aventura, pelo calor e desespero dos seus beijos e definido, eu as deixava à vontade, debatendo-se
e pela tara dos seus atos libidinosos. Fui uma sem- num problema que eu já deslindara há muito;
vergonha. Não mais vi Hélia desde que deixei Elisa. tinham certeza de que eu faria tudo para que não
Ela morava no mesmo prédio. Era nossa vizinha. descobrissem o que acontecia entre nós, assim po-
Tornara-se nossa amiga para chegar até à cama rliam pôr ern prática suas tendências sufocadas ou
comigo. Nada mais. inconscientes durante sei lá quanto tempo!
Como classificar Hélia? Seus noivados não O mais certo de tudo:
davam certo. Seus namoros nunca iam longe. Real-
mente uma carente. Fui um instrumento para satis- "O que eu mais entendo e compreendo, de-
fazer suas necessidades sexuais. fino -e analiso segura e conretamente e o que eu me-
nos entendo e compreendo é a mulher. Paradoxal!
Elisa procurou-me. Por car[a e pessoalmente. Porque sou mulher. Está esclarecido, obviamente."
Analisei: deitou com homem. Foi minha amante:
bissexual. Abominei-a. Meu passado ia sendo desfo- É por isso que tenho muita pena dos homens e
lhado como páginas de calendário com nomes de uma autocorniseração deprimente!
mulheres marcando minha vid"a.
80 81
E então. . .
Vi um casalzinho beijando-se furtivamente na
boca. Fiquei assustada. EIas se olhavam apaixona-
damente em púb1ico?!
Alice percebeu meu espanto. Riu e perguntou:
Onde você tem se enfiado? Não sabia que a
-
coisa estava assim, como devo dizer, mais livre? Está
com uma cara tão indignada. Parece que nunc.a viu
t2 duas mulheres se beijarem!
É . . . é, realmente surpreendente! Acho que
-
estive enclausurada. Esses homens vestidos de mu-
Iher, se não falam e não se identificam para os ami-
gos aqui ao lado eu não saberia que eram travestis,
Alice brincava comigo: cheguei a achar um deles uma "boneca"! Sou mesmo
Eu escolho uma mulher para voc,ê. Não, não I
uma idiota!
olhe -para aquela. É, feia! Veja essa outra bem aqui
Alice e Marta riram com prazer. Sabiam que eu
na sua frente. Também não! Tem cara de macaca.
E a peruca. E a perrca daquela ali parece um boné estivera seis anos enclausurada corn Elisa, enfiada no
mal colocado. Chii. .. está difícil, Adriana! meu trabalho, trancada nos meus problemas, olhos
A buate estava me fascinando. Há quantos anos fechados para as transformações que se iam ope-
não via tantos homossexuais reunidos! Todos ali dan- rando em "nosso mundo".
çando, tomando coca-cola, libertos de Çomplexos, É. Até que essa liberdade não está agra-
como seres livres desfrutando alguns momentos de -
dando. Tudo era mais gostoso quando era proibido
alegria. mesmo. Veja que promiscuidade! Por mais que a
As vezes uma reclamação com o garÇom, por- gente se preze, se quer se distrair um pouco tem que
que insistia para que bebessem uísque ou outra be- ãe sujeitar a misturar-se com travestis e lésbicas de
bida qualquer, menos refrigerante. todas as classes, se bem que acho deprimente um
Engraçado! Parece que a maioria das homosse- homem aparecer em público assim. E essas mulheres,
xuais genuínas, pelo menos as que identifiquei e não parecem chofer de caminhão? Meia dúzia se
assim foram definidas por mim, que eu estava vendo desloca, além de nós. A gente veste calça comprida,
ali, não gostavam muito de bebida alcoólica e quan- mas não muda o modo de andar, a aparência, ape-
do bebiam controlavam-se até a medida exata. nas fica bem, esporte, bacana, confortável.
Nada indecoroso, nada obsceno, tudo transcor- Senti ímpetos de sair de Iá, de fugir, desambien-
rendo apenas em ritmo de dança, nos passos extra- tada, com medo, como um cristão com medo de
vagantes das músicas modernas. leões, exatamente assim!
82 83
A liberdade degenera, traz a corrupção, "caso" dela. Quase morri. Me deu vontade de esbo-
vê-se- claramente os defeitos das coisas, as impôrfei- fetear a depravada. Aquilo me fez sentir relapsa.
humanas, os deslizes, o que é degeneradô, ver- Não fui mais lá. tr se aqui começar a virar bagunça,
ções_
gonhoso, deprimente. Eu não gosto disso aqui, Alice. deixo de vir também, contentar-me-ei com cinema,
Se esta é a melhorzinlta, o que freqüentaãs'outras restaurantes, teatros e de vez em quando uma fes-
boates? tinha na casa de alguma amiga.
Vamos embora? Acho que não estou me sen-
A ralé.
- tindo- bem.
- Que tipos? Mas, Adriana, a noite mal começou.
fazern ménnage a trois. Falsas homos_ -Começou:
- Qr"
sexuais. Prostitutas de fins de noite-de-viração.
Eu a vi e ela me viu! Estava olhando para mim?
Quando largam a boate onde comercializaram seu
corpo surrado por homens, vão ao encontro das suas Fiquei em dúvida. Senti meu coração contrair-se.
"exploradoras". E a gente Íica entend_end.o da vida, Que emoção esquisita. E nem mesmo estava conse-
desde a prostituta infeliz que procura amor nos bra- guindo vê-la. Era apenas um vulto, recortado às
vezes por focos de luzes coloridas da boate.
ços de outra mulher até o homem degenerado que
:i,

vem alimentar suas taras, olhando-nos como se fôs- Marta percebeu minha transformaão e cutucou
semos as coisas mais deleitosas do mundo. Outros Alice, que seguiu meu olhar. Ouvi seu comentário:
ainda mais nojentos procuram as que se sujeitam a É essa? Ela é lindal
deitar com eles por dinheiro. -Nem sei como meus lábios se descerraram para
horror! dizer:
- ÉQre
por isso que prefiro vir aqui. Apesar dos É estranho, nem mesmo a vejo direito, sou
- afinal eles fazem parte
travestis,
-
míope e nessa penumbra enxergo rnenos ainda, en-
do shout da noite, 'tretanto ela me transmite algo. É como uma radia-
a freqüência realmente é mais selecionada. Você não
viu nenhum homem que não fosse entendido, e ção. Sei lá. Mas você tem certeza de que está olhando
quando vem algum é sempre amigo de um ,,bicha,, para mim ou para este lado casualmente?
respeitador, sem interesse, a não ser em passar uma Está olhando para você e com bastante insis-
noite com amigos entendidos sem pertencer ao clã,
-
tência.
'1,

compreendeu? Eu desviara o olhar. Timidez era algo que os


Sim. Eu ainda estou meio por fora. parece outros não acreditavam que eu tivesse, mas só eu
-
que dormi cem anos. sabia em que tensão nervosa estava ficando.
Você não viu nada. O deplorávelé mesmo na Flertávamos: Não sei. Só sei que meus olhos re-
buate- "Cantinho". Lá. vi um homem bolinando os lanceavam em volta e iam pousar nela numa ânsia
seios de uma que se diz homossexual, às vistas do "{ incontida. Eu não a via, sentia-a!

84 85
Era extraordinário o que estava acontecendo. O Substâncias químicas que se fundem. Já dissera
inesperado. Por uma mulher que eu mal divisava antes numa definição, tentando entender o entrela-
na penumbra da boate.
çamento de duas vontades, de duas forças magnéti
Eu estava sendo eu, caindo na minha sensibili- cas, que aquela emoção do corpo, aquela vibração de
clade extrema, boca gelada, coração aos saltos, medo rlelírio, de junção de desejos, era a eletrostática da
rle não acontecer nada, medo de que acontecesse alma.
alguma coisa, que a imagem viesse até mim ou que Estranho! Sem pressentir, sem calcular, sem
se diluísse diante dos meus olhos encantados. aquilatar, eu estava provando o rnais elevado êxtase
Imprescindível, sorrateiro, o sentimento viera através de um simples olhar.
e plantara-se dentro de mim. Senti fincar-se com No mesmo instante em que meus olhos a encon-
força. Existia algo germinando, arreganhand.o entra- traram sentada naquele canto oposto ao lugar onde
uhas, assenhoreando-se. Possuída pela emoção que eu estava, e o seu olhar bateu contra o meu, senti que
acreditava só eu mesma poderia sentir, ninguém a vida mudava, o ambiente mudava, eu mudava!
rnais. E era dela! Vinha dela! Ia de mim pará ela!
O sonho vinha agarrar-me e enfebrecer-me na
Uma corrente contínua de fluidos extra-sensoriais. bebedeira do arrebatamento mais violento: atração.
Uma mulher cujos traços do rosto eu mal podia di- üu

visar e definir. Ela, o magneto e eu, alguma coisa que se arras-


tava em sua direção sem saber por que? nem que
Cabelos longos, morena, cílios espessos, compri-
força me atraía.
dos, forçando ar de tristeza. Só isso podia distinguir
de onde estava e era uma presença que predominava,
Era preciso vê-la de perto, mas não queria for-
que ofuscou todo o resto. Ficou apenas o olhar dela, 1, t çar a situação. Fiquei como em transe. Sentindo.
asilhuetareamúsica.
Eu observando o amor que tomava conta de
tudo. O amor que era uma impressão mística de en-
contro, de identificação, de saudade pela espera, de
ansiedade pela procura, de êxtase pela reciproci-
dade.
O nosso olhar prendeu-se, amarrou-se e os nossos
f
pensamentos manifestaram-se pela sensibilidade da
nossa alma, que se tocou numa fala telepática.
Não nos conhecíamos. Eu não sabia quem ela
era e nem ela sabia quem eu era e nossos olhares fa-
lavam a linguagem muda dos que se atraem e se
integram num arrepio.
86 87
semicerarem-se para que meus olhos fossem vas-
culhar o mais íntimo do meu ser, voltando para
clentro de mim, para não sentir a carne, o invóIucro,
o rótulo da minha pessoa.
O que foi, Adriana? Por que ficou triste de
-
repente?
É possível ter-se noção de tudo assim tão ines-
-
t6 I
peradamente, como se me visse como sou e pesasse
o tempo, medisse a distância e avaliasse as conse-
qüências?
Por quê? O que quer dizer?
- Ela é linda.
- Você está perturbada. Não bebeu, mâs pare-
Marta e Alice planejavam como aproximar-nos. - está embriagad,a. Diz coisas que não entendo.
ce que
Combati a idéia. Não seria espontâneof natural. Não
tinha por hábito tomar ou forçar iniciativas. Gostava É que percebo e tenho medo.
tle ver tudo transcorrendo normalmente, mesmo que
- De se aPaixonar?
a demora me enervasse. A expectativa, d.e qualqúer
- Por um vulto já estou. Por um rosto na som'
modo, sempre tornava a ilusão mais goitosa- de bra, -por uma desconhecida que irradia força e me
sentir. transmite seu pensamento, querend-o se aproximar.
Pelo sonho, estou. Presa. Pode ser ela. As coisas ou
Ela continuava olhando para mim e eu tinha acontecem de esta.Io ou não acontecem. Fruta que
certeza que era linda como a minha primeira amadurece em estufa não tem o mesmo sabor daque-
-defadas.
estória de Ia acontecer um conto maràvilhoso, la que amad.urece sob o sol' Como pode o amor ser
de flores, borboletas e mágicas.
mais belo, mais delicioso do que aquele que floresce
Eu me sentia uma ninfa num país encantado. sob a luz, somente sob aluz do olhar?
Lira na mão, atraía com meu canto a donzela do Você e o seu romantismo, mas não entendi
bosque. Estava no meu olhar o delírio da imaginação -
por que entristeceu.
{értil, que criava mistério entre mim e a moça. Ela é jovem. Muito jovem.
Moça! Moça! Um rosto de menina. Tão jovem. - E daí?
Idade. Tempo. Eu. O que era eu no tempo?
euanto
- Pela primeira vez senti meu peso. Que- te-
tempo? -
nho passado. Que vivi trinta e sete anos. Que talvez
Alice percebeu a quebra do meu entusiasmo, já tenha pés-de-galinha, tenho?
_ Debrucei o rosto e acendi um fósforo para que
deveria ter visto a ruga cortar a testa e as pálpebras
Alice olhasse meus olhos. Alice riu.
88
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Qrle nada! Se você não diz, ninguém adivi- Marta e Alice censuraram-me. Dei de ombros
- que
nharia já está com trinta e sete anos. E não acho e me alegrei, no meu convencimento de nunca ter-
que ela seja tão jovem como aparenta.
me aproximado de mulher alguma em toda minha
Eu sei. Vejo. Sinto. Ela tem apenas dezoito, vida.
se não estiver mentindo para poder freqüentar boate.
Uma coisa é certa, elas me escolhem e vêm,
Você exagera. E por isso não vai mais olhar eu ou- aceito ou me faço de desentendida.
para-ela?
Ou dá no pé se o bicho é feio, não é? gra-
Não. - -
cejou Marta, passando o braço pelos ornbros de Alice.
- Você está sendo idiota.
- Nunca me interessei por menininhas. Gosto E vocês duas? Há quanto tempo estão jun-
-
tas, mesmo?
-
de mulheres feitas, de mais idade, entende?
Doze anos. O mesmo amor, o mesmo trato,
Tolice. Amor não tem idade, não tem cor. - carinho e a mesma fidelidade.
o mesmo
-Marta puxou-me. Entendi a manobra. Alice for- Raro. O homossexual em geral é polígamo,
çou e eu as segui para a pista de dança. ama-e deixa de amar com a mesma rapidez. F az
É, que ela estava com uns amigos, dançando uma mise en scàne coloquial de trocas de juras e pro-
também. Um rapaz aproximou-se de mim e convi- messas de amor eterno, enfia uma aliança de ouro,
dou-me: grossa, bem vistosa, no dedo da mulher e está concre-
vir para a nossa mesa? tizado o casamento. Para desquitar, basta tirar a
- Quer
Era um entendido. Não usarei a outra expressão aliança e partir pra outra. Não há bens a discutir,
que acho abominável. Entendido é sempre mais ele- {ilhos para sustentar, nada. Separação de corpos e
gante, mais adequado. E cabia bem para o rapâz i
pronto. O interessante é que se leva a sério a estória
rnaneiroso, educado, gentil que se dirigira a mim da aliança, o juramento, a data, a festa, sempre co-
ansioso por aproximar-me dela, por ter percebido
memoram. "Faz dois anos que casamos". E a gente
o nosso interesse.
está pensando: Puxa! Como está durando! As
-. Sinto muito, estou com minhas amigas, agra- homossexuais são - as que mais consomem alianças.
d,eço.
Deveriam ser gratificadas pelas casas de jóias.
É que ela gostaria de falar com você. Credo, Adriana, você desanima a gente. Isso
-As pessoas
são aquilo que julgam de si mesmas. -
é tleboche?
Um dia majestade, no outro escravo, depende dos Não. Surpresa de vê-las assim como há oito
;tnos -atrás, quando as vi pela primeira vezT amorosas
cornplexos. Cresci na minha vaidade e satisfação.
Respondi:
uma com a outra. Eu não entendo como vocês duas
Ela que venha à minha mesa, então terei conseguiram chegar a essa afinidade, essa compreen-
todo -prazer? mas não posso largar minhas amigas. são, alimentando um sentimento que parece o mes-
90
91

Ç
Minha voz perdera-se nos confins de dentro de
mim. Proctrrei-a. Falei.
mo do primeiro dia em que se conheceram. Não é Sim?
para se ficar admirada? -Quase inaudível.
Não somos as únicas. Suas tentativas talvez Quase perplexa, esforçando-
- me em aceitar o real. O sonho estava ali. Ilina linda
não tenham dado certo por seu excessivo romantismo mulher que eu olhara, por quem me sentira atraída
ou porque não escolheu ainda o que lhe convém. e depois iemera, porque ela me fizera sentir a vida,
Não escolhi! Escolhe-se? Ou se é agarrada desdã o prirneiro instante em que entendia existên-
-
sem se saber como por um sentimento sufocante que cia.
depois explode numa tremenda desilusão? É por isso Você gostava de me assustar.
que estou com medo de me apaixonar. Não quero - Eu?!
mesmo me envolver com mais nenhuma mulher. Eu - Sim, você.
não afino mesmo. Ou elas me amâm demais, e eu não - Como? Assustava você? Quando? Isso soa a
correspondo à altura, ou acredito que o nosso amor -
passado.
é o maior do mundo e caio no fastio e depois deixo-as [x6t6msnfs.
ir nos braços de um fauno cabeludo que soube tocar -Encarei-a.Não. Eu nunca a vira antes.
o instmmento que eu abandonei por cansaço, enfado,
Não entendo.
esgotamento. - Você não é Adriana Rezende?
A calma alargou-se num sorriso. A esperança - Sou.
pintou rneu olhar de sonho. A ilusão tomou forma, - Eu era muito pequenininha para você se
boca, dentes, olhos, voz, sorriso. Senti que nada plan-
tara no chão do meu coração que estava árid-o corno
-
Iembrar de mim. Quando a vi pela última vez eu
areia causticante do deserto. tinha oito anos.
E se no meu deserto eu encontrasse uma flor? Fiquei intrigada, rebuscando um rosto infantil
nos traços de urna deusa.
Eu a pisaria com o desequilíbrio causado pelos
meus passos claudicantes, por ter caminhado sempre Seu nome? Diga? Faça-me lembrar.
-E a hipótese de que ela estava ali só porque rne
por estradas acidentadas.
Ela estava ali, sentada ao meu lado. Chegara. conhecia de infância apertou meu coração numa
tristeza.
Dissera qualquer coisa como:
Está bem, posso sentar com você um ins-
Eu não gosto do meu nome. É muito feio.
- Vou -dizer baixinho para que ninguém escute e você
tante? Se prefere que eu venha, já que é de meu vai lembrar!
interesse lhe falar.
Debruçou-se bem perto de mim e seus lábios
Eu estava olhando para o rosto mais belo que tocararn minha orelha. Estrerneci ao contato. Eram
vira em toda minha vida. Perfeito. Pela tristeza do
olhar era radiante. 93

92
quentes, macios e a voz adocicou uma emoção que trações de arrepios e temores. Ela parecia insinuar-se
me transportou ao passado: e ao mesmo tempo eu pensava que era só a curiosi-
Nicoleta. Filha da dona Carola e do seu Fer- dade de aproximar-se de alguóm que lhe fizera care-
rrrcci.- Lembra: Nicoleta Ferrucci. tas quando ela era criança. Fiquei envergonhada
Afastei-me. Olhei-a atônita, incrédula, assus- lembrando que flertara com ela. Teria interpretado
tada. como um interesse malicioso?
Você?! Eu também não a reconheci. Eu a vi e fica-
- Sim, eu. -
mos nos olhando e então eu perguntei a alguóm
- Uma moça linda! Jamais a reconheceria. qual era o seu llome e me disseram. Foi uma sur-
Oito -anos tinha? E agora? Dezessete? presa porque então vi que realmente você não era
Dezoito. estranha, que aquilo que eu estava sentindo era Llma
- Uma criança ainda. admiração muito antiga, quase do berço.
- É. Acho que foi por isso que tive noção da
Que nada! Sabe, eu sempre me lembrei de
você.- Eu a admirava muito. Lembra como sempre -
minha idade quando estávamos. . .
estava chamando-a? Fiquei sem palavra, sem saber o que dizer. Flla
Sim, você disse que eu a assustava. Por quê? Íoi sagaz e completou:
-
Não me lembro. ... nosidentificando?
Ela riu e tentou esquivar-se. Eu insisti. Marta fr,. Acho que é isso.
e Alice estavam paralisadas em nós duas. A1ice fez -Para ouvir o que dizíamos precisávamos aproxi-
um gesto. Respondi negativamente com outro gesto, mar a boca uma do ouvido da outra. A situação tor-
revelando minha decepção. nava-se embaraçosa? sentind.o o calor daquela coxa
Está bem, acho que não é muito agradável, carnuda, grudada à minha, o hálito perfumado
mas -enfim você tinha razáo, eu era uma bisbilho- batendo em minha orelha, a Yoz penetrando-me, e
teira. todo o trejeito dela, visivelmente empenhada em se
-- Diga. {azer notar por mim. Defini sem evitar o que estava
Minha mãe, lembra, era amiga da sua mãe, me castigando. Um desejo de abraçá-Ia, de grudar-
-
e a gente às vezes ia à tarde na sua casa. Você não me nela e beijar aquela boca polpuda, macia, fresca.
gostava. Estava sempre escrevendo e eu ia enfiar o lndignei-me, recobrando a razáo e encontrando-me
nariz na máquina de escrever. Você fazia careta pra na boate:
mim e eu saía correndo de medo. O que faz aqui? Este ambiente não é para
Rimos e ficamos sérias simultaneamente. você.-
Ouça. Eu sou lésbica.
-Ouvi. Senti a música. Sing Síng Barbara. Um -Fiquei pasmada. Lábios grrdados. Olhos presos
sentimento místico revirava meu estômago nas con- nos olhos dela e senti a mão dela estender-se para a

94 95
minha quando me levantei e, num ímpeto de rea-
ção inesperada, convidei-a para sair comigo, para
darmos uma volta, para conversarmos melhor, longe
do Sing Sing Barbarq qlue repetia a todo volume
urma estereofônica cujas caixas acústicas estavam
bem perto de nós.
Alice e Marta perguntaram-me aonde íamos.
Deixei dinheiro para pagar meu guaraná e respondi:
Voltaremos logo.
- oQUEÉOAMORp

96
dos de procurar o verdadeiro rosto do amor. Inventei-
Sempre criei fantasmas, mas sonhos são sóis que
queimam e não produzem calor, é amor que chama
rnas que não dá amor!
Ela me seguira. Entrara no meu cartro. Estava
sentada ao meu lado. Parecia ouvir meu pensa-
rnento. Sentir comigo a magia da noite. Primeiro,
estrelas. Uma chuva repentina que amainou e parou
t4 e a minha introspecção, policiando lições de verdades
morais.
Você é linda. Uma boneca. Sabe, não gosto
- expressão boneca, mas dizendo-a para você
dessa
tem outro significado, porque você é tão linda que
se eu escrevesse somente números teria o mesmo re-
O amor é uma lágrima. Às vezes doce, às vezes sultado, porque a contagem é infinita quanto a sua
êmarga, escorre pela face, umedece, seca e não deixa beleza, nenhuma palavra pode defini-la exatamente'
rastro. (A menos que tenha se desprendido dos olhos Você me deixa encabulada.
de uma mulher que use rímel nos cíIios.) - Mas você não vai sair correndo como quando
E pintalgou o céu a luz esmigalhada das nebu- - fazia caretas, não é?
eu lhe
losas, que do infinito se desprenderam como peda- A risada dela foi deliciosa, cristalina, clara. Mas
cinhos de estrelinhas a rebrilhar nos cabelos dela. mesmo quando ria era triste.
Orvalhou a pétala da flor a gota do sereno, que a ma- Você é triste. É triste?
drugada, de tristeza pelo amor impossível, chorou - Primeiro você afirmou, depois perguntou,
iembrando quem era a pessoa amada. - a dúvida? Por que me acha triste?
por que
Lua surgindo e) qual prostituta, corria pelo Não sei. Nunca vi uma expressão que me
espaço, escondendo-se entre nuvens, sem nunca en- -
tocasse tanto.
contrar um abraço que a fizesse sentir do amor a Eu queria entrar no assunto' Vasculhar o íntimo
verdadeira chama. d.ela. Analisar o que ela dissera e ouvi-Ia repetir o
Pingo d'água, da chuva corriqueira que se que nenhuma outra mulher havia pronunciado com
estraçalhava e escoava na calçada, perdendo-se e tanta seguranÇa e de modo tão real, conviclar sem
misturando-se no aguaceiro, seguia seu caminho na reservas ou complexos. Dissera: "Eu sou lésbica"
enxurrada. como se tivesse dito "Eu sou brasileira".
Assim eu me perdera em ilusões de falso amor Você disse algo.
por mulheres que passaram pela minha vida sem -Arrependi-me ou simplesmente fiquei com re-
deixar imagem alguma nos meus olhos gastos, cansa- ceio de tôrnar-me indiscreta, Iembrando a menini-
98 99
nha de oito anos para quem eu fazia caretas. Nesse
momento rodávamos pelos lados do Ceasa.
que queria me aproxirnar de você, queriq qle- Pe
Qre sou lésbica? Sou. Por quê? Não devo d'*s"^atenção e você me fazia caretas. Você foi a
-
dizer que sou? Pois eu sou. Não como se dissesse que
sou católica, seria escolher, eu não escolhi. Nasci.
rninha primeira inclinação, meu primeiro sonho, o
que eu mais admirei depois dos meus brinquedos,
As palavras dela coincidiam com os meus pen- quando comecei a olhar para gente e me senti
samentos. atraída.
Posso Íazer perguntas?
- Preocupei-me. QuaI a minha aparência? Nunca
Quero que faça. Todas. Tudo que quiser haviam me dito que eu parecia homem ou que era
-
saber. masculinizada. Ao contrário, aparentava bastante fe-
A voz dela estava emocionada e o olhar cheio minilidade, depois passara quase toda a vida dis-
de deslumbramento. Eu estava interpretando corre- Íarçando minha natureza. Não, ela não se impres-
tamente seus sentimentos. O brilho do olhar, fulgu- sionara pelo que meu tipo aparentara, talvez pela
rante, era chama acesa do que eu procurava. Eu vi minha personalidade, por não ter lhe dado atenção.
ansiedade, vi amor, loucura, paixão, desejo, volúpia, Analisou?
ternura, tudo, tudo o que ambicionava eu vi no olhar - No que se refere a mim, na sua infância, já.
cJela e bebi do seu feitiço pelas pupilas sedentas dos
meus olhos. Você-me admirava, certo, queria brincar com a mi-
Pergunte. nha máquina de escrever, que eu the desse atenção.
-O som da voz era melodioso, morno, fervia em Seu espírito observador e precoce viu em mim uma
mim, percorrendo-me toda em ondas sensuais. difícil conquista. Em vez de odiar-me pelas caretas
que eu lhe fazia por espírito combativo você ima.gi-
O que você entende por ser lésbica?
- Entendo que sei o que sou, o que quero, o ,urru q,r" eu ia, encurtando porque sei que está en-
- tendendo e acompanhando a análise, ceder. Eu teria
clue pretendo, qual o meu mundo, o meu caminho, que ceder. Você quebraria o gelo! Como não ced'i,
o que amo.
tornei-me a inatingível e, portanto, alvo do seu inte'
O que você ama? resse. Isso é o que se chama pseudo-homossexuali-
- Você devia perguntar, quem.
- dade.
Quem?
- Mul[er. Você não tem argumentos suficientes para
Só mulher. Se quer saber quando -
classificar-me e rotular-me' Minha homossexuali-
- é fácil. Senti a primeira atração por mulhern
percebi, dade não é devida a recordações da juventude, Por
nunca por homem. Você me fascinava. Eu tinha convivência com homossexuais, mas porque nasci
adoração por você. Achava-a importante batendo assim. É congênita. Nunca tive receio do outro sexo,
máquina, escrevendo. Eu ficava olhando suas mãos
apenas nunca me atraiu. Não encontrará, se pud"er
e me deliciava. Tinha oito anos e sofria muito por-
eãtudar-me, fatores que comprovem o contrárjo do
t00 que"digo, não houve perversão? nem desvio da eró-
101
tica, mas natureza. Eu sou lésbica. Meu primeiro Outra yez a voz d.e encantamento. Acreditei.
olhar para você, de oito anos, foi de lésbica. Ela realmente estava empolgada pela minha idade
e me olhava com uma emoção rara.
Com que deliciosa ênfase disse.
E o brilho do olhar dela continuava salpicando Eu dirigia como se estivesse sendo levada por
renas pelo céu colorido das fantasias de Walt Disney.
fagulhas incandescentes que penetravam minha Estávamos percorrendo a Marginal rumo a Interla-
alma através dos meus olhos enfeitiçados. gos.
Por que quer discutir o que sou, provando Guardei de você a lembrança de uma mu-
que -estou enganada? Eu me defini muito jovem. lher -autoritária.Acho você linda.
Nasci assim. Isso a perturba? Preocupa? Não quis que ela despertasse do sonho. Fiquei
E sua mãe? Seus pais? Sua famíIia? Sabem? calada. Deixei-a com a sua mentira e guardei a mi-
- Não sei. Talvez desconfiem. Sempre temi rrha verdade. Eu não era linda. Talvez na lembrança
meu -pai. Acho que ele percebeu sempre, sofri pela dela, para os olhos dela, nesse momento eu fosse.
sua rejeição que se manifestava sadicamente. Ele me Você disse que acha seu nome feio, não quis
batia e não dizia o motivo, mas eu sabia que era -
que outros ouvissem. Usa um pseudônimo?
porque desconfiava de mim e das minhas amigas e Sim. Elaine.
assim ele mortificava minha mãe, que é muito in- - Acho Nicoleta mais bonito. Original.
gênua para entender. Acho que talvez esteja enga- - Verdade? Ou apenas quer me agradar?
rrada a respeito do que o meu pai sabia de mim, não - Não percebeu pelo modo como falei? Diga
sei, às vezes parecia ver nojo, repulsa, ódio, nos olhos
- Ni-co-le-ta!
comigo:
dele. E que é que eu podia Íazer? Nasci assim. Quan- Ela soletrou. Nossas vozes, em duo, confundi-
do completei dezesseis anos ele morreu, cinco dias ram-se numa emoção suave e pura.
depois do meu aniversário. Ela suspirou longamente e espichou o olhar pela
Sinto muito. janelinha, depois tornou a olhar para mim.
- pergunta mais imporlante cuja resposta eu
A Eu acho que estou começando a gostar do
temi: meu-nome. Ficou gostoso na sua voz. Eu detestava,
Amou alguém? Chegou a. . . ? sabe? Em casa todos têm nome feio. Um mau gosto
- Sim. Amei muito. Chegamos a. . . tudo. . .
cianado. Minha irmã, coitada, tem horror do nome
- clela, lembra-se dela?
-"e é isso que quer saber, tenho bastante experiôncia.
Não me julgue assim uma criança porque me co- Não respondi.
nheceu quando eu tinha apenas oito anos e porque Ela fez um trejeito de compreensão e confor-
é mais velha do que eu. mou-sel
Dezenove anos mais velha. Você não lembra mesmo. Filô. Coitad.a! FiIo-
- Acho lindol - É só a gente brigar, basta dizer o nome dela e
mena.
-
102 103
E sua mãe? Não perguntei ainda, perguntei?
soâ como o maior palavrão. Ela fica doidinha. Mas - falha minha, culpo sua beleza, estou perplexa
É uma
todo mundo já se acostumou a chamá-la por Marina. mesmo. Então você é Nicoleta, filha do Ferrucci,
Faz dois meses que ela casou. aquela menininha chata que ficava me espiando e
E como se tentasse fazer-me lembrar de algum amolando com perguntinhas: "-Quê é que a se-
membro da família, continuou: nhora tá escrevendo"?
Ela é dois anos mais velha do que eu. Tam- Imitei a voz dela e em seguida fiz uma careta.
bém -ia a sua casa. Minha tia, irmã de minha mãe, Nicoleta riu e num gesto instintivo estendeu a mão
é quem morava pegado à casa da sua mãe, nós morá- e passou-a pelo meu'rosto.
vamos duas quadras acima. Ato continuo estacionei o carro no acostamento,
Continuei na mesma. Ela desistiu. I'entei enco- beirando o rio. Fitamo-nos. Que importava a minha
brir meu insucesso de memória: rdade, a idade dela, que ela era uma garotinha, que
p6rs6s que seqüestrei você, não? Deve estar cu estivesse iludida, sonhando, imaginando coisas,
-
cansada de rodar de carro sem saber por onde. Quer quc a razã,o combalisse e eu me tornasse uma idiota?
voltar para a boate? O ccrto é que não podia evitar a forte e irresistível
Você quer? tentação de beijá-la.
- Deve ter percebido que gosto mais de pas- Debrucei-me para ela e ela se debruçou ligei-
sear.- Importa-se que continue com as minhas per- ra e sequiosa para mim, enfiando-se entre meus bra-
guntas? ços que a envolveram como se arrepanhasse do mis-
Por favor, também prefiro ouvir você falar tório o amor que eu sempre procurara.
e me- interrogar. O amor estava ali, no arrebatamento dela, no
Era visível que ela ansiava para que algo acon- seu olhar fascinado, na boca trêmula que se apertou
tecesse e a mesma ansiedade embargava minha voz.
contra a minha, roçando a língua num desespero de
Não me fartava de olhar seu lindo rosto e perscru- beijo sonhado há muito tempo.
tei-a toda. Importava o que eu estava sentindo, o que eu
você tem de altura? estava vendo, o que encontrara finalmentel o amor,
- Quanto
Um metro e sessenta e sete. E você? no coração iludido de uma jovem.
- Por coincidência um metro e sessenta e sete
-
e meio.
O sorriso dela foi gracioso e o olhar penetrante
não fazia mistério, era luxurioso e sensual. Fiquei
embaraçada. O desejo fazia expressão lasciva nos
lábios dela que a língua umedecia insinuantemente.
Fugi da impressão que me causavam e troquei o arre-
pio por uma pergunta formal:
10s
104
lx)r'(lue achava impossivel encontrar você mesma.
['l você mentiu, nem lembra o que eu perguntava:
"- Que é que a senhora tá escrevendo?" Tentou
irnitar minha voz, mas inventou, estava sempre tão
r:ornpenetrada, e depois sempre vinha aquela sua
;rrniga loira buscá-la. Eu tinha raiva dela.
Nicoleta, você está fazendo minha cabeça gi-
rar. -Esta noite, ah! esta noite, que mudança em
l5 rninha vida. Eu estou me sentindo. Tenho passado.
I Irna mônina de oito anos! Fez dezoito anos e me traz
uma mensagem: estou envelhecendo. . .
Ela cortou ríspida, atirando-se para perto de
tnim, afagando-me com suas mãos macias e perfu-
O entusiasmo da menininha me levava pela rnadas, beijando meu rosto, não se importando com
mão. Eu fora majestade e ela viera a mim. Agora eu ()s carros que passavam rentes ao nosso. Beijava-me
a seguia como escra.va, sabia. na boca, sôfrega, como se tivesse me beijado sempre,
Depois do beijo a minha rendição. Eu era como rnas nunca se fartasse de repetir o mesmo beijo im-
palha seca consumindo-se nas labaredas de um fogo llctuoso.
novo, crepitante. Eu amo você, sua idade, assim é que eu
Nicoleta era a febre dos dezoito anos? realizando gosto,- amo seus trinta e sete anos, você é moça, nem
um sonho de criança. Eu era máquina de escrever, fcz quarenta e dizem que a vida só começa aos qua-
careta que se transformava em sorriso, indiferença lcnta.
que virava delírio. É que você tem apenas dezoito.
A emoçãó de Nicoleta sutrjugava-me pela sua - E daí?
vitória, a euforia de arrancar de mim todo meu eu, -
que se rebelara contra a importuna criança que ia Fiquei em silêncio. Uma diferença de seis ou
interromper meu trabalho. sete anos não faria desproporção na aparência física,
Em que está pensando, Adriana? Está tão mas dezenove anos! Dez já não seria boa coisa, ima-
séria.- gine no avançar do tempo a desproporção da apa-
Em você. rência física cada vez se acentuando mais. Dezenove
-__ O que pensa de mim? Que sou uma arre- ernos, era patético! Seria que eu estava voltando à
batada? Que me atirei em seus braços, que estou adolescência, deixando-me fascinar pela paixonite
ardendo de amor por você? Que a amo? Sabe, eu de uma garotinha? Não , estava bem dentro psicoló-
tenho vontade de dizer, isto me sufoca, foi o sonho gicamente da minha idade cronológica; eram apenas
de toda minha vida encontrar alguém como você, as minhas loucuras amorosas que não retrocediam.

106 107
Tive completa noção de mim mesma. Os sintomas, tadc de mim. Não vale o nosso encontro? Não existe
parecia que os percebia. Ao período climatérico so- a gente ama porque ama e não se
lrclr:a marcada,
breviria a menopausa. Estava diminuindo a secre- prcmedita. Eu amo você. A emoção que sinto 9u s9i
ção de hormônios. A progesterona escasseando. Teria ilue é amor. É muito cedo para dizer isso? Não é.
já parado a secreção dos estrogênios, predominando Ó amor nasce num rasgo de segundo, -talvez chegue
os androgênios produzidos no córtex supra-renal ou antes do olhar da gente ver a pessoa. É uma predes-
das gonadotropinas, produzidas no lobo inferior da l.inação. Eu estava marcadâ para amar você. Qr9-a
hipófise? As atividades recreacionais de Nicoleta su- ficai com você agora, para sempre, nunca mais dei'
perariam meu ânimo. Não poderia levar a sério e xá-la.
nem torturar-me pelos meus insucessos ocasionais Ela me arrebatava. Ouvia as palavras que sem-
senão acabaria tendo um colapso mental. pre quisera ouvir. Tão cedo e ela já me ofere-cia-o
Ela se afastou. Meu silêncio envolvera-a. Olhou- qrre só em sonhos eu tivera. As outras haviam sido tão
me nervosa, desconfiada, trêmula. Sua emoção era diferentes. Sem aquela tristeza no olhar sem a pre-
real, seu medo verdadeiro. Ela era toda autêntica, clestinação, houvera preâmbulo para falar de amor.
porque despertava numa paixão criança por uma Illa chegara dizendo tudo, abrindo a alma, extrava-
mulher adulta: sando .úus emoções, livre de mecLos, de pudores, de
prevenções. Dizia o que sentia e seus olhos brilhavam
Não me quer? Acha que sou uma tonta iada vez mais a cada palavra proferida, como se a
- só tenho dezoito anos? Muita mulher de
porque vida estivesse alcançando o máximo da sua chama'
trinta não é tão amadurecida, vivida, sofrida Sou lésbica!
quanto eu. Olhe bem para mim. Não disse - Nicoleta, tenho medo.
que sou triste? Sim, sou triste. Não é a vida - Medo? Por quê? Do meu amor? Do meu ar-
que entristece a gente? Qre imporlam os anos -
rebatamento? Não deve.
que passam, são as horas que a gente sente que Não, tenho medo de mim, da minha fra-
marcam, que instruem, que escolam, que nos ama- - do que sinto, acho que estou sendo impru-
queza,
durecem, não a sensação somente de ter atingido o «lente.
máximo do crescimento e a plenitude das funções Não acred.ita no meu amor? No que disse?
biológicas. Você assim parece uma criança medrosa. Não -acredita que a gente pode amar assim de re-
Não pode ferir-me com um complexo que não com- pente, sem maii ,um menos? Eu podia ter feito você
bina com a sua personalidade. É o meu amor por ãtrro áo meu interesse, como disse, lutar até que você
você que a deixa indecisa, com medo, ou me acha cedesse, destrrrir aquela imagem que me fazia.care-
ridícula? Eu sufoco, não é? E mal comeÇamos. Há tas e era inatingívôI e agarrá-Ia dentro das minhas
quantas horas apenas estamos conversando? Não mãos pelo prazer da conquista, mas se não houvesse
foram os primeiros beijos? E não vale isso por nossa amor ltto ,rão teria se diluído no tempo? Pod'eria
afinidade, identificação, a atração que temos uma tê-Ia reencontrado e lembrar-me sem emoção ne-
pela outra? Eu sei que você me sente, que tem von- nhuma do tempo em que eu a admirava e, mesmo
t08 109
que me sorrisse agora, não sentir nada. Mas eu senti,
antes de saber que você era Adriana Rezende. Eu
a vi muito antes de você me notar. Desde que entrou
na boate e ficou olhando para as mulheres que dan-
çavam. Você e suas amigas fazíarn comentários. Eu
fuzilava você, olhava e queria que me olhasse. Uma
clas suas amigas acendeu um cigarro e sob a chama
eu vi seu rosto. Amei quando olhei a primeira vez.
Amei sua presença, acredita? Acredite, pelo amor de
Deus! O AMOR E NICOLtrTA
Ela esmagou a boca contra a minha e suas mãos
seguraram meu rosto, nervosas. Senti todo o calor do
seu corpo e minhas mãos, maldosas, atrevidas, des-
governadas, guiadas pelo impulso, sem ouvir outras
vozes dentro de mim que me criticavam e tentavam
reter meu gesto, subiram, lentas, com esforço, a ca-
minho dos seios, tomando-os com cuidado, depois,
na carícia provocadora da vontade sexual, mexen-
do-os e recebendo os respiros e estremecimentos dela.
Afastou a boca, beijou meu rosto, mordiscou
meu queixo, gemeu uma palavra sem sentido, de
prazer insufocável, enfiou a língua na minha boca.
Continuei. Não pude parar. Ela se dava. Eu a
tomava. E na tortura das minhas idéias aniquiladas
por uma emoção maior, simbolizei a ninfa nos seus
estertores trazendo-me o delírio. E me entreguei sem
mais resistência a uma martirizante ninfolepsia.
Enfim a gente não escolhe, acontece de estalo
ou não acontece. Por que demorar, tardar o mo-
mento do beijo e do sexo para depois se a vontade
agora é tão grande?
Minhas mãos desceram, minha boca encontrou
os seios e a ninfa gemeu como o mais delituoso
pecado.

110
Foi tão seco, tão breve. Fale de novo.
- Sabe, Nicoleta, você é o amor. Alcança meu
-
pensamento? É o que eu ansiava, o que procurei
sempre.Vocêéoamor.
fsçrsyi uma poesia para você.
- Leia.
- Tenho vergonha. Você vai rir.
- Leia.
t6 -Minha voz soou forte numa ordem. Senti que
ela exultou e havia prazer quando comentou:
autoritária! E se eu não ler?
- Qr"Eu faço uma careta pra você.
-Ela riu e sua voz mudou. Tornou-se cálida, apai-
Enquanto eu tivesse papéis para rasgar sobra-
riam pensamentos para escrever. xonada, sussurrante:
A manhã começara feliz. A chave na fecha- Eu utm buscando uocê a uida ínteira
dura do meu escritório abrindo a porta e o telefone - e agora que a encontrei faço-a prisioneira.
tocando. Era Nicoleta. Suas palavras amorosas prog- Sabe o que fíz? Roubeí o seu coração e co'
nosticaram um dia de enlevo e embriaguez. loquet
Eu precisava pensar na vida, na minha situa- o meu para pulsar no seu peito
ção e só pensava nela. Minutos depois, o telefone e o seu para uiuer no meu!
tornava a tocar. Era ela novamente. Sentira sau-
dade. Quinze minutos era muito tempo sem ao Tolice. Não vai rir?
-Estalei os lábios enviando-lhe um beijo. Ela
menos ouvir minha voz, fora horrível o resto da ma-
drugada sem mim. Eu a deixara à porta de sua casa rlisse uma porção de vezes que me amava e pediu
às quatro e meia da manhã para telefonar mais uma vez.
Telefonou de novo. Estava ofegante. perguntei Telefone o dia inteiro, de cinco em cinco
por que estava com respiração alterada: -
minutos.
Subi cinco andares para ligar pra você, os E por que você não telefona para mim?
- estavam todos
telefones ocupados, vim ielefonar da
-Gaguejei. O telefone só recebia ligações, estava
copa. A saudade me enlouquece não agüento esperar interrompido por falta de pagamento, eu não po-
até a noite para vê-la, parã ouvi-la. Diga, Adriana, deria telefonar para ela do escritório.
por favor, diga que me ama. me fazer um favor?
Eu te amo. -Ela Quer
respondeu que sim, prontamente.
-
il2 113
Telefonar para aí é muito difícil está sem- O telefone tocou. Esqueci tudo. Fíz voz de sau-
-
pre ocupado, aqui não, ligue você. Assim não per- dade. E a raiva subiu pela minha garganta. Era
deremos tempo pois pode coincidir que quando eu Llisa:
estiver tentando ligar, você também disque para cá Será que você pode me atender? Estou aflita.
e a gente se desencontra. Não acha melhor você Algo -horrível me aconteceu.Estou desesperada. Você
ligar quando puder? interpretou tudo errado. Eu não esqueço você.
Ela concordou. Concordaria até quando com Aquele homem não significa nada para mim. Foi
tudo que eu dissesse? para provocar você.
Senti o drama. A situação exigia que eu tomasse Diga logo o que quer e desligue. Não posso
providê_ncias. Queria convidá-la para ãlmoçar e não - tempo, estou com um editor aqui e preciso
perder
podia. À noite, quando a encontrasse deveria logica-
tratar de negócios.
mente levá-la a algum lugar, a um restaurante, e
não podia. Não podia. Não podia. Bati a mão contra Menti. Queria desligar, mas se eu não lhe desse
a escrivaninha. Não tinha dinheiro! trtenção, ela continuaria telefonando ou então teria
coragem de ir até Iá.
Tudo por causa da maldita revista encalhada!
E a maior coincidência. Revivi o instante quando ela Será que poderia me arranjar cem contos?
me falou do que fazia e um frio cortou úinha bar-
- Sabe, moÇa, até por telefone você fede. Um
liga. Era, vejam só que ironia, ilustradora da Editora cheiro horrivel de esmegma. Pegue urn algodão com
Patriarca. Com tantas Editoras, ela trabalhava jus- rrlguma pomada ciúrgica e limpe o clitoris.
tamente na Patriarca ! A que estava tapando meu Bati o telefone. Tocou em seguida. Era Nicoleta.
caminho, acelerando meu enterro, reduzindo minha Espichei a conversâ para que Elisa desistisse de ten-
sala de cinco por cinco a um ninho de traças felizes tar falar comigo, encontrando o telefone sempre
num reino de papéis empilhados! ocupado.
Vi uma barata correr de sob uma pilha e enco- Saí. Deixei o fone fora do gancho.
lhi os pés. Pobrezat A sujeira ia aumentãndo! Era só Telefonei do orelhão para várias compradoras
o que multiplicava, os bichos que gostam do mofo e de papéis usados. Algumas prometeram enviar um
tla poeira ! carregador logo em seguida. Fiquei esperando. Não
E ela ficara entusiasmada quando eu dissera importava mais discutir preço. Quanto pesariam
que tinha uma revista. Pirâmides dela, deveria ter aquelas pirâmides? Eu precisava de dinheiro para
dito! Ia tudo para as compradoras de papéis usados pagar o jantar para Nicoleta, para encher o tanque
e as desgraçadas revistas nem sequer tinham sido de gasolina do carro, aquele gasólatra que consumia
manuseadas! mais do qu'e um bêbado que ia de bar em bar. Cada
Blasfemei. Precisava arranjar dinheiro, pelo posto, e ele já manifestava sua sede.
menos para um jantar e umas coca-colas! Que ver- Eram quatro e meia quando os carrinhos para
gonha! carregar as revistas chegaram. Vi o féretro passar
114 115
sob meu nariz e engoli em seco. As minguadas notas
pingaram no tampo da escrivaninha. direitos autorais presos! Amarrados numa pala-
vra: cessão de direitos autorais! E eu que sempre
Quanto tempo duraria aquele dinheiro? Os res_ apregoara que jamais cederia meus trabalhos defi-
taurantes não tinham dó, esfolavam na conta e eu
nitivamente.
não ia poder iazer feio. Tinha que representar meu
papel. Procurei o telefone mais próximo.
O último carregamento saiu e o matuto olhou Liguei para a editora, esbravejei, chamei-os de
de soslaio para a barata que correu e se enfiou pela ladrões, vigaristas, eles riram e bateram o telefone
Íresta da porta do banheiro. na minha cara. Estavam garantidos pela minha bur-
I Agora as baratas vão pros escritórios do lado, rice ao assinar aqueles documentos onde a palavri-
não-. ficou papér, né? nha fora capciosamente colocada.
É, pelo menos isso! Não adiantava fazer lim- Além de tudo alegaram que tinham uns trezen-
lreza,
- os bichos ficavam metidos entre as revistas. tos exemplares de cada título em estoque. Se eu qui-
- Fiquei só, sem as pirâmides, esperando o tele-
{one tocar, mais calmi porque conseguira resolver
sesse fornecer mais alguma obra eles me dariam
um bom adiantamento.
alguma coisa vendendo os eicalhes. Xinguei a mãe deles, mentalmente, é claro,
. E de repente o telefone tocou e o que ouvi ilu_
mrnou meu rosto, meu coração bateu forte, senti
nunca consegui dizer palavrões para as pessoas
mesmo no auge da raiva e da revolta.
uma corda caindo nas minhas mãos para puxar_me
clo precipício. Quase chorei. Quase não. Limpei, esbravejando,
as lágrimas que saltaram dos olhos, enfiei a pasta
Uma editora de livros didáticos estava interes_ com os documentos amaldiçoados dentro da gaveta
sada na reedição de algumas biografias que eu escre_ e fechei-a com fúria. Eu estava mesmo arrasada.
vera.
Quando aqueles míseros trezentos exemplares se es-
Remexi nas gavetas, procurei exemplares pelas gotariam? Nunquinha! Seria uma edição inexpugná-
estantes, peguei os contratos na pasta de documóntos vel.
cias minhas edições. O Editor qireria ter certeza de Cabeça para pensar. Coração para doer! Bolso
que os mesmos estavam desembaraçados. prometera para encher e esvaziar. As necessidades e os enganos
adiantamento para cada um dos títulos. Era a sal- atiçam a cata de soluções para nossos problemas.
vação. Achei. Pulei feito uma perereca de corda, sorriso
Não durou muito minha euforia. O telefone tor- alargando no rosto porque, afinal, todo aquele tempo
nou a tocar. Era o editor interessado que já se desin_ de trahalho não fora inútil. Achara! Sim, achara a
teressara. Nos contratos, conforme fora -informado solução!
pela editora das primeiras edições, haüa uma pala- Fui telbfonar. Atenderam. A mesma voz áspera
vra que eu não lera direito, não estudara o signifi_ que batera o telefone sorria na inflexão melíflua,
cado, não pesara as conseqüências da minha UJa-te,
atendendo-me cortesmente :

116
117
Pois não, dona Adriana Resende, o que
Um breve silêncio e uma resposta um tanto
-
manda? quanto desanimada, mas sem alternativa:
Bichos! Como queira.
- O quê? Curiosidades! Um livro genial! -
Desligamos e eu me senti livre outra vez. Vol-
- Expliquei e perguntei: taria para a minha cansativa profissão de biógrafa,
- Tenho um livro para ser editado. de livros e coletâneas, de curiosidades e fatos his-
- Falou em bichos, curiosidades? euerem? tóricos, e toda sorte de conhecimentos gerais que não
- l"ivessem sido muito explorados ou não explorados
._ - P Sabe, o meu estilo versátil, se é que um
estilo pode ser versátil, mas o gênero é para agradar. r1o nosso idioma.
IJm livro bastante instrutivo, para todas as idãdes. Era do interesse deles, claro. Que adiantaria
Não quis saber de nada. Não interessava ler. reeditar alguns livros, ficar só com algumas edições
Tinha meu nome, estava tudo legal. se eu tinha muito mais para oferecer? Haveríamos
de entrar num acordo. Satisfatoriamente eles seriam
- -do Não
plito
quer que eu dê uma explicação a res_
assunto para terem u-u ,oção dá que vão meus editores, pois meus livros vendiam bem, e eu
editar? graciosamente continuaria dando preferência a eles,
A mesma resposta de sempre: por não me forçarem, e por se tratar de uma firma
Adriana Resende sempre Adriana Re_ conceituada.
- Um trabalho seu éserá
sende. indiscutível. Quando vai Bem, o importante era começar a coligir todos
trazer o livro? os artigos que escrevera para as revistas. Daria um
Fiz meus cálculos. Felizmente, meu estúpido bom volume. Precisava batizá-lo. Dar um título. En-
coração romântico dessa vez funcionara para meu quanto pegava as revistas, pensava, e decidi-me pelo
bem. Guardara um exemplar de cada re-vista, não próprio título de um dos artigos: "A Lenda do Boto
precisaria correr atrás dos carregadores anteó que Branco"!
acabassem com todas
Depois de amanhã, mas há um detalhe, um
-
porTnenor.
Diga.
- Quero redigir o contrato, isto é, apenas uma
__
modificaçáozinha, sem a palavra ,,cesúo,,. Cada
r-rova edição a gente estuda se nos convém reeditar.
[', que eu gosto de trabalhar sem ser forçada, sem
me_sentir presa, sabe? Além do mais escrevo sempre,
tenho outros livros em preparo que interessaiãó
muito sua editora, mas quó tudo se;a-feito por mútuo
interesse, não será mellior?

118 119
I\INF'trTA
Combinamos. Tudo deu cerlinho. Fomos para
Sirrrtos. Seguimos até São Vicente procurando hotel.
l,lrrcontramos uma pensão balneária, estilo suíço, que
rros atgradou.
Illa prometera uma linda camisola branca e eu,
s(.nl comentar, comprara um pijama azul, bem cla-
l'ir rho.
Scria a nossa noite. Sem aliança, sem simbolis-
t7 ulos, sem promessas.
llu estava tremendamente apaixonada. Nossos
lrrr:ontros poderiam limitar-se a passeios e aos nossos
<lii'rlogos. Bastava seus olhos tristes, seu modo de di-
z.(]r que me amava, tudo que me proporcionava com
Todos os dias telefonemas de quinze em quinze liutto carinho e dedicação. Ela ficaria mais linda na
minutos, cartinhas, poesias, bilhetes e até um rãtrato carnisola branca, transparente, seria muito mais mi-
meu feito a crayon, de memória. lrlra quando ficasse nua comigo na cama, mas eu,
Às seis e meia ia buscá-la, e seguíamos de carro, rgualmente, me contentaria em passear com ela pela
s^êmprê sem rllmo certo, bastava estarmos juntas. lrraia, ouvindo-a falar do nosso fabuloso sentimento
recíproco, do nosso maravilhoso e predestinado en-
Assim que me via, o rosto dela adquiria uma contro.
expressão feliz, substituindo a apreensão,
iois repetia E, gastei horas rodando pela praia, falando,
toda noite que sentira medo de que talvez eu prà"rru admirando-a, até que instintivamente, num parên-
não aparecer mais. tese de chega de falar, voltamos para a pensão.
As manifestações do afeto de Nicoleta exulta- Ia começar a nossa jornada sexual! Eu estava
varn-me, eu cada vez me enfebrecia mais envolvida aflita. Nunca me acontecera ficar inibida, mas a be-
pelas suas atenções. Tudo o que ela dizia, fazia, pen- Ieza dela, sempre aumentando, realçada pelos trajes
sava, girava em torno de mim. Eu era o ponto fàcal que usava, entontecia-me. Agora a camisola! Fiquei
da vida dela. Nenhuma mulher, por mais experiente olhando-a. Vinha para mim de camisola branca,
que houvesse sido rro trato comi§o, jamais cànsegui_ curta, pernas esguias, coxas roliças e sensuais, corpo
ra convencer-me de um amor tão grande e tão ãin_ curvilíneo, como o de um manequim, magra, esbel-
cero. ta, suave, parecia leve como uma garça. Sim. Um
pássaro. Veio. Deitou. Puxou-me. Eu, extasiada,
Parávamos nas imediações da casa dela, altas
olhando. Só sabia olhar. Patética! Bebia a expressão
horas, e nossos beijos e abraços ativavam a expecta_
dos olhos, os traços do rosto, o som da voz dela me
tiva de ficarmos juntas num quarto. chamando:
122
12i
Vem.
-
Hipnotizada Não sei o que fiz. Foi uma longa noite. Ou foi
.leta eu pelo esplendor da beleza de Nico_
não me mõvia. EÂtava purailsudu, ,rrÁ* *_ trma eterna madrugada parada no tempo?
sação absurdamente anestesiaite. De manhã, quando acordamos, senti-me emer-
Por que me olha assim? Me beija. gir do fundo de um lago, um ser místico, Jaguarari
- cnfeitiçado pela iara, gosto de amor na boca, som-
+ :o, apressada, ansiosa, nervosa, as mãos
sacudindo-me. bras roxas sob os olhos, marcas de unhas pelo corpo.
Beijei e achei qr:_o bejjo atrapalhava E nossos olhares se encontraram e recomeçamos
que eu deixava de vê-la e me afaitei. E_ a visão, I)orque ela não saciava a sede de se dar.
como Narciso debruçado sobre o lago preso
t.u"r", Guardei daquela noite a sensação vertiginosa de
gem refletida na ágrr, como Jaguaraii, à ima- Jaguarari afund.ando no lago, envolto nos braços de
o filho de
tuxuá: uma iara de hipnotizante beleza. Guardei daquela
manhã um olhar de gozo, lábios trêmulos sussur-
"Ela olhou para mint e abriu_me os braços. . . rando gemidos, ais, palavras esparsas, a lembrança
Era linda! Toquei, desfalecerulo, rle um corpo febricitante enquanto eu dedilhava,
seu corpo nu de uma nudez sem uéu numa morosidade sádica, o espasmo que não queria
que ta de rnanso desaparecentlo deixar aflorar de vez. Até que a súplica torturada do
no fundo da dgua qu'.e rellete o célt,,. corpo que vibrava aniquilou toda resistência, e Nico-
leta se debateu nos estertores do gozo.
Quem cantará mágoa por mim quando eu Guardei lembrança de sexo, de vontade invencí-
_de
rão tiver mais Nicoleta, coáro:
' vel, de prazer insuperável, de amor gemendo na
carne.
"Hoje, as águas gue passam d.ta e noite
em Í(rtg se_luagem d.e espadana, E voltamos para São Paulo impregnadas de uma
?ra. gorgolejando
ora verdade irrefutável: a finalidade do amor que nos
aqui e alt
quando cai uma ftor d.e mamorama levara para a cama fizera uma poesia triste.
cantam de mágoa por laguarari,,. O amor existia, sim. O amor era Nicoleta, uma
ninfa que me deslumbrara. E eLl, o que era? Uma
poesia parnasiana de Olegário Ma_ delirante?
...^-^Ironuei,a
rran-or
-segundo narrativa deAfonso Arinoã. Ninfa!
Ela, olhando-me com olhos de iara que Rebusquei meus conhecimentos etimológicos.
zavam) e eu, me envolvendo, retardava hipnoti_
g"rtor, du* Eu já fizera um dicionário. "Pequeno Dicionário",
Íalecia em volúpia, demora.,rá o-Àà*".r,o.
para estudantes, da Língua Portuguesa. É claro, os
As mãos percorreram minhas costas, senti
exasperado apelo de sexo e despertei seu editores acharam melhor que eu usasse outro pseu-
da posse lesbiana. r -- -- para , l;;;;;; dônimo, de uma professora letrada, não autodidata
como eu, que isso não pegava bem. EIes se encarre'
124
125
gariam do curricttlu.m cspecifiquei falando de mim para mim:
l{
_uitae para melhor impressio-
nar e assegurar a venda. Concordei. Dicionáiio não Arlriana enlouqueceu porque uma ninfeta passou
seria nenhuma criatividade, apenas estudos ."p"_
;rr.lir vida dela! Ninfeta! Perturbação mental de mu-
tição. de tudo que já se fez ,o " nada
§êre.o, portanto llrcr no climatério por uma adolescente.
perdi com isso, os royalties viõram dd r.r"r-o Nicoleta sacudiu-me:
,;it".
Ninfar_segundo meu dicionário, ou melhor, da Çsn16 você está calada! Já descemos a serra
^
Professora Noêmia Cardoso Ribeiro Mendes, ,lg"i_ r' rrão - proferiu uma única palawa. Em que pensa
fica: s. f. Divindade inferior mitológica dos ;';- lnrrto? Vim observando suas expressões. O que a per-
- e dos bosques;
tes, dos rios (Fig.) Múher formosa t rr r'lra?
e jovem; (Entom.) forma tranútória entre u tu*u Você.
e o inseto adulto; (Anat.) cada um dos p"qr".ro, - Mentira. Tenho certeza de que se decepcio-
lábios da n-rlva. -
rrou comigo, que se está lembrando da outra, que não
Forcei a memória. I)istraía_me na procura: Nin- n1c ama mais, que já conseguiu o que queria, que
fagogo, nínfala,-.ninfale, ninfalídeos'r ri"fãa".ãr, rrão passo de uma idiota para você.
ninfectomia, ninféia, ninfeu, nínfio, ninfete, Desesperado pranto convulsionou aquele rosto,
njnfóide, ninfolepsia, ninfoÍépsicor'ninfolepto,"i"fit", que se banhou de lágrimas.
fômana, ninfomania, ninfomriríu.o, ninfotorniá. "i"] Desviei, rápida, o carro para o acostamento e
o que se refere a Nicoleta? Falta uma palawa parei. Recolhi-a em meus braços e meu rosto mo-
-E
no dicionário. Ou não? Talvez crisálida se enqua- lhou-se nas lágrimas dos olhos dela quando a beijei
drasse bem. É. Nicoleta, a crisálida! numa nova emoção. Ela sentia ciúmes e por seus
Não! Eu precisaria definir bem. Crisálida refe- olhos raios de rancor luziam como faíscas elétricas
re-se à fase transitória, intermediária entre a larva riscando um céu negro tempestuoso.
e o inseto adulto! Nicoleta não é inseto! Talvez, sim- Meu amor, não pense isso, não é verdade.
bolicamente, ela vire borboleta! Sinto caírem-me as
-
Pensava em você, imaginava um nome para definir
asas azuis de véus transparentes e esborrachar_me o que representa na minha vida. Você é uma pala.
como uma taturana retorcida no chão! vra nova para a reedição do meu dicionário. Nin-
feta. Nicoleta Ninfeta!
Preciso achar outra expressão, outro vocábulo
que deÍina melhor as perturbações e emoções que Ela afastou-se. Como uma criança, enxugou as
Nicoleta provoca em mim. lágrimas com as costas da mão. Tive vontade de rir
lembrando um pensamento que tivera: "lágrimas
leta
4 palavra veio nas letras que rimaram: Nico_
- Ninfeta! secam, não deixam rastro", (a menos que se tenham
desprendido dos olhos de uma mulher que usa rímel
Ninfeta: s. f. mulher jovem e formosa que nos cflios).
perturba doentiamente- pessoas mais velhas pio_ Por que você sorriu? Está me achando palha-
pósitos amorosos. "o* - é?
ça, não
126
127
__ Não, estou achando você a coisa mais adorá-
vel do mundo com essâ carinha toda borrada de
r'ímel.
Ela olhou no espelhinho retrovisor e, forçando
não rir também, exclamou, fungando e num uttimo
soluço que morreu na minha boãa, que sofregamente
arrepanhou aqueles lábios macios, quentesr"fogosos,
feitos só para_beijar e para falar á"-u*orr'triJe ou
alegre, sorrindo, ou com aquele tremor de ciúme:

-
Eu sou mesmo uma palhacinha, Adriana! r8

A violência do ciúme trouxe outra emoção para


mim. A definição do prazer do sad.ismo. Que mais
íaltava Nicoleta proporcionar-me com o seu inco-
mensurável amor?
Quando saímos, seus olhinhos buliçosos e zelo-
sos perscrutavam ao redor, sondavam-me, disfarça-
vam, querendo surpreender meu olhar s€ âcâso poü.
sasse num outro rosto de mulher.
Às vezes Í.azia-o deliberadamente para deliciar-
me com a sua tortura. Olhava para alguóm que abso-
lutamente não me interessava e quando ela se exal-
tava, fincando as unhas nas minhas mãos, nos meus
braços ou nas minhas coxas, eu me desculpava e
jurava que estava enganada, eue eu não olhara para
ninguém, se olhara não vira, fora apenas impressão
sua.
Os telefonemas continuavam, de quinze em
quinze minutos, cartinhas, bilhetes, poesias, discos,
beijos, abraços, gozos e ciúmes! Tudo ela me trazia
dos seus sentimentos extraordinários e crisáltdos, se
é que eu estava certa adjetivando a palavra.
128
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_ Repetia mil vezes que ela era o amor. Nada po- eisasse deixá-Ia em casa o mais breve possível. Ia
cleria simbolizar melhor a fabulosa expressão «1uicta, mordiscando os lábios numa encenação im-
pungia meu peito com deliciosos suspiros-. {ue
lriedosa. A mão de Nicoleta veio certeira no meu
Nicoleta Ninfeta. Amor! Ah! Se eu pudesse r osto, uma, duas, três, não sei quantas vezes.
parar o tempo! Entendi o desejo dos poetas e dos -- Você está me enlouquecendo! Falsa! Por que
arnantes apaixonados. Arrancar os pontàiros do reló- rne leva para casa tão cedo? Tem outro encontro?
gio. Estacionar a vida. Não deixar que se processasse E eu despenquei do sadismo para o desespero
ai mutação. Conservar Nicoleta sempre crisálida. horrível do remorso ao vê-la soluçar na sua aflição
Que jamais crescessem as asas da borboleta, para dc suspeitas, depois de ter-me agredido, nervos acir-
que não voasse para longe de mim. r ados.
Lembrei caretas, máquina de escrever e amei Negava, arranjava desculpas. Tinha provas do
um rostinho de criança que eu não conseguia vis- livro "A Lenda do Boto Branco", que já estava sendo
lumbrar como havia sido. - impresso, para revisar. Que o meu trabalho estava
A certeza de estar sendo amada, estupenda_ atrasado.
mente amada, pela mais bela mulher que Tudo é mais importante do que eu! Odeio
pela minha vida, em plena flor de juventude, f".sr.a csse - de boto branco, odeio!
tal
dava_
me uma segurança que me fazia sentir dona e se- E as criancices nas respostas de Nicoleta eram
nhora dela. as mais maravilhosas coisas da alma que eu via pura,
"Eu nunca te prometi um mar de rosasr, Va- só amor!
ücinaria alguma coisa amarga o disco que ela - me Então nossos beijos tornavam-se mais impetuo-
dera? Fugi da impressão negra e caí no niarasmo da sos, mais ardentes, mordiscantes, quase sangrentos,
melodia romântica. numa loucura febril.
Tive noção de que o meu sadismo se acentuava Estávamos assim, ela enterrando-se contra meu
dia a dia nas pequenas coisas que engendrava só crorpo, remexendo-se no exíguo espaço do carro, boca
pâra me satisfazer com a tristeza e os desesperos de grudada na minha, lingua como cobra tentando en-
Nicoleta. Às vezes custava atender ao telef^one, fa_ roscar-se na minha, mãos puxando-me pela nuca,
zia-me indiferente ao lado dela, demonstrava uma eu na euforia brava dos sentidos alertados pela fúria
falsa pressa em levá-la embora, como se tivesse do desejo sexual, mão enfiada sob a blusa, agar-
algum compromisso para mais tarde. As desconfian_ rando os seios, outra, metida sob a saia, enfiando os
dedos pela calcinha de elástico frouxo, adentrando a
ças de Nicoleta alimentavam-me como gotinhas pre_
ciosas de mel para uma abelha venenosa.
boquinha estreita da vagina, alisando com precisão
oriunda da prática e do conhecimento das zonas eró-
Primeiras discussões, lágrimas, ela se exaspe_ genas, o clitóris entumecido.
rava! Um dia perdeu o controle. Eu corria a ,rorrurtu Na exaltação, um susto. Largamo-nos apavora-
pela avenida como se estivesse muito atrasada ê pre-
das. Olhamos para fora. Ao lado do carro, três velhas
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131
gordas espiavam-nos de boca aberta depois
demonstrado indignação com o conientário
de terem Ir embora? Depois de atravessar esse dilúvro
pusera termo ao nosso entusiasmo: !,ru I)ara-encontrá-Ia?
É que estou preocupada, você pode ficar gri-
Que pouca vergonha! Que horror! Não são pada,- suas mãos estão tão frias.
duas mulheresl!
Esquente .com as suas. Eu enfrentaria o
Dessa noite em diante, lógico que pus
o carro -
rnundo, o céu, qualquer distância, sob qualquer tem-
em marcha e nos mandamos dãH, ,rrr.á *ui,
cionamos_pelas imediações da casá d"i".l;;; poral só para vê-la,
"riu_
os lados do aeroporto ou do Museu ;; Maior amor? Quem? Quem poderia dar-me?
do IpirÀná":-^
E, a nraior_ E as minhas maldades, as quais eu jurava a mim
_ delícia, para depois uma reãorda_ mesma pôr termo, prosseguiam. Agora era o telefone
ção triste quando sobrevãio o ."-o.ro. A mentira
deslavada para que tocava. O sadismo que se fundia com o maso-
- meumedir
para satisfazer
a frexibiliaua" au Ni.ãiàü,
sadismo crescente e o meu poder quismo. A saudade torturando-me, e a insistência do
sobre telefone tocando, quase me fazendo gozar de prazer.
9lg _ que meu carro quebrara, que não podia Ilra ela! Sempre ela, Nicoleta!
encontráJa1eu_e estava .,rm ponto
da cidade ,iiii.if
ee rr ate onde ela estava. E a sujeição Ouvi os inconfundíveis passos pelo corredor.
apavorada, sem - girando a maçaneta da porta do meu escri-
por medo de'ndo me ver por uma A mão
1111 :t:fícios,
unrca norte. tório. Luz apagada, eu quieta. Desistiu. Os passos se
Eu afastaram. Foi embora. Ia procurar-me na casa da
-E veio. vou até aí, espere por mim. Eu vou.
O meu crime estava nos cabelos dela. no
minha tia para onde me mudara temporariamente,
traje corde-café--com_leite de peles-;;;"";;;;H: ou resistiria desde que eu sempre evitara levá-la até
d9des, encharcados! Chovia lá? Ficaria desesperada. O que estaria pensando?
o céu tivesse
virado um mar e desabasse sobre "o-oase terra.
Rememoraria a noite passada, a nossâ calma
noite de beijos e de promessas de que nunca havería-
Meu crime: o rosto úmido, os sapatos ensopados,
as mãos frias de Nicoleta, os lábios
mos de nos separar. As mil vezes que me fez jurar
gelados li"iJ;;: que a amava, que nunca a trairia, que ela era tudo
A noite estava fria. Bastante fria. " para mim. Que as flores que eu lhe mandara por
ímpetos de agarrá_la, de beijá_la em públi-
_Senti ter-se molhado por minha causa naquela chuva mal-
dg Ihe pedir perdão e confessar minha
..ol muldade. vada fizeram com que ficasse muito feliz.
F hrdo que fiz foi contar a emenda da mentira:
-- Telefonei, mas você já havia saído. Meu E não encontraria um só motivo para o meu
silêncio, o meu crime perfeito, eqgendrado nas som-
carro ficou pronto, teria ido buscá_la,
como está molhada. Vamos, vamos até ilil;;;; bras doentias do meu cérebro fervente de paixão,
uma confei] nenhum motivo para que eu não atendesse ao tele-
taria. Será bom tomar um conhaque.
para casa, mudar de roupa e deitar cedoi Quer i. i;g; fone, para que não telefonasse para ela avisando que
algum negócio me manteria fora do escritório e que
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133
não poderia vê-la nesse dia. Nada. Todo meu silên_
cio só para torturá-lar Toda minha resistência até
que passasse a hora de o telefone tocar, até que
ela
desistiu de me procurar.
Dois dias assim, negando_me, sofrendo, deli-
ciando-me com a angustiõsa saudade u, ,"íp"iiu,
" u, p.or,u,
que eu oferecia para ela em troca de todas
de amor que me dera, em troca dos seus beijoô u Oà,
suas meiguices e ternura. Eu era mesmo um bicho!
E me retorcia na dor que eu mesma me causava.
Terceiro dia. Telefonei. Ela estava abatida, per_
l9
cebi na voz esmaecida, talvez de cansaço de tánto
pensar.
O que houve? por
que sumiu dois dias?
- Eu explico, querida, E realmente as perguntas vieram depois, mas
- não podia parar. É meuestive
muito,
trabalhando
livro, sabe, rouba lrão do jeito que eu estava habituada a ver em Nico-
todo meu tempo. Tive que varar essas duaó noites Ieta. Triste, nervosa, enciumada. Nada disso. Estava
trabalhando. Felizmente está tudo acabado. calma. Perscrutei seu rosto. Os olhos ainda eram
Ela passou por cima, perguntaria depois, o que tristes. Não estavam: eram! Tinham sido sempre,
interessava era saber se eulrii vê-la nessa noite. desde a primeira vez em que a vira, desde muito
Claro que tempo antes de vê-la. Tinham sido sempre. E então?
-E a tênue voz vou, estou morrendo de saudade.
sussurrou num queixume: Eu conhecia Nicoleta? Fiquei apreensiva. Seria
rnesmo maje§tade? Senti-me escrava. Minha derrota
-- Eu também. consagrou a personalidade irredudível e ao mesmo
tempo mística de Nicoleta. Mal pude descerrar os
lábios para perguntar, com medo da resposta? pres-
sentindo o que diria:
O que você tem?
- Não quero ter mais. Você tem-me feito so-
-
frer muito, muito, demais, Adriana. Não se machuca
uma pessoa tanto assim. O amor não deve ser ferido
desse modo. Eu tinha amor, sabe, só amor. Eu estava
loucamente apaixonada por você.
Senti o frio Lortar minha barriga, ou o corpo
todo? Eu estava em frangalhos por dentro. Intuitiva-
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mente eu sabia o que estava acontecendo. A crisá_
lida apontava asinlias que se iam alongar. ILla não respondeu. Os nervos alvoroçaram-se,
Você disse tinha, estaua? Não está mais? o rncdo de perdê-la turvou minha vista. Acho que
Você-cismou com algo? Fale? Eu explico ciurrbaleei. Ela estava me olhando muito séria e ina-
lralhvel.
,Dartto.
,, -}cho que você deve ficar com o seu tra-
Ir muito. mais importante do que eu. Não Você não me arna mais? Não me ama?
podia dar um telefonema? N"m um? Nãm -
Não respondeu.
,- ,irÀt
de vida? Pode imagÍnar o que sofri? O q"; i;;; Está tudo acabado? Está?
esses dois dias para mim? ô medo qr"
t"rt o orã - Não acha melhor?
isso se repita! Você não me ama, Adriãna. p;;;;; -Destramelei. Contei-lhe meus problemas, mi-
encontrou-se com outra. Me traiu. rrhas perturbações, o que temia pela minha idade e a
Ela continuava calma, voz mansa. pausada- rliferença disso entre nós. Menti que estivera sem
sem cálculo-s, ela mesma, numa decisão d; q;;r, rlinheiro, nem para pôr gasolina no carro, por isso,
gosta de sofrer e desperta da do-ença com
;;
tôdo vigãr rie vergonha não a tinha procurado. Falei do rneu
para recomeÇar a caminhar, vida nova, outros ob_*je_ Í'racasso com a revista, que estava a ponto de falir,
tivos, passado ficando para írás, buscaádo f""iti"âr, (lue nessa semana teria que me decidir e fechar o
emoÇões novas. escritório de vez. Que estava me mantendo lá a
Eu me senti passado dela, velha e feia. rnuito custo, só por causa do telefone, só para receber
Argumentei numa última e fraca tentativa: as chamadas dela" Me fiz vítima, enfim, e intima-
Eu preparei algo para você. A parte que dá rnente deplorei minha humilhação de implorar pelo
r1r_-r - amor dela, que já não brilhava em seus olhos desen-
tÍtulo ao meu livro. Quero dedicá_lo a iocê,
fazer uma surpresa, irabalhei muito, *ur'rffi.ã{ueria r:antados.
pensando em você, Você tem que. . . Mas por dois dias, Nicoleta? Fáci1 assim?
Engasguei. Ela completou:
- dias você não me quer rnais?
Por dois
Por favor, Adriana, leve-me para casa.
-. Qr"
perdoar? Então confessa que errou?
- Você está tão fria, tão má, por que isso? Por
Que agiu mal?
Claro, você sabe_que sim, estou torturada,
- ir embora? Você está toda armmada como
que quer
você^-me fez perder a cabôça, eu a amo, amo, en. se fosse a uma festa. Aonde vai depois que eu a dei-
tende2 xar? O que pretende?
Você me deu flores num dia, no outro uma Não pretendo nada. Pretendo dormir, parar
- que foi fundo,
facada tão fundo no meu coraÇão que
-
de pensar, esquecer você. Eu sou má? Eu? Adriana,
a dor se consumiu como se tod.o meu corpo tivesse pense. Pense bem.
ficado sem sangue. Eu não precisava pensar. Se ela não brecasse,
Ou sem amor? até onde iria eu com o meu sadismo, o meu maso-
- quismo, as minhas cismas, os meus temores? Sim,
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ela precisava jr. Nicoleta era uma
doença, uma l',lrr lrcgot,t its duas folhas enquanto eu dizia:
folepsia que ia me revar para um nosocômio. nin-
que eu não queria largar. Ela não era
vício l'ot't;ttc eu apenas fiz uma síntese, não é
reticente, não
gostava de meio-termos. Eu já
a molestaru .o*-ã, rrrnrlrrr r t'irtção, está baseada em fatos' Quando eu
minhas lamúriz ls, enquanto que as dela lnr.o rrrttit lttlcsia é diferente, vai nela toda minha
haviam me
deliciado. irlrrrl c ttiir» ;tcrtenço a ninguém, nem a mim mais
Não,por favor, não pode me abandonar. rl, r1rrr, pct'lt'ttço a você. Estou escrevendo um livro,
-Minha personalidade " ! lr.gr,siirs", gênero completamente diferente. Já
. quebrava e ela se decep_
cionava. Era a menininhu qr_,".h"grru,
pegara a má-
quina de escrever das .nühu. ,iaor'ô.r{rurto lrrllr ((,nl o editor, assim que terminar entrarei
uunur ttovit faixa de literatura, ficção, tudo idéia
fazia caretas.",
cedia sorrindo e agora era ela que me
rrrirrlrir, sc llcm que Hegesias tenha existido, mas não
Eu_não podia deixar que aquilo
-. acontecesse. Não Ir.rrr rrirtlir a ver com ele, é apenas porque o meu per-
podia! o mistério inexplicàvel áo imprevisíver:
acon- :,onilÍl('Ill tom a mania de suicídio. EIe vive morrendo
tecera de estalo, acabava de estalo!
Fique com o seu boto branco! Vai ver lr(,r' irnror até que realmente chega à concretizaçáo
-
uma loir"a!
que ó rlo Í'irl.o, rnata-se. Como. . . como eu teria que morrer
Ter-me-ia enganado? Ela estava com \(. v(xrô rne deixasse, porque não saberia viver sem
ciúmes!
Estava? vo<'ô. . .

. Atrri depressa a pasta que estava no banco tra-


seiro do carro e peguei u, ãr", páginas
I,lla viu a lágrima deslizar pelo meu rosto. Era
ú;;;;; ir lrrirncira yez que eu chorava de medo e tristeza
mente, eu batera para dar a ela.
lx)r'arnor, que fazia como que uma chantagem emo'
Meu amor, olha, quando a gente escreve, r:ional.
- faz uma
tluando poesia dô amor, quer dar para Nicoleta suspirou e eu a vi aproximar-se? Iábios
alguém. que- a gente ama, não é? Eu
vivo de fazer tstondidos para me beijar.
biografias, de inventar" estorinhas, de
montar p;;- Foi uma loucura porque naquele beijo eu não
vras cruzadas, até de fazer horóscopos. Este
u.tigo, scnti o desespero dos outros beijos.
já. contei para você, foi o que
:o*r.
de coligir tudo que escrevi e editâr
me deu a idéia
um livro. Dando Mais um sentimento novo de Nicoleta, talvez
para você eu estou lhe oferecendo um um dos mais inesperados e humilhantes, para me
pedacinho do
meu espírito. por favor, aceite. oferecer do seu amor que já não era incomensurá'
Um pedacinho? vel: piedade pela lágrima que eu chorei.
-Séria. Continuava
séria. parecia mesmo indis- Eu estava me debatendo, sabendo que não
posta, com vontade de ir embora. adiantava ser exímia nadadora. Ia morrer afogada
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porque não alcançaria a margem
jogara. do lago onde me
EIa lia e eu acompanhava rnentalmente,
tindo o final de tudo. sen-
O meu sofrini_ento entristecia_a, penturbava-a,
mas também não alterava o que
poorr"guiu na mais
temida fase de transrçao.

I)A DO BOTO BRANCO

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l'rcr:iso ensinar os pequenos índios pra nun-
| .r rrcr.rrrlr.r lamparina com azeite de iara senão
Itiltlll ct'gtls!
Mas quem é a iara, pai?
O boto-branco ou uiara, assim os brancos
vir,r'rrrrr <r disseram que ela se chama. É um grande
1x,ixr. tlrre vira gente, é encantado, veste roupa bo-
rrilrr, r:lrcitr de estrelinhas, fica com os cabelos longos,
20 r rrrrtir corn voz bonita, tão linda que ninguém resiste.
(.)rrr,rrr a vô ou ouve se sente atraído. Então o boto'
lrrrrnr:{), que se transformou numa moÇa de beleza
scnr igual, leva a pessoa para o fund.o do rio...
O velho continuou contando coisas sobre a iara
Noite de luar. Céu azul. Muitas estrelas. O rio rlrrc jír levara muito índio pra dentro d'água. De
brilhando. Farfalhar de folhas, vento leve soprando. l'r,pcnte um sussurro estranho, Llm estalo vindo dos
Sussurro de insetos. Os íudÍos se recolheà para lrrrlos do rio. Um arrepio cortou o corpo dos índios,
dentro de suas tabas. Uma voz avisando: o vclho cuspiu o fumo e exclamou:
Pra dentro, menino, que o boto-branco te Eu não disse? É assim mesmo que ela faz
pega!-
-
tlrrando vai aparecer. Que ninguém seja curioso por-
(llro se for lá espiar não volta mais. . .
Encolhido na porta da sua taba, o índio velho,
cnrodilhado, braços passados em torno dos joelhos, Os índios se recolheram. A lua continuou bri-
rnascando fumo, conta estórias e avisa com voz thando. As estrelas piscavam. O aroma da mata re-
gTave:
r;cndendo a frutos e flores. Um vulto recortou-se no
ccntro d.o rio, mergulhou, tornou a aparecer. O luar,
A iara atravessando as sombras das árvores, fazia figuras
- deverávem
ninguém
esta noite. É bom recolher cedo,
rondar pelos lados do rio, eu sei, a estranhas. O boto-branco surgiu sinuosamente e de
lua está tão grande, o ar carregado de pe.frrmer'us longe parecia mesmo uma linda moça a quem os
flores estão caindo pra dentrJ d,água^.o*o q* indios haviam dado o nome d.e iara.
rendo enfeitar para quando ela aparecer. . .
F,, pai, foi assim que ela levou Jaçuiri. Ele ,(+*
ficou- encantado com a beieza dela, o canto da iara
o atraiu, foi um feitiço, e ele acabou entrando no Mas. . . quem já viajou de navio e teve oportu-
rio, foi entrando, entrando. . . e sumiu, não voltou nidade d.e vei um grupo de botos deve ter pensado
nunca mais, minha mãe contou! que eles estavam brincando de dar cambalhotas,
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porém é a.penas o jeito de nadarem. Mergulham, ,\'t'tti t,otri uttt boto-branco,IYicoleta? Eu me sin-
retornam à tona, só meio corpo. numa !,, lttt.triri ott .luguarari, o filho de tutuá que foi pro
revúavolta,
porque o boto é mamífeio e ficasse _uú
-r-
tempo embaixo d,água
se Irtrttlo tltt ltt;;o arrastado pela beleza da iara.
morreria afogudo. í l','rt'r'ltt' a rnínha dor? Eu estou rnorrendo) mor-
çado um peixe morier afogado, entretanto é a""*.;_
pura t t'tt(1.) tlt' ttttlof.
verdade.
A mamãe-boto_branco e seu filhinho andam Sua
sempre juntos, pois gostam muito um
do ort.o u ,à Adriana
se separam quando o filhote já está
grande.
É no Amazonas e nos seus afluertu,
qr"
c'ncontrar o boto_branco (o maior de todos'", vamos
que é chamado de iara ou uiara tr*fZÀ. b;il;i
ni;i"";;ãá
de.comprimento e pesa cento e vinte e cinco
llgl.or
quilos mais ou menos. Iila parou de ler e qr-rando estendeu os braços
Quem ouvir a respiraçao áà
um boto pensará que se trata de um cavaro c rrre abraçou foi como se eu tivesse realmente saído
bufando.
A boca do boto é rasgada quase até os olhos e rlirs profundezas de um rio que me tragara num
ele tem cento e trinta e "seis rodopio
d[nter, aproximada-
mente. Alimenta_se de peixes e de'ouir"; Quando a deixei à porta de sua casa, todavia,
d'água.
bi;h; scnti mais forte o furor com que a crisálida abria
Interessantes são os ruídos diferentes asas e voava para longe de mim.
que o boto
faz. Mesmo debaixo d'água o"""-." tem
espécie de estalo. Às vúes pr."." um
fó"!" ;; O amor é uma presciência de tudo. Do Bem e do
cachorrinho Mal. Da alegria e da tristeza. f)a união e da separa-
Iatindo e ainda alguém urroúurdà.
ção. Tudo, tudo a gente pressente.
,r^ j:f:: s:llinJ1o, o boto aprende quase tudo que
a pular através de um arco que o tiei_
Eu sabia, mas não queria acreditar'. Entr:e mim
e Nicoleta estava tudo acabado.
iir:y]l,rm:
nao.or coloca acima da superfície
uma bóia corn uma pesrôa dentro.
da água ô a puxar Eu esquecera de pôr marcos nos farelhões da
rota do navio da rninha vida e por isso naufragava,
Cetáceo dentado, o boto pertence à família rasgado o casco nas pontiagudas pedras semi-sub-
dos
plantanístidas e deúínidas, p.irr.ipulmente
geoffroyeruzs. Na Amazôniá à, irãig"rras a-f"iÀ mersas"

nome de iara e o supõem encantado.


dão_lhe o Dei volta com o carro pelo quarleirão e fiquei
no posto do outro lado da rua, espiando. Algo me
Muitas lendas glram em torno do boto-branco, clizia que Nicoieta ia sair.
como estâ pequena estória.
Passaram cinco minutos, dez, quinze, rneia hora
*** e um car:ro estacionou em frente à casa dela. Buzi-
nou uma vez.
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Nicoleta saiu e nem olhou para os lados, en-
trando no automóvel que logo seguiu pela u"uáiau. l,lu estava deixando de pensar, anestesiada por
rrrrr violcnto trauma. Então, Buda estava certo, eu
. "Y1o segui. Já vira o suficiente.
para que se-
gui-la? urio r,xistia, o eu era uma ilusão.
Como entender? Que explicação busôár? O
que exigir dela? por que o meú seniimento conti- l)r.tcstei o que fazia e me odiei pelo que eu era!
ru.av-g, crescia, doía e ela, que demonstrara tanta Na pausa de passagem de uma música para
paixão, já não sentia mais nada por mim? Traía. orrlrir ouvi nitidamente:
Deixava-me. Trocava-me por outri emoção. Ela não faz meu gênero. É do amor platô-
Como se processa a evolução dos sentimentos e r tir:o. -
lransformações, de indivíduo para indivíduo! Fora Nicoleta quem falara? Eu ouvira real-
Mulheres! Exclamei como se proferisse um pala_ rrrente ou estava sofrendo alucinações? Tocava jus-
vrão. Como se eu não fosse uma inulher. E nãâ me Lrrrrrcnte That's uhat I Want. Ouvindo essa música
sentia mulher, nem gente, nem bicho, nem coisa rrirs havíamos feito amor! Agora o desprezo dela!
alguma. Gritei a filosofia de Buda, Descârtes, Nugr_ Que mais poderia esperar das transformações dos
furna, Confúcio, Asanga, Tao! Merda para todos!"Eu scntimentos de Nicoleta? Indiferença, um dar de
estava viva, queimando como uma ferida borrifada ornbros, esquecimento? Eu não seria ninguém!
com sal e ácido, comendo-me toda! Olhei para certificar-me de que e1a estava ali.
Precisava fugir de mim. As lágrimas embaça_ A psico-hermafrodita ria e quando meus olhos
vam minha visão. Dirigi sem medo ãe uma batida- pousaram em Nicoleta, ela, ela me fazia uma ca-
seria bom se eu morresse, mas era cedo para *o.."í reta t
e todos os carros abriam alas para uma bosta como
eu passar com todo o fedor dos meus fracassos.
Para onde ir? Nem sei como parei na porta da
"Ermida". Por maldição lá dentro tocava iose Gar_
den. Não me importei com as lágrimas aguando
meus olhos. Entrei.
Nicoleta dançava com uma psico-hermafrodita,
cabel.o curtinhor- gestos rnasculinos, bem integradá
naquilo que escolhera ser: uma ridícula imitação de
homem.
Passei por elas como se não as visse.
eue outra
coisa poderia fazer? A dor era tão grandà que de
repente tive a impressão de que não estava sentindo
nada, nem meu corpo, nem meu espírito.

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2t 22

^l.Po, que você olha tanto para cima pelas


ruas, Adriana? Não a queria presa na gaiola. Cuidei dela
Procuro um pássaro. com -semente de girassol, maçã e outras frutas, água
- pássaro? com gotinhas de ferrotrate e com todo meu carinho.
- OQue amor. É3* pássaro e ele pertence Eu amo este livro por um motivo especial, essa
verso,- ao espaÇo aberto, sem front"irur- ao Uni_ avezinha, tiriba real, estava sempre comigo.
";, ;'ü,
continuo procurando uma u"" B Descuidei. Voou longe.
áã-pf"mas verdes nas
ramagens verdes das árvores. Como Nunca mais verei Nicoleta.
,".a--ãriã
difícil encontrá-lo, mas eu o reconhecerei
"A, porque
tive comigo por algum tempo. o

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I
,
ff i i, s
',

(,,
é sem mim e eu não sou sem ela,
abraçando outras teorias sobre
obra e autor, assim justificaria a
existência de Nicoleta e de
Adriana.
I
Tolstoi quando lhe perguntaram
sobre o conteúdo do seu livro
"Ana. Karenina" respondeu que
seria necessário reescrever todo o
romance para responder.
I
,/
- Eu digo que para saberem quem
é NICOLETA NINFETA é- ne-
l
cessário que leiam o livro.
l A autora
I

{
\
I

I
1

l
I

l
ü

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