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RIO DE JANEIRO SÃO PAULO
Copyright by Cassandra Rios
Para
os entendidos
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explicar sua crítica e não emitir sua opinião pessoal Não me envergonho de nada quanto ao meu
que fará seus amigos de igreiinha sorrirem satisfeitos trabalho, envergonho-me pelo assalariado-reviewer
e passarem a lhe dever favores. de meia-hora com suas pilhas de livros que não tem
O verdadeiro crítico leva meses para estudar, tempo de ler.
analisar e escrever sua crítica, por isso não as publi-
Vivemos num tempo de penúria. Não há mais
ca todos os dias.
nenhum deus. Vivemos das invenções de novas
Quanto aos professores de português, como disse bombas e novas máquinas. Nenhuma estrela anun-
Rodrigo Lapa, só vêem na obra literária "pasto filo-
lógico." cia a chegada de um Cristo. Faço apenas três per-
guntas :
Para um Harry Levin, Ernest Hemingway se
t sforça para não ser gramatical, a sua sintaxe é Como seria recebido?
fraca, a dicção inconsistente, e comete muitas trans- Como seria interpretado?
gressões literárias. Como morreria?
Para mim foram procurar pulgas nos pêlos bel-
Imagino! Sou tão pequena e tantos tentam fe-
líssimos e perfumados de um imponente poodle.
rir-me querendo através da minha luz aparecer no
Se apenas um poema, como disse alguém. pode meu caminho, através do meu grito Íazer ouvir seu
valer um prêmio na apreciação dos meia-dúzia, por berro, através da minha arte ser alguém.
que apedrejar numa guerra de destruição determi- A arte não é um puro jogo de forma, é inspira-
nado autor (óbvio não precisar citar), quando dcve-
ção. A forma é instável, o que fica é a essência, a
riam ver nos seus trabalhos a firmeza de uma voca- gramática é carreira de professor, o refinamento do
ção, a constância de um ideal, a força de uma arte meu trabalho depende da constância, do estudo,
que sobrevive a tudo, que procura lugar, procura escrever é a fundamentação da minha vida, sem isso
crescer e vencer, porque eterna é a insatisfação desta não existo, não me entendo e tudo o que vejo e sinto
que e§creve. fica sem significado, perde o sentido, a lógica de
Criança ainda me vi estraçalhada por lobos es- existir.
faimados que não passavam de reuiewbres que re- Das minhas mágoas como escritora surgirão
buscam frases pretensiosamente belas, homêns de sempre novas forças, o aprimoramento da arte so-
mil outras profissões, opinando com o luxo ridículo frida pela estética.
de enciclopedistas que decoram vocábulos e alinha-
vam "por ouvir dizer" idéias magras que morrem Enfim, tudo se transforma, só o espírito da obra
permanece. Eu fico.
na escassez de forças porque se empenharam em
aparecer através do autor, ou melhor, da obra a que Um sorriso para vocô, seja quem for.
atacaram como o acastelado senhor de letras, repe-
tindo o ridículo do "não li, não gostei,, ou folhôei
apenas por obrigação.
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Preciso retalhar para contar tudo. Não dá para
Íazer retrospecto e justapor acontecimentos e fatos
da minha vida, cronologicamente, com a mesma fa-
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cilidade com que eu faria contagem regressiva do
dez ao zero.
Conforme imagens e lembranças surgirem, fa-
larei. Imagens e lembranças, lógico, serão sempre A gente age impulsivamente, conforme emoções
repr-esentadas por mulheres: as que passaram pela que nos pegam desprevenidos.
rninha vida. As brigas, os desentendimentos e as desconfian-
ças se originam muitas vezes de um mal-entendido,
de suspeitas por ciúme.
A causa de tudo: ciúme. Isso, em se tratando
de amor.
O ataque, comprova-se? é defesa, preservação,
medo de alguma coisa. Assim, a gente reage diante
de circunstâncias que estremecem os alicerces da
nossa personalidade.
Reestmturar esta personalidade e fincar firme
no caráter e na moral nem sempre é fácil, e quase
se pode dizer que mais parece inconseqüência, insta-
bilidade, indecisão; estas são as aparências que en-
ganam e que na maior parte das vezes nos levam a
manter uma atitude contrária à que deveríamos
tomar, isto é, retroceder, reconhecer a falha e peni-
tenciar-se por ela, pagar o preço exigido.
Então, se a gente inclina a cabeça, reÍaz a situa-
ção, procura redimir-se do erro, pode estar-se arris-
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17
cando ser tida como uma fraca, despersonalizada ou vas para assegurar alguma coisa, ou que essa pessoa
ainda de caráter inconstante e sem firmeza. esteia subestimando a outra e ridicularizando-se
simultaneamente, antes, está construindo uma situa-
- _ Não se importar com isso, e, antes, impor-se, rei-
vindicar, é uma obrigação para o apriúoramento ção mais sglida, acima de qualquer complexo, reser-
do espírito e para o bem comum do indivíduo em vas ou melindres; vejamos assim: no comércio exi-
relação aos seus semelhantes. gem-se recibos, contratos, duplicatas, ações, promis-
Ora, retroceder, quebrar decisões, voltar atrás úrias, aval, etc. Consideremos as prouas docúnentos
nas atitudes tomadas precipitadamente não deve ser do amor, o recibo intelectual.
encarado como algo abominável, ou ser considerado mais importante na vida entre duas pessoas
.é o diálogo,
-O.
falta de segurança se realmente a pessoa que reco- o esclarecimento e muita corageà para
nhece sua falha tiver errado por qualquei moüvo, ser autêntico porque a verdade rasga tudo, si*u-
mal intencionada ou por irreflexão, desde que se "s estru-
lações, as fantasias, as ilusões, mas alicerça,
justifique. tura.
Entretanto, se houver dúvidas em relação ao Falhas da personalidade. Eu tenho muitas. No
que provocou emotivamente a atitude drástica, com- mundo em que vivo, das pessoas que eu menos co-
pete a ambas as partes oferecerem-se mutuamente nheço sou eu mesma. Difícil entender este meu desa-
oportunidade para chegar ao entendimento. bafo inesperado, esta filosofia que se originou de
Vamos que a oportunidade exista, que a chance
-é esperada. um estado de alma depressivo, angustiado, cheio de
Resta provar que não haüa ôu não have- revoltas e medos, pelas surpresas que a inconstância
rá mais razões para fatos que gerem tais aborreci- e a pressa trazem.
mentos, incorrer no erro é que é imperdoável. Tudo transcorre aceleradamente. A peregrina-
Então justapõe-se a necessidade de reformu- ção do pensamento e a meditação têm que se limi-
lar-se, transigir e exigir a prova para que justificada tar. O tempo carrasco nos chama para as coisas que
e esclarecida fique a causa da falta e para que a precisamos atender. Se me prolongo, torno-me enfa-
pessoa, cuja personalidade desmoronou num minuto donha, chata e acabo reconhecendo que não fiz coisa
de tensão, possa reassumir sua posição perante a alguma, que falei diante do mar revolto e por isso
outra. não fui ouvida. O ruído das ondas abafou minha
Provar é obrigação. Transigir, um dever! voz fraca.
Saber pedir desculpas é arte, desculpar-se, muite Quem poderia entender-me? É realmente difícil
fácil, lmas oferecer prouas e escapar das suspeitas, situar a razão disto, é necessário que eu apresente
uma imposição que dignifica, estrutura, alicerça e os fatos desde o princípio.
preserva o que nos pode ser de maior valor.
O importante é provar que não houve culpa **
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e resolver a situação definitivamente. Não se deve
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considerar falta de confiança o fato de se pedir pro-
18 19
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Princípio! Ê irônico! Não aconteceu quando fui
gerada, nem quando completei dezoito anos e me
considerei maior de idade, o passado é uma estória
bem diferente.
Tudo começou na metade, se posso considerar
idade cronológica linha demarcatória dos limites
psicológicos da vida.
Para que falar da primeira boneca, do primeiro
beijo, do primeiro amor? , . . e a gente continua depoís de muito amar
Amor: uma busca incansável! sem saber etatamente o que é o amor. . .
Analiso o Amor. Tento definí-lo. Extravaso
todas as emoções, traduzindo-as em palavras. Trans-
mito aquilo que sinto, que está brotando ainda, num
crescendo infindável, lá do mais fundo da alma.
Arranco do coração o vibrar mais violento e da
mente o pensamento mais puro e autêntico. FaIo!
Conto sobre os sentimentos, as sensações, os temores,
os complexos, sejam eles quais forem. Preciso contar!
Quero estraçalhar a voz de cada expressão para que
se esgote a flor eterna! Absurdos! Imponderáveis
anseios!
Iivro teria um
Se eu quisesse publicar agora um
punhado de cartas que escrevi para uma criatura
fascinante!
Ah! minhas verdadeiras mágoas pudessem
se as
ser divulgadas, que gemido dilacerante amarguraria
o mundo !
Às vezes eu me amo pelo que faço, outras vezes
me odeio pelo que sou.
20 2T
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transformação que está se processando nas mu-
lheres.
Para não me tornar ridícula faço talvez como
muitas outras, finjo que também sou de hoje.
A multidão cala e a força do pensamento ex-
plode em bombas que mutilam inocentes. Gráficas
trabalham para imprimir diplomas e a flor no peito
do homem é a comenda da burrice.
z, A prática é uma teoria decorada que cava sete
palmos no terreno santo para o incauto que se en-
tregou às mãos do sábio. Tudo se industrializa. Ven-
clem-se lágrimas e sorrisos para tapes de propaganda.
A curiosidade vara o espaço em busca de novas
A mulher embrutece. A evolução cria monstros. formas de vidas e tesouros em outros planetas.
A igualdade degenera. O poder gera nulidades. O A gente ambiciona o mundo dos outros. Os
rnundo marcha com pés de soldados e a morte mul- rlovos mandamentos virão:
tiplica horrores.
O amor lorna-se sLogan medíocre e piegas para "Não cobiçar o mundo dos outros." Porque
falar da paz que não existe. Mas a gente aindã se cobiçar a mulher do prórimo, já era.
tlistrai com os suspenses dramáticos das novelas de A Bíblia Sagrada será o Código de Processo
tevê. Parece mais uma tentativa que esgota argu- Civil, com todos os seus livros de Direito Penal, Tra-
mentos para manter acesa a chama de um mito, o balhista, Direito de Família, etc.
Amor! Chego ao ápice, ao importante clímax do racio-
Aquele amor sem interesses, sem cálculos, sem cínio: Eu existo! Sinto que sou alguém. Que parti-
matemática, sem tempo, natural, recíproco ou não, cipo do Movimento Universal. Começo a entender
mas sentido com espontaneidade, porque a alma a razão da vida, o que nos leva a agarrar ilusões e
deve ser feita de amor, oferecer amor e receber amor. embriagar-nos com elas como se tivéssemos conse-
Matemática? Soma de conveniências, de inte- guido alcançar as estrelas; porque somos obrigados
resses, de comodidades. a imiscuir-nos na turba; porque temos sempre que
Por isso sei que amei a úItima mulher com a rros confundir com a multidão que marcha num
rnesma intensidade com que amei a primeira à pro- ritmo compassado pela existência em frente.
cura de uma definição. Existência! Essa estrada larga, sem horizontes,
Defini meu eu, entendi o que sou, conservei-me sem determinado ponto de chegada, sem tempo, não
sentimental, romântica e sonhadora e descobri a há hora marcada para estabelecer coisa alguma,
seguimos para o insondável e imprevisível.
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Encontramo-nos sempre no meio do caminho. E essa figura projeta seu pensamento no papel
Nunca chegamos ao fim da jornada porque as som. através de palavras. É Vida, Razão, Lógica, Frustra-
bras nos envolvem, e jamais descobrimos o mund.o ção, Verdade, Mentira, Sonho, Realidade, Ilusão, ou
tlue fica por trás das pálpebras cerradas no derra- uma síntese de tudo quanto existe de humano na
deiro sono. criatura.
Em verdade, penso que caminhamos em retro- Talvez essa circunstância dure por um breve
cesso, embora ayancemos no tempo, pois nada mais espaço de tempo, talvez subtraia tudo de mim e passe
fazemos do que adentrar cada vez mais fundo o â ser eu mesma. É confuso. Não sei, não posso ana-
próprio ser, o interior de nós mesmos. lisar melhor, nem prever o futuro. Essa vontade está
lutando contra mim e me domina.
Estou encontrando-me. Começo a perceber o
que é a força maior que nos move, que nos orienta Sendo o que sou, aparento o que não sou. Há
ou nos atordoa, que nos conduz à claridade ou nos tipos acintosos que são identificados logo à primeira
soterra na escuridão. Eu me desloco e saio para o vista ou considerados "esquisitos" pelos menos err-
sol. tendidos. Eu passo despercebida.
ts
Não almejo nada. Viver simplesmente já é tão
ciificil, não pretendo deixar a situação que atravesso,
t,ngolír-me ou prostrar-me pelo desespero de ver
minha estrela da sorle apagar-se aos poucos, per-
dendo-me na escuridão do caminho.
O que sou além do que sou? Mulherr-feminina,
idealistá, sem invejar o homem a quem admiro por-
que jamais me senti um ser inferior, talvez eu seja,
apenas, tão-somente, dif erente. 3
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Tud.o que de lá sai é positivo, garanüdo, e o-s iorna- Os cartazes de putrlicidade, os panfletos, os
leiros ,ão t" arriscam na compra da mercad'oria de meios promocionais foram todos um fracasso. Algu.
novas ed.itoras, tudo que ganham reservam para as mas bancas deixavam os cartazes pregados por
compras da Patriarca. algum tempo, mas logo eram substituídos por outros
Bem, quem sabe se d'ep-ois de amanhã esta sala considerados mais irnportantes dos lançamentos da
não cresó"iá pu.u um quadrad'o e meio a mais e Patriarca!
eu não comece a ver algurn resultado positivo com É apenas uma revistinha infantil! Uma coisinha
o lançamento d.os novos números da revista? de nada! Um meio pobre de movimentar certo
Até agora só tive prejuízos' As negociações para pecúlio para subsistir depois de alguns fracassos.
a compra ãe direitos áutorais no exterior demorou' Apenas tentativa para ter uma vida decente. A luta
A chegada dos fotolitos, as traduções, tudo custou é árdua. Trabalho por uma equipe completa. Faço
rnuito dinheiro e o pior enfrento agora com os.dis- tudo! Desde as traduções às reúsões dos desenhos ás
tr:ibuid.ores, que nãó conseguern colocar as revistas charadas. O único empregado que arranjei foi um
nas bancas de jornais' letrista para os quadrinhos da revista, mas já estou
É o monopólio da Eütora Patriarca' Já recebi com receio de que terei que despedi-lo.
visita de um agente que fez proposta para comprar Assim, escrevendo matéria inédita na minha
minha firma. Primeiro eu ri' Depois comecei a sen- lista de livros publicados, assuntos completamente
tir que não teria pernas muito compridas nem elás- diferentes, como que dou um salto do ,,Sink The
ticai para saltar ãs obstáculos' Agora nem sombra Bismarck" para a "Galinha dos Ovos de Ouro,,.
pen-
de soiriso. Acho que estou sempre de cara feia, Sou o próprio Hesegias, o professor do suicídio,
sando no que vou fazer com o encalhe, que aumen- obrigado a viver, ernbora lhe seja penoso, para poder
lará com a saída do Próximo número' ensinar aos jovens a fugir desta vida infame.
Estufei o peito, julgand'o que iria ser séria con- Pensei em mudar de gênero. É! Eu ia escrever
corrente da Eáitora'Patriarca, e agora murchei in- um romance. Entrar na faixa da literatura de cordel.
teira, acreditando que vou entrar feito um peixinho Um livro sensacional. Até o título já fora inspirado
minusculo pela goeia d'a baleia gorda assim que ela pelas próprias agmras e minha vontade de morrer"
se dispuset sua bocarra' Não precisará Por achar que não vale a pena viver. ,,Hegesias,,,
,"qo"i vir ao " "rrÉgunhar
*"ri "n.ulço, ficará esperando -e mais em homenagem ao filósofo do suicídio. Mas nada
unia ond.a me levará para sua barriga estufada' histórico, nada didático. Romance. Quase policial.
Isto me cansa. Não quero nem imaginar o que Tenho aqui a primeira parte, creio que seria interes-
o futuro me reserva. E tenho med'o' Se eu tivesse sante, o personagem é contínuo de um escritório,,
vendido ainda sairia com algum dinheirinho' Agora vejo, o próprio, no subalterno da firma ao lado aten-
já
qualquer preço que alcancã será prejuízo tanto dendo tantas ordens, indo e vindo como se suas per-
investi. nas condicionadas a caminhar jamais se cansem.
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"Hegesias". A idéia surgirá assim, sem mais nem partir para uma linha extrema, caso tenha real-
menos, querend.o criar mistério, tensão, suspense e mente que fechar as portas da minha editora de
*.r*ó ágo.u vejo-me ao invés de continuar a dar revista infantil.
vid.a ao interessante personagem, obrigada a aban- Já fui jornalista além de biógrafar. Já fiz de
donar tal idéia e revisar dez vezes os artigos que tudo nos jornais do país. Escrevi os'mais variados
escrevi para a revista sobre macacos, ursos, "Mulhe- artigos, críticas crônicas, contos. Fiz coluna social
res Fanãticas", curiosidades, e as cansativas monta- e até iá fui de firma em firma angariar anúncios.
gens de palavras cruzadas. Uma vez demiti-me porque não quis assinar
Não suporto mais escrever sobre a vida dos manchete que visava atacar um artista amigo meu.
heróis da Hiitória do Mundo, respeitando datas, se- I{ mesmo que não fosse, eu não seguiria ordens dadas
guind.o um esquema com estilo firme de profissional e já tentara escapar tantas vezes daquela espécie de
ãtidáti"u, descóbrindo coisas, fatos, documentos que sensacionaiismo barato e desurnano que acabei de-
outros autores não exploraram para não repetir sistindo. Eu estava certa de que haveria uma porta
cletalhes, como se repisá a Vida de D' Pedro I ou de aberta para o mundo feliz das crianças, escrevendo
Napoleão Bonaparte. Et."t são livros de encomend'a' coisas sadias e alegres, para oferecer bons momentos.
Sãó cansativos. trxigem demais da gente' Pesquisa' Algumas economias e uma idéia. Muita disposi-
Documentos. Não se pode cometer uma falha, ção e a ilusão do realizável. A chave com que abri
nenhum erro, nad.a que possa ser contestado, escre- essa porta está na minha mão, esperando que eu a
ver o que já mil v"'es, de maneira dife- feche definitivamente.
"r"r"rr".àm
rente t""aã será plágio. É mesmo difícil' É uma res- Não teria sido mesmo conveniente trabalhar
ponsabilidade seriíssima. Cansei' mais uma temporada antes de me aventurar e per-
Isso é Para urna cabeça como a do Fernando der o pouco que conseguira juntar?
Jorge. Verdãdeiro computador de datas e fatos his- Mas. . .
tóricos. É o rato de bibliotecas e museus, sempre pes- Vagas?! Jornalistas sobrando. Depois de muito
quisando, com os seus calhamaços debaixo do braço,
verdadeiías relíquias para o aprimoramento da café-com-leite e de vender algumas propriedades,
dois apartamentos que meu pai me deixara quand,o
cultura impressa.- Agorà está pesquisando a vid'a de
Santos Dumont.
morreu e outros dois que adquiri com muito sacri-
r'ício e economias (isso foi minha salvação na época
Um livro d.esses às vezes exige dois, quatro, cinco
do desemprego, da miséria, verdadeira miséria mes-
anos de pesquisas e revisões. Fernando Jorge mede
esse tempo com o entusiasmo de quem é capaz"de
rno), cheguei onde estou, nesta escrivaninha, farta
criar o mundo em cinco dias. Ele ama seu trabalho de viver! De esperar que a sorte me sorria outra vez
de biografo. como quando todos os jornais me requisitavam por-
que havia feito alguns programas de televisão e me
Admiro-o e desanimo. Cansei mesmo' Não es-
promovera com isso. São marés.
creverei mais biografias, livros de Histórias' Vou
3T
30
j
Trabalhando no que é meu é que não há nada.
Só prejuízo e dor de cabeça. Não tinha intenção de
ser concorrente d.e ninguém, mas interpretaram
assim, ou então os jornaleiros provocaram essa situa-
ção porque só acredito no que a Editora Patriarca
publica e não compram outra mercadoria além da
que ó distribuída por algumas outras editoras de
nome.
E quando chego em casa? sempre a mesrna per-
gunta:
4
f16s1çe dinheiro?
-Minhas jóias, minhas melhores roupas, tudo
vendido. Nada me sobra. E para salvar meu Volks
tive que enfrentar a fera. Seis anos aturando Elisa é prova de suprema
Eu já não agüento mais. Odeio ter que ir para tesistência física e mental. Brigas, desentendimen-
casa. Voltar para aquela moça incompreensiva e tos, um desencontro total de educação, de cultura,
exigente. de idéias. Nenhuma afinidade. A única esgotara:
Nos bons tempos, fartura, dinheiro sobrando Sexo.
para qualquer extravagância, sem freios, cansada de Por essa razã,o, acreditando que seria fácil con-
lutar para guardar alguma coisa no caso de surgir ciliar meu trabalho com o estudo, ingressei num
uma crise. Ela fazia da minha vida um inferno com cursinho à noite.
sua obsessão por fazer compras. Pretendia seguir "Ciências e Letras,,. Meu en-
Por isso a vida da gente, sem que se cogite, toma iusiasmo com a abertura da firma fora envolvido
novo rumo. Os problemas, os desesperos, as incom- tambérn peLa necessidade de preencher o horário
preensões, a falta de afinidade e colaboração trazem noturno, só para não ter que voltar para casa e en-
uma vontade de morrer, de fugir, ou de üorneÇar frentar [.lisa. Ver a cara dela que em outros tempos
tudo de novo nurn fim de mundo, corn ou.tro norne) eu achara muito bonita e agora não tinha atrativo
outras gentes, sem ambições, sem ilusões, amand"o nenhum, embora muita gente ainda ar-rastasse uma
o céu sem querer estar cruzando-o dentro d.e um asinha por ela. Eu queria arrastar tambórn, mas pâra
Lufthansa? amar o mar sem pretender um iate, voar sorrateiramente para o mais longe possível.
amar a terra sem querer cavar nela uma piscina e Inajá entrou na minha vida de maneira inespe-
deitar na grama sob a copa de uma árvore, que é rada. Chegou perto de mim e forçou a situação. Foi
bem melhor do que um guarda-sol de lona toda flo-
mesmo acintosa para atrrir meus olhos, para que eu
r{cla que o tempo gasta e desbota.
percebesse que existia uma mulher além de Elisa
32 JJ
,-l
cheia d.e atrativos e que estava interessada em mim' Inajá cercava-me. Percebendo que eu andava
Era bonita, não uma beleza de chamar atenção, ape- mesmo "desligada", eü€ não queria notar sua exis-
nas não era feia. Tinha pernas bem feitas e urn sor- tência, tomou a iniciativa.
liso provocante. Ficava sempre perto da minha carteira, e dis-
Inajá era professora do cursinho' Lecionava farçadamente encostava seus pés no meu, que eu
Português e Ingiês. Para falar a verd'ade, eu and'ava puxava para baixo do banco.
tão biiolada que quando comecei a freqüentar-aque- Surpreendeu-me ao entregar-me um teste que
la sala ond.e ie comprimiam cento e trinta alunos eu fizera e não assinara. Ela nunca vira minha letra,
entre os quais estavam apenas oito mulheres, não por isso perguntei:
reparei ná existência dela, e nem na da moça que -- Como identificou minha prova entre tantas
sentava perto de mim e que certa noite per5rn- outras?
tou-me: Eu sei muito mais a seu respeito do que ima-
-
grna.Reconheci sua letra porque no dia em que_você
Qual é o seu nome?
- Carolina, respond'i. Menü por prevenção'
Íez a matrícula ouvi sua voz. Ouvi tud.o o que disse.
- Achei absurdo e esquisito, além de que não era
instintivamente. Acho que falar com qualquer mu- prova feita na aula dela e sim na de outra profes-
lher me irritava. Elisa iá era dose para cavalo' Eu sora. Como ela estivesse encarando-me, perguntei:
estava esgotada, com ód'io d'e todas as mulheres pois Mas identificou como?
sabia dosieus artifícios e de suas artimanhas e como - Pela sua voz, iá disse.
escondem suas gaffas e o verdadeiro caráter para - E desde quando se identifica caligrafia pela
envolver-no, piru. nossa garganta sem dó, esfolan- - pessoa?
do-nos como "antropófagas famintas até que se pros-
voz da
{ss6 é uma longa estória que eu conto outro
trem cansadas.
dia. -
Eu não tinha disposição, nem ânimo, nem von- Ela continuou distribuindo as provas sem se
tade nem interesse de bater papo com ninguém' afastar do lugar ond.e eu me sentava.
C.fueria trabalhar e estudar a fim de encher a cabeça
Falava sobre ditongos, hiatos, regência verbal.
rirrn outras coisas que não fossem dívidas e a voz Prestei atenção.
tle I,llisa sempre exigindo mais e mais. Aquela voz
(luc rlrc torturava u"otuções, calúnias e lamú- O verbo bater exige um complemento, para
"om -
que o seu sentido fique completo. Objeto. Bater em
,1i,,, ,,'r. pé nem cabeça. Que eu tinha outras mu-
llrtlts, que era mentira que eu fora à Gráfica ou à alguém.
l,iloHrirÍiir, eue saíra mesmo para me encontrar com Virou-se para mim e disse:
,r11,q1,",,,. pot'isstl eu andava sem d.inheiro, pois estava Bater ern Adriana.
' u',l.rrl ;rrtrlo «rtrtra. Alguma puta sem-vergonha'
- Coitada!
-
35
l,l ff-E
camente. Estava mais velha, cabelos tingidos mais
Um rapaz das fileiras do fundo da sala achou para escuros. Eu mesma ao me olhar no espelho
graça. Ela riu e continuou:
notava a diferença dos anos, não tinha mais jeitinho
Bater na aluna. É um verbo transitivo. O de moleque. Sentia-me no meio do caminho.
-
complemento verbal liga-se ao verbo indiretamente,
isto é. por meio de preposiçáo, em, na. F;ntenderam? Bater. Verbo transitivo indireto. Bater em mim.
Uma direta. Uma intenção. Uma revelação. Caíra
. Fez uma pausa. Aguardou que alguém fizesse tlaquele olhar que batera no meu. Ela se afastou e
pergunta e prosseguiu:
apoiou-se na sua mesa. Suspirou fundo e soergueu
Então o verbo bater é transitivo indireto e o os ombros. A saia subiu. As coxas aparecerâm mais.
-
seu complemento, objeto indireto. Meus olhos bateram nas coxas roliças. Meus lábios
Oihou para mim significativamente, pálpebras ficaram secos. Era uma mulher. Desejável. Estava
descidas, as pupilas lampejando por entre os cílios, «-rlhando para mim. Senti meu sangue acelerar nas
numa expressão bastante irônica por eu me conser- veias. Uma força renovava-se. Reativava-se a energia
var indiferente ao que ela insinuava: queimada. Alguma coisa em mim começou a latejar.
Então, a regência verbal do verbo batur se Desviei o olhar.
-
faz indiretamente. Você disse que se chamava Carolina e não é
Deu alguns passos pela sala, voltou para o meu -
verdade.
Iado e como se quisesse definir demons.tratiuamente A moça que me dirigia a palavra sorria sarcás-
o verbo, estendeu a mão suauernente e com suaui- tica.
dade deu um tapinh a suaüe no meu rosto. Menti:
Embora o gesto fosse brincadeira, assustei e É verdade. Meu primeiro nome é Carolina,
recuei instintivamente. Todos riram e ela falou com -
Carolina Adriana Rezende.
rnuita graça:
Ela não acreütou. Não fiz caso. Eu estava em-
Há muitos modos de bater, mas o verbo baraçada com o olhar da professora. Estava toman-
- será transitivo indireto. Isto é apenas para
sempre do conhecimento de que os cento e tantos alunos
recapitular. Para lembrar vocês. Desculpe ter usado também estavam rqgrarando nas atitudes compro-
seu nome. É esse o seu nome, não é? Adriana? metedoras que revelavam bem o que nós.éramos.
__ Sim. Duas lésbicas identificando uma a outra.
É um nome muito bonito. E conhecido.
-
Fiquei calada. Não pensei que ela tivesse me
identificado com a imagem da tevê ou pelas minhas
colunas em jornais, apos mais de um ano de afasta-
mento. Aparecera rnuito pouco e nos meus artigos
não acompanhava fotografia. Fora coincidência
Inajá reconhecer-me. Eu mudara muito, fisionomi-
36 37
coorclenar o trabalho. Enumerar. Aos poucos eu
dana conta de tudo. Se relaxasse, estaria perdida.
Seria melhor pagar todo mundo, chamar o contador
e encerrar a firma.
Buda não admite nenhuma realidade. A reali-
dade estava me estrangulando. Por que eu não dava
uma de dóbil mental e não começava a agir como
- se fosse um ser invisível a gritar: Eu não existo, o
b que vocês estão vendo aqui é fruto de imaginação.
Ilusão de ótica pelos pensamentos que criarn ima^
gens, logo não lhes devo nada. Vocês estão inven-
tando minha existência. Buda lhes dirá e confirmará
o que digo.Eu penso, mas não existo, parem de pen-
Contrario Descartes com o seu "Penso, logo exis-
sar e eu deixarei de existir, se preferem Descartes!
to" e aceito Buda: "Eu penso, mas não existo, Por-
que o eu é uma ilusão". Cheguei ao escritório, vi Torcer! Torcer a filosofia. Filosofias! Uma re-
todo trabalho acumulado, quase vencendo o prazo manescente da outra, aprimoradas, contrariando,
de entrega à oficina; faltan'Io páginas a serem pre- seguindo o mesmo pensamento ou anulando tudo!
enchidas com artigos que não escrevi. Não senti meu Convencer-me como apregoou Asanga, explora-
corpo. Meu pensamento abrangeu tudo e num re- clor da consciência? que tudo o que existe não é senão
pente de desespero como que me vi gravitando no um sonho da nossa consciência.
espaÇo feito um asteróide sem mmo, perüdo.
Sozinha para dar conta de tudo. Um absurdo! Minha consciência gera pesadelos! perdendo
Uma loucura sem precedentes. Por que não: Já tempo. Idéias revoltas. Olhos iluminados alargando-
não ünha fazendo isso há mais de um ano? Agüen- me a mente. Retalhos de estrelas arrancadas do In-
tando, falhando uns meses a entrega da revista mas finito" Era a derrota. O cansaço. O desânimo. Estava
continuando, com esforço. A partir do primeiro só, lutando contra sombras. Explorando o vazio.
número da revista os lançamentos seriam semanais, Como Nagafirrna, entendendo que a única realidade
depois passaram para mensais, e agora nem por tri- é o vazio, um abismo insondável.
mestre dá tempo. É assim que uma pequena editora Largar tudo! E daí? Eu precisava ter coragem
vai morrendo. para deixar Elisa. O que sentia por ela? O que ela
Sentei, puxei a máquina de escrever. Fiquei de
significava para mim? Peso. Aborrecimento. Nervos.
cabeça inclinada sobre a escrivaninha".
Eu não existo! Não existo! E queria sumir. Uma irritação que prejudicava. Interferia no meu
Farta. Sem saber por onde começar. Era preciso trabalho. Era atraso! Não me dava apoio, colabora-
38 39
ção, nada. Não fazia economia, ao contrário, do- Coxas! Movem-se. Passeiam pela rninha mente.
brava os gastos e com nervos estraçalhados por la- Localização do texto. Compreensão. AnáIise e deter-
múrias e brigas ia me subjugando. Como um boneco, minação do tema. Estrutura. Conclusão. Comentá-
sem reagir, eu trabalhava para ela, para ela, para rio. Palavra. Pensamento. Idéia. Lembrança. Uma
ela! mulher. Inajá. Coxas. O poema das coxas dividido em
Descartes, Buda, Asanga, Nagafurna, Confúcio, movimentos que destaquei. As variações das impres-
Tao! Confúcio depois de Buda, Iao contemporâneo sões que me causou meu olhar preso às coxai de
de Confúcio, um pouco mais velho, funcionário do
Inajá. Gostei. Justifiquei pela perfeição do formato.
Príncipe Lou, espírito prático, preocupando*se com
A própria palavra traduz o simbolismo na análise
que significam as coxas de Inajá. Uma poesia.
os bens terrestres, nem místico, nem metafísico. $_o
Um poema! Localização do texto: As pernas dá Inajá
Vivendo-se em mundos difer:entes conforme as cren- no corpo de Inajá. Determinei o tema. Inajá é real.
ças. Em que mundo vivia eu segundo minha crença?
_C'ompreensão. . . é poético pensar nas coxas de Inajá.
Buda, Descartes, Nagafurna, Asanga, Confúcio, Uma poesia complementada pelas imagens que o
Tao, depois eu! Eu! E o meu pensamento puro, rneu pensamento cria acrescentando estrofes. Cada
olhando para os fotolitos, para o início do artigo que parte do corpo de Inajá é uma rima. E basta dizer:
pretendia escrever para encher a página da revista, COXaS!
pensando em Elisa, em dinheiro, no meu cansaço e Analiso o principal verbo que faz fixação do
na razáo por que trabalhava, gritei a. minha filosofia, vocabulário, bater! E.la bateu suavemente no meu
a minha verdade, o meu vazio, a minha consciência, rosto._O tempo e o modo, as mudanças na significa-
ti minha crença: "O mundo é uma merda! E eu sou ção. Houve; A intenção oculta na simulaçãoão ges-
um cocô! Penso e existo, penso e não existo, penso e to, a vontade de agarrar, de dizer: Sou como võcê,
está tudo vazio,, procuro e não encontro nada, os olhe-me, eu êstou aqui, ofereço-me, eu vibro, vocé
objetivos sumiram, não há amor, por que me preo- rne transmite coisas!
cupar com a felicidade de Elisa se isso não fará a Meu pensamento evoluía gramaticalmente de-
senhando a professora de português, e o altigo por
rninha felicidade? Nenhum filósofo para orien-
I
L
A VACA DOS POBRES
Cabra não gosta de estar presa. Prefere esca-
Iar morros e lugares difíceis para comer o mato,
mesmo que seja nas piores condições, a comer a gra-
ma de campos bem cuidados. Pular e subir pelos
morros, Íazer bastante exercício é o que a cabra
quer, nada de ficar pastando, quietinha, sem liber-
dade.
A mais conhecida cabra'do Brasil é a moxotó
6 ou curaçá. Em Pernambuco e outros Estados do Nor-
deste se encontra o maior número dessa raça. Esse
tipo de cabra chega a ter uns cinqüenta centímetros
de altura e uns setenta de comprimento. Apesar de
ler boa carne, o que realmente se aproveita dela é
o couro que é o que mais se vende, sendo considerado
Você sabia que o apelido da cabra é "Vaca dos
pobres"? Isso porque ela tem um leite múto bom, um dos melhores do mundo.
sabe cúdar de si própria, não dá trabalho, come Não é só o bode que tem barba, não, a cabra da
qualquer coisa, é forte, tem saúde de ferro, quase raça toguemburgo, embora lhe faltem os chifres, tem
nunca fica doente. Deste modo não dá despesa e harba, sim e dá ótimo leite.
nem muito trabalho ao dono. Há outra raça também muito criada no Brasil,
Entretanto, uma cabra bem cuidada, evidente- a anglo-nubiana, mistura da raça inglesa e da nu-
rnente, dará melhor leite, melhor carne e melhor biana. É a mais mansa de todas e seu leite é gostoso
pêlo. e forte, bastante nutritivo.
Ainda há gente que fala mal da coitadinha da A cabra é um mamífero ruminante, fêmea do
cabra! Dizem que ela é tão gulosa que come tudo bode, pertence à família dos bovídeos (touro, etc.).
o que encontra na esperança de achar algo mais gos- Na Ásia, na Europa e na África üvem as cabras
toso. Por isso come até roupa pendurada em varal, selvagens. Seus chifres são ocos, o focinho peludo e
cartazes, galhos, folhas, feno, papel, tud.o enfim que repartido no meiol alguns bodes são desprovidos de
encontra ela mastiga. chifres. As fêmeas e seus filhotes sempre obedecem
O requeijão do Nordeste é feito do leite de cabra, aos machos.
com o qual aliás, se produz uma infinidade de tipos No Himalaia, justamente nos lugares mais frios,
de queijo e manteiga. sempre cobertos de neve, encontra-se a raça ibex, a
As cabras do Brasil são bisnetas de cabras es- mais conhecida das cabras selvagens. Mora perto de
trangeiras, mas podemos considerá-las bem brasi- precipícios e nas mais íngremes altitudes. É muito
leiras. difícil conseguir caçar uma ibex.
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45
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A cabra ibex éum animal dos mais ariscos, sua Cabra? Mulher? A minha! Elisa é uma cabra.
agilidade é impressionante e seus pulos causam sur- De tetas secas. Não dá leite. Devora tud.o o que te-
presa aos alpinistas que escalam aquelas monta- nho. É rebelde. Eu queria uma vaca cor-d.e-rosa, de
nhas, tentando capturar exemplares da raça, e que tetas cheias, mansinha, de olhos tristes e brilhantes,
voltam na maioria das vezes de mãos abanando, e meti-me com uma cabra que é bem diferente das
sem nenhuma presa, pois a ibex, com o seu equilí- cabras sobre as quais falei no artigo que escrevi para
brio e sua agilidade notável, atinge lugares onde u a revista.
homem não ousaria ir. Escrêvia e pensava em Elisa. Quando cheguei
Embora muitas vezes consigam domestical a à parte em que falo sobre a visão da cabra ibex,
ibex ela é sempre rebelde, não obedece e cria plr,- o Jeu olfato aguçado e das suas quatro patas de exí-
blemas ao seu dono. mia saltadora, lembrei-me de Inajá. As pernas dela
A cabra ibex mede oitenta centímetros de altura alongaram-se e eu a vi executando um bailado ca'
e seus longos chifres chegam a ter um metro e qua- prídeo!
lenta e cinco de comprimento. É uma loucura! O telefone toca e Elisa chora-
Vocês ficariam indignados e chego até a pensar minga que foi obrigada a passar um cheque sem
que duvidarão do que eu vou lhes contar, mas creiane fundo para um cobrador que não saía da porta"
que é verdade: a ibex tem uma guardiã, uma senti.
nela. É! Exatamente! E mais ainda, uma sentinela - Quanto?
pu2sntos cruzeiros.
que assobia para avisar o grrpo de cabras casô des- - Duzentos crlzeiros!? Você quer me deixar
confie de algum perigo. Os mais temidos inimigos
da ibex são os leopardos-das-neves e os cachon'os - Onde gastou tanto dinheiro?
rnaluca:
selvagens. Onde? ! Você pensa que gosto de viver na
A visão da cabra ibex é perfeita, ouve muito berm
-
bagunça? Comprei papel contact para forrar os ar-
e tem olfato aguçado. Como se estivesse executando mários da cozinha. Estavam indecentes.
o mais simples passo de balé, ela salta de uma pecL'a Mas os armários não foram pintados recen-
para outra mesmo que esta esteja a uns treze metros -
temente? Não estava tudo bonito e limpinho? O que
abaixo e onde o espaço mal dá para suas quatro patas deu em você? Pensa que meu cocô é torrão de our:o
de exímia saltadora. que vend.o aos quilos para pagar suas extravagân-
Na Universidade de Coimbra há uma sineta que cias?
;rnuncia o começo e fim do trabalho escolar diár'ic, Naturalmente ela bateu o telefone. Ficluei espe-
à qual dão o nome de cabra. rando. Sabia que tocaria outra vez. Tocou.
Aqui no Brasil é mulher que berra muito! Onde você quer que eu arrume dinheiro?
- suas amigas vêm aqui e você não qller que
Depois,
elas digam que a casa de uma iornalista ó des-
cuidada, porão a culpa em mim, é claro.
46 4/
Mas não tenho dinheiro, Elisa. Paguei o le- Quanto tempo eu não fazia sexo com Elisa? Nern
- tive que terminar o serviço sozinha,
trista, estou sabia ao certo. Não tinha disposição, nem pensava
exausta, você nem pode imaginar quanto trabalho nisso. A lida diária exauria todas minhas energias.
tenho aqui na minha frente, e você só fica pensando E o arrepio passeou suave e leve pelo meu corpo
em bobagens, em gastar. e eu passei a mão pelo rosto, lembrando que a mão
Você tem que dar um jeito. Tem que depo- de Inajá havia pousado nele.
sitar -ainda hoje. Já imaginou o que me aconteceria Bater! Bater na cabeça de Elisa até que ela co-
se o cheque voltasse! Agora o caso é sério. É cadeia. meçasse a raciocinar direito, a compreender a situa-
Fui eu que bati o telefone dessa vez. Que ela ção, o mal que estava me fazendot Bater! Bater lrreu
fosse para a cadeia. Era o jeito. (-orpo contra o corpo de Inajá até gozarmos juntas.
O telefone tocou. Fiquei pensando. Novamente o telefone. A voz
Cabra mestiça, nem nubiana, nem inglesa, de Elisa foi ácido escorrendo pelo buraco do ouvido:
-
nem ibex, você é uma cabra ruminante, mamifera, Como é? Você não vai depositar o dinheiro?
desgraçada que está me enlouquecendo! -Fechei o escritório e fui. Eu não poderia con,
Ela fez que não ouvir-r, ou não entendeu. per- tinuar trabalhando. Uma idéia crescera em minha
guntou no seu modo duro: cabeça. Depois do Banco, fui para casa.
Você vai ou não? Elisa estranhou. E tentou me abraçar agrade-
-Haveria outradepositar
saída? Depois do cursinho eu cida quando confirmei que havia coberto o cheque.
teria que ir para casa de qualquer jeito. Não tinha Empurrei-a e fui para o banheiro. Demorei tomando
escapatória. lü bariho. Perfumei o corpo todo.
Deposito. Elisa mordiscou os lábios e resmungou, ferina
- nem quis saber onde eu ir:ia arranjar pelo esmero com que eu estava me arrumando.
dinhei-
ro. -Ela
Eram duas e meia da tarde. Telefonei para a Era verdade. Eu fora para casa com o pensa-
Gráfica. Pedi para mandar um mensageiro rleceber rnento amarrado em Inajá, e queria estar muito bem
no escritório. Expliquei que aconteceri algo impre- trajada nessa noite porque iria vê-la.
üsto e- que o cheque que eu havia dado paia rer ães-
contado na manhã seguinte precisava ser trocado.
Ilma diferença de duzóntos cruzeiros que eu cobri-
ria até o fim da semana. O dono e.a meu amigo,
concordou amavelmente, mas eu quase morri ãe
vergonha.
Odiei Elisa. Em meio a esse sentimento Inajá
s-urgru com o seu olhar insinuante e suas pernas que
despertaram em mim um desejo de sexo aãormecião. l
48
49
tudo muito bonito, entusiasmador, excitante, gostoso,
lr para depois um arroto azedo de ressaca e mau-
humor!
Virei as costas e afastei-me, convencend.o-me
pelas minhas experiências passad.as que não valia
a pena desejar mulher alguma. Para que começar a
coçar-me de novo se estava sarand.o da sarna que
+ Elisa me passara? A sarna mental! Aquela coceira
7 irritante que depois arde, quando a gente percebe
que o amor não era amor, era um pensamento que
simbolizou uma sensação.
Eu lamberia a mulher porque o mel do seu
olhar me atraía como a uma apis mellifica e depoig
sob o melado, encontraria um cocô! Contraí-me! Mi-
Mais uma fuga. Memorizar. Atualizar cultura e
aumentar meu campo de estudos avançando para nhas idéias conspurcavam minha mente.
outras ciências. Encher a cabeça com fatos históricos, Ela aproximou-se por trás de mim e disse bem
torcer a língua para aprender a pronúncia, e regis- perto do meu ouvido:
trar a grafia dos novos idiomas que estudava.
-Voltei-me para ela 1o..i*u,
Mandou passar hern?
Encher a cabeça, fartar-me com o olhar preso e perguntei curiosa:
nas coxas de Inajá, que parecia deliberar seu modo {e Não entend.i?
de andar e de aproximar-se de mim, percebendo, in- - Não é nad.a, não. Deixa. Tod.a noite você
tuitivamente, o que me provocava. f.az a- mesma coisa, me manda passar por cima.
Eu não queria olhar. O olhar seguia magnet'i- Afastou-se no meio de um grupo de alunos que
zado aos movimentos dela. Precisava concentrar-me. a rodeavam, inventando motivos para falar com ela.
Prestar atenção. Estava ali para aprender, recapi- Fiquei olhando-a curiosa. Era uma mulher interes-
tular e não perturbar-me com um desejo inconve- sante. Notei alguma menininhas evidentemente em-
niente e atiçado pelos trejeitos dela. polgadas pela mestra. Sequer percebiam que esta-
Durante o intervalo surpreendi-a olhando-me vam revelando suas tendências homossexuais com
de maneira persistente e reveladora, aliás, o olhar seus olhares insistentes procurando o olhar de Inajá.
dela estavâ sempre pousado em mirn durante as Cobiçavam-na. Zrtmbiam ao redor dela como abe-
aulas, o que me intrigava e comeÇava a criar sus- Lhas procurando mel.
peitas de que talvez ela estivesse apenas querendo Como eu custara para perceber o mundo cir-
comprovar o que eu era, divertindo-se. Senti medo. cundante. Estava dentro de mim, amarrada no meu
fC raiva. Eram todas iguais Elisa e ela. A princípio I.
eu, nos meus problemas, colhend.o às vezes impres-
50 51
.-
sões exteriores. E as coxas de Inajá alertavam-me, trapasso quando você oferece passagem e faz gestos
chamavam-me. Tiravam-me de dentro de mim. Eu rd
me mandando passar por cima.
estava olhando para fora. Observando o que me Ahl é sempre você? Pensei que toda noite
rodeava, abrindo os olhos de novo. Estava escápando. - invocasse comigo, mas não que fosse
alguém a
Do medo da derrota. Dos objetivos frustrados da mi- rnesma pessoa.
nha firma. Do fracasso da revista. Da ilusão de criar
É. Sou muito insignificante para ser notada
alguma coisa minha. De invadir o comércio e ser -
por você, por isso me mandou passar por cima.
autônoma. De misturâr-me ao mundo financeiro e
sentar numa poltrona confortável dando ordens a Se eu soubesse que se tratava de você não
contínuos e secretárias. teria-feito isso.
58 59
vasse que eu existia, com intenção de chegar ao
ponto onde chegara. A escuridão fechou mais.
Agora estamos no vazio. Só um pouco de
-
luz mortiça que vem do misterioso infinito ãeixa-me
vê-la e perceber que estou na Terra.
T'ornei a acender as lanternas.
- Aqui deve ser perigoso. Onde estamos?
- Você não disse que conhecia o fim do murlí
- reconhece?
tlo? Não
Mas esqueci o nome. Até o fim do mundo 9
tem -um nome.
Então você vai ficar perdida
- Você vai me ensinar a voltarpor aqui?
e depois virei
mais-vezes até decorar o caminho. Saí do cursinho. Não sobrava tempo. Todas as
Ou até que eu aceite noites, onde quer que ela fosse lecionar, lá estava
- Em Deus, nos deuses?a sua crença? eu na porta, esperando-a. Inajá fazia com que eu
- No que você acreditar. esquecesse as atribulações diárias. Inteligente, cari-
- Ou até que você deixe de ter medo de ser o rrhosa, amiga acima de tudo. Compreendia-me.
-
queéenãonegue. E então, de repente, fiquei sabendo que estava
O que eu sou? noiva. Ela disse que me amava, que não tinha cora-
- Tem tendências homossexuais. É. gem de me deixar, mas que não podia desmanchar
- Não. Não sou. o noivado. Discutimos o assunto. As razões dela eram
- firmadas no respeito que devia aos outros, aos pais
e o medo de gente como eu. Eu tinha "um caso" não
podia desfazer o compromisso sem mais nem rne-
nos. O tempo de vida em comum tornara-me res-
ponsável por Elisa. Ela precisava de mim. Dependia
de mim. Eu não me pertencia de todo. Não era com-
pletamente livre. Minhas obrigações morais amarra-
vam-me a ela.
Afastei-me de Inajá durante um mês. Nem sei
como esse mês passou. Sei apenas que certa noite
parei em frente ao "cursinho", ela saiu e entrou no
meu carro. Nem sequer nos cumprimentamos. Era
ó0
61
como se tivéssemos telepaticamente marcado encon- E se ele for?
tro para aquela noite. - Não sei.
Nas proximidades da Cidade Universitária, para - Então esperemos amanhã para ver o que
onde me dirigi sem tomar nota do rumo que seguira, -
acontece
ela deu as primeiras palavras. Nossas rnãos entre- tr de repente, uma raiva da mulher insegura,
laçavam-se, dedos uniam-se e desuniam-se era um da homossexual desviando-se, enganando a si pró-
diálogo de mãos que tremiam de saud.ade. pria, iludindo um homem, dividindo-se cornigo, so-
f,6p6 você pôde ficar tanto tempo sem me Írendo e me fazendo sofrer, provocando-rne e exci'
-
ver? Acho que por sadismo. Por ter certeza de que tando-se sem que chegássemos a coisa alguma, na-
eu sofria. Imaginava-me esperand.o-a, olhando as quelas masturbações mentais, nos esfregas dentro
ruas à sua procura e deliciava-se com isso. do carro, das tensões por serrnos surpreendidas por
Ela seguira o que eu sentira. Fora exatamente outros que passavam pelo nosso caminho. A mão
assim. Deleitara-me imaginar Inajá ansiosa, contan- desceu para o rosto de Inajá. Não suavemente, sim-
do as noites em que eu não estava à espera dela. Era bolizando a ação de um verbo, mas definindo na sua
um masoquismo com a compensação do prazer do violência o gesto de bater. A bofetada doeu. Ela er-
sadismo. gueu a mão para a face que avermelhou e fitou-me
Preciso ter você. Sinto vontade de você, Ina- atônita:
-
já. Sei que nada haverá entre nós. Que nunca fica- Você me bateu? Por quê? Por que, Adriana?
- Porque você merece. Porque está me enlou-
remos juntas. Qre vamos sepârar-nos definitiva- -
mente, mas preciso ter você, ao menos uma vez. quecendo. Porque vamos separar-nos. Porque o nosso
caso não pode ser. Não sei, não sei. E nern quero
Sua voz me queima.
-Rodamos quase São Paulo inteiro. Meia-noite pedir desculpa. Tenho mesmo vontade de bater em
você.
tleixei-a perto da casa dela. O noivo deveria estar
impaciente. Ela não o esperara. Assim que me vira Beijamo-nos com sofreguidão. Não combinamos
entrara no meu carro. Regozijei quando ela contou: nada, Ela foi embora.
Nem vi se ele já estava lá. Fiquei cega. Es- Manhã seguinte, pulei cedo da camâ. Não fui
-
tava morrendo de saudade. Acho que ele não estava para o escritório. Dez horas estava tocando a cam-
não, senão teria nos seguido.
painha da casa de Inajá. A mãe dela atendeu' Inajá
estava tomando banho. Fiquei esperando. A mãe
E agora? dela desculpou-se. Teria que me deixar sozinha. Já
- Se ele não estiver me esperando em casa,
avisara a filha que eu estava lá. Ia à feira, eu não
- aparecerá.
amanhã me importaya de ficar folheando umas revistas?
Não quero saber. Vamos Íazer de conta que Absolutamente! Ela podia sair tranqüila, eu é que
-
clc não existe. me desculpava por chegar em hora tão inoportu-
Amanhã você vai me buscar? na.
-
62 63
A porta da r.ua fechou e a do banheiro abriu vergonha Inajá, e agora?
simultaneamente. Inajá olhou-me do alto da escada - Que
Ela pensa que estávamos estudando. Nem
onde apareceu. Eu estava no hall, bem em frente. pensa- nisso. Veio nos chamar para almoçar. Vamos.
Suba. Aproximei-me e fiquei esperando. Ela me abra-
-Deixei a revista sobre a mesinha e fui. çou. Senti que era um adeus.
\l -- O que deu em você? Era um adeus, nas mãos que levaram as minhas
* Quer que eu vá embora? i
rnãos para afagar-lhe as coxas, nas mãos que condu-
Ela segurou minha mão. ziram as minhas para os seus seios, nas mãos que ofe-
reciam todo seu corpo para que eu bolinasse, beijasse,
-- Não. Venha. Já que está aqui venha enxu- e possuísse.
gar meus cabelos.
Passamos a tarde juntas. Às cinco e meia saímos
Entrou no quarto. Sentou numa cadeira. Esten-
e ficamos rodando pela cidade até a hora em que
deu-mc o secador que ligou na tomada.
a deixei na porta do "cursinho". Despedimo-nos.
Ela estava de roupão de banho. Percebi que
estava nua sob o tecido macio. Passei a mão pelos Você é quem tem que me deixar porque eu
-
não tenho coragem. Você precisa sumir da minha
cabelos deia. Carinhosamente. O ar quente esvoa-
çava os fios úmidos. Inclinei-me. Beijei-a na nuca. vida, porque foi muito difícil forjar uma situação
Ela empurrou a porta com o pé. Num gesto rápido para enganar a mim mesma e aos meus pais, você
girou a chave na fechadura. Entend"i. Larguei o se- precisa me deixar, Adriana, mas não faça isso por-
cador. E estendi as mãos para ela. Ela veio para mim, que eu a amo desesperadamente.
«r rosto oferecendo a boca. Ajoelhei-me. Ah! Controvérsia, contra-senso, insegurança!
Inajá estremecia. A respiração irregular. O calor - Ficamos de mãos dadas e conversamos muito
do corpo dela aumentava. sobre a nossa situação. Nossos problemas pareciam
Bateram à porta. A mãe chamando-a pelo insolúveis. Os obstáculos, intransponíveis. Ela se ha-
nome. Afastei-me atordoada, ela recompôs-se. Ves- bituara a uma situação dissimuladora e eu me dei-
tiu o roupão às pressas. A calcinha continuou no xara absorver e aniquilar pelas manhas de Elisa.
chão. Joguei-a.num chute para debaixo da cama. Sete horas ela saltou do carro. Prometi voltar
Tudo acontecera numa vertigem. Inajá estivera sempre. Todas as noites. Fiquei cismando. Peguei
nua. Grudada em mim. papel e caneta no porta-luvas e escrevi uma carta.
Ouvi-a dizendo qualquer coisa para a mãe e os Uma despedida. Não podia encerrar um "caso" assim
passos que desciam a escada em seguida. Olhei-a sem dizer tudo o que eu pensava e sentia. Pretendia
assustada. não vê-la nunca mais.
Estava embaraçada. Teria a mãe dela perce- Pedi ao ascensorista do elevador do prédio onde
bido? !I ela lecionava que entregasse a carta.
& 65
Inajá: Entretanto) sott toda alma e o que conta são as
Todos os sentimentos passaram por mim, da 't minhas uerdades, não a hipocrisia dos espíritos m*
raiua à mais profunda tristeza. Como sempre a raz.ão drosos e deformados pelas imposições de uma socie'
se impôs e uenceu. dade medíocre e abafada.
Estendo a mão à palmatória e retiro-me. Não Abafada, represada, cheia de compleros! A
nego gue carrego comtgo o peso do mais arrasador sociedade, é claro.
lracasso. De alguru minutos para cá, minha cara e dis'
Realmente uocê não passa de uma índefínida e tinta professora, tudo tem cheiro de coisa deterio-
eu de uma couarde, íncerta, ínsegura,, gue nem rada, de mofo, de couardia.
mesmo sei a diferença entre um uerdadeiro amor e
As pessoas caem. Caem sempre no uulgar de
uma emoção forte. Carência afettua, por certo, insa- negarem a próprta natureza.
í.isfação, prazer pela auentura. De todo modo, aman-
d.o ou apenos deliciando-me pelo encanto do roman-
O med.o e a hipocrisia não merecem respeito,
ce, dos seus beiios e do olhar bonito, sei quando mas indiferença e lástima.
minhas determinações deuem ser irredutíueis. Isto, Taluez eu esteia sendo rude, taluez, trarutor-
naturalmente, forçada pelas ctrcunstâncias criadas nada pelo rompimento ineuítáuel, berre minha re'
por uocê, ou por nós, como quetra. uolta nes'tas palauras, como se tiuesse perdido o yais.
Você é infantil e tola. Tenta enganar aos ou- precioso dos momentos na reuelação de que tudo foi
lros e não faz mats do que destruir a si própría. um triste engctno.
Você está amarrada na mentira) no medo, na
Conselheira ou acusadora deploro sua atitude.
Pobre nciuo iludido que leuará. para a cama uma farsa e eu rne estrangulo pelos meus próprios erros.
mulher cuio espírito deformado criará. situações em- Durma Íza sua mentira e utua um sonho feliz,
baraçosas e i.nfelizes pelo seu desajustamento, a. orald nunca desperte para o pesadelo que a espera.
menos que consiga superar a si própria, retntegrar-se Sigo. Não posso parar porgue não sei deitar de
ao ambiente de onde uem e onde gostaria de fir- ser o gue sou: homossetual genuína à procura de
m(u-se. Será, uma luta. O que uocê é2 Não sei. Foi Ltma semelhante.
encantadora, delictosa e nada negou sua definída Adeus
natureza homossetual. E pena gue tente enganar a si Adriana.
própría e tenha coragem de desgraçar um pobre
rctpaz gue a ama e rtunca chegará a conhecê-la ple-
na.mente. Não escrevi e nem apareci mais. Quase dois
Quanto a mím, jamais deiraret de ser autên- meses depois encontrei-a casualmente na Vinte e
lica e de ter noção do que deuo fazer. Esta é a des- Quatro de Maio. Fingi que não a vi, mas ela veio
pedida, dura, fria, definttiua. Nada resta. Para nós cumprimentar-me. Os alunos que estavam com ela
ficou o resultado daquilo gue somos: duas nulídades. percóberam meu embaraço e o nervosismo de Inajá.
66 67
Fingi naturalidade ou forcei não demonstrar
que não éramos apenas simples amigas. Despedimo-
nos após troca de poucas palavras e nunca mais nos
encontramos novamente.
Eram três horas da tarde nessa última vez em
que vi Inajá. Eu não queria lutar por mulher nenhu-
ma, enfrentar noivo, sociedade, família, desfazer
lrma aparência que ela estava conseguindol arran-
cá-la do mundo dela para o meu? criar problemas.
Nada disso. O amor de uma mulher por mim teria
I
r0
que ser sem entraves, sem temores, sem complexos,
sem medos, natural, espontâneo, genuíno.
Eu estava indo para a Gráfica. Desisti em meio
do caminho. Rever Inajá mexera comigo. Meus pen- Às vezes a contingência nos obriga a um golpe
samentos embaralharam. Lembrei-me da carta que decisivo, sem explicações e desculpas, sem esclare-
t
lhe escrevera e me senti ridícula, boçal, desperdiçan- cimentos e sem transigir. Elisa desculpou-se sem
clo letras. A realidade é bem diferente da filosofia arte, eu tinha as provas e ela não podia escapar da
com que a imaginamos. Inajá parecia bem na sua verdadel a imposição que dignificaria seria ir-me em-
situação escolhida. Eu é que com o meu romantismo
bora para preservar o que eu tinha de mais valor:
piegas estava desajustada e pretensiosa na minha
rninha cabeça, serrados os chifres, é lógico.
conceituação moral daquilo que um indivíduo é ou
r:esolve ser. Ela não podia provar que não houvera culpa
Resolvi ir para casa. Tomaria um banho, café- e eu não me ridicularizei.
com-leite, conversaria com Elisa, que andava cada Fingi que não vi o homem, entrei no banheiro,
vez mais insuportável. Seria possível acertar os pon- lavei as mãos, entrei no meu gabinete, sentei por trás
teiros com ela? Não. Não tinha ilusões, nem me ani- da escrivaninha e fiquei pensativa, olhando para
mava. Eu precisava descansar. Ter apenas uma Elisa, sem vê-Ia. Ela falava, eu não entendia nada.
amiga que me acompanhasse no silêncio. Eu só me preocupava com o tempo que gastaria para
Decisão acertada seria fechar minha firma antes 1 arrumar todos os meus livros, juntar minha roupa
uma falência. Faria isso tão logo me desfizesse do e sair. Levaria tempo. Não ia agir precipitadamente.
de
Precisava calcular. Telefonei para uma Companhia
estoque de revistas que formavam pirâmides no mi-
núsculo escritório. de Transportes pedindo que mandassem uma camio-
neta.
Cheguei em casa. Entrei. Elisa saiu do quarto.
enrolada numa toalha. Na minha cama eu vi um Ela falava, rodeando-me. Exasperava-se. Não
homem deitado. queria que eu a deixasse. Ia morrer sem mim. Que
68 69
desplante! Não vi quando o homem saiu ou se ficou segurança de Inajá. Precisava encontrar gente. Defi-
lá no quarto, pois não olhei naquela direção quando I
nida. Como eu. Autêntica. Sair da fossa dos desen-
tive que andar pela casa recolhendo minhas coisas. contros. Eu não amava Elisa, não amava Inajá,
Eu te amo! Fiz isso porque você não me liga. amava alguma coisa superior a mim mesma. Um
-
Porque sei que você tem outra. Queria que sofresse' ideal que eu buscava sem ter estabelecido como seria.
Você me enlouqueceu. Reorganizaria minha vida. Trabalharia. Fincaria
E a cabra ficou berrando! raízes em novo empreendimento e não teria mais
Fechei a porta atrás de mim' Não sei quanto problemas, nem comerciais, nem sentimentais.
tempo demorei para fazer a mudança, só sei que A verdade era que por mais que eu quisesse
qrrarrdo cheguei ao escritório com tod'os os meus ba- provar o sabor do amor não conseguia amar nin-
gulhos suspirei aliviada. Suóm, era tudo sexo, necessidade de companhia,
À noite fui para um hotel. Precisava providen- horror à solidão.
ciar um lugar para morar. Tudo acontecera naquele Deveria sair com amigos. Procurá-los. Estava
dia. Seria ó meu dia negro ou outras portas ofere- muito afastada. Centralizara-me nas minhas preo-
ciam passagem para que eu seguisse novo rumo? cupações pessoais, devia interessar-me em ver como
Faltava mesmo era fechar a firma. Encerrar os outros viviam, como pensavam, o que sentiam e
minha carreira de editora e cuidar de mim sem ouvir lamúrias, confidências e coisas alegres, que
correr atrás de ilusões. tudo fazia parte da vida, e não isolar-me como
Começar de novo. Seria bom. Arranjar em- estava fazendo desde longa data.
prego, trocar de nome, viver sem tantos problemas O aconselhável era espichar as pernas para a
iufõcantes. Chamei por Deus, Ele não me ouviu. Não .'l 1
vem alimentar suas taras, olhando-nos como se fôs- Marta percebeu minha transformaão e cutucou
semos as coisas mais deleitosas do mundo. Outros Alice, que seguiu meu olhar. Ouvi seu comentário:
ainda mais nojentos procuram as que se sujeitam a É essa? Ela é lindal
deitar com eles por dinheiro. -Nem sei como meus lábios se descerraram para
horror! dizer:
- ÉQre
por isso que prefiro vir aqui. Apesar dos É estranho, nem mesmo a vejo direito, sou
- afinal eles fazem parte
travestis,
-
míope e nessa penumbra enxergo rnenos ainda, en-
do shout da noite, 'tretanto ela me transmite algo. É como uma radia-
a freqüência realmente é mais selecionada. Você não
viu nenhum homem que não fosse entendido, e ção. Sei lá. Mas você tem certeza de que está olhando
quando vem algum é sempre amigo de um ,,bicha,, para mim ou para este lado casualmente?
respeitador, sem interesse, a não ser em passar uma Está olhando para você e com bastante insis-
noite com amigos entendidos sem pertencer ao clã,
-
tência.
'1,
84 85
Era extraordinário o que estava acontecendo. O Substâncias químicas que se fundem. Já dissera
inesperado. Por uma mulher que eu mal divisava antes numa definição, tentando entender o entrela-
na penumbra da boate.
çamento de duas vontades, de duas forças magnéti
Eu estava sendo eu, caindo na minha sensibili- cas, que aquela emoção do corpo, aquela vibração de
clade extrema, boca gelada, coração aos saltos, medo rlelírio, de junção de desejos, era a eletrostática da
rle não acontecer nada, medo de que acontecesse alma.
alguma coisa, que a imagem viesse até mim ou que Estranho! Sem pressentir, sem calcular, sem
se diluísse diante dos meus olhos encantados. aquilatar, eu estava provando o rnais elevado êxtase
Imprescindível, sorrateiro, o sentimento viera através de um simples olhar.
e plantara-se dentro de mim. Senti fincar-se com No mesmo instante em que meus olhos a encon-
força. Existia algo germinando, arreganhand.o entra- traram sentada naquele canto oposto ao lugar onde
uhas, assenhoreando-se. Possuída pela emoção que eu estava, e o seu olhar bateu contra o meu, senti que
acreditava só eu mesma poderia sentir, ninguém a vida mudava, o ambiente mudava, eu mudava!
rnais. E era dela! Vinha dela! Ia de mim pará ela!
O sonho vinha agarrar-me e enfebrecer-me na
Uma corrente contínua de fluidos extra-sensoriais. bebedeira do arrebatamento mais violento: atração.
Uma mulher cujos traços do rosto eu mal podia di- üu
Ç
Minha voz perdera-se nos confins de dentro de
mim. Proctrrei-a. Falei.
mo do primeiro dia em que se conheceram. Não é Sim?
para se ficar admirada? -Quase inaudível.
Não somos as únicas. Suas tentativas talvez Quase perplexa, esforçando-
- me em aceitar o real. O sonho estava ali. Ilina linda
não tenham dado certo por seu excessivo romantismo mulher que eu olhara, por quem me sentira atraída
ou porque não escolheu ainda o que lhe convém. e depois iemera, porque ela me fizera sentir a vida,
Não escolhi! Escolhe-se? Ou se é agarrada desdã o prirneiro instante em que entendia existên-
-
sem se saber como por um sentimento sufocante que cia.
depois explode numa tremenda desilusão? É por isso Você gostava de me assustar.
que estou com medo de me apaixonar. Não quero - Eu?!
mesmo me envolver com mais nenhuma mulher. Eu - Sim, você.
não afino mesmo. Ou elas me amâm demais, e eu não - Como? Assustava você? Quando? Isso soa a
correspondo à altura, ou acredito que o nosso amor -
passado.
é o maior do mundo e caio no fastio e depois deixo-as [x6t6msnfs.
ir nos braços de um fauno cabeludo que soube tocar -Encarei-a.Não. Eu nunca a vira antes.
o instmmento que eu abandonei por cansaço, enfado,
Não entendo.
esgotamento. - Você não é Adriana Rezende?
A calma alargou-se num sorriso. A esperança - Sou.
pintou rneu olhar de sonho. A ilusão tomou forma, - Eu era muito pequenininha para você se
boca, dentes, olhos, voz, sorriso. Senti que nada plan-
tara no chão do meu coração que estava árid-o corno
-
Iembrar de mim. Quando a vi pela última vez eu
areia causticante do deserto. tinha oito anos.
E se no meu deserto eu encontrasse uma flor? Fiquei intrigada, rebuscando um rosto infantil
nos traços de urna deusa.
Eu a pisaria com o desequilíbrio causado pelos
meus passos claudicantes, por ter caminhado sempre Seu nome? Diga? Faça-me lembrar.
-E a hipótese de que ela estava ali só porque rne
por estradas acidentadas.
Ela estava ali, sentada ao meu lado. Chegara. conhecia de infância apertou meu coração numa
tristeza.
Dissera qualquer coisa como:
Está bem, posso sentar com você um ins-
Eu não gosto do meu nome. É muito feio.
- Vou -dizer baixinho para que ninguém escute e você
tante? Se prefere que eu venha, já que é de meu vai lembrar!
interesse lhe falar.
Debruçou-se bem perto de mim e seus lábios
Eu estava olhando para o rosto mais belo que tocararn minha orelha. Estrerneci ao contato. Eram
vira em toda minha vida. Perfeito. Pela tristeza do
olhar era radiante. 93
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quentes, macios e a voz adocicou uma emoção que trações de arrepios e temores. Ela parecia insinuar-se
me transportou ao passado: e ao mesmo tempo eu pensava que era só a curiosi-
Nicoleta. Filha da dona Carola e do seu Fer- dade de aproximar-se de alguóm que lhe fizera care-
rrrcci.- Lembra: Nicoleta Ferrucci. tas quando ela era criança. Fiquei envergonhada
Afastei-me. Olhei-a atônita, incrédula, assus- lembrando que flertara com ela. Teria interpretado
tada. como um interesse malicioso?
Você?! Eu também não a reconheci. Eu a vi e fica-
- Sim, eu. -
mos nos olhando e então eu perguntei a alguóm
- Uma moça linda! Jamais a reconheceria. qual era o seu llome e me disseram. Foi uma sur-
Oito -anos tinha? E agora? Dezessete? presa porque então vi que realmente você não era
Dezoito. estranha, que aquilo que eu estava sentindo era Llma
- Uma criança ainda. admiração muito antiga, quase do berço.
- É. Acho que foi por isso que tive noção da
Que nada! Sabe, eu sempre me lembrei de
você.- Eu a admirava muito. Lembra como sempre -
minha idade quando estávamos. . .
estava chamando-a? Fiquei sem palavra, sem saber o que dizer. Flla
Sim, você disse que eu a assustava. Por quê? Íoi sagaz e completou:
-
Não me lembro. ... nosidentificando?
Ela riu e tentou esquivar-se. Eu insisti. Marta fr,. Acho que é isso.
e Alice estavam paralisadas em nós duas. A1ice fez -Para ouvir o que dizíamos precisávamos aproxi-
um gesto. Respondi negativamente com outro gesto, mar a boca uma do ouvido da outra. A situação tor-
revelando minha decepção. nava-se embaraçosa? sentind.o o calor daquela coxa
Está bem, acho que não é muito agradável, carnuda, grudada à minha, o hálito perfumado
mas -enfim você tinha razáo, eu era uma bisbilho- batendo em minha orelha, a Yoz penetrando-me, e
teira. todo o trejeito dela, visivelmente empenhada em se
-- Diga. {azer notar por mim. Defini sem evitar o que estava
Minha mãe, lembra, era amiga da sua mãe, me castigando. Um desejo de abraçá-Ia, de grudar-
-
e a gente às vezes ia à tarde na sua casa. Você não me nela e beijar aquela boca polpuda, macia, fresca.
gostava. Estava sempre escrevendo e eu ia enfiar o lndignei-me, recobrando a razáo e encontrando-me
nariz na máquina de escrever. Você fazia careta pra na boate:
mim e eu saía correndo de medo. O que faz aqui? Este ambiente não é para
Rimos e ficamos sérias simultaneamente. você.-
Ouça. Eu sou lésbica.
-Ouvi. Senti a música. Sing Síng Barbara. Um -Fiquei pasmada. Lábios grrdados. Olhos presos
sentimento místico revirava meu estômago nas con- nos olhos dela e senti a mão dela estender-se para a
94 95
minha quando me levantei e, num ímpeto de rea-
ção inesperada, convidei-a para sair comigo, para
darmos uma volta, para conversarmos melhor, longe
do Sing Sing Barbarq qlue repetia a todo volume
urma estereofônica cujas caixas acústicas estavam
bem perto de nós.
Alice e Marta perguntaram-me aonde íamos.
Deixei dinheiro para pagar meu guaraná e respondi:
Voltaremos logo.
- oQUEÉOAMORp
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dos de procurar o verdadeiro rosto do amor. Inventei-
Sempre criei fantasmas, mas sonhos são sóis que
queimam e não produzem calor, é amor que chama
rnas que não dá amor!
Ela me seguira. Entrara no meu cartro. Estava
sentada ao meu lado. Parecia ouvir meu pensa-
rnento. Sentir comigo a magia da noite. Primeiro,
estrelas. Uma chuva repentina que amainou e parou
t4 e a minha introspecção, policiando lições de verdades
morais.
Você é linda. Uma boneca. Sabe, não gosto
- expressão boneca, mas dizendo-a para você
dessa
tem outro significado, porque você é tão linda que
se eu escrevesse somente números teria o mesmo re-
O amor é uma lágrima. Às vezes doce, às vezes sultado, porque a contagem é infinita quanto a sua
êmarga, escorre pela face, umedece, seca e não deixa beleza, nenhuma palavra pode defini-la exatamente'
rastro. (A menos que tenha se desprendido dos olhos Você me deixa encabulada.
de uma mulher que use rímel nos cíIios.) - Mas você não vai sair correndo como quando
E pintalgou o céu a luz esmigalhada das nebu- - fazia caretas, não é?
eu lhe
losas, que do infinito se desprenderam como peda- A risada dela foi deliciosa, cristalina, clara. Mas
cinhos de estrelinhas a rebrilhar nos cabelos dela. mesmo quando ria era triste.
Orvalhou a pétala da flor a gota do sereno, que a ma- Você é triste. É triste?
drugada, de tristeza pelo amor impossível, chorou - Primeiro você afirmou, depois perguntou,
iembrando quem era a pessoa amada. - a dúvida? Por que me acha triste?
por que
Lua surgindo e) qual prostituta, corria pelo Não sei. Nunca vi uma expressão que me
espaço, escondendo-se entre nuvens, sem nunca en- -
tocasse tanto.
contrar um abraço que a fizesse sentir do amor a Eu queria entrar no assunto' Vasculhar o íntimo
verdadeira chama. d.ela. Analisar o que ela dissera e ouvi-Ia repetir o
Pingo d'água, da chuva corriqueira que se que nenhuma outra mulher havia pronunciado com
estraçalhava e escoava na calçada, perdendo-se e tanta seguranÇa e de modo tão real, conviclar sem
misturando-se no aguaceiro, seguia seu caminho na reservas ou complexos. Dissera: "Eu sou lésbica"
enxurrada. como se tivesse dito "Eu sou brasileira".
Assim eu me perdera em ilusões de falso amor Você disse algo.
por mulheres que passaram pela minha vida sem -Arrependi-me ou simplesmente fiquei com re-
deixar imagem alguma nos meus olhos gastos, cansa- ceio de tôrnar-me indiscreta, Iembrando a menini-
98 99
nha de oito anos para quem eu fazia caretas. Nesse
momento rodávamos pelos lados do Ceasa.
que queria me aproxirnar de você, queriq qle- Pe
Qre sou lésbica? Sou. Por quê? Não devo d'*s"^atenção e você me fazia caretas. Você foi a
-
dizer que sou? Pois eu sou. Não como se dissesse que
sou católica, seria escolher, eu não escolhi. Nasci.
rninha primeira inclinação, meu primeiro sonho, o
que eu mais admirei depois dos meus brinquedos,
As palavras dela coincidiam com os meus pen- quando comecei a olhar para gente e me senti
samentos. atraída.
Posso Íazer perguntas?
- Preocupei-me. QuaI a minha aparência? Nunca
Quero que faça. Todas. Tudo que quiser haviam me dito que eu parecia homem ou que era
-
saber. masculinizada. Ao contrário, aparentava bastante fe-
A voz dela estava emocionada e o olhar cheio minilidade, depois passara quase toda a vida dis-
de deslumbramento. Eu estava interpretando corre- Íarçando minha natureza. Não, ela não se impres-
tamente seus sentimentos. O brilho do olhar, fulgu- sionara pelo que meu tipo aparentara, talvez pela
rante, era chama acesa do que eu procurava. Eu vi minha personalidade, por não ter lhe dado atenção.
ansiedade, vi amor, loucura, paixão, desejo, volúpia, Analisou?
ternura, tudo, tudo o que ambicionava eu vi no olhar - No que se refere a mim, na sua infância, já.
cJela e bebi do seu feitiço pelas pupilas sedentas dos
meus olhos. Você-me admirava, certo, queria brincar com a mi-
Pergunte. nha máquina de escrever, que eu the desse atenção.
-O som da voz era melodioso, morno, fervia em Seu espírito observador e precoce viu em mim uma
mim, percorrendo-me toda em ondas sensuais. difícil conquista. Em vez de odiar-me pelas caretas
que eu lhe fazia por espírito combativo você ima.gi-
O que você entende por ser lésbica?
- Entendo que sei o que sou, o que quero, o ,urru q,r" eu ia, encurtando porque sei que está en-
- tendendo e acompanhando a análise, ceder. Eu teria
clue pretendo, qual o meu mundo, o meu caminho, que ceder. Você quebraria o gelo! Como não ced'i,
o que amo.
tornei-me a inatingível e, portanto, alvo do seu inte'
O que você ama? resse. Isso é o que se chama pseudo-homossexuali-
- Você devia perguntar, quem.
- dade.
Quem?
- Mul[er. Você não tem argumentos suficientes para
Só mulher. Se quer saber quando -
classificar-me e rotular-me' Minha homossexuali-
- é fácil. Senti a primeira atração por mulhern
percebi, dade não é devida a recordações da juventude, Por
nunca por homem. Você me fascinava. Eu tinha convivência com homossexuais, mas porque nasci
adoração por você. Achava-a importante batendo assim. É congênita. Nunca tive receio do outro sexo,
máquina, escrevendo. Eu ficava olhando suas mãos
apenas nunca me atraiu. Não encontrará, se pud"er
e me deliciava. Tinha oito anos e sofria muito por-
eãtudar-me, fatores que comprovem o contrárjo do
t00 que"digo, não houve perversão? nem desvio da eró-
101
tica, mas natureza. Eu sou lésbica. Meu primeiro Outra yez a voz d.e encantamento. Acreditei.
olhar para você, de oito anos, foi de lésbica. Ela realmente estava empolgada pela minha idade
e me olhava com uma emoção rara.
Com que deliciosa ênfase disse.
E o brilho do olhar dela continuava salpicando Eu dirigia como se estivesse sendo levada por
renas pelo céu colorido das fantasias de Walt Disney.
fagulhas incandescentes que penetravam minha Estávamos percorrendo a Marginal rumo a Interla-
alma através dos meus olhos enfeitiçados. gos.
Por que quer discutir o que sou, provando Guardei de você a lembrança de uma mu-
que -estou enganada? Eu me defini muito jovem. lher -autoritária.Acho você linda.
Nasci assim. Isso a perturba? Preocupa? Não quis que ela despertasse do sonho. Fiquei
E sua mãe? Seus pais? Sua famíIia? Sabem? calada. Deixei-a com a sua mentira e guardei a mi-
- Não sei. Talvez desconfiem. Sempre temi rrha verdade. Eu não era linda. Talvez na lembrança
meu -pai. Acho que ele percebeu sempre, sofri pela dela, para os olhos dela, nesse momento eu fosse.
sua rejeição que se manifestava sadicamente. Ele me Você disse que acha seu nome feio, não quis
batia e não dizia o motivo, mas eu sabia que era -
que outros ouvissem. Usa um pseudônimo?
porque desconfiava de mim e das minhas amigas e Sim. Elaine.
assim ele mortificava minha mãe, que é muito in- - Acho Nicoleta mais bonito. Original.
gênua para entender. Acho que talvez esteja enga- - Verdade? Ou apenas quer me agradar?
rrada a respeito do que o meu pai sabia de mim, não - Não percebeu pelo modo como falei? Diga
sei, às vezes parecia ver nojo, repulsa, ódio, nos olhos
- Ni-co-le-ta!
comigo:
dele. E que é que eu podia Íazer? Nasci assim. Quan- Ela soletrou. Nossas vozes, em duo, confundi-
do completei dezesseis anos ele morreu, cinco dias ram-se numa emoção suave e pura.
depois do meu aniversário. Ela suspirou longamente e espichou o olhar pela
Sinto muito. janelinha, depois tornou a olhar para mim.
- pergunta mais imporlante cuja resposta eu
A Eu acho que estou começando a gostar do
temi: meu-nome. Ficou gostoso na sua voz. Eu detestava,
Amou alguém? Chegou a. . . ? sabe? Em casa todos têm nome feio. Um mau gosto
- Sim. Amei muito. Chegamos a. . . tudo. . .
cianado. Minha irmã, coitada, tem horror do nome
- clela, lembra-se dela?
-"e é isso que quer saber, tenho bastante experiôncia.
Não me julgue assim uma criança porque me co- Não respondi.
nheceu quando eu tinha apenas oito anos e porque Ela fez um trejeito de compreensão e confor-
é mais velha do que eu. mou-sel
Dezenove anos mais velha. Você não lembra mesmo. Filô. Coitad.a! FiIo-
- Acho lindol - É só a gente brigar, basta dizer o nome dela e
mena.
-
102 103
E sua mãe? Não perguntei ainda, perguntei?
soâ como o maior palavrão. Ela fica doidinha. Mas - falha minha, culpo sua beleza, estou perplexa
É uma
todo mundo já se acostumou a chamá-la por Marina. mesmo. Então você é Nicoleta, filha do Ferrucci,
Faz dois meses que ela casou. aquela menininha chata que ficava me espiando e
E como se tentasse fazer-me lembrar de algum amolando com perguntinhas: "-Quê é que a se-
membro da família, continuou: nhora tá escrevendo"?
Ela é dois anos mais velha do que eu. Tam- Imitei a voz dela e em seguida fiz uma careta.
bém -ia a sua casa. Minha tia, irmã de minha mãe, Nicoleta riu e num gesto instintivo estendeu a mão
é quem morava pegado à casa da sua mãe, nós morá- e passou-a pelo meu'rosto.
vamos duas quadras acima. Ato continuo estacionei o carro no acostamento,
Continuei na mesma. Ela desistiu. I'entei enco- beirando o rio. Fitamo-nos. Que importava a minha
brir meu insucesso de memória: rdade, a idade dela, que ela era uma garotinha, que
p6rs6s que seqüestrei você, não? Deve estar cu estivesse iludida, sonhando, imaginando coisas,
-
cansada de rodar de carro sem saber por onde. Quer quc a razã,o combalisse e eu me tornasse uma idiota?
voltar para a boate? O ccrto é que não podia evitar a forte e irresistível
Você quer? tentação de beijá-la.
- Deve ter percebido que gosto mais de pas- Debrucei-me para ela e ela se debruçou ligei-
sear.- Importa-se que continue com as minhas per- ra e sequiosa para mim, enfiando-se entre meus bra-
guntas? ços que a envolveram como se arrepanhasse do mis-
Por favor, também prefiro ouvir você falar tório o amor que eu sempre procurara.
e me- interrogar. O amor estava ali, no arrebatamento dela, no
Era visível que ela ansiava para que algo acon- seu olhar fascinado, na boca trêmula que se apertou
tecesse e a mesma ansiedade embargava minha voz.
contra a minha, roçando a língua num desespero de
Não me fartava de olhar seu lindo rosto e perscru- beijo sonhado há muito tempo.
tei-a toda. Importava o que eu estava sentindo, o que eu
você tem de altura? estava vendo, o que encontrara finalmentel o amor,
- Quanto
Um metro e sessenta e sete. E você? no coração iludido de uma jovem.
- Por coincidência um metro e sessenta e sete
-
e meio.
O sorriso dela foi gracioso e o olhar penetrante
não fazia mistério, era luxurioso e sensual. Fiquei
embaraçada. O desejo fazia expressão lasciva nos
lábios dela que a língua umedecia insinuantemente.
Fugi da impressão que me causavam e troquei o arre-
pio por uma pergunta formal:
10s
104
lx)r'(lue achava impossivel encontrar você mesma.
['l você mentiu, nem lembra o que eu perguntava:
"- Que é que a senhora tá escrevendo?" Tentou
irnitar minha voz, mas inventou, estava sempre tão
r:ornpenetrada, e depois sempre vinha aquela sua
;rrniga loira buscá-la. Eu tinha raiva dela.
Nicoleta, você está fazendo minha cabeça gi-
rar. -Esta noite, ah! esta noite, que mudança em
l5 rninha vida. Eu estou me sentindo. Tenho passado.
I Irna mônina de oito anos! Fez dezoito anos e me traz
uma mensagem: estou envelhecendo. . .
Ela cortou ríspida, atirando-se para perto de
tnim, afagando-me com suas mãos macias e perfu-
O entusiasmo da menininha me levava pela rnadas, beijando meu rosto, não se importando com
mão. Eu fora majestade e ela viera a mim. Agora eu ()s carros que passavam rentes ao nosso. Beijava-me
a seguia como escra.va, sabia. na boca, sôfrega, como se tivesse me beijado sempre,
Depois do beijo a minha rendição. Eu era como rnas nunca se fartasse de repetir o mesmo beijo im-
palha seca consumindo-se nas labaredas de um fogo llctuoso.
novo, crepitante. Eu amo você, sua idade, assim é que eu
Nicoleta era a febre dos dezoito anos? realizando gosto,- amo seus trinta e sete anos, você é moça, nem
um sonho de criança. Eu era máquina de escrever, fcz quarenta e dizem que a vida só começa aos qua-
careta que se transformava em sorriso, indiferença lcnta.
que virava delírio. É que você tem apenas dezoito.
A emoçãó de Nicoleta sutrjugava-me pela sua - E daí?
vitória, a euforia de arrancar de mim todo meu eu, -
que se rebelara contra a importuna criança que ia Fiquei em silêncio. Uma diferença de seis ou
interromper meu trabalho. sete anos não faria desproporção na aparência física,
Em que está pensando, Adriana? Está tão mas dezenove anos! Dez já não seria boa coisa, ima-
séria.- gine no avançar do tempo a desproporção da apa-
Em você. rência física cada vez se acentuando mais. Dezenove
-__ O que pensa de mim? Que sou uma arre- ernos, era patético! Seria que eu estava voltando à
batada? Que me atirei em seus braços, que estou adolescência, deixando-me fascinar pela paixonite
ardendo de amor por você? Que a amo? Sabe, eu de uma garotinha? Não , estava bem dentro psicoló-
tenho vontade de dizer, isto me sufoca, foi o sonho gicamente da minha idade cronológica; eram apenas
de toda minha vida encontrar alguém como você, as minhas loucuras amorosas que não retrocediam.
106 107
Tive completa noção de mim mesma. Os sintomas, tadc de mim. Não vale o nosso encontro? Não existe
parecia que os percebia. Ao período climatérico so- a gente ama porque ama e não se
lrclr:a marcada,
breviria a menopausa. Estava diminuindo a secre- prcmedita. Eu amo você. A emoção que sinto 9u s9i
ção de hormônios. A progesterona escasseando. Teria ilue é amor. É muito cedo para dizer isso? Não é.
já parado a secreção dos estrogênios, predominando Ó amor nasce num rasgo de segundo, -talvez chegue
os androgênios produzidos no córtex supra-renal ou antes do olhar da gente ver a pessoa. É uma predes-
das gonadotropinas, produzidas no lobo inferior da l.inação. Eu estava marcadâ para amar você. Qr9-a
hipófise? As atividades recreacionais de Nicoleta su- ficai com você agora, para sempre, nunca mais dei'
perariam meu ânimo. Não poderia levar a sério e xá-la.
nem torturar-me pelos meus insucessos ocasionais Ela me arrebatava. Ouvia as palavras que sem-
senão acabaria tendo um colapso mental. pre quisera ouvir. Tão cedo e ela já me ofere-cia-o
Ela se afastou. Meu silêncio envolvera-a. Olhou- qrre só em sonhos eu tivera. As outras haviam sido tão
me nervosa, desconfiada, trêmula. Sua emoção era diferentes. Sem aquela tristeza no olhar sem a pre-
real, seu medo verdadeiro. Ela era toda autêntica, clestinação, houvera preâmbulo para falar de amor.
porque despertava numa paixão criança por uma Illa chegara dizendo tudo, abrindo a alma, extrava-
mulher adulta: sando .úus emoções, livre de mecLos, de pudores, de
prevenções. Dizia o que sentia e seus olhos brilhavam
Não me quer? Acha que sou uma tonta iada vez mais a cada palavra proferida, como se a
- só tenho dezoito anos? Muita mulher de
porque vida estivesse alcançando o máximo da sua chama'
trinta não é tão amadurecida, vivida, sofrida Sou lésbica!
quanto eu. Olhe bem para mim. Não disse - Nicoleta, tenho medo.
que sou triste? Sim, sou triste. Não é a vida - Medo? Por quê? Do meu amor? Do meu ar-
que entristece a gente? Qre imporlam os anos -
rebatamento? Não deve.
que passam, são as horas que a gente sente que Não, tenho medo de mim, da minha fra-
marcam, que instruem, que escolam, que nos ama- - do que sinto, acho que estou sendo impru-
queza,
durecem, não a sensação somente de ter atingido o «lente.
máximo do crescimento e a plenitude das funções Não acred.ita no meu amor? No que disse?
biológicas. Você assim parece uma criança medrosa. Não -acredita que a gente pode amar assim de re-
Não pode ferir-me com um complexo que não com- pente, sem maii ,um menos? Eu podia ter feito você
bina com a sua personalidade. É o meu amor por ãtrro áo meu interesse, como disse, lutar até que você
você que a deixa indecisa, com medo, ou me acha cedesse, destrrrir aquela imagem que me fazia.care-
ridícula? Eu sufoco, não é? E mal comeÇamos. Há tas e era inatingívôI e agarrá-Ia dentro das minhas
quantas horas apenas estamos conversando? Não mãos pelo prazer da conquista, mas se não houvesse
foram os primeiros beijos? E não vale isso por nossa amor ltto ,rão teria se diluído no tempo? Pod'eria
afinidade, identificação, a atração que temos uma tê-Ia reencontrado e lembrar-me sem emoção ne-
pela outra? Eu sei que você me sente, que tem von- nhuma do tempo em que eu a admirava e, mesmo
t08 109
que me sorrisse agora, não sentir nada. Mas eu senti,
antes de saber que você era Adriana Rezende. Eu
a vi muito antes de você me notar. Desde que entrou
na boate e ficou olhando para as mulheres que dan-
çavam. Você e suas amigas fazíarn comentários. Eu
fuzilava você, olhava e queria que me olhasse. Uma
clas suas amigas acendeu um cigarro e sob a chama
eu vi seu rosto. Amei quando olhei a primeira vez.
Amei sua presença, acredita? Acredite, pelo amor de
Deus! O AMOR E NICOLtrTA
Ela esmagou a boca contra a minha e suas mãos
seguraram meu rosto, nervosas. Senti todo o calor do
seu corpo e minhas mãos, maldosas, atrevidas, des-
governadas, guiadas pelo impulso, sem ouvir outras
vozes dentro de mim que me criticavam e tentavam
reter meu gesto, subiram, lentas, com esforço, a ca-
minho dos seios, tomando-os com cuidado, depois,
na carícia provocadora da vontade sexual, mexen-
do-os e recebendo os respiros e estremecimentos dela.
Afastou a boca, beijou meu rosto, mordiscou
meu queixo, gemeu uma palavra sem sentido, de
prazer insufocável, enfiou a língua na minha boca.
Continuei. Não pude parar. Ela se dava. Eu a
tomava. E na tortura das minhas idéias aniquiladas
por uma emoção maior, simbolizei a ninfa nos seus
estertores trazendo-me o delírio. E me entreguei sem
mais resistência a uma martirizante ninfolepsia.
Enfim a gente não escolhe, acontece de estalo
ou não acontece. Por que demorar, tardar o mo-
mento do beijo e do sexo para depois se a vontade
agora é tão grande?
Minhas mãos desceram, minha boca encontrou
os seios e a ninfa gemeu como o mais delituoso
pecado.
110
Foi tão seco, tão breve. Fale de novo.
- Sabe, Nicoleta, você é o amor. Alcança meu
-
pensamento? É o que eu ansiava, o que procurei
sempre.Vocêéoamor.
fsçrsyi uma poesia para você.
- Leia.
- Tenho vergonha. Você vai rir.
- Leia.
t6 -Minha voz soou forte numa ordem. Senti que
ela exultou e havia prazer quando comentou:
autoritária! E se eu não ler?
- Qr"Eu faço uma careta pra você.
-Ela riu e sua voz mudou. Tornou-se cálida, apai-
Enquanto eu tivesse papéis para rasgar sobra-
riam pensamentos para escrever. xonada, sussurrante:
A manhã começara feliz. A chave na fecha- Eu utm buscando uocê a uida ínteira
dura do meu escritório abrindo a porta e o telefone - e agora que a encontrei faço-a prisioneira.
tocando. Era Nicoleta. Suas palavras amorosas prog- Sabe o que fíz? Roubeí o seu coração e co'
nosticaram um dia de enlevo e embriaguez. loquet
Eu precisava pensar na vida, na minha situa- o meu para pulsar no seu peito
ção e só pensava nela. Minutos depois, o telefone e o seu para uiuer no meu!
tornava a tocar. Era ela novamente. Sentira sau-
dade. Quinze minutos era muito tempo sem ao Tolice. Não vai rir?
-Estalei os lábios enviando-lhe um beijo. Ela
menos ouvir minha voz, fora horrível o resto da ma-
drugada sem mim. Eu a deixara à porta de sua casa rlisse uma porção de vezes que me amava e pediu
às quatro e meia da manhã para telefonar mais uma vez.
Telefonou de novo. Estava ofegante. perguntei Telefone o dia inteiro, de cinco em cinco
por que estava com respiração alterada: -
minutos.
Subi cinco andares para ligar pra você, os E por que você não telefona para mim?
- estavam todos
telefones ocupados, vim ielefonar da
-Gaguejei. O telefone só recebia ligações, estava
copa. A saudade me enlouquece não agüento esperar interrompido por falta de pagamento, eu não po-
até a noite para vê-la, parã ouvi-la. Diga, Adriana, deria telefonar para ela do escritório.
por favor, diga que me ama. me fazer um favor?
Eu te amo. -Ela Quer
respondeu que sim, prontamente.
-
il2 113
Telefonar para aí é muito difícil está sem- O telefone tocou. Esqueci tudo. Fíz voz de sau-
-
pre ocupado, aqui não, ligue você. Assim não per- dade. E a raiva subiu pela minha garganta. Era
deremos tempo pois pode coincidir que quando eu Llisa:
estiver tentando ligar, você também disque para cá Será que você pode me atender? Estou aflita.
e a gente se desencontra. Não acha melhor você Algo -horrível me aconteceu.Estou desesperada. Você
ligar quando puder? interpretou tudo errado. Eu não esqueço você.
Ela concordou. Concordaria até quando com Aquele homem não significa nada para mim. Foi
tudo que eu dissesse? para provocar você.
Senti o drama. A situação exigia que eu tomasse Diga logo o que quer e desligue. Não posso
providê_ncias. Queria convidá-la para ãlmoçar e não - tempo, estou com um editor aqui e preciso
perder
podia. À noite, quando a encontrasse deveria logica-
tratar de negócios.
mente levá-la a algum lugar, a um restaurante, e
não podia. Não podia. Não podia. Bati a mão contra Menti. Queria desligar, mas se eu não lhe desse
a escrivaninha. Não tinha dinheiro! trtenção, ela continuaria telefonando ou então teria
coragem de ir até Iá.
Tudo por causa da maldita revista encalhada!
E a maior coincidência. Revivi o instante quando ela Será que poderia me arranjar cem contos?
me falou do que fazia e um frio cortou úinha bar-
- Sabe, moÇa, até por telefone você fede. Um
liga. Era, vejam só que ironia, ilustradora da Editora cheiro horrivel de esmegma. Pegue urn algodão com
Patriarca. Com tantas Editoras, ela trabalhava jus- rrlguma pomada ciúrgica e limpe o clitoris.
tamente na Patriarca ! A que estava tapando meu Bati o telefone. Tocou em seguida. Era Nicoleta.
caminho, acelerando meu enterro, reduzindo minha Espichei a conversâ para que Elisa desistisse de ten-
sala de cinco por cinco a um ninho de traças felizes tar falar comigo, encontrando o telefone sempre
num reino de papéis empilhados! ocupado.
Vi uma barata correr de sob uma pilha e enco- Saí. Deixei o fone fora do gancho.
lhi os pés. Pobrezat A sujeira ia aumentãndo! Era só Telefonei do orelhão para várias compradoras
o que multiplicava, os bichos que gostam do mofo e de papéis usados. Algumas prometeram enviar um
tla poeira ! carregador logo em seguida. Fiquei esperando. Não
E ela ficara entusiasmada quando eu dissera importava mais discutir preço. Quanto pesariam
que tinha uma revista. Pirâmides dela, deveria ter aquelas pirâmides? Eu precisava de dinheiro para
dito! Ia tudo para as compradoras de papéis usados pagar o jantar para Nicoleta, para encher o tanque
e as desgraçadas revistas nem sequer tinham sido de gasolina do carro, aquele gasólatra que consumia
manuseadas! mais do qu'e um bêbado que ia de bar em bar. Cada
Blasfemei. Precisava arranjar dinheiro, pelo posto, e ele já manifestava sua sede.
menos para um jantar e umas coca-colas! Que ver- Eram quatro e meia quando os carrinhos para
gonha! carregar as revistas chegaram. Vi o féretro passar
114 115
sob meu nariz e engoli em seco. As minguadas notas
pingaram no tampo da escrivaninha. direitos autorais presos! Amarrados numa pala-
vra: cessão de direitos autorais! E eu que sempre
Quanto tempo duraria aquele dinheiro? Os res_ apregoara que jamais cederia meus trabalhos defi-
taurantes não tinham dó, esfolavam na conta e eu
nitivamente.
não ia poder iazer feio. Tinha que representar meu
papel. Procurei o telefone mais próximo.
O último carregamento saiu e o matuto olhou Liguei para a editora, esbravejei, chamei-os de
de soslaio para a barata que correu e se enfiou pela ladrões, vigaristas, eles riram e bateram o telefone
Íresta da porta do banheiro. na minha cara. Estavam garantidos pela minha bur-
I Agora as baratas vão pros escritórios do lado, rice ao assinar aqueles documentos onde a palavri-
não-. ficou papér, né? nha fora capciosamente colocada.
É, pelo menos isso! Não adiantava fazer lim- Além de tudo alegaram que tinham uns trezen-
lreza,
- os bichos ficavam metidos entre as revistas. tos exemplares de cada título em estoque. Se eu qui-
- Fiquei só, sem as pirâmides, esperando o tele-
{one tocar, mais calmi porque conseguira resolver
sesse fornecer mais alguma obra eles me dariam
um bom adiantamento.
alguma coisa vendendo os eicalhes. Xinguei a mãe deles, mentalmente, é claro,
. E de repente o telefone tocou e o que ouvi ilu_
mrnou meu rosto, meu coração bateu forte, senti
nunca consegui dizer palavrões para as pessoas
mesmo no auge da raiva e da revolta.
uma corda caindo nas minhas mãos para puxar_me
clo precipício. Quase chorei. Quase não. Limpei, esbravejando,
as lágrimas que saltaram dos olhos, enfiei a pasta
Uma editora de livros didáticos estava interes_ com os documentos amaldiçoados dentro da gaveta
sada na reedição de algumas biografias que eu escre_ e fechei-a com fúria. Eu estava mesmo arrasada.
vera.
Quando aqueles míseros trezentos exemplares se es-
Remexi nas gavetas, procurei exemplares pelas gotariam? Nunquinha! Seria uma edição inexpugná-
estantes, peguei os contratos na pasta de documóntos vel.
cias minhas edições. O Editor qireria ter certeza de Cabeça para pensar. Coração para doer! Bolso
que os mesmos estavam desembaraçados. prometera para encher e esvaziar. As necessidades e os enganos
adiantamento para cada um dos títulos. Era a sal- atiçam a cata de soluções para nossos problemas.
vação. Achei. Pulei feito uma perereca de corda, sorriso
Não durou muito minha euforia. O telefone tor- alargando no rosto porque, afinal, todo aquele tempo
nou a tocar. Era o editor interessado que já se desin_ de trahalho não fora inútil. Achara! Sim, achara a
teressara. Nos contratos, conforme fora -informado solução!
pela editora das primeiras edições, haüa uma pala- Fui telbfonar. Atenderam. A mesma voz áspera
vra que eu não lera direito, não estudara o signifi_ que batera o telefone sorria na inflexão melíflua,
cado, não pesara as conseqüências da minha UJa-te,
atendendo-me cortesmente :
116
117
Pois não, dona Adriana Resende, o que
Um breve silêncio e uma resposta um tanto
-
manda? quanto desanimada, mas sem alternativa:
Bichos! Como queira.
- O quê? Curiosidades! Um livro genial! -
Desligamos e eu me senti livre outra vez. Vol-
- Expliquei e perguntei: taria para a minha cansativa profissão de biógrafa,
- Tenho um livro para ser editado. de livros e coletâneas, de curiosidades e fatos his-
- Falou em bichos, curiosidades? euerem? tóricos, e toda sorte de conhecimentos gerais que não
- l"ivessem sido muito explorados ou não explorados
._ - P Sabe, o meu estilo versátil, se é que um
estilo pode ser versátil, mas o gênero é para agradar. r1o nosso idioma.
IJm livro bastante instrutivo, para todas as idãdes. Era do interesse deles, claro. Que adiantaria
Não quis saber de nada. Não interessava ler. reeditar alguns livros, ficar só com algumas edições
Tinha meu nome, estava tudo legal. se eu tinha muito mais para oferecer? Haveríamos
de entrar num acordo. Satisfatoriamente eles seriam
- -do Não
plito
quer que eu dê uma explicação a res_
assunto para terem u-u ,oção dá que vão meus editores, pois meus livros vendiam bem, e eu
editar? graciosamente continuaria dando preferência a eles,
A mesma resposta de sempre: por não me forçarem, e por se tratar de uma firma
Adriana Resende sempre Adriana Re_ conceituada.
- Um trabalho seu éserá
sende. indiscutível. Quando vai Bem, o importante era começar a coligir todos
trazer o livro? os artigos que escrevera para as revistas. Daria um
Fiz meus cálculos. Felizmente, meu estúpido bom volume. Precisava batizá-lo. Dar um título. En-
coração romântico dessa vez funcionara para meu quanto pegava as revistas, pensava, e decidi-me pelo
bem. Guardara um exemplar de cada re-vista, não próprio título de um dos artigos: "A Lenda do Boto
precisaria correr atrás dos carregadores anteó que Branco"!
acabassem com todas
Depois de amanhã, mas há um detalhe, um
-
porTnenor.
Diga.
- Quero redigir o contrato, isto é, apenas uma
__
modificaçáozinha, sem a palavra ,,cesúo,,. Cada
r-rova edição a gente estuda se nos convém reeditar.
[', que eu gosto de trabalhar sem ser forçada, sem
me_sentir presa, sabe? Além do mais escrevo sempre,
tenho outros livros em preparo que interessaiãó
muito sua editora, mas quó tudo se;a-feito por mútuo
interesse, não será mellior?
118 119
I\INF'trTA
Combinamos. Tudo deu cerlinho. Fomos para
Sirrrtos. Seguimos até São Vicente procurando hotel.
l,lrrcontramos uma pensão balneária, estilo suíço, que
rros atgradou.
Illa prometera uma linda camisola branca e eu,
s(.nl comentar, comprara um pijama azul, bem cla-
l'ir rho.
Scria a nossa noite. Sem aliança, sem simbolis-
t7 ulos, sem promessas.
llu estava tremendamente apaixonada. Nossos
lrrr:ontros poderiam limitar-se a passeios e aos nossos
<lii'rlogos. Bastava seus olhos tristes, seu modo de di-
z.(]r que me amava, tudo que me proporcionava com
Todos os dias telefonemas de quinze em quinze liutto carinho e dedicação. Ela ficaria mais linda na
minutos, cartinhas, poesias, bilhetes e até um rãtrato carnisola branca, transparente, seria muito mais mi-
meu feito a crayon, de memória. lrlra quando ficasse nua comigo na cama, mas eu,
Às seis e meia ia buscá-la, e seguíamos de carro, rgualmente, me contentaria em passear com ela pela
s^êmprê sem rllmo certo, bastava estarmos juntas. lrraia, ouvindo-a falar do nosso fabuloso sentimento
recíproco, do nosso maravilhoso e predestinado en-
Assim que me via, o rosto dela adquiria uma contro.
expressão feliz, substituindo a apreensão,
iois repetia E, gastei horas rodando pela praia, falando,
toda noite que sentira medo de que talvez eu prà"rru admirando-a, até que instintivamente, num parên-
não aparecer mais. tese de chega de falar, voltamos para a pensão.
As manifestações do afeto de Nicoleta exulta- Ia começar a nossa jornada sexual! Eu estava
varn-me, eu cada vez me enfebrecia mais envolvida aflita. Nunca me acontecera ficar inibida, mas a be-
pelas suas atenções. Tudo o que ela dizia, fazia, pen- Ieza dela, sempre aumentando, realçada pelos trajes
sava, girava em torno de mim. Eu era o ponto fàcal que usava, entontecia-me. Agora a camisola! Fiquei
da vida dela. Nenhuma mulher, por mais experiente olhando-a. Vinha para mim de camisola branca,
que houvesse sido rro trato comi§o, jamais cànsegui_ curta, pernas esguias, coxas roliças e sensuais, corpo
ra convencer-me de um amor tão grande e tão ãin_ curvilíneo, como o de um manequim, magra, esbel-
cero. ta, suave, parecia leve como uma garça. Sim. Um
pássaro. Veio. Deitou. Puxou-me. Eu, extasiada,
Parávamos nas imediações da casa dela, altas
olhando. Só sabia olhar. Patética! Bebia a expressão
horas, e nossos beijos e abraços ativavam a expecta_
dos olhos, os traços do rosto, o som da voz dela me
tiva de ficarmos juntas num quarto. chamando:
122
12i
Vem.
-
Hipnotizada Não sei o que fiz. Foi uma longa noite. Ou foi
.leta eu pelo esplendor da beleza de Nico_
não me mõvia. EÂtava purailsudu, ,rrÁ* *_ trma eterna madrugada parada no tempo?
sação absurdamente anestesiaite. De manhã, quando acordamos, senti-me emer-
Por que me olha assim? Me beija. gir do fundo de um lago, um ser místico, Jaguarari
- cnfeitiçado pela iara, gosto de amor na boca, som-
+ :o, apressada, ansiosa, nervosa, as mãos
sacudindo-me. bras roxas sob os olhos, marcas de unhas pelo corpo.
Beijei e achei qr:_o bejjo atrapalhava E nossos olhares se encontraram e recomeçamos
que eu deixava de vê-la e me afaitei. E_ a visão, I)orque ela não saciava a sede de se dar.
como Narciso debruçado sobre o lago preso
t.u"r", Guardei daquela noite a sensação vertiginosa de
gem refletida na ágrr, como Jaguaraii, à ima- Jaguarari afund.ando no lago, envolto nos braços de
o filho de
tuxuá: uma iara de hipnotizante beleza. Guardei daquela
manhã um olhar de gozo, lábios trêmulos sussur-
"Ela olhou para mint e abriu_me os braços. . . rando gemidos, ais, palavras esparsas, a lembrança
Era linda! Toquei, desfalecerulo, rle um corpo febricitante enquanto eu dedilhava,
seu corpo nu de uma nudez sem uéu numa morosidade sádica, o espasmo que não queria
que ta de rnanso desaparecentlo deixar aflorar de vez. Até que a súplica torturada do
no fundo da dgua qu'.e rellete o célt,,. corpo que vibrava aniquilou toda resistência, e Nico-
leta se debateu nos estertores do gozo.
Quem cantará mágoa por mim quando eu Guardei lembrança de sexo, de vontade invencí-
_de
rão tiver mais Nicoleta, coáro:
' vel, de prazer insuperável, de amor gemendo na
carne.
"Hoje, as águas gue passam d.ta e noite
em Í(rtg se_luagem d.e espadana, E voltamos para São Paulo impregnadas de uma
?ra. gorgolejando
ora verdade irrefutável: a finalidade do amor que nos
aqui e alt
quando cai uma ftor d.e mamorama levara para a cama fizera uma poesia triste.
cantam de mágoa por laguarari,,. O amor existia, sim. O amor era Nicoleta, uma
ninfa que me deslumbrara. E eLl, o que era? Uma
poesia parnasiana de Olegário Ma_ delirante?
...^-^Ironuei,a
rran-or
-segundo narrativa deAfonso Arinoã. Ninfa!
Ela, olhando-me com olhos de iara que Rebusquei meus conhecimentos etimológicos.
zavam) e eu, me envolvendo, retardava hipnoti_
g"rtor, du* Eu já fizera um dicionário. "Pequeno Dicionário",
Íalecia em volúpia, demora.,rá o-Àà*".r,o.
para estudantes, da Língua Portuguesa. É claro, os
As mãos percorreram minhas costas, senti
exasperado apelo de sexo e despertei seu editores acharam melhor que eu usasse outro pseu-
da posse lesbiana. r -- -- para , l;;;;;; dônimo, de uma professora letrada, não autodidata
como eu, que isso não pegava bem. EIes se encarre'
124
125
gariam do curricttlu.m cspecifiquei falando de mim para mim:
l{
_uitae para melhor impressio-
nar e assegurar a venda. Concordei. Dicionáiio não Arlriana enlouqueceu porque uma ninfeta passou
seria nenhuma criatividade, apenas estudos ."p"_
;rr.lir vida dela! Ninfeta! Perturbação mental de mu-
tição. de tudo que já se fez ,o " nada
§êre.o, portanto llrcr no climatério por uma adolescente.
perdi com isso, os royalties viõram dd r.r"r-o Nicoleta sacudiu-me:
,;it".
Ninfar_segundo meu dicionário, ou melhor, da Çsn16 você está calada! Já descemos a serra
^
Professora Noêmia Cardoso Ribeiro Mendes, ,lg"i_ r' rrão - proferiu uma única palawa. Em que pensa
fica: s. f. Divindade inferior mitológica dos ;';- lnrrto? Vim observando suas expressões. O que a per-
- e dos bosques;
tes, dos rios (Fig.) Múher formosa t rr r'lra?
e jovem; (Entom.) forma tranútória entre u tu*u Você.
e o inseto adulto; (Anat.) cada um dos p"qr".ro, - Mentira. Tenho certeza de que se decepcio-
lábios da n-rlva. -
rrou comigo, que se está lembrando da outra, que não
Forcei a memória. I)istraía_me na procura: Nin- n1c ama mais, que já conseguiu o que queria, que
fagogo, nínfala,-.ninfale, ninfalídeos'r ri"fãa".ãr, rrão passo de uma idiota para você.
ninfectomia, ninféia, ninfeu, nínfio, ninfete, Desesperado pranto convulsionou aquele rosto,
njnfóide, ninfolepsia, ninfoÍépsicor'ninfolepto,"i"fit", que se banhou de lágrimas.
fômana, ninfomania, ninfomriríu.o, ninfotorniá. "i"] Desviei, rápida, o carro para o acostamento e
o que se refere a Nicoleta? Falta uma palawa parei. Recolhi-a em meus braços e meu rosto mo-
-E
no dicionário. Ou não? Talvez crisálida se enqua- lhou-se nas lágrimas dos olhos dela quando a beijei
drasse bem. É. Nicoleta, a crisálida! numa nova emoção. Ela sentia ciúmes e por seus
Não! Eu precisaria definir bem. Crisálida refe- olhos raios de rancor luziam como faíscas elétricas
re-se à fase transitória, intermediária entre a larva riscando um céu negro tempestuoso.
e o inseto adulto! Nicoleta não é inseto! Talvez, sim- Meu amor, não pense isso, não é verdade.
bolicamente, ela vire borboleta! Sinto caírem-me as
-
Pensava em você, imaginava um nome para definir
asas azuis de véus transparentes e esborrachar_me o que representa na minha vida. Você é uma pala.
como uma taturana retorcida no chão! vra nova para a reedição do meu dicionário. Nin-
feta. Nicoleta Ninfeta!
Preciso achar outra expressão, outro vocábulo
que deÍina melhor as perturbações e emoções que Ela afastou-se. Como uma criança, enxugou as
Nicoleta provoca em mim. lágrimas com as costas da mão. Tive vontade de rir
lembrando um pensamento que tivera: "lágrimas
leta
4 palavra veio nas letras que rimaram: Nico_
- Ninfeta! secam, não deixam rastro", (a menos que se tenham
desprendido dos olhos de uma mulher que usa rímel
Ninfeta: s. f. mulher jovem e formosa que nos cflios).
perturba doentiamente- pessoas mais velhas pio_ Por que você sorriu? Está me achando palha-
pósitos amorosos. "o* - é?
ça, não
126
127
__ Não, estou achando você a coisa mais adorá-
vel do mundo com essâ carinha toda borrada de
r'ímel.
Ela olhou no espelhinho retrovisor e, forçando
não rir também, exclamou, fungando e num uttimo
soluço que morreu na minha boãa, que sofregamente
arrepanhou aqueles lábios macios, quentesr"fogosos,
feitos só para_beijar e para falar á"-u*orr'triJe ou
alegre, sorrindo, ou com aquele tremor de ciúme:
-
Eu sou mesmo uma palhacinha, Adriana! r8
140
l'rcr:iso ensinar os pequenos índios pra nun-
| .r rrcr.rrrlr.r lamparina com azeite de iara senão
Itiltlll ct'gtls!
Mas quem é a iara, pai?
O boto-branco ou uiara, assim os brancos
vir,r'rrrrr <r disseram que ela se chama. É um grande
1x,ixr. tlrre vira gente, é encantado, veste roupa bo-
rrilrr, r:lrcitr de estrelinhas, fica com os cabelos longos,
20 r rrrrtir corn voz bonita, tão linda que ninguém resiste.
(.)rrr,rrr a vô ou ouve se sente atraído. Então o boto'
lrrrrnr:{), que se transformou numa moÇa de beleza
scnr igual, leva a pessoa para o fund.o do rio...
O velho continuou contando coisas sobre a iara
Noite de luar. Céu azul. Muitas estrelas. O rio rlrrc jír levara muito índio pra dentro d'água. De
brilhando. Farfalhar de folhas, vento leve soprando. l'r,pcnte um sussurro estranho, Llm estalo vindo dos
Sussurro de insetos. Os íudÍos se recolheà para lrrrlos do rio. Um arrepio cortou o corpo dos índios,
dentro de suas tabas. Uma voz avisando: o vclho cuspiu o fumo e exclamou:
Pra dentro, menino, que o boto-branco te Eu não disse? É assim mesmo que ela faz
pega!-
-
tlrrando vai aparecer. Que ninguém seja curioso por-
(llro se for lá espiar não volta mais. . .
Encolhido na porta da sua taba, o índio velho,
cnrodilhado, braços passados em torno dos joelhos, Os índios se recolheram. A lua continuou bri-
rnascando fumo, conta estórias e avisa com voz thando. As estrelas piscavam. O aroma da mata re-
gTave:
r;cndendo a frutos e flores. Um vulto recortou-se no
ccntro d.o rio, mergulhou, tornou a aparecer. O luar,
A iara atravessando as sombras das árvores, fazia figuras
- deverávem
ninguém
esta noite. É bom recolher cedo,
rondar pelos lados do rio, eu sei, a estranhas. O boto-branco surgiu sinuosamente e de
lua está tão grande, o ar carregado de pe.frrmer'us longe parecia mesmo uma linda moça a quem os
flores estão caindo pra dentrJ d,água^.o*o q* indios haviam dado o nome d.e iara.
rendo enfeitar para quando ela aparecer. . .
F,, pai, foi assim que ela levou Jaçuiri. Ele ,(+*
ficou- encantado com a beieza dela, o canto da iara
o atraiu, foi um feitiço, e ele acabou entrando no Mas. . . quem já viajou de navio e teve oportu-
rio, foi entrando, entrando. . . e sumiu, não voltou nidade d.e vei um grupo de botos deve ter pensado
nunca mais, minha mãe contou! que eles estavam brincando de dar cambalhotas,
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porém é a.penas o jeito de nadarem. Mergulham, ,\'t'tti t,otri uttt boto-branco,IYicoleta? Eu me sin-
retornam à tona, só meio corpo. numa !,, lttt.triri ott .luguarari, o filho de tutuá que foi pro
revúavolta,
porque o boto é mamífeio e ficasse _uú
-r-
tempo embaixo d,água
se Irtrttlo tltt ltt;;o arrastado pela beleza da iara.
morreria afogudo. í l','rt'r'ltt' a rnínha dor? Eu estou rnorrendo) mor-
çado um peixe morier afogado, entretanto é a""*.;_
pura t t'tt(1.) tlt' ttttlof.
verdade.
A mamãe-boto_branco e seu filhinho andam Sua
sempre juntos, pois gostam muito um
do ort.o u ,à Adriana
se separam quando o filhote já está
grande.
É no Amazonas e nos seus afluertu,
qr"
c'ncontrar o boto_branco (o maior de todos'", vamos
que é chamado de iara ou uiara tr*fZÀ. b;il;i
ni;i"";;ãá
de.comprimento e pesa cento e vinte e cinco
llgl.or
quilos mais ou menos. Iila parou de ler e qr-rando estendeu os braços
Quem ouvir a respiraçao áà
um boto pensará que se trata de um cavaro c rrre abraçou foi como se eu tivesse realmente saído
bufando.
A boca do boto é rasgada quase até os olhos e rlirs profundezas de um rio que me tragara num
ele tem cento e trinta e "seis rodopio
d[nter, aproximada-
mente. Alimenta_se de peixes e de'ouir"; Quando a deixei à porta de sua casa, todavia,
d'água.
bi;h; scnti mais forte o furor com que a crisálida abria
Interessantes são os ruídos diferentes asas e voava para longe de mim.
que o boto
faz. Mesmo debaixo d'água o"""-." tem
espécie de estalo. Às vúes pr."." um
fó"!" ;; O amor é uma presciência de tudo. Do Bem e do
cachorrinho Mal. Da alegria e da tristeza. f)a união e da separa-
Iatindo e ainda alguém urroúurdà.
ção. Tudo, tudo a gente pressente.
,r^ j:f:: s:llinJ1o, o boto aprende quase tudo que
a pular através de um arco que o tiei_
Eu sabia, mas não queria acreditar'. Entr:e mim
e Nicoleta estava tudo acabado.
iir:y]l,rm:
nao.or coloca acima da superfície
uma bóia corn uma pesrôa dentro.
da água ô a puxar Eu esquecera de pôr marcos nos farelhões da
rota do navio da rninha vida e por isso naufragava,
Cetáceo dentado, o boto pertence à família rasgado o casco nas pontiagudas pedras semi-sub-
dos
plantanístidas e deúínidas, p.irr.ipulmente
geoffroyeruzs. Na Amazôniá à, irãig"rras a-f"iÀ mersas"
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I
,
ff i i, s
',
(,,
é sem mim e eu não sou sem ela,
abraçando outras teorias sobre
obra e autor, assim justificaria a
existência de Nicoleta e de
Adriana.
I
Tolstoi quando lhe perguntaram
sobre o conteúdo do seu livro
"Ana. Karenina" respondeu que
seria necessário reescrever todo o
romance para responder.
I
,/
- Eu digo que para saberem quem
é NICOLETA NINFETA é- ne-
l
cessário que leiam o livro.
l A autora
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