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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


DEPARTAMENTO DE ARTES PLÁSTICAS

RELATÓRIO FINAL DO PROGRAMA UNIFICADO DE BOLSAS (PUB-USP)


(2021 – 2022)

Leticia Madeira Sousa Fernandes

SÃO PAULO
2022
LETICIA MADEIRA SOUSA FERNANDES

RELATÓRIO DO PROJETO:

PALAVRA & IMAGEM:


Códigos da escrita em trabalhos de artes visuais

Relatório apresentado à Universidade de São Paulo referente


ao Programa Unificado de Bolsas (PUB-USP) na formação de
dupla titulação em Artes Visuais.
Professor Orientador: Geraldo de Souza Dias Filho
Período: setembro de 2021 a agosto de 2022

SÃO PAULO
2022
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 3
2. OBJETIVOS 3
3. METODOLOGIA 3
4. DESENVOLVIMENTO 4
4.1. Introdução 4
4.2. Palavra e Imagem na História 5
4.2.1. Origem do alfabeto e da escrita ocidental 5
4.2.2. Evolução técnico-formal 8
4.2.3. Exemplos de vínculos entre palavra e imagem 9
4.3. O período moderno 14
4.3.1. A imprensa e a popularização da informação 14
4.3.2. O cubismo, a colagem e o caligrama 17
4.3.3. Futurismo, dadaísmo e surrealismo 19
4.4. A arte do pós-guerra 23
4.5. A arte contemporânea brasileira 27
5. RESULTADOS PRÁTICOS 33
5.1. “Entupidora” (2021) e “Desvendo” (2021-22) 33
5.2. Exercícios 39
6. CONCLUSÃO 42
7. BIBLIOGRAFIA 43
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1. INTRODUÇÃO

A pesquisa a seguir pretende oferecer um breve panorama histórico acerca


da relação entre palavra e imagem ao longo da História. Partindo da máxima de
Horácio, ut pictura poiésis (como a pintura, é a poesia), a comparação entre
linguagens artísticas será colocada em questão até a publicação do famoso ensaio
de Lessing, “Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia”. Além disso,
uma breve exposição sobre a origem do alfabeto ocidental será oferecida,
ressaltando momentos paradigmáticos da evolução técnico-formal da escrita.
Uma seleção de imagens guiará o texto, que parte da Antiguidade e vai até à
Idade Moderna, com exemplos arcaicos, clássicos e modernos de determinados
tipos de vínculo entre palavra e imagem. Destaca-se o período que sucede a
Imprensa de Gutenberg, com a popularização da informação e o surgimento das
vanguardas modernistas. A arte do pós-guerra também será abordada, sobretudo
sua relação com a escrita ideogramática oriental. Por fim, exemplos de artistas
contemporâneos brasileiros que trabalham o vínculo entre palavra e imagem serão
levantados, contribuindo com a reflexão sobre os trabalhos artísticos desenvolvidos
durante o período da pesquisa.

2. OBJETIVOS

a) Um melhor entendimento da relação escrita-imagem através de uma


conceituação teórica e histórica, a partir de um balizamento da relação espaço-
tempo, onde a escrita e a leitura corporificam o domínio do tempo e a arte e a
apreciação estética, o do espaço.

b) Elaboração de tipologias a partir de exemplos significativos da arte moderna e


contemporânea, desde os casos indicados por Michel Butor na pintura moderna e do
imediato pós-guerra a propostas mais recentes.

c) Desenvolvimento de uma reflexão teórico-prática que possibilite estabelecer


relações entre o levantamento teórico e histórico realizado e uma produção artística
pessoal, partindo de conceitos básicos relacionados à linguagem verbal e visual.

3. METODOLOGIA

A metodologia adotada para o desenvolvimento da pesquisa compreende o


desenvolvimento de atividades tendo em vista produtos parciais e finais, são elas:

1. Levantamento bibliográfico:
1.1. Seleção do material bibliográfico indicado, relacionando referências básicas
que sejam pertinentes ao escopo da pesquisa.
1.2. Sugestão de material bibliográfico complementar, para apoiar considerações
sobre o espaço urbano.
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2. Leitura e fichamentos:
2.1. Análise das referências bibliográficas, tanto as indicadas quanto as
complementares, para o embasamento das formulações teóricas.

3. Trabalhos de campo:
3.1. Levantamento de exemplos de obras visuais de artistas que estabeleceram
ou desenvolveram a relação imagem-texto.
3.2. Coleta de informações gráficas do cotidiano das cidades, selecionando
características que contribuam para a reflexão teórico-prática.

4. Sistematização de dados coletados:


4.1. Estabelecimento de relações entre o material bibliográfico e o material
coletado em campo.
4.2. Desenvolvimento de conclusões preliminares que venham auxiliar na
concepção dos trabalhos finais.

5. Elaboração de relatório parcial:


5.1. Estabelecimento de parâmetros e critérios de avaliação que permitam avaliar
se os resultados alcançados correspondem aos objetivos pretendidos.

6. Elaboração de relatório final:


6.1. Desenvolvimento da avaliação geral.
6.2. Através dos critérios estabelecidos, proceder-se-á aos trabalhos de
montagem dos resultados finais.

4. DESENVOLVIMENTO

4.1. Introdução

Um dos primeiros registros da relação entre palavra e imagem no campo das


artes se dá na Grécia Antiga. A Arte Poética, que deriva do célebre escrito A
Poética, de Aristóteles (384- 322 a.C.), estabelece conceitos fundamentais sobre a
produção artística escrita e visual. Concebido por Horácio (Quintus Horatius Flaccus
– 65-8 a.C.) no século I a.C, o livro trata da forma poética, conceituando diferenças e
hierarquias entre a pintura e a poesia. Nele, o autor afirma:

Poesia é como pintura; uma te cativa mais, se te deténs mais perto; outra, se
te pões longe; esta prefere a penumbra; aquela quererá ser contemplada em
plena luz, porque não teme o olhar penetrante do crítico; essa agradou uma
vez; essa outra, dez vezes repetida, agradará sempre. (HORÁCIO, 2005,
p.65)

A Arte Poética de Horácio pode ser sintetizada em sua célebre máxima, ut


pictura poiésis, ou “como a pintura, é a poesia”. Por muito tempo, a frase
estabeleceu uma relação de correspondência entre palavra e imagem.
Frequentemente considerada nas produções artísticas desde a Antiguidade, ela
designou às artes visuais o papel de representar um determinado texto escrito, ou
5

seja, definiu o trabalho de arte como objeto capaz de narrar por meio de imagens, de
caráter meramente descritivo.
Um novo ponto de vista sobre a questão seria levantado no Tratado da
Pintura, escrito entre 1490 e 1517 por Leonardo da Vinci (1452-1519). Como afirma
Alberto Roiphe em seu artigo “Literatura e Artes Plásticas: uma revisão bibliográfica
do diálogo” (2010), Leonardo defende a supremacia da pintura sobre as demais
artes e, partindo da noção aristotélica de representação, escreve:

A pintura é uma poesia muda e a poesia uma pintura cega; e tanto uma
quanto a outra tentam imitar a natureza segundo seus limites, e tanto uma
quanto a outra permitem demonstrar diversas atitudes morais, como fez
Apeles na sua Calúnia. (DA VINCI apud LICHTENSTEIN, 2005, p. 19-20)

Sobre a imitação da natureza, da Vinci argumenta que, enquanto a pintura é


capaz de representar determinados elementos naturais de uma só vez, a poesia
pode apenas representar um após o outro, em uma sucessão:

O poeta não pode colocar em palavras a verdadeira forma das partes que
compõe o todo, como o pintor, que a apresenta com aquela verdade que só é
possível na natureza. (DA VINCI apud LICHTENSTEIN, 2005, p. 21)

O reconhecimento da supremacia da pintura por da Vinci, no entanto, não


desvincula a pintura da ideia primordial de representação. Nesse sentido, as artes
plásticas ainda dependem de uma narrativa, ou seja, permanecem, vinculadas a
uma determinada história, subordinadas ao texto. Essa fidelidade entre texto e
imagem é colocada em questão a partir do século XVIII, momento no qual o
paradigmático ensaio de Gotthold Efraim Lessing, “Laocoonte ou sobre as fronteiras
da pintura e da poesia” (1766), é publicado. Nele, redefine-se a relação que por
tanto tempo permaneceu inquestionável e ditou as produções visuais ao longo da
história.
Ao tratar da distinção entre as artes do tempo (poesia) e as artes do espaço
(pintura, escultura, etc), Lessing rompe com a definição de Horácio, ou seja,
estabelece fronteiras nas quais a pintura é tida como linguagem autônoma, capaz de
falar de sua própria natureza espacial, bem como considera a singularidade
temporal da escrita. Muito posteriormente, Foucault, em “As Palavras e as Coisas”
(1966), diria que as palavras são elementos formadores de um conjunto arbitrário de
signos, ou seja, a relação de correspondência e semelhança com as coisas do
mundo é perdida, a escrita não mais tem a função de sugerir ou representar. Com
essas considerações, seria possível, então, discutir a presença da escrita na arte
moderna e contemporânea.

4.2. Palavra e Imagem na História

4.2.1. Origem do alfabeto e da escrita ocidental

Há cerca de quinhentos mil anos atrás, o ser humano começaria a


desenvolver armas, ferramentas e utensílios diversos. Consequentemente,
começaria a representar o mundo a partir deles. As expressões gráficas que
precedem a consolidação da escrita originam sistemas comunicativos constituídos
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por representações visuais. Ou seja, antes da utilização da palavra, um símbolo que


não guarda relação direta com seu referente na natureza, a comunicação humana
era registrada por meio de ícones, pelos quais o mundo era representado
visualmente. Assim, contavam-se histórias sem palavras:

A pictografia (do latim "pintar" e do grego "traçar, escrever") encontra-se em


primeiro lugar nas várias manifestações da proto-escrita, transmitindo ao
espectador um fragmento da fala figurativa sem que ela se desfaça. e,
portanto, sem um vínculo efetivo com uma determinada língua. (SANDBERG,
1965: 5. Tradução nossa.)

Os "ideogramas" podem ser definidos como coisas do mundo transformadas


em sinais gráficos, expressando significados sem evocar ou detalhar sons. Os
hieróglifos, nome dado pelos gregos aos caracteres da escrita egípcia antiga
("hleros", que significa sagrado, e "gluphein", esculpir) são exemplos desse tipo de
comunicação visual. A próxima etapa da invenção da escrita, seria, então, a notação
dos sons, a representação torna-se fonográfica (do grego phonê, som). É aí que
surgem as palavras.
A escrita propriamente dita, com seus sistemas de abstração, está
diretamente vinculada ao surgimento das cidades. De acordo com Sandberg (1965),
não há nenhuma descoberta arqueológica de documentos escritos que remontam a
mais de 4.000 a.C. Graças às ruínas preservadas até hoje e aos documentos que
foram descobertos, sabemos que no Egito Antigo, em uma época anterior a 3.000
anos, existiam grandes cidades em que se utilizavam pequenos desenhos, alguns
dos quais representavam gestos convencionais.
Assim como os egípcios, os cretenses e os chineses, os sumérios da Baixa
Mesopotâmia são os primeiros inventores de um sistema de escrita eficiente e, ao
conduzirem a mudança da escrita pictográfica à escrita silábica, dão o passo inicial
para a elaboração da escrita moderna. Sandberg afirma que, cerca de mil anos
antes de Cristo, os sumérios ainda gravavam sinais evocando diretamente certos
objetos, em selos e marcas de propriedade:

Mais tarde, e sem dúvida porque era necessário escrever nomes sem
ambiguidade, foi atribuído um valor fonético aos signos originalmente
pictográficos. A coisa torna-se assim uma espécie de quebra-cabeça: uma
palavra difícil de expressar por meio de um desenho é escrita com o sinal de
outra que se pronuncia de maneira mais ou menos semelhante.
(SANDBERG, 1965: 10. Tradução nossa.)

O aperfeiçoamento desse sistema permitiria, posteriormente, a escrita de


quase todas as combinações da língua falada. Esse acontecimento remonta à
escrita cuneiforme, na qual os signos eram registrados por meio de fissuras no
barro, que era queimado em seguida. Sandberg afirma que os babilônios, os
assírios, os hititas e os persas adaptaram essa escrita à sua própria língua, em que
um desenho costumava ilustrar o texto para indicar aos analfabetos seu conteúdo.
Entretanto, a partir do sistema desenvolvido pelos sumérios, a imagem passa a se
separar da palavra, já que, progressivamente, a leitura e a escrita se espalharam
entre o povo da Mesopotâmia.
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Fig. 1: Um Estudo da Escrita de I.J. Gelb. Imprensa da Universidade de Chicago. 1963.


Fonte: SANDBERG, W. J., "El Arte de la Escritura", Paris: Unesco, 1965, p. 13

Pode-se perceber a evolução dos signos pictográficos sumérios até chegar à


escrita cuneiforme na fig. 1. A palavra, inicialmente representada por uma imagem, é
modificada e esquematizada ao ser inscrita no barro com a ponta de um junco. Até
que, finalmente, ela é transformada em um signo abstrato, constituindo uma escrita
silábica altamente eficaz.
O alfabeto ocidental como conhecemos surgiria entre os anos 1.300 e 1.000
antes de Cristo, na Fenícia e nas regiões anexas a ela. O alfabeto fenício era
composto por 22 letras, apenas consoantes. Sandberg explica que a notação das
vogais era negligenciada, ou seja, as vogais não eram indicadas nas sílabas
escritas. Segundo o autor, isso seria uma transição entre o silabismo e o alfabeto
completo:

O primeiro uso verificado do alfabeto é o que atesta algumas tabuinhas da


biblioteca de Ugarit (no norte da Fenícia) cuja data foi fixada entre 1.600 e
1.200 antes de Cristo, aproximadamente. A escrita nessas tábuas é
cuneiforme, lendo da esquerda para a direita; e a língua, uma variedade do
semítico ocidental próximo ao cananeu e ao aramaico. (SANDBERG, 1965:
15. Tradução nossa.)

Por volta de mil anos antes de Cristo, os gregos, então, adotam o alfabeto
consonantal semítico, desenvolvendo diversas mudanças em sua estrutura. A mais
considerável está na adição das vogais ao alfabeto, formando um sistema completo.
E, para representar as vogais, eles usaram letras correspondentes a consoantes
semíticas inexistentes em grego. Assim, o princípio fonográfico da escrita é
plenamente realizado, substituindo a escrita iconográfica no Ocidente.
8

4.2.2. Evolução técnico-formal

Em “A Palavra Escrita: História do Livro, da Imprensa e da Biblioteca” (1996),


Wilson Martins descreve como a prática da escrita era concebida na Europa,
sobretudo na Idade Média. De acordo com o autor, entre os séculos IV e XVI, o
pergaminho foi o material mais comumente empregado para se escrever. O alto
preço do material explica o fenômeno dos palimpsestos. Palimpsesto, que significa
“raspado de novo”, configura um manuscrito no qual um primeiro texto é raspado
para que um segundo possa ser escrito.
Como o papiro, o pergaminho sempre foi utilizado de apenas um lado, sendo
enrolado para formar o volumem. Percebe-se, então, ser possível utilizar as duas
faces do pergaminho, tanto o reto (frente) quanto o verso, dando origem ao códex,
antecessor direto do livro. O códex é considerado uma revolução na escrita,
alterando drasticamente a configuração das bibliotecas. Assim, o valor do
pergaminho ocasiona o desenvolvimento de estratégias na escrita, para que a folha
seja aproveitada integralmente. As letras, portanto, são diminutas e arredondadas, e
as palavras, abreviadas. Até que, em meados do século XII, surge a chamada
escrita “gótica”, na qual as curvas são substituídas pelos ângulos, estilo que
caracteriza a produção das iluminuras.

Fig. 2: Livro de Kells, folio 8 recto c. 800. Fonte: MORLEY, Simon, “Writing on the Wall – Word and
Image in Modern Art”, University of Califórnia Press, Berkeley, 2005, p. 14

Os manuscritos são abandonados com a invenção da Imprensa, fazendo com


que as iluminuras, também essencialmente manuais, entrem em desuso. Com a
impressão, texto e ilustrações são feitos mecanicamente. No entanto, Martins afirma
que os primeiros impressos ainda possuíam espaços para as grandes iniciais
pintadas à mão (capitulares) e para ilustrações igualmente manuais. Ainda assim, a
partir do século XV, o momento histórico da produção de manuscritos e iluminuras
pode ser considerado como encerrado.
9

A Idade Média é marcada pela substituição do rolo pelo códex, da mesma


forma que o papiro é substituído pelo pergaminho. Já na transição para a
Renascença, o pergaminho é substituído pelo papel, dada a paradigmática
instituição da Imprensa. Sua invenção remonta ao ano de 1455, no qual Gutemberg
imprimiu a famosa Bíblia de 42 linhas utilizando a prensa de tipos móveis,
germinando o que hoje conhecemos como tipografia.

4.2.3. Exemplos de vínculos entre palavra e imagem

Fig. 3: “O Machado”, 325 a.C., Símias de Rodes. Fonte: Xavier, H. P. (2002). A evolução da poesia
visual: da Grécia Antiga aos infopoemas. Significação: Revista De Cultura Audiovisual, 29(17), p. 165

Fig. 4: "O Ovo", 325 a.C., Símias de Rodes. Fonte: Xavier, H. P. (2002). A evolução da poesia visual:
da Grécia Antiga aos infopoemas. Significação: Revista De Cultura Audiovisual, 29(17), p. 167

Os primeiros poemas visuais conhecidos são da autoria de Sírnias de Rodes,


escritos cerca de 300 anos antes de Cristo, na Alexandria. Capital da cultura
helênica, Alexandria conciliava a cultura grega com as culturas orientais, sobretudo
a egípcia e a persa. Possui diversas contribuições artísticas famosas, como a
escultura de Laocoonte. Os poemas de Rodes abordam temas clássicos da literatura
grega, alguns exemplos são "O Machado" (fig. 3) e "O Ovo" (fig. 4). Como afirma
Xavier (2002), "O Machado" fala sobre o machado da deusa Minerva, enquanto “O
Ovo”, por sua vez, é um poema metalinguístico. Este último aborda o nascimento do
10

próprio poema e seu aperfeiçoamento, criando uma metáfora com o ovo de rouxinol.
Aedóon significa rouxinol, em grego, e deriva de aeídoo, o verbo cantar, que
também origina aedo: cantor ou poeta.

Fig. 5: Carmina figurata n-28, Rabanus Maurus. Fonte: Xavier, H. P. (2002). A evolução da poesia
visual: da Grécia Antiga aos infopoemas. Significação: Revista De Cultura Audiovisual, 29(17), p. 173

Partindo para a Baixa Idade Média, Rabanus Maurus (780-856) é o autor que
se destaca na produção de poemas visuais. A chamada carmina figurata (fig. 5) é o
gênero no qual o texto é elevado a uma manifestação sagrada, como defendiam os
clérigos carolíngios. Conta com uma estrutura complexa, que permite a união entre a
escrita latina e símbolos visuais:

Nela, um texto oculto vem formar um desenho de valor esotérico a partir da


materialidade de certas letras, dentro de um texto maior. Cria-se, assim, uma
revelação metafísica através da relação entre um micro texto. (XAVIER,
2002: 170)

Já no período que sucedeu a Imprensa de Gutenberg, a Emblemata (1531) é


um bom exemplo da relação entre palavra e imagem quando se trata de
representação. A palavra "emblemata" é o plural da palavra grega "emblema", que
significa uma peça de incrustação ou mosaico, um ornamento. Andrea Alciato (1492-
1550), criador do livro, descreve seus emblemas como sendo uma recreação
erudita, um passatempo para humanistas mergulhados em cultura clássica. Cada
página do livro contém um emblema, e cada emblema é composto por três
elementos: o título, a imagem e o texto. Todos possuem o intuito de representar uma
mesma alegoria.
11

Fig. 6: In Occasionem (oportunidade), emblema 121 na Emblemata de Andrea Alciato, 1608.


Xilogravura 16,5 x 11,0 cm. Fonte: https://art.famsf.org/unidentified-artist/occasionem-opportunity-
emblem-121-book-emblemata-andrea-alciato-antwerp-plantin

Uma dessas alegorias possui o título de In Occasionem (fig. 6), que quer dizer
“oportunidade”. Para representar essa noção, uma figura é situada logo abaixo do
título, seguida por sua descrição em forma de texto. Na imagem, é possível observar
uma mulher, a oportunidade, que está sobre uma roda e possui asas nos pés. O
texto explica que a roda está sempre girando, enquanto as asas podem levar a
oportunidade para qualquer direção. A mecha de cabelo em sua testa, por sua vez,
é para que ela seja agarrada pelos cabelos enquanto corre em nossa direção. Já a
parte de trás da sua cabeça está careca. Isso porque, se seus pés alados a levarem
para longe antes que a capturemos, não poderemos mais apanhá-la pelos cabelos.
Alegorias assim podem ser percebidas, por exemplo, na obra do pintor
Hieronymus Bosch (c. 1450-1516). Segundo Michel Butor (1969), “O Jardim das
Delícias Terrenas”, de 1515 (fig. 7), é constituído por uma série de emblemas e
figurações alegóricas, em particular de vícios e virtudes. O painel central mostra um
Paraíso que engana os sentidos, um falso Paraíso entregue ao pecado da luxúria.
Essa ideia de falso Paraíso é reforçada pelo uso de uma paisagem única e contínua
entre o Éden e o painel central, com uma linha do horizonte alta que continua até o
painel do Inferno, permitindo uma composição ampla.
Outro famoso exemplo de representação alegórica é a pintura de Pieter
Bruegel, “Os Provérbios Flamencos”, de 1559 (fig. 8). A tela abriga numerosas
ilustrações literais de provérbios holandeses. Ao todo, são 120 provérbios e ditados,
12

cada metáfora sendo representada literalmente pelos aldeões pintados em cena. No


primeiro plano, por exemplo, temos um homem que "bate a cabeça contra as
parede". Ao fundo, outro homem, vestido elegantemente, está parado em uma
escada jogando dinheiro na água, ação que seria equivalente à expressão "jogar
dinheiro pela janela".

Fig. 7: Hieronymus Bosch, O Jardim das Delícias Terrenas, 1515. Óleo sobre madeira, 185.8 x
172.5 cm. Fonte: https://www.museodelprado.es/en/the-collection/art-work/the-garden-of-earthly-
delights-triptych/02388242-6d6a-4e9e-a992-e1311eab3609

Fig. 8: Pieter Bruegel, Os Provérbios Flamencos, 1559. Óleo sobre madeira, 117,2 x 163,8 com.
Fonte: https://artsandculture.google.com/story/OgKCUsSHOXLXIQ?hl=fr
13

Por fim, resta tratar de quando a palavra aparece literalmente na obra de arte,
a começar por dois exemplos do artista alemão Albrecht Dürer (1471-1528). São
eles a gravura “Erasmo de Roterdã” (1526) e a pintura “Retrato de Maximiliano”
(1519). Na primeira (fig. 9), o texto aparece como uma descrição da imagem, o ano
em que foi realizada e a assinatura do artista. Entretanto, esse texto é incorporado à
imagem representada na gravura: as informações aparecem escritas em um quadro
ao fundo da composição, como parte integrante dela. Assim, a palavra se faz
presente em consonância com a ilusão de tridimensionalidade da imagem.

Fig. 9: Albrecht Dürer, Erasmo de Roterdã, 1526. Gravura em metal, 24.8 x 19.1 cm. Fonte:
https://www.metmuseum.org/art/collection/search/336231
Fig. 10: Albrecht Dürer, Retrato de Maximiliano, 1519. Óleo sobre madeira, 615 x 740 cm. Fonte:
https://artsandculture.google.com/asset/portrait-of-maximilian-i-albrecht-
d%C3%BCrer/LQG_SIsDPpL2aQ

Fig. 11: Fra Angélico, Anunciação, c. 1430. Têmpera sobre madeira, 150 x 180 cm. Fonte: MORLEY,
Simon, “Writing on the Wall – Word and Image in Modern Art”, University of Califórnia Press, Berkeley,
2005, p 11
14

No segundo exemplo (fig. 10), ocorre o contrário. A extensa descrição do


sujeito representado é situada logo acima de sua cabeça, rompendo com a ilusão de
uma representação espacial. Além disso, a pintura não possui nenhum cenário ou
elemento perspectivado ao fundo, contribuindo para certa suspensão de uma
representação fiel da realidade. Fra Angélico (1395-1455), em sua “Anunciação”, de
1430 (fig. 11), também rompe com a ilusão de espaço tridimensional através da
palavra. A obra representa uma ruptura ainda maior em relação ao trabalho de
Dürer, já que as frases saídas da boca do anjo aparecem não apenas como mera
descrição da cena, mas como parte integrante da narrativa. Esse recurso é
semelhante, inclusive, aos balões de fala presentes nas histórias em quadrinhos.

4.3. O período moderno

4.3.1. A imprensa e a popularização da informação

Como visto anteriormente, a escrita tem origem em aspectos pictográficos e


ideográficos de representação. Ou seja, os signos, de certo modo, eram
independentes de um discurso, organizavam-se a partir de um modo visual de
comunicação. A invenção do alfabeto fenício, em sua tentativa de capturar a fala, faz
com que a palavra seja subordinada à linguagem oral e não à linguagem pictórica,
como acontecia até então. Com os tipos móveis de Gutenberg no séc. XV, a escrita
torna-se uniforme sem cor, sendo completamente mecanizada. Sua dimensão visual
é, então, suprimida, e a inscrição é separada da imagem e do gesto corporal. A
escrita, como Vilém Flusser (1998) conceituaria, faz com que o ser humano passe
de um mundo representado em duas dimensões, o mundo das imagens, para o
mundo representado em apenas uma dimensão, a dimensão linear da escrita.
A partir do século XIX, em um uma cultura dominada por impressos e pelos
“protocolos do livro”, como Simon Morley (2005) afirmaria, a literatura começa a
nutrir o desejo de subverter o uso da palavra, suas categorias e práticas. Ela
abandona a representação da natureza e começa a olhar para si, discutindo conflitos
relacionados às suas próprias diretrizes: “Desde então, a obra literária tem-se
tornado, cada vez mais, uma reflexão sobre a literatura, uma linguagem que contém
sua própria metalinguagem” (PERRONE-MOISÉS, 1978, p. 11-12).
Com as artes plásticas não foi diferente. A representação começa a ser
questionada, fazendo com que um discurso mediado sobre a realidade seja
substituído por uma experiência direta da própria realidade. As pinturas dos Salões e
suas narrativas dão lugar a outros modos de conceber a produção artística e a
bidimensionalidade seria progressivamente reconhecida como principal aspecto da
pintura, promovendo o abandono da fidelidade rigorosa que ela guardava com a
natureza. Assim, as vanguardas artísticas surgem em um contexto de valorização de
respostas sensoriais diretas e práticas não subordinadas nem à literatura nem à
representação.
A Europa do século XIX vivia um momento de grandes transformações sociais
e econômicas, no qual a atividade de leitura se tornava cada vez mais abrangente,
saindo do âmbito privado dos livros e invadindo o formato público, principalmente
por meio dos jornais. É nesse cenário que surge a chamada Coluna Morris (fig. 12),
estrutura projetada especificamente para comportar publicidade, consagrando um
espaço público de leitura. Com isso, o ato de ler está cada vez menos relacionado à
15

distinção de classe e hierarquias, diminuindo as fronteiras entre aqueles que leem os


jornais e aqueles que leem os livros de poesia. Progressivamente, a cultura de
massa e alta cultura se aproximam.

Fig. 12: Jean Béraud, Colonne Morris, 1870. Fonte: MORLEY, Simon, “Writing on the Wall – Word
and Image in Modern Art”, University of Califórnia Press, Berkeley, 2005, p. 22

A Paris do final do século era tomada por estímulos visuais e verbais


diversos, incorporados às paredes e vitrines, presentes nos sinais de trânsito e
veículos. Essa cacofonia visual de palavra e imagem constituem uma experiência
inédita. A quantidade de informação faz dos textos elementos que não são feitos
para serem decifrados, mas para serem absorvidos passivamente pelos sentidos. A
configuração urbana de Paris passa a ser reconhecida como uma experiência visual
complexa, inspirando os artistas impressionistas das décadas de 1860 e 1870, que
valorizavam a impressão instantânea em suas pinturas. Assim como a tipografia
urbana, que não é feita para ser observada por muito tempo, as obras
impressionistas também possuem na rapidez da experiência das cidades um de
seus principais fundamentos.
A sociedade parisiense tinha à sua disposição um grande mercado de livros,
jornais e periódicos (MORLEY, 2005: 21). A circulação em massa dos jornais criava
a necessidade de se explorar aspectos visuais da tipografia para capturar a atenção
do leitor. Era preciso discutir, por exemplo, o tamanho e o aspecto da fonte que seria
apresentada em determinado anúncio. As mudanças tecnológicas, evidentemente,
afetaram o modo como as palavras passaram a ser produzidas: a manufatura do
papel melhorou em termos de velocidade e qualidade, a mecanização da impressão
aumentou a eficiência da produção em termos de volume, etc.
O desenvolvimento de novos métodos de produção em massa de tipos de
metal para prensas, bem como a criação de máquinas de linotipo e monotipo,
alteraram processos manuais que haviam permanecido praticamente os mesmos
desde Gutenberg. A invenção da litografia, no início do século XIX, contornou as
limitações impostas pelos tipos de metal, pois introduziu o uso da mesma ferramenta
para produzir palavra e imagem, aumentando a eficiência da produção dos
periódicos.
16

No final do século XIX, as mudanças no comércio e na tecnologia fizeram


com que a propaganda pública atingisse proporções nunca antes vistas. Havia uma
demanda crescente da economia por propagandas e, nas publicações dos jornais,
as palavras precisavam ser chamativas. Assim, letras mais exageradas que as
convencionais seriam capazes de atrair a atenção do consumidor no meio do caos
informacional do espaço público. O pôster artístico foi uma categoria de sucesso na
época, diversos artistas importantes produziram pôsteres publicitários, como é o
caso de Pierre Bonnard (1867-1947) e Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901) (fig.
13). O sucesso era tanto que edições especiais eram feitas para colecionadores e os
exemplares expostos nas colunas de anúncios eram, inclusive, roubados (MORLEY,
2005: 23).
O pioneiro da chamada poster art, Jules Chéret (1836-1932), aparece em
Paris pela primeira vez em 1866. Seus cartazes são marcados pela fluidez e
espontaneidade, por meio da litografia, ele intercala caligrafia e desenho, misturando
palavra e imagem (fig. 14). Com um desenho ousado e exagerado, Chéret trabalha
com uma paleta de cores limitada, fazendo uso dramático do contraste visual entre
letras pintadas à mão e texto impresso, em uma intimidade entre palavra e imagem
que remonta a Idade Média.
Na sociedade moderna, as palavras são libertas do livro, invadindo o
ambiente como fenômeno visual. Disseminadas no contexto urbano, palavras e
imagens colaboram para uma crescente desconfiança da linguagem. A ideia de
progresso, então, é substituída pela dúvida. Há uma crise no reconhecimento da
linguagem como capaz de verdadeiramente corresponder ao mundo tangível: ela
passa a ser vista como uma construção humana, opaca, sem universalidade ou
objetividade.

Fig. 13: Henri de Toulouse-Lautrec, Moulin Rouge: La Goulue, 1891. Litografia, 190 x 116.5 cm.
Fonte: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/333990
Fig. 14: Jules Chéret, L'Horloge: Les Girard, c. 1880. Litografia, 57.15 × 43.18 cm. Fonte:
https://artsandculture.google.com/asset/lhorloge-les-girard/hwEP5T2GPcW56w
17

4.3.2. O cubismo, a colagem e o caligrama

Entre as décadas de 1880 e 1890, surge na França um movimento artístico e


literário que teria como intuito, por meio do anti-naturalismo, afirmar certa oposição à
cultura de massa e à sociedade materialista: o Simbolismo. Na teoria simbolista,
poema e pintura evocam um estado vago e não racional, os significados concretos
são deixados de lado e signos indeterminados assumem lugar de destaque. Os
poemas simbolistas são repletos de ambiguidade de significado e, além disso, seus
escritores abandonam a métrica tradicional. Assim, a relação entre poética e
linguagem cotidiana se aproxima, pois o verso livre adotado pelos poetas cria um
estilo que se assemelha ao ritmo e à sintaxe do discurso coloquial. Na tentativa de
emancipar a escrita do controle consciente e racional, os simbolistas produzem
textos espontâneos, em um processo que o poeta Arthur Rimbaud (1854-1891)
denomina “alquimia da palavra” (MORLEY, 2005: 30).
O francês Stéphane Mallarmé (1842-1898) é um dos grandes expoentes do
movimento simbolista. Em seu poema Un Coup de dés jamais n’abolira le hasard,
originalmente publicado em 1897 (a versão tipográfica atualmente conhecida apenas
foi publicada em 1914), Mallarmé explora as fronteiras entre o verbal e o visual de
maneira paradigmática. A maneira como a visualidade do signo verbal é trabalhada
no poema faz com que a natureza concreta e material das letras e palavras seja
evidenciada. Os aspectos formais da linguagem, portanto, são centrais para os
poetas simbolistas, que enxergam os jornais como veículos decadentes e,
posicionando-se contra a cultura de massa, procuram libertar a linguagem de sua
roupagem costumeira. Apesar das críticas, o jornal também é fonte de inspiração
para os simbolistas, sobretudo pela maneira com a qual os itens são justapostos,
criando formas descontínuas (MORLEY, 2005: 30). As misturas de fontes, os
diversos tamanhos e a disposição das palavras são, de certo modo, referências para
a desconstrução realizada nos poemas da época. A diferença é que o jornal tem
como função atentar para a realidade, enquanto o poema simbolista está
preocupado com a materialidade da palavra. O sentido é construído pelo arranjo
físico das letras na página, dessa forma, as palavras assumem o caráter de objeto
ao invés de janela para a realidade.
A estreita relação entre as práticas literárias e as artes visuais dá origem ao
chamado livro de artista. Nele, o diálogo entre pintura e poesia acontece de maneira
que as imagens não ilustram o texto, mas complementam o elemento verbal. Ou
seja, não há mais uma comparação, mas uma correspondência entre palavra e
imagem, as hierarquias são abandonadas e ambas as formas de linguagem são
colocadas em um mesmo patamar. No entanto, o escapismo dos poemas
simbolistas, de certa forma, ainda protegia cada mídia em seu determinado
lugar, distanciando a arte da sociedade de massa. Nesse cenário, as vanguardas
do início do século XX surgem como novas alternativas, que visam menos a
especialidade de cada mídia e mais a mistura entre elas e, consequentemente, a
mistura com a cultura de massa.
Com o Cubismo, reforça-se a concepção de uma escrita separada de mera
descrição verbal, mas como um fenômeno também visual. As palavras deixam de
evocar apenas seu conteúdo, isto é, começam a ser vistas como elementos gráficos
expressivos. Diferentemente do Simbolismo, o Cubismo abraça a cultura de massa e
a indústria publicitária e, em 1911, Georges Braque (1882-1963) começa a introduzir
letras e palavras em suas composições, assim como Pablo Picasso (1881-1973) (fig.
18

15). As composições cubistas começaram a ter textos de manchetes de jornais,


rótulos de garrafas, entre outros materiais ordinários. Pouco depois dos signos
verbais pintados, apareceram as colagens, com pedaços verdadeiros de impressos,
anúncios, passagens, etc, colados diretamente na superfície (MORLEY, 2005: 38).
Já não há nenhuma pretensão de representar a natureza como ela é. Em
uma pintura cubista, podemos reconhecer a presença de alguns elementos
representados pictoricamente, como frutas, instrumentos musicais e outros objetos.
No entanto, a obra é pautada por um aspecto construtivo, não tem compromisso em
corresponder à realidade e fala mais sobre si mesma do que fala sobre o mundo
real. Sobre isso, Braque diria a seguinte frase: "O pintor pensa em formas e cores. O
objetivo não é reconstituir um fato anedótico, mas constituir um fato pictórico"
(BRAQUE apud WOLFE, 1987: 11). De acordo com Giannotti (2003), a escolha dos
motivos nas pinturas cubistas também é um aspecto significativo de como elas
rompem com a pintura acadêmica, já que, ao pintarem uma natureza morta, os
artistas vão contra a hierarquia dos gêneros.
A obra cubista, portanto, volta-se para propósitos formais, compreende a
escrita como uma marca gráfica e reforça a ideia de bidimensionalidade. Como
afirma Butor (1969), no Cubismo, o texto vira textura. A palavra é transformada em
forma espacial, o que gera certa distância de seu significado. O aspecto discursivo
também aparece, entretanto, a percepção da variedade de texturas antecede a
leitura do texto:

Os cubistas não só fragmentam o texto, como colam imagens de jornais em


uma posição difícil de ser lida. As palavras não se dirigem mais ao leitor-
observador como nas iluminuras medievais. Elas formam antes uma
superfície padronizada, essencialmente gráfica. (GIANNOTTI, 2003: 96)

Fig. 15: Pablo Picasso, Guitarra, partitura e taça de vinho, 1912. Colagem, tinta e papel, 117 x 81 cm.
Fonte: https://www.wikiart.org/en/pablo-picasso/guitar-sheet-music-and-wine-glass-1912
Fig. 16: Guillaume Apollinaire. Chuva, 1918. Fonte: Xavier, H. P. (2002). A evolução da poesia visual:
da Grécia Antiga aos infopoemas. Significação: Revista De Cultura Audiovisual, 29(17), p. 184
19

Os fragmentos presentes nas obras cubistas obrigam o observador a assumir


um modo de leitura diferente, não alienado. Sabemos que o livro moderno possui
uma tipografia mínima, enquanto o anúncio tem como característica ser exagerado,
no entanto, ambos possuem um objetivo em comum: facilitar a leitura. A organização
não linear do cubismo faz com que o leitor seja mais ativo em sua interpretação,
produz uma leitura fraturada pois carrega uma linguagem descontextualizada. Dessa
forma, rompe com a homogeneidade e a mecanização da leitura.
A ruptura com uma leitura automática também está presente na obra do poeta
francês Guillaume Apollinaire (1880-1918). Em seus Caligramas (1918) (fig. 16),
Apollinaire constrói poemas visuais nos quais as palavras são dispostas na página
de maneira a formar desenhos, com o intuito de ecoar o sentido do poema tanto
verbalmente quanto visualmente. A palavra, simbólica, transforma-se em imagem,
icônica, e vice-versa. Retomando as raízes ideográficas da escrita, o poeta cria uma
unidade entre visual e verbal, que seria referência para os artistas que o sucederam.

4.3.3. Futurismo, dadaísmo e surrealismo

Os caligramas de Apollinaire foram influenciados, mais pela forma do que


pelo conteúdo, pelo Futurismo italiano. O poeta Filippo Tommaso Marinetti (1876-
1944), ao escrever o Manifesto da Literatura Futurista (1912) e o periódico Words-in-
Freedom (1912), visava a destruição da sintaxe na poesia moderna. Em uma
apologia ao caos da vida moderna, o movimento defendia uma escrita mais direta e
emocional, abandonando recursos como os sinais de pontuação. Ou seja, a poesia
futurista pretendia não apenas banir a métrica tradicional, mas também o verso livre,
central para os simbolistas.
O conceito de parole-in-libertà pretendia “libertar as palavras” das estruturas
da linguagem, estruturas que, segundo os futuristas, imitam a natureza opressiva e
hierárquica da sociedade. Além disso, o modo ocidental de conceber a escrita
separa a linguagem do corpo, eliminando aspectos auditivos, táteis e sensoriais
como um todo. A escrita, assim, resume-se a um único sentido, a visão. Os
impressos gráficos eliminam a presença do gesto corporal na fatura do texto,
despersonalizam a palavra escrita e criam a ilusão de um discurso sem corpo.
Marinetti, portanto, em sua premissa de libertar a linguagem, deseja retornar a um
estado primal da escrita, concreto e dinâmico, no qual o mundo dos sentidos seria
central. Para isso, o poeta defende que a tecnologia eletrônica seja apropriada pela
forma artística.
Para os futuristas, a cultura de massa absorve o princípio do modo de vida
acelerado da vida moderna, que seria inspiração para o movimento. A cultura de
massa não deixaria de ser considerada vulgar pelos futuristas, mas essa mesma
vulgaridade seria vista como vital, um indício da modernidade absoluta. Ao contrário
do cubismo, as letras nos poemas futuristas não são necessariamente retiradas do
mundo real, mas criadas a partir da imaginação. O aspecto oral e teatral da palavra
é reforçado, a palavra falada aparece em sua forma escrita por meio de
onomatopéias, em uma ortografia expressiva livre. A variação dramática na escala
das letras, bem como justaposições entre o visual e o verbal, seriam frequentes nos
poemas futuristas. Pretendia-se evocar emoções, não meramente descrevê-las.
20

Desse modo, a sintaxe é desafiada nas obras futuristas, nas quais a tipografia
age para expressar o significado da palavra iconicamente. Ou seja, a palavra não
aparece apenas como símbolo, já que, além de referenciar algo externo, ela fala
sobre si mesma e suas propriedades visuais. A palavra não está limitada a um
significado isolado, envolve todo o campo visual e está diretamente relacionada ao
impacto emocional. Emancipada do canal lógico da sintaxe, a escrita é capaz de
evocar barulhos, cheiros e estados sinestésicos nos trabalhos futuristas. Todavia,
assim como a ruptura sintática, o apoio à guerra também era central nas obras
italianas. Com a apologia à velocidade do mundo moderno e à incorporação não
crítica da tecnologia, o Futurismo produzia uma retórica de violência, que logo seria
superada por outras vanguardas modernistas.

Fig. 17: Gino Severini, Cannon in Action, 1915. Óleo s/ tela, 50 x 60 cm.
Fonte: https://dome.mit.edu/handle/1721.3/23768

Com o Dadaísmo, que surge logo após a Primeira Guerra Mundial, uma nova
visão da cidade moderna entra em cena. Diferentemente dos cubistas e dos
futuristas, os dadaístas não enxergam o caos da vida urbana com empolgação. As
palavras são percebidas como signos arbitrários, há uma desconstrução da
linguagem como entidade material sem sentido. A retórica da perda de sentido faz
com que os artistas dadaístas trabalhem com significados já constituídos ao invés de
novos. A opacidade do discurso assume o lugar da transparência, as obras
dadaístas são repletas de rimas e aliterações ao invés de significados precisos. O
Dada, obscuro e aparentemente aleatório, abandona completamente a sintaxe,
resultando em uma confusão premeditada.
O signo linguístico, para os dadaístas, é o mais completo produto da razão
humana, portanto, desafiá-lo é desafiar os valores ocidentais. O poeta romeno
Tristan Tzara (1896-1963), ao escrever o Manifesto Dada (1918), defende que as
palavras não têm a obrigação de fazer sentido, inaugurando uma “era do absurdo”.
21

A linguagem, portanto, é um sistema arbitrário de signos que podem ser


manipulados, mas que são incapazes de dar acesso à realidade ou à verdade.
Marcel Duchamp (1887-1968), maior expoente do Dadaísmo, frequentemente
desgasta os significados comuns e expõe em seus trabalhos o status convencional
das palavras, sempre sujeitas a alusões, trocadilhos e anagramas. Em Apolinère
Enameled (1916-17) (fig. 18), por exemplo, o anúncio de uma tinta sintética é
transformado em uma homenagem a Apollinaire. As palavras possuem pronúncias
similares, mas significado e escrita diferentes. Com Duchamp, a arte vai do campo
perceptual ao conceitual.

Fig. 18: Marcel Duchamp, Apolinère Enameled, 1916-17. Guache e grafite sobre cartão, 24.4 x 34
cm. Fonte: https://philamuseum.org/collection/object/51563

Em Berlim, Raoul Hausmann (1886-1971) produz seus trabalhos utilizando-se


da estética do pôster, apropria-se da tipografia moderna para “purificar formas
decadentes da cultura de massa”. O artista usa letras não como parte de um código,
mas como fenômenos ópticos. Na obra “ABCD” (1923-24) (fig. 19), a técnica de
fotomontagem é aplicada para imitar a estrutura dos jornais e anúncios. O trabalho
conta com uma foto do próprio artista com a boca aberta, onde estão as quatro
primeiras letras do alfabeto. O resultado parece agir como uma esquematização de
um estado mental, remetendo ao papel do artista na era tecnológica: um artista-
trabalhador integrado ao caos da existência urbana moderna (MORLEY, 2005: 67).
Em Hanover, o artista Kurt Schwitters (1887-1948) cria uma nova palavra,
Merz, para designar seu próprio trabalho. Retirada de Commerz-und-Privat-Bank, a
palavra define a produção multimídia realizada por Schwitters, que envolve a
colagem de detritos acumulados das cidades. Coisas ignoradas, sem valor
econômico ou estético, são ressignificadas em suas obras, nas quais elementos
existentes do mundo parecem ganhar mais destaque que uma suposta realidade
interior do artista. As conexões com as coisas do mundo transportam o trabalho do
artista inclusive para a tridimensionalidade, dando origem à Merzbau, construção de
sua própria casa a partir da colagem em várias dimensões. Considerado o precursor
22

da instalação, Schwitters estabelece uma relação direta de sua obra com o


ambiente. A partir de seus trabalhos, a relação entre mundo e imagem é expandida,
a arte sai da galeria e adentra a realidade.

Fig. 19: Raoul Hausmann, ABCD, 1920. Colagem,15,1 x 10,1 cm. Fonte:
https://www.metmuseum.org/art/collection/search/265584

Por fim, o Surrealismo também merece ser mencionado como vanguarda


pautada pela linguagem. Apoiado na psicanálise freudiana, o Primeiro Manifesto
Surrealista (1924), escrito por André Breton (1896-1966), defende uma arte que vá
contra um caráter racional, priorizando a relação entre imaginação e linguagem.
Para Breton, a semântica e a sintaxe devem agir não a serviço da razão, mas para
dar voz ao inconsciente e ao desejo. No Segundo Manifesto Surrealista(1929),
defende-se que a essência da realidade seja destilada da linguagem, ou seja, o
Surrealismo contraria as demais vanguardas modernas. O movimento preza mais o
conteúdo verbal da linguagem do que sua forma material, já que a palavra, para os
surrealistas, é vista antes de tudo como portadora de significado.
René Magritte (1898-1967), reconhecendo o fracasso da linguagem ao
reproduzir a realidade, satiriza as convenções entre palavra e imagem. A escrita é
percebida como um código construído, no qual o reduzido conjunto de palavras que
temos a nosso dispor não é capaz de cobrir o imenso território da realidade. Assim,
tratar de questões complexas, como o sentido da vida, com palavras, não resulta em
clareza, mas em confusão (MORLEY, 2005: 86). “A interpretação dos Sonhos”
(1927) (fig. 20), obra que recebe o mesmo nome que o consagrado livro de Freud,
questiona as noções de representação e correspondência entre palavra e imagem.
23

Simulando um quadro negro escolar, Magritte dispõe quatro figuras distintas e,


abaixo de cada uma delas, o que parece ser sua descrição, em letra cursiva. O
estranhamento acontece quando percebemos que as palavras não representam a
mesma coisa que as figuras representam.
Na obra, apenas a descrição de uma das figuras, a da esponja, corresponde
à imagem representada. No entanto, até mesmo a esponja não é uma esponja. Em
“A traição das imagens” (1928-29), a representação de um cachimbo é seguida pela
inscrição: Ceci n’est pas un pipe (Isto não é um cachimbo). A emancipação do uso
convencional da linguagem, na obra, revela os limites da representação. A imagem
da coisa nunca é a coisa em si. A imagem do cachimbo não equivale nem substitui o
cachimbo, logo, não é um cachimbo. A perda desses laços representativos chega a
ser existencial, causando dúvida sobre o que se pode confiar ou não a respeito da
linguagem.
A obra é “um caligrama secretamente constituído por Magritte, em seguida
desfeito com cuidado” (FOUCAULT, 1988: 21). O caligrama, como visto
anteriormente, é composto por uma dupla grafia, visual e verbal, palavra e imagem
trabalham juntas para construir um sentido comum. Em “A traição das imagens”, o
elemento verbal contraria o elemento visual, para que ambos sejam percebidos
como representações que, afinal, contrariam a coisa ali representada. O trabalho
evidencia como, equivocadamente, “uma palavra pode tomar o lugar de um objeto
na realidade, assim como uma imagem pode tomar o lugar de uma palavra numa
proposição” (FOUCAULT, 1988: 50).

Fig. 20: René Magritte, A Interpretação dos Sonhos, 1927. Óleo s/ tela, 38 x 55 cm.
Fonte: Neue Pinakothek, Munich, Germany

4.4. A arte do pós-guerra

No Ocidente, o alfabeto é formado por uma série de sinais gráficos que


descrevem sons. Já o alfabeto chinês, por exemplo, é composto por figuras
abreviadas, signos que guardam íntima relação com a ação representada. Na arte
24

europeia e americana do pós-guerra, é comum encontrar obras que remetem à


escrita ideogramática oriental. Isso porque os artistas nutriam o desejo por uma
linguagem universal, com signos capazes de eliminar o abismo entre significante e
significado. Uma linguagem pautada no aspecto visual e no físico, existente fora de
determinações culturais. Por isso, a caligrafia oriental é resgatada como exemplo
genuíno da escrita que depende do gesto corporal para acontecer. Buscava-se uma
pseudo-escrita, livre de códigos e diretamente vinculada ao corpo, uma expressão
gráfica pré-linguística realizada de forma não mecânica. Os artistas, portanto,
visavam atingir o “grau zero” da escrita:

A escrita no grau zero é no fundo uma escrita indicativa (…); é antes uma
escrita inocente. Trata-se de ultrapassar aqui a Literatura, entregando-nos a
uma espécie de língua básica, tão afastada das linguagens vivas como da
linguagem literária propriamente dita. Esta fala transparente, inaugurada pelo
Estrangeiro de Camus, realiza um estilo de ausência que é quase uma
ausência total de estilo (BARTHES, 1997: 64).

Barthes define como “grafismo” o ato de escrever, isto é, a escrita que não
está voltada para a leitura, mas para o gesto do corpo, da mão, o dispêndio de
energia realizado na inscrição. A legibilidade é comprometida em prol de uma
comunicação direta e não mediada, produzida por um impulso do corpo. Essa noção
faz com que o artista francês Jean Dubuffet (1901-1985), defensor da Art Brut,
passe a olhar para manifestações marginais, como as produzidas em hospícios,
cadeias e por crianças, muitas vezes consideradas sem sentido.
Segundo o artista, as pessoas tidas como insanas precisam ter seu valor
reconhecido, já que a aparente normalidade ocidental havia levado ao Holocausto.
Dubuffet busca uma expressão pura, impulsiva e não tocada pela cultura artística.
Em “Wall with Inscriptions” (1945) (fig. 21), pode-se fazer uma analogia entre a obra
do artista e uma parede urbana. O “grau zero” de Barthes aparece aqui como uma
ode ao primal e visceral ao invés do sofisticado e intelectual.

Fig. 21: Jean Dubuffet, Wall with Inscriptions, 1945. Óleo sobre tela, 99.7 x 81 cm.
Fonte: https://www.moma.org/collection/works/79071
25

Não há pintura sem corpo. No entanto, com o avanço das técnicas de


impressão, a presença corporal é progressivamente negligenciada pela sociedade
em detrimento da precisão mecânica. A arte oriental, nesse sentido, surge para os
artistas como possibilidade de evocar a ação corporal geradora da escrita. A
caligrafia oriental é concebida menos como um estilo imposto e mais como exemplo
de força expressiva, um traço com fim em si mesmo.
Nos Estados Unidos, a vontade de liberar o gesto do código faz com que os
artistas americanos do pós-guerra produzam um tipo de pintura não-linear, com
traços dinâmicos que ocupam todo o espaço da tela. A influência da escrita manual
no Expressionismo Abstrato é evidente, o movimento possui ligação com vários tipos
de escrita arcaica não ocidentais. Jackson Pollock (1912-1956), por exemplo, era
particularmente interessado por formas primitivas de notação gráfica dos nativos
americanos. “The She Wolf” (1943) (fig. 22), uma de suas pinturas iniciais,
representa um estilo de transição entre o Cubismo e o Expressionismo Abstrato,
pelo qual Pollock é mais conhecido.

Fig. 22: Jackson Pollock, The She Wolf, 1943. Óleo e guache s/ tela, 106.4 x 170.2 cm.
Fonte: https://www.moma.org/audio/playlist/287/3723

Em seus trabalhos maduros, Pollock evidencia o gesto espontâneo e o


registro direto do movimento corporal. A partir de 1947, ele abandona a caligrafia e
parte para um modo mais elementar de pintura, com telas de grandes extensões
colocadas no chão. A gravidade trabalha juntamente com o corpo, determinando a
distribuição da tinta. A escala, a distribuição e qualidade das marcas produzidas
transformam o processo em uma espécie de dança ou embate: a tela vira arena e a
pintura vira evento (MORLEY, 2005: 109).
Outro artista americano que merece destaque é Cy Twombly (1928-2011).
Sua pintura nos aparece como se fosse uma parede, na qual o artista utiliza os mais
diversos materiais, giz de cera, pincel, lápis, para fazer marcações. A
bidimensionalidade da pintura é sempre evidenciada, as possibilidades de inscrição
imitam a escrita, seu ritmo e sua orientação horizontal. Em alguns de seus trabalhos,
26

no entanto, seus traços não formam nada legível, a linguagem permanece como
possibilidade, não acontece de fato (fig. 23). É o chamado “campo alusivo da escrita”
(BARTHES, 1990: 144), no qual o gesto é mais importante que o produto. Twombly
retorna ao nível mais primordial da comunicação, onde os movimentos do corpo
precedem códigos culturais elaborados. Em 1957, o artista vai para Roma. As obras
realizadas nesse período possuem elementos legíveis, geralmente, referências ao
mundo clássico e à herança greco-romana, alusões que revelam a pintura como um
continente de narrativas em potencial. Essa forma de registrar anotações e
comentários na tela faz com que a brancura do suporte remeta não apenas à
parede, mas à página de um livro.

Fig. 23: Cy Twombly, Sem título, 1970. Óleo e giz de cera sobre tela, 405 x 640,3 cm. Fonte:
https://www.moma.org/collection/works/80088

A semelhança com a escrita em paredes, presente nas obras de Dubuffet e


Twombly, pode ser observada mais diretamente nos trabalhos de Jean-Michel
Basquiat (1960-1988). De fato, o artista começou sua carreira fazendo inscrições
nos muros de Nova York: escrevia a sigla “SAMO” (Same Old Shit) (fig. 24). O
graffiti, que havia se tornado popular na cidade durante a década de 1970, pode ser
interpretado como uma atitude expressiva indiferente à arte contemporânea. As tags
(assinaturas) constituem uma forma demótica de escrita no contexto urbano que,
caracterizada pela agressividade do vandalismo, exige que a marcação nos muros
seja executada de maneira imediata.
Na década de 1980, as obras de Basquiat foram rapidamente absorvidas pelo
mercado das galerias, tendo em vista a "revitalização" da arte, já que a influência do
graffiti em seus trabalhos era tida como algo “primitivo”, autêntico, que renovaria o
cenário artístico. O trânsito visual e verbal entre baixa e alta cultura em suas obras é
extremamente marcante, o artista se utiliza de diversos materiais, como carvão,
caneta, pastel e tinta acrílica, criando formas acessíveis e espontâneas pautadas
pela improvisação.
27

Fig. 24: Henry Flynt, Samo Graffiti, Portfolio Nova York [New York], 1979. Fotografia [Photograph]
Coleção particular [Private Collection]
Fig. 25: Jean-Michel Basquiat, Sem título [Untitled], 1983. Acrílica e tinta a óleo em bastão sobre tela,
em 3 partes [Acrylic and oilstick on canvas, in 3 parts] 244 x 181 cm.
Fonte: https://www.bb.com.br/docs/portal/ccbb/JeanMichelBasquiat.pdf

4.5. A arte contemporânea brasileira

Fig. 26: Augusto de Campos, Ovonovelo, 1956. Fonte: Xavier, H. P. (2002). A evolução da poesia
visual: da Grécia Antiga aos infopoemas. Significação: Revista De Cultura Audiovisual, 29(17), p. 185
28

Fig. 27: Mira Schendel, Zeit, 1965. Papel japonês, 47,4 × 23 cm.
Fig. 28: Mira Schendel, Sem título (Objetos Gráficos), 1965. Monotipia sobre papel e acrílico
transparente, 100 x 100 cm. Fonte: https://www.moma.org/collection/works/108826

Fig. 29: Regina Silveira, Biscoito Arte, 1976. Foto/ photo: Gerson Zanini.
Fonte: https://reginasilveira.com/BISCOITO-ARTE
29

Fig. 30: Vista da exposição de Rubens Gerchman no segundo subsolo do MASP, 1974.
Foto: Romulo Fialdini

Fig. 31: Antonio Dias, Anywhere is my Land, 1968. Acrílico sobre tela, 130,00 cm x 195,00 cm.
Fonte: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66229/anywhere-is-my-land
30

Fig. 32: Anna Maria Maiolino, Capítulo II, da série Mapas Mentais, 1976. Coleção da artista.

Fig. 33: Forgotten Mantras, 2016 (detalhe). Aço inox colorido e gravado, ACM, alumínio anodizado,
161 x 161 7.5 cm Foto: Jaime Acioli. Fonte: http://anamariatavares.com.br/front/obras/detail/129
31

Fig. 34: Hotel, 2002. 25ª Bienal de arte de São Paulo, lâmpadas fluorescentes e estrutura metálica,
3 × 15 m. Fonte: https://carmelagross.com/portfolio/hotel-2002/

Fig. 35: Carmela Gross, Se vende, 2008. Painel luminoso, 3,30 × 13,50 m.
Fonte: https://carmelagross.com/portfolio/se-vende-2008/
32

Fig. 36: Waltercio Caldas, Como Imprimir Sombras, 2012. Acrílico moldado e gravado,
32 x 23 x 5 cm. Fonte: https://www.carbonogaleria.com.br/como-imprimir-sombras-prod.html

Fig. 37: Paulo Bruscky, Esta vitrine foi dedetizada contra arte, 2015.
Fonte: https://www.estudiodezenove.com/paulo-bruscky.html
33

Fig. 38: Paulo Bruscky, Anúncio de máquina de filmar sonhos, 1977.


Fonte: http://revistacaju.com.br/tag/arte-veiculo/

5. RESULTADOS PRÁTICOS

5.1. “Entupidora” (2021) e “Desvendo” (2021 -22)

Partindo das noções estabelecidas pela semiótica de C. S. Peirce, o


desdobramento realizado a seguir procura iniciar uma breve reflexão teórico-prática
acerca de determinadas discussões da linguagem, com destaque para o conceito de
tradução. Para isso, busca-se amparo tanto nos textos de Lucia Santaella, que
fornecem ampla introdução ao estudo dos signos em concordância com a filosofia
de Peirce, como nas publicações de Haroldo de Campos, poeta concreto que
cunhou o termo “transcriação”. A investigação, ao invés de evidenciar a relação
entre a semiótica peirceana e a consolidação da poesia concreta, tem como foco
principal, na verdade, discutir o que seria a transcriação, colocando em jogo as
implicações existentes no ato de se traduzir determinada informação.
Pretende-se, do mesmo modo, analisar o que o poeta entende por
“informação estética”, conceito que Haroldo toma do filósofo e semioticista Max
Bense para explicar os impasses da tradução. Dessa maneira, tenta-se
compreender o que levaria a mera transcrição ao status de transcriação, refletindo
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sobre os limites entre arte e comunicação. Por fim, as considerações de Julio Plaza
e Giuliano Tosin, artistas que se apropriam e discorrem sobre o que seria transcriar,
também serão comentadas.
Dentre as contribuições de Peirce aos estudos da linguagem, está a
concepção de uma gramática especulativa, a primeira etapa de sua semiótica,
sendo seguido pela lógica e, finalmente, a comunicação. De acordo com Santaella
(2002, p. 19), a gramática especulativa é um grande veículo para que possamos
investigar os signos e suas possíveis significações. É nela que encontramos as
definições de signo e suas maneiras de operar, além de classificações de tipos de
signos e misturas entre as mesmas. Faremos uso da gramática especulativa para
compreender o que seria, então, a linguagem. Sabemos que o signo é, por
definição, uma coisa que está no lugar de outra. Ele é significante quando, ao ser
percebido, remete a um elemento exterior, ou seja, ocorre uma associação do signo
a algo que difere dele mesmo, ele indica ou representa uma outra coisa. Podemos
dizer, grosso modo, que a linguagem ocorre por meio dessa associação. É a relação
entre os signos que percebemos e as lembranças que associamos a eles.
Sabe-se que a gramática especulativa de Peirce funciona de maneira
tripartida. Ou seja, os signos podem ser classificados e analisados, essencialmente,
por meio de três vias. Um determinado signo pode ser compreendido em relação a
ele mesmo, considerando suas qualidades interiores; em relação àquilo que indica
ou representa, o objeto do signo; e, por último, levando em consideração seus
efeitos, as interpretações que é capaz de suscitar nos receptores. São, então, três
os níveis de consciência nos quais Peirce baseia a leitura dos signos: a
primeiridade, que seria a consciência da qualidade do sinal expressivo percebido; a
secundidade, a consciência do outro, o estágio reativo da percepção; e a
terceiridade, o estágio definido pela síntese que o intérprete é capaz de realizar
diante de determinado signo.
Cabe, agora, tentar compreender como as definições de Peirce podem ser
aplicadas não só em uma mensagem meramente referencial, mas em uma
mensagem estética, ou, como Max Bense denominaria, uma informação estética.
Haroldo de Campos, parafraseando Bense, afirma que a informação estética
“transcende a semântica, no que concerne à imprevisibilidade, à surpresa, à
improbabilidade da ordenação de signos” (CAMPOS, 1992: 32). Assim, a informação
estética possui um caráter essencialmente frágil, o que a diferencia da informação
documentária, voltada ao registro, e da informação semântica, isto é, que está além
do observável. A informação estética, portanto, carrega a fragilidade da essência.
Essa “fragilidade” da informação estética pode ser percebida com clareza
quando tentamos traduzi-la. É aí que se faz necessário refletir sobre quando a mera
transcrição de uma informação não é possível, situação em que qualquer tentativa
de tradução acabaria alterando a própria natureza da informação. Desse modo, a
tradução de uma informação estética daria origem a uma outra informação,
totalmente inédita, o que Haroldo chama de “transcriação”. Sobre esse fenômeno,
Giuliano Tosin afirma:

Criação original e transcriação são operações gêmeas. A segunda se


abastece da primeira e nela interfere, trazendo à tona uma nova invenção.
Consta de uma realização motivada por outra, que utiliza esta como uma
fagulha para sua criação. Para definir os aspectos da nova obra, o
transcriador necessita de um insight fundamental, que determinará as
estratégias e diretrizes a serem adotadas, e deixará claras as intenções de
um determinado projeto. Independente do nível de interferência aplicado a
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um caso, para que este seja considerado uma transcriação, precisa deixar
explícito que se opõe à tradução literal e servil e rompe com qualquer
comprometimento em transmitir fielmente a obra original. Esta é quem serve
à transcriação, fornecendo-lhe o conteúdo a ser modificado, com uso de
outras mídias. (TOSIN, 2014: 65)

Assim, pode-se dizer que o tradutor de uma informação estética é, também,


um criador. A tradução, portanto, é compreendida “como prática crítico-criativa na
historicidade dos meios de produção e re-produção, como leitura, como
metacriação, como ação sobre estruturas eventos, como diálogo de signos, como
síntese e reescritura da história” (PLAZA, 1987: 14).
Os exercícios a seguir, inicialmente, possuíam como intuito trabalhar a noção
de legi-signo, ou seja, um signo cujo significado é determinado por uma lei,
funcionando como um código, uma convenção cultural que não guarda relação
formal com o objeto do signo. Portanto, os símbolos e seus possíveis argumentos
seriam explorados com o objetivo de produzir um interpretante advindo de um hábito
associativo. A ideia de linguagem estabelecida anteriormente seria central: um signo
percebido que é associado a uma lembrança anterior. A partir daí, seria possível
gerar certo estranhamento no receptor, através de uma pluralidade de significados
atribuídos ao mesmo signo. Isto é, a expectativa do intérprete seria interrompida
pela intromissão de um argumento que, em geral, não pertence àquele símbolo.
As imagens seguintes procuram explorar as fronteiras entre arte e
comunicação, concedendo importância à corporificação material (secundidade) dos
trabalhos, o que reforça a ideia de que, “para existir, a qualidade tem de estar
encarnada numa matéria.” (SANTAELLA, 1983: 47). "Entupidora" (fig. 39) e
"Desvendo" (fig. 41 a 44) surgem de apropriações de anúncios tipicamente colados
em postes. A proliferação de signos presente no espaço urbano faz com que ambos
os trabalhos se percam no ambiente em que são dispostos. Para os transeuntes
atentos, entretanto, as imagens certamente causam estranhamento, como em "Mije"
(fig. 40), de Paulo Bruscky, que brinca com a tipografia das fachadas das casas para
ordenar uma ação de desordem. Enquanto "Desvendo" cria um jogo de palavras, em
um anti-anúncio que se quer “desver”, “desvender” e/ou “desvendar”, "Entupidora" é
quase um poema concreto, em um mantra que possui as mesmas palavras
comumente utilizadas em anúncios de desentupidora. Pretende-se dar continuidade
aos trabalhos, sobretudo “Desvendo” que, por meio da estética de anúncios de
cartomancia, dialoga mais diretamente com a circulação de bens e serviços no
espaço urbano. Este último conversa, ainda, com a obra “Se vende” (fig. 35), de
Carmela Gross, que soa como uma ordem ao espectador, sugerindo que ele venda
a si mesmo.
A gramática especulativa de Peirce, mesmo que brevemente estudada,
parece ter contribuído para os resultados práticos, a fragilidade da informação
estética é a característica que mais se sobressai durante o processo. A ambiguidade
entre mensagem referencial e estética também sai como um fator importante. Os
trabalhos, no geral, pretendem formular uma informação estética a partir de jargões
referenciais. As fronteiras entre o que é arte e o que é comunicação, como afirmaria
Santaella, parecem ficar cada vez mais nebulosas, sobretudo nos falsos anúncios,
que evidenciam como a especificidade do contexto é parte fundamental da obra.
Outro aspecto central na concepção do que foi realizado é a presença do
trabalho no espaço urbano. Não apenas sua presença, mas como depende
diretamente desse espaço para existir. Tudo que foi produzido está diretamente
ligado à linguagem da publicidade nas ruas, logo, qualquer deslocamento do
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trabalho faria com que o mesmo perdesse um elemento importante de sua proposta.
Isso porque os símbolos utilizados são comuns à cidade, transferir o trabalho para
outro lugar limitaria a própria leitura que o espectador poderia fazer dele.
Tassinari (2001) diria que, com a modernidade, espaço da obra e espaço do
mundo se confundem. Assim como elementos do mundo passam a invadir o espaço
da obra, o contrário também acontece. A diferença é que, quando no espaço do
mundo, a obra de arte corre o risco de não ser reconhecida como tal. Isso acontece
porque a obra se confunde com o mundo. Entretanto, o trabalho não precisa ser
reconhecido como arte para dar certo, basta ser reconhecido como algo que, de
certa forma, contradiz a própria linguagem que o constitui, a linguagem do mundo.

Fig. 39: Entupidora, 2021. Autoria nossa.


Fig. 40: Paulo Bruscky, Mije, 1982. Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Paulo-Bruscky-Mije-
1982-Source-Bruscky-and-Navas-2012-p-54_ fig79_320270027
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Figuras 41 a 44: Estudos para “Desvendo”, 2022. Autoria nossa.


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Fig. 45: Desvendo, primeira versão, 2021. Autoria nossa.

Fig. 46: Desvendo, última versão, 2022. Autoria nossa.


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5.2. Exercícios

Fig. 47: Sem título, 2021. Colagem sobre papel, 21 x 30 cm. Autoria nossa.

Fig. 48: Sem título, 2021. Colagem sobre papel, 21 x 30 cm. Autoria nossa.
40

Fig. 49: Sem título, 2021. Giz pastel sobre papel, 21 x 15 cm. Autoria nossa.

Fig. 50: Sem título, 2021. Giz pastel sobre papel, 21 x 12 cm. Autoria nossa.
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Fig. 51: Sem título, 2021. Serigrafia sobre papel, 21 x 30 cm. Autoria nossa.

Fig. 52: Sem título, 2021. Serigrafia sobre papel, 21 x 30 cm. Autoria nossa.
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Fig. 53: Sem título, 2021. Autoria nossa.

6. CONCLUSÃO

A pesquisa previa um mapeamento da presença de códigos da escrita em


trabalhos artísticos, entretanto, seus resultados proporcionaram um entendimento
teórico e histórico que ultrapassa seus objetivos. Apesar da brevidade com que cada
tema foi tratado ao longo do texto, a soma dos recortes escolhidos acabou sendo de
grande auxílio na formulação de reflexões teórico-práticas a respeito de um
processo individual. As referências indicadas, bem como o acompanhamento da
disciplina CAP0205 – Palavra, Imagem e Intervenção, foram fundamentais para
estimular o desenvolvimento de uma discussão acerca de uma poética própria.
O estudo do diálogo entre palavra e imagem, todavia, ultrapassa o campo das
Artes Visuais. Ele contribui, antes de tudo, para a compreensão da constituição da
vida humana em sociedade, como desenvolvemos nossa comunicação e os
impasses que constituem o uso da linguagem. A crise da representação mostrou-se
bastante frutífera ao longo da pesquisa, a partir dos trabalhos artísticos levantados,
foi possível notar o caráter indissociável da relação que a arte possui com
questionamentos filosóficos e políticos.
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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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