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Terapia Fonoaudiológica na Fala (como eu trato) – Marileda Cattelan Tomé

Capítulo 11
Terapia Fonoaudiológica na Fala
(como eu trato)

Marileda Cattelan Tomé

No escopo dos distúrbios de que trata a Fonoaudiologia, as alte-


rações de fala ocupam um lugar de destaque. Apesar de não termos dados
epidemiológicos concretos, a quantidade de trabalhos produzidos na área,
especialmente nas últimas duas décadas, apontam que são muito comuns
as alterações ligadas a “erros de fala”, seja de ordem fonética, seja de ordem
fonológica. Isso somente intensifica a premissa de que o fonoaudiólogo, em
algum momento de sua vida profissional, será procurado por alguém com
queixa de alteração na fala.
Em se tratando de erros de fala é importante retomar em que dire-
ção estamos falando. Dentro das classificações das alterações da fala, Zorzi
(1998) aponta para categoria de erros de origem musculoesquelética, por-
tanto, pertencentes a etapa de processamento motor da fala. Nesse capítulo
trataremos de alterações da fala dessa ordem, ou seja, dos complexos mo-
vimentos necessários para a fala que estão prejudicados por alteração em
estruturas ósseas e ou musculares e outras funções orofaciais.
Ao final dos cinco ou seis anos a criança já tem o sistema fonológi-
co praticamente completo, entretanto, desvios fonológicos, que caracterizam
um sistema linguístico simplificado, ainda podem ocorrer (Wertzner, 2004). Da
mesma forma, distorções dos sons da fala também podem ocorrer, principal-
mente na presença de fatores de origem estrutural. De forma geral, quando
existem erros motores permanentes na produção de um som sob o ponto de
vista articulatório, estaremos diante de alterações fonéticas. Nestes quadros o
sujeito consegue produzir contrastes entre o som distorcido e os demais sons
da língua, ou seja, ocorre a substituição de um som padrão por um som não pa-
drão, evidenciando que não há falhas no sistema fonológico (Wertzner, 2004).
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Erros dessa ordem são chamados de desvios fonéticos ou, por al-
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guns autores, distúrbios articulatórios, e pertencem ao aspecto motor da lin-


guagem. Envolvem falhas relativas a tempo, direção, pressão, programação
e integração dos movimentos da articulação, que resultam na ausência ou
inadequação dos fones (Santana et al, 2010).
O desvio fonético, segundo Costa (2009), irá ocorrer quando existir
uma inadequação ou um déficit na articulação da fala. Estruturas ósseas e ou
musculares e outras funções orofaciais alteradas serão as responsáveis pelas
alterações na fala. Aqui se situam as alterações relacionadas a lábios, língua,
bochechas, palato mole, dentes, maxila e mandíbula, faringe e laringe, mus-
culatura da respiração, alterações da face e da boca e de suas estruturas,
alterações na oclusão, respiração oral, aumento ou diminuição da quantida-
de de saliva, frênulo alterado, língua com macroglossia, alterações da ATM,
piercings linguais, próteses dentárias, dentre outros (Marchesan, 2004). En-
tre esses fatores que podem colaborar para o aparecimento de alterações na
fala, situam-se os que são internos ao indivíduo, como as tonsilas hipertrófi-
cas e outros externos, como a presença de próteses dentárias.
Entre os fatores internos, modificações das estruturas e/ou espaço
intraoral são os responsáveis pelas frequentes distorções na fala (Oliveira e
Oliveira, 2004). Modificações estruturais da cavidade oral, tais como atresia
do arco superior, má oclusão, face muito curta ou outras alterações decor-
rentes de traumas ou cirurgias, alteram os pontos articulatórios ocasionando
uma fala com distorções ou imprecisões, o que é bastante comum em sons
fricativos e líquidos, especialmente por dependerem em grande parte da lín-
gua enquanto órgão fonoarticulatório, sendo esta o órgão que parece ser o
mais passível de colaborar para a alteração de fones (Farias et al 2006; Fon-
seca et al 2003; Casarin et al, 2006).
De acordo com Marchesan (2010), no estudo geral das alterações
de fala, estruturas ósseas e/ou musculares e outras funções orofaciais têm
sido menos descritos na literatura. O que se observa é um movimento na
tentativa de compreender as especificidades de cada quadro em que se
verificam tais alterações. Como afirma Marchesan (2004) “saber que o in-
divíduo fala errado e identificar o que ele faz é, de maneira geral, bastante
simples, porém, compreender a natureza dos erros (....)” representa o real
e importante papel que o profissional tem ao estabelecer seu protocolo
de tratamento.
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Primeiramente, os estudos se deram no processo de avaliação na

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área de MO. Para tal, os autores sugeriram protocolos mais objetivos com
a possibilidade de quantificar os dados da avaliação (Genaro et al, 2009),
inclusive de forma escalar (Felício e Ferreira, 2008), demonstrando que a ava-
liação miofuncional orofacial pode ter instrumentos com boa sensibilidade e
especificidade (Folha, 2010).
Concomitantemente, muitos outros estudos têm se derivado e o
momento parece ser o de entender a especificidade de cada quadro em par-
ticular. Na área da fala, especificamente, pesquisas têm sido desenvolvidas
com o objetivo de elucidar melhor sobre qual seja a relação entre alterações
de fala, praxias orais e estruturas do sistema estomatognático (Fonseca et
al, 2003; Casarin et al, 2006; Farias et al, 2006; Marini,2010; Costa, 2011;
Gubiani, 2011).
Ainda há um caminho a percorrer na tentativa de compreender
como uma alteração miofuncional, ou simplesmente o rebaixamento de tô-
nus/tensão em uma determinada estrutura que participa da fala, poderá in-
terferir/alterar a praxia não-verbal realizada por esta determinada estrutura
e/ou causar alterações na fala. Apesar de haver correntes na literatura que
negam veementemente essa relação (Lof e Watson, 2010; Lof , 2009), outros
a defendem, inclusive como abordagem para o tratamento das alterações
da fala (Marshalla, 2012). Lof (2009) aponta que, se os clínicos objetivam
melhorar a fala, devem trabalhar atividades que estejam diretamente ligadas
à própria fala. Se o objetivo é produzir fala inteligível, fortalecer órgãos fo-
noarticulatórios ou trabalhar sua mobilidade, na visão do autor, não garante
melhora na fala, uma vez que esta é considerada uma função complexa e não
uma simples atividade motora.
Em nosso país pesquisas recentes têm sido realizadas nessa área,
demonstrando que a temática ainda merece maior investigação (Fonseca et
al, 2003; Casarin et al, 2006; Farias et al, 2006; Costa, 2010; Gubiani, 2011).
É inegável que a precisão dos pontos articulatórios sofre influên-
cia da presença e posição dos dentes, da mobilidade de lábios e de boche-
chas, da posição e mobilidade de língua e posição de mandíbula, entre ou-
tros (Bianchini et al., 2003; Cunha et al,2003; Tomé et al, 2004). Farias et al
(2006) chamam atenção ao fato de que é importante conhecer as caracte-
rísticas estruturais e funcionais dos articuladores da fala quando se avalia a
produção dos sons. Geralmente as alterações na emissão dos fones ocorrem
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devido a uma modificação no órgão articulador que irá adaptar-se à alteração
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estrutural ou condição muscular para conseguir a produção. Surgem então as


distorções, imprecisões e travamentos articulatórios. Alguns indivíduos con-
seguirão fazer compensações quase imperceptíveis ao olho e ouvido huma-
no, enquanto outros não têm o mesmo êxito.
Nesses casos, por exemplo, o contraste entre um som distorcido
e os demais sons da língua é mantido, diferente da substituição onde uma
classe de sons é substituída por outra e um som padrão é substituído por um
som não padrão (Leite et al, 2008). Os indivíduos que distorcem, estão bus-
cando ajustes ou compensações para uma fala mais inteligível (Casarin et al,
2006) e cabe ao profissional compreender tais compensações para abordá-
-las terapeuticamente.
Nesse sentido, as pesquisas relativas à fala, com e sem alteração,
têm avançado e o campo da motricidade orofacial, dentro das alterações de
origem musculoesqueléticas, têm recebido várias contribuições.
Com o objetivo de verificar a existência de relação entre a fala, o tô-
nus e a praxia não-verbal do sistema estomatognático em pré-escolares, Farias
et al (2006) avaliaram 120 pré-escolares com idades variando entre quatro e
cinco anos e 11 meses. Foram avaliados, inicialmente, o tônus e a mobilidade de
lábios e de língua, tendo em vista que as alterações do tônus e da mobilidade
podem interferir na avaliação da praxia não-verbal. As autoras indicaram haver
relação entre o tônus e a praxia não-verbal de língua, sugerindo que a condição
muscular pode interferir na realização de sequência de movimentos de língua.
Da mesma forma os achados, evidenciaram a influência da praxia não-verbal
de língua sobre a produção dos sons da fala e sugerem que o exercício das ha-
bilidades práxicas não-verbais pode minimizar as alterações de fala.
Fonseca et al (2003), por sua vez, com o objetivo de investigar a
relação entre a produção do r-fraco e as praxias linguais, estudaram um gru-
po de crianças com produção adequada do fone [r] e outro grupo que não
o produzia. Entre outras, as autoras concluíram que o grupo que não tinha
o som em seu inventário teve dificuldade na realização de algumas praxias
linguais, evidenciando a necessidade de discussão da relevância de aspectos
fonéticos e fonológicos no processo de aquisição do r-fraco, assim como no
planejamento terapêutico de indivíduos com desvio de fala.
Costa (2011) mostrou que a abordagem miofuncional foi eficiente
nos casos de desvio fonológico, fonético e fonético-fonológico, uma vez que,
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com a minimização das alterações funcionais, minimizam-se as alterações de

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fala. Em relação às estruturas, as relacionadas à língua, foram as que mais
influenciaram na produção dos fones, e a tensão muscular diminuída era a
que apresentava maior influência.
Tendo em vista que a avaliação em motricidade orofacial contem-
pla vários aspectos relativos à morfofisiologia do complexo sistema esto-
matognático, pesquisas que abordem temáticas como tônus, praxias orais,
funções orofaciais e modelos de terapêutica, têm importantes contribuições
para a clínica. De forma geral, o que precisa ser efetivado, é a realização de
pesquisas com número amostral ampliado, a fim de verificar, entre outros, a
eficiência da abordagem miofuncional nas diferentes alterações de fala, con-
forme recomendam os pesquisadores dessa área (Costa, 2011).
Entre as principais alterações de origem musculoesquelética, com
resultantes na fala, estão a distorção, entendida como os ajustes ou com-
pensações utilizadas para a produção de um som ou um grupo de sons; a
imprecisão, quando a fala aparece imprecisa como um todo e não em sons
específicos; e como travamento, quando há diminuição da abertura de boca
para a produção da fala (Marchesan 2004).
As distorções nos sons fricativos e líquidos são bastante comuns.
O fone [s] é classificado como fricativa alveolar, necessitando de uma fricção
leve em região alveolar inferior, sem que a língua ultrapasse essa fronteira
em relação aos dentes. Concomitantemente, as laterais da língua deverão ser
elevadas em direção a maxila , impedindo que o fluxo de ar saia pelas laterais
das arcadas dentárias. Alterações da forma da arcada dentária, somadas a
hipofunção da musculatura de língua, principalmente, tendem a ser os fato-
res associados mais frequentes nos quadros de ceceio anterior e lateral. O [r]
fraco, por sua vez, é articulado na parte anterior da cavidade oral, por uma
corrente de ar que impulsiona a língua até os alvéolos, que em movimen-
tos rápidos e repetidos produzirão a característica acústica normal do som.
Quando não ocorre a elevação da ponta da língua até a região dos alvéolos,
mas sim a elevação de sua porção médio posterior, resultará em uma distor-
ção desse som, produzindo-se um som semelhante ao [g].
Se a fala é o resultado do planejamento e execução de sequências
de movimentos que requerem coordenação neuromuscular muito precisa
(Wertzner, 2004), esmiuçar cada som alterado acima descrito é a primeira eta-
pa do trabalho. De forma geral, na motricidade orofacial, cada movimento
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assumido pelo órgão fonoarticulatório, cada maneira de executar uma deter-
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minada função, pode ser um indício a mais sobre o motivo pelo qual um de-
terminado fone está alterado. Tomemos, como exemplo, a ocorrência de uma
distorção em fricativa, derivando em um quadro de ceceio anterior ou lateral.
O primeiro passo nesses casos é compreender as peculiaridades de como é
o movimento alterado. Em um caso de ceceio lateral, trabalhar afilamento
lingual, tonificação de laterais de língua e exercícios que promovam com que
esta estrutura assuma uma posição o menos alargada possível e mais cen-
tralizada na cavidade oral, pode ser o caminho para chegar ao ponto do som
correto. O caminho para a correção virá tanto pelos exercícios, acima exem-
plificados, quanto pelo treino da postura lingual durante funções de que a es-
trutura participe (por exemplo, deglutição e mastigação) e, também, durante
o repouso. Assegurado que a estrutura está ganhando esta nova forma, con-
comitantemente, é importante dar o modelo visualmente, mostrando passo a
passo como o som é produzido e, principalmente, auditivamente, mostrando
a diferença entre um som chiado/com ruído de saliva (que é a característica
do ceceio lateral) e um som de fricção limpa, fluida, que é a característica do
fone fricativo [s], corretamente produzido.
Nesse aspecto é interessante contar com o uso de imagens em ví-
deo e suas possibilidades em relação a velocidade (normal, slow motion, con-
gelamento de imagem). Tais registros auxiliam terapeuticamente para além
de uma ferramenta avaliativa, uma vez que em terapia o sujeito tem como
analisar detalhes de imagem, comparar, e, portanto, perceber-se melhor.
Além disso, a análise de quais são passíveis de serem pronuncia-
dos corretamente dentro da mesma classe de sons, costuma ser bastante
importante. Extrair o som de um outro da mesma classe, é uma forma de
estratégia. Por exemplo, quando as africadas [ tʃ ] e [dʒ] não estiverem alte-
radas, e isso é bastante comum, pode-se extrair o som correto do [ ʃ ] e [ʒ] a
partir da produção destas, apenas fazendo um ajuste leve no posicionamento
lingual. Quando as fricativas palatais [ ʃ ] e [ʒ] não estiverem alteradas, estas
podem servir de apoio para a produção das alveolares [s] e [z], que são as
mais prováveis de estarem distorcidas. Nesse sentido, é a representação do
som correto e o que se produz por meio deste que vai servir de modelo para
a construção do novo som. Em determinado momento da terapia, após re-
petição de sequências do som correto partindo para o que se quer trabalhar,
solicita-se ao paciente que apenas pense no som correto, mas que, em seu
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lugar, produza efetivamente aquele que está sendo trabalhado. Então, o que

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se propõe é uma aproximação do som correto com precisão e coordenação
articulatória, para se chegar na correção do som alterado.
No caso do [ ʃ ] para [s], o sujeito deverá fazer um [ ʃ ] prolongado,
consciente do local que as laterais da língua estão posicionadas e do som que
ouve e, durante o prolongamento, modificar a posição de ponta de língua,
do “quase contato” com a região incisal superior para o “leve contato” com
o alvéolo inferior, resultando no som de [s] por aproximação. Pistas visuais,
auditivas e táteis-cinestésicas, permeiam todo o processo e cabe ao terapeu-
ta ser criativo o suficiente para utilizar desde recursos mais simples, como os
conhecidos “remos de ar”, até os mais sofisticados softwares para servirem
de base nesse processo.
No momento em que o sujeito conseguir fazer corretamente o som
por aproximação, deverá repetir em sequências (duas, três, quatro) e logo
após com variação de velocidade, de ritmos etc. Por fim, tudo é repetido
pensando no som do [ ʃ ], mas produzindo efetivamente o som do [s]. Todas
as etapas serão trabalhadas com base em lista de palavras com o fone [s], no
caso de ceceio lateral, seguido de diferentes vogais, em sílabas tônicas e áto-
nas e nas posições de início de sílaba e início de palavra (onset inicial), início
de sílaba dentro de palavra (onset medial), final de sílaba e dentro de palavra
(coda medial) e final de sílaba e final de palavra (coda final), sempre que pos-
sível. Vale ressaltar que, na intenção de instalar o som correto, inicialmente é
interessante que se trabalhe com pseudopalavras, já que nesse caso não há
um modelo prévio de produção registrado no sistema do falante.
Ao terapeuta cabe estar atento às produções científicas que, pro-
duzidas pelos especialistas em Fonoaudiologia, irão sustentar suas práticas.
Os resultados do trabalho de Leite et al (2008) servem de exemplo ao que se
demonstra no caso do [s]. O estudo foi desenvolvido, entre outros, com o ob-
jetivo de investigar a existência de correlação entre o ceceio e a tonicidade da
sílaba, a co-articulação com as diferentes vogais e as diferentes posições na
palavra e observar se alguns desses contextos facilitam a produção correta de
[s] e se poderiam ser indicados como recurso terapêutico. De acordo com as
autoras, as posições de ataque inicial e medial, parecem ser facilitadoras da
produção de [s] e devem, portanto, ser consideradas na escolha do recurso
e material a ser utilizado em terapia, mais uma vez denotando a importância
dos resultados das pesquisas cujo fim, auxiliam a prática clínica.
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A terapia, por mais que pensem alguns leitores, não é morosa. Na
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medida em que um sujeito descobre sua possibilidade de emitir um som di-


ferente do que sempre fez (e para isso o seu ouvido será trabalhado para que
perceba o som errado como estranho a si), seu sistema linguístico está “con-
taminado” e o caminho para a correção é uma questão de treino e de desejo.
Nesse sentido, ouvir e reconhecer o correto e o incorreto, como parte de um
trabalho perceptual auditivo, é fundamental. Costumo dizer para meus pacien-
tes que “treinamos no aclive para quando estivermos em linha reta seja mais
fácil ganhar a corrida”, uma vez que há um motivo pelo qual se treina um mes-
mo som de tantas formas diferentes. Em relação à questão do desejo, está for-
temente ligado ao relacional, aspecto que merece uma reflexão própria para a
qual teríamos que abrir um novo capítulo, mas que, felizmente, a motricidade
orofacial, pode usufruir de contribuições importantes de outras áreas.
De forma geral, pode-se dizer que o tratamento é de base multissen-
sorial (informação tátil, cinestésica e visual) como preconizado por Issler (1996),
com pistas fonéticas dirigidas para a percepção do som alterado e a sua correção.
Informações advindas da cinestesia e tato permitirão que o sujeito aumente sua
percepção da área articulatória pela conscientização das sensações provenientes
dos movimentos e contatos realizados para a produção de determinado som. A
percepção visual auxiliará o sujeito a perceber em que local o gesto articulatório
acontece, uma vez que a observação de movimentos labiais influencia profunda-
mente a percepção da fala (Skipper et al, 2007). A terapia miofuncional, pode-se
afirmar, será planejada com base em propriocepção, percepção funcional, além
de exercícios específicos de apoio, quando o órgão articulador assim requerer.
É importante a contribuição de Santana et al (2010) que refere que
embora o desvio fonético de forma geral seja caracterizado como erro mo-
tor, não significa que a totalidade destes quadros remeta para uma situação
de lesão orgânica, havendo, além da afetação de níveis anatômicos e fisioló-
gicos, as problemáticas de sequenciação e aprendizagem motora e/ou difi-
culdades auditivas/perceptivas. Isso nos faz crer que, ao tratar, teremos que
considerar que tais habilidades também precisam ser trabalhadas.
Os sujeitos com alteração de fala são levados a perceber a altera-
ção, modificar e engramar um novo modelo. Nesse contexto, além de tudo o
que foi discutido, o sucesso do tratamento estará na dependência de fatores
tais como maturidade, estimulabilidade, redes nas quais os sujeitos estão
inseridos, estilos de vida. Eis o grande desafio de um terapeuta.
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Para elucidar algumas questões discutidas ao longo do capítulo, uti-

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lizarei, resumidamente, dois casos clínicos, com alguns “nós” na condução do
trabalho, que demonstram o quanto ainda é preciso avançar em termos de
protocolo de tratamento.
No primeiro caso, a família de um menino de quatro anos e seis me-
ses, procurou por atendimento porque a criança não falava o [r]. Embora não
tenham trazido outras queixas relativas a fala, a criança também apresentava
associado ceceio anterior com componente de lateralidade à direita. Na história,
chamava atenção procedimento de frenectomia que havia sido realizado ao final
dos quatro anos e extrema falta de espaço transversal em maxila, ocasionando
mordida em topo. No momento estava sendo submetido a tratamento ortopédi-
co facial associado. A redução do encontro consonantal e supressão dos demais
processos relacionados a esse som foram rapidamente suprimidos após, aproxi-
madamente três semanas de intervenção. O ceceio anterior, embora tendo dimi-
nuído a projeção lingual visível, ainda continuava presente na fala da criança. A
língua, apesar da falta de espaço, não tinha comprometimento importante em
relação à tensão. Nesse caso, levantaram-se as seguintes hipóteses: a frenecto-
mia, realizada tardiamente, quando a criança já havia estabelecido seu sistema
de sons, teria sido suficiente para liberar a língua para a produção do fone [r],
embora conjuntamente existisse um fator etário, que colaborava para o apare-
cimento do som. Por outro lado, os fricativos [s] e [z] necessitavam de espaço
intraoral que a criança ainda não dispunha e, portanto, por mais que conseguisse
entender como era produzido o som correto, no momento da emissão espontâ-
nea, deparava-se com a falta de espaço, o que promovia desvio mandibular para
a direita e, consequentemente, levava a língua consigo. Essa criança teve alta
temporária do tratamento fonoaudiológico para a correção ortopédica, embora
tenha ficado a dúvida do quanto a manutenção do tratamento fonoaudiológico,
ainda que em regime de menor frequência, pudesse ser importante para manu-
tenção dos resultados até então conseguidos.
Em um segundo caso, a família de uma criança de quatro anos procu-
ra por atendimento, pois a mesma apresenta alterações tais como omissão de
líquidas e dessonorização de todos os fonemas que tem o par surdo correspon-
dente. Há a informação de que a criança havia realizado, por indicação médica,
cirurgia de frênulo lingual ao nascer. Apesar disso, aos quatro anos ainda se ob-
servava a dificuldade de elevação lingual. Não havia alteração oclusal e o exame
auditivo revelava audição nos padrões de normalidade. A criança acompanhava
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a escola sem problemas e nos demais aspectos da linguagem tudo estava den-
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tro do esperado para a idade, com exceção da alteração fonêmica e da fala


imprecisa, muito provavelmente pela limitação da abertura da boca, causada
pelo frênulo alterado. Na época a família não queria submeter a criança a ava-
liação de nova intervenção cirúrgica, por esta já ter sido realizada. O processo
terapêutico transcorreu no sentido de suprimir o processo de dessonorização, o
que ocorreu. A menor adquiriu a líquida [l], apesar de não a utilizar no EC. Tendo
em vista a faixa etária, optou-se em dar alta e solicitar retorno para acompanhar
o caso, uma vez que pela dificuldade de elevação lingual, precisaria ser investido
um tempo maior com exercícios de língua que, embora saibamos, não influencia-
riam em nada em relação ao tamanho do frênulo, poderiam auxiliar na melhor
coordenação da mobilidade do órgão. Aos sete anos, restando a alteração na
fala, a criança retorna para atendimento e os sons [r] e [l] estão totalmente ins-
talados, no EC e em outras posições da palavra, mas o [r] é produzido de forma
distorcida, com o médio dorso da língua. Nova etapa é iniciada, agora contando
com maior maturidade da criança, fator que pode ser decisivo em um processo
terapêutico. A criança adquiriu os grupos com todos os fonemas, pelo menos à
percepção auditiva humana, excetuando-se [tr] e [dr], estes notadamente distor-
cidos. Nesse caso a conclusão em pouco tempo foi de que, sem a revisão da ci-
rurgia de frênulo, não seria possível a aquisição do fone sem o distorcer, uma vez
que a produção do [t] e [d] , no mesmo local do [r], implicaria em produção com
muito mais precisão do que a exigida para EC do [r] com sons como o [k], [g], [f],
[v], por exemplo. A permanência da alteração nesses fones era a indicação clara
de que o frênulo precisava ser reavaliado. Entendido o processo como necessá-
rio, a família, receosa, ainda consultou o pediatra, que recebendo a indicação por
escrito, também entendeu como necessário e deu o encaminhamento para a
frenectomia. Após a cirurgia , a criança finaliza o tratamento apenas com o que
já havia sido trabalhado anteriormente. Ou seja, quando da liberação do médico
para o retorno a terapia, não houve necessidade de continuidade do tratamento
pois os grupos com [tr] e [dr] estavam instalados.
Finalizando, acredito que, dentre todas as etapas de tratamento
das alterações de fala de origem musculoesquelética, o momento da automa-
tização, é o mais complexo. Embora auditivamente um terapeuta consiga per-
ceber a evolução de um som que foi ajustado, certificar-se se o mesmo faz uso
dessa “nova fala” em momentos espontâneos, não é tarefa fácil. Se criança,
o interlocutor da família poderá dar esse feedback, se adulto ele terá que se
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auto-observar ou eleger o seu avaliador, o que não parece a melhor escolha,

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uma vez que envolve exposição pessoal. A conversa espontânea do início de
cada sessão é o momento perfeito para tal avaliação. A partir daí, quando a
produção alterada soa estranha para a pessoa que a emite, é terminado o
processo de tratamento, mesmo que o uso efetivo de um determinado som
possa ainda necessitar de um período para realmente ficar totalmente insta-
lado como um novo programa no gerador central.
Aqui vale retomar o que discute Santana et al (2010) quando afirma
que a Linguística, atualmente, já busca uma dissolução das fronteiras rígidas
entre Fonética e Fonologia, porém considera-se necessária e salutar a manu-
tenção de estatutos linguísticos distintos para ambas, uma vez que a lingua-
gem humana articula-se em vários níveis, cada um com suas especificidades,
embora atuando em conjunto em seu funcionamento (Santana et al, 2010).
A automatização, o uso funcional da fala sem o marcador da distorção ou de
qualquer outra alteração, dá-se no ato de linguagem e, nesse sentido, reesta-
belecer a fala sob essa ótica parece mais razoável.
Quando recebo crianças tão pequenas e já tão marcadas pelo lu-
gar que sua “fala errada” ocupa no meio social em que vivem, entendo que
o papel de um terapeuta vai muito além do que reconstruir um sistema
alterado de sons. Wertzner (2004), ao abordar as considerações de cura de
alterações de fala de origem musculoesqueléticas, refere “a fala abre pos-
sibilidades de experiências educacionais e sociais. Nesse sentido contribui
para o bem estar e a saúde do homem” e esse, acredito, seja a nossa função
enquanto fonoaudiólogos.
O que se aplica tecnicamente para “reconstruir” um som alterado me
parece que é a parte simples do processo. Entretanto, descobrir como efetivar
o caminho dessa construção, representa a parte árdua do mesmo processo.
Furkin (2012)*, em reflexão sobre a terapêutica dos distúrbios da deglutição,
relata que esta depende da condução dos processos de comunicação com o
paciente, muito mais do que a aplicação da técnica em si. Em sua fala, perme-
ada por ricas experiências no tratamento desse tipo de alteração, reflete que
a ação somente é efetiva quando continua mesmo quando o elemento não
está presente – nesse caso entendido como o terapeuta – a ação continua.
Nesse sentido, entende que para que se efetive um processo de tratamento,
*FURKIN, A.M. Comunicação pessoal. Abordagem terapêutica nas disfagias. Módulo de atuali-
zação em fonoaudiologia hospitalar, Instituto Fisiomar- Itajaí, março 2012.

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a comunicação deva ser vista como relacional. Relacional com a criança e sua
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família, relacional com o próprio adulto. O técnico, segundo a autora, é man-


datório, imprescindível a qualquer profissional, mas o relacional e o ético es-
tão em outra instância, muitas vezes inacessível ao terapeuta pouco atento.
Como consideração final, considero extremamente importante re-
gistrar que a reflexão que apresentei neste capítulo está baseada apenas nas
práticas que ao longo de anos de trabalho tenho experimentado. Embora re-
cursos ou instrumentos mais objetivos sejam utilizados na pesquisa, ainda há
carência de validação dos mesmos quando voltados à aplicação clínica. Isso
não significa que não possamos utilizá-los, mas é importante que tenhamos
consciência de que muitos dos recursos atualmente comercializados como
instrumental da fonoaudiologia, ainda carecem de validação no sentido de
produzir evidências científicas que subsidiem sua aplicação.
De forma geral, na determinação dos protocolos de tratamento,
estes seguem uma lógica semelhante, mas são dependentes das particulari-
dades da alteração da fala que se apresenta e, obviamente, do sujeito que a
traz. Portanto não dispensam o caráter da individualidade. As estratégias são
simples e não demandam grande investimento tecnológico, embora exista
uma tendência no uso de recursos digitais, para o qual ainda o mercado
carece de investimentos. Não se dispensa, entretanto, que todos esses re-
cursos, do ponto de vista de aplicabilidade mereçam investigação para serem
validados. Este será, sem dúvida, um campo promissor para os futuros pes-
quisadores da área.

Referências bibliográficas

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Terapia Fonoaudiológica da Fala (como eu trato) – Angela Busanello-Stella & Ana Maria Toniolo da Silva
Capítulo 12
Terapia Fonoaudiológica da Fala
(como eu trato)

Angela Busanello-Stella
Ana Maria Toniolo da Silva

Introdução

Os problemas de fala de origem musculoesquelética são uma cons-


tante na prática clínica do fonoaudiólogo e não se restringem somente aos
especialistas em motricidade orofacial.
Entretanto, na maioria das vezes, estas alterações não aparecem
de modo isolado, e sim associadas com problemas em outras funções do sis-
tema estomatognático; com outros tipos de alterações de fala; ou fazendo
parte de comprometimentos mais complexos, como quadros sindrômicos e
alterações de linguagem. O somatório de alterações em um único paciente
exige mais do clínico, uma vez que é necessário eleger as prioridades cor-
retas, com as estratégias mais coerentes, a fim de alcançar um tratamento
objetivo e eficiente.
Nosso objetivo aqui não é trazer ideias inéditas, mas sim propor
uma reflexão sobre o que já é feito e estruturado, ou seja, como e quando
tratar1, baseando-se em nossa prática clínica.

Processo terapêutico
Faz-se necessário reforçar, primeiramente, alguns conceitos. De
modo mais amplo, podemos encontrar alterações de fala de origem fonoló-
gica e de origem fonética.
As alterações fonológicas são aquelas que ocorrem ao nível fonológico
da linguagem e produzem modificações que contrastam o conceito da palavra.
Neste tipo de problema o indivíduo, geralmente ainda na infância, possui altera-
ções de fala que não são justificadas por atipias estruturais na cavidade oral 2,3.
195
Por sua vez, as alterações fonéticas, que também podem ser cha-
Capítulo 12

madas de alterações de origem musculoesqueléticas, referem-se aquelas de-


correntes de algum problema na cavidade oral4, o que pode gerar distorções
em algum(ns) fone(s). Entre as principais, e mais frequentes, encontram-se o
ceceio anterior, o ceceio lateral e as interdentalizações, que acometem res-
pectivamente fones fricativos e linguodentais. E, com menor frequência, as
posteriorizações e distorções de líquidas, entre outros. Existe uma gama bem
maior de distúrbios musculoesqueléticos, mas os citados aqui são a realidade
encontrada em nossa prática clínica.
Tendo em mente a caracterização das alterações de fala, é preciso
pensar na avaliação dos nossos pacientes. Ela deve ser completa o suficien-
te a fim de sanar todas as dúvidas do terapeuta. Este processo tem evolu-
ído muito à medida que encontramos cada vez mais objetos de avaliação
estruturados que nos auxiliam no dia a dia. Fazer uso de protocolos como o
MBGR5, por exemplo, traz para a nossa prática um caráter muito mais con-
creto e padronizado, desde o momento da devolutiva ao paciente até o seu
acompanhamento durante o tratamento. A partir do momento que começa-
mos a utilizar esta ferramenta o processo terapêutico ficou muito mais rico
e fidedigno.
Somando os dados desta etapa, aos coletados em uma anamnese
detalhada, é possível delinear um raciocínio clínico lógico e coerente. Dize-
mos raciocínio clínico lógico, pois parte-se do princípio que o estabelecimen-
to das estratégias e metas terapêuticas deve seguir a relação causa e efeito.
Ou seja, em um paciente onde se observa ceceio anterior e mor-
dida aberta anterior significativa, é necessário tratar primeiro a alteração
oclusal, que estaria atuando como causa, para assegurar que a língua tenha
condições de passar por um processo de reabilitação. Aqui o fato de a língua
interpor-se anteriormente seria, provavelmente, uma consequência da falta
de espaço.
Outro exemplo que merece atenção quanto à necessidade de um
raciocínio correto seria o de um paciente que já passou por vários tratamen-
tos insatisfatórios para o ceceio anterior e que, atualmente, realiza ceceio
lateral somado a uma articulação diminuída. Esta nova alteração ocorre em
situações de fala direcionada com o terapeuta, mas não em situações de des-
contração e fala espontânea. Um terapeuta treinado e cuidadoso, que tenha
raciocínio coerente percebe que isto pode estar ocorrendo pelo fato de o
196
paciente já apresentar noções dos tratamentos anteriores e estar realizando

Terapia Fonoaudiológica da Fala (como eu trato) – Angela Busanello-Stella & Ana Maria Toniolo da Silva
uma tentativa de forçar a língua para não anteriorizar gerando, porém, alte-
rações musculoesqueléticas secundárias.
Um terceiro aspecto a ser considerado sobre o raciocínio lógico,
seria o estabelecimento de metas quando existem alterações fonológicas e
fonéticas concomitantes. Em uma criança, por exemplo, com quatro anos de
idade que apresenta anteriorização de plosivas, ceceio anterior, sobressaliên-
cia acentuada (cinco milímetros por exemplo) e mordida aberta anterior (três
milímetros), o que seria correto tratar primeiro? Bem, se pensarmos que o
ceceio pode estar ocorrendo pelas alterações oclusais6 e, além disso, que
nesta idade ainda não há a estabilização necessária do sistema estomatogná-
tico para permitir o tratamento destas alterações7, mas já é possível a realiza-
ção das plosivas adequadamente, seria natural que tratássemos inicialmente
as trocas fonológicas. Ainda orientaríamos a procura por tratamento oclusal
e acompanharíamos as trocas fonéticas neste período. Medidas e raciocínios
como estes são importantes, pois diminuem a possibilidade de equívocos,
bem como de tratamentos longos e/ou mal sucedidos.
Assim, vamos seguir retomando alguns fatores cruciais no processo
terapêutico das alterações de fala:
• idade do paciente: este ponto alerta para se de fato existem
condições maturacionais das estruturas, pois algumas distor-
ções, como o ceceio anterior, por exemplo, necessitam de tal
estabilização para as correções necessárias. Esta estabilidade
tem ponto determinante por volta dos seis anos com a erupção
dos molares8.
• existência de fatores causais ainda atuantes: isto pode prorro-
gar o início do tratamento dos problemas musculoesqueléticos.
• a complexidade dos fatores associados às alterações de fala:
o que pode influenciar principalmente na frequência dos aten-
dimentos.
• a motivação do paciente para o tratamento.

Nos pacientes adultos, geralmente encontramos maior motivação


para o tratamento, pois a consciência sobre as limitações físicas e as barreiras
sociais que o padrão incorreto de fala lhe causa é maior, caso contrário nem
procurariam pelo tratamento. Além disso, nesta fase da vida as estruturas
197
estomatognáticas já estabilizaram, principalmente devido à dentição, que já
Capítulo 12

é permanente. Por outro lado, as crianças e, sobretudo, os adolescentes po-


dem apresentar obstáculos importantes quanto à motivação, uma vez que,
em muitos casos, os mesmos comparecem aos atendimentos puramente por
iniciativa dos pais.
A idade é na verdade uma variável bastante controversa quando se
pensa em tratamento das alterações de fala musculoesqueléticas. Isto por-
que ela pode ser analisada por diversos pontos de vista:
• quanto à motivação a pouca idade pode atrapalhar;
• quanto ao crescimento e desenvolvimento das estruturas oro-
faciais, especialmente quanto à erupção dentária, os mais no-
vos também podem ter a indicação terapêutica prejudicada;
• quanto à automatização, desde que existam condições anatô-
micas e maturacionais para o tratamento de fala (erupção den-
tária dos molares), quanto mais cedo o mesmo for realizado,
mais fácil pensa-se que seja o processo de automatização.

Refletidos estes temas, faz-se necessário abordarmos os tópicos


que pensamos serem necessários ao processo terapêutico propriamente
dito. Qualquer tratamento, independente da área da Fonoaudiologia e da
idade do paciente, deve partir da formação de vínculo terapeuta/paciente.
Para alguns pode parecer que dedicar mais tempo a essa relação seja perda
de tempo, porém quanto mais o paciente confiar no terapeuta, maiores serão
as chances de adesão ao tratamento e cumprimento das tarefas propostas.
Mas não se trata somente de empatia, e sim de uma relação construída atra-
vés da confiança passada ao paciente, dos esclarecimentos que eles querem
e devem saber; além da nossa flexibilidade e bom senso, adequando nossas
tarefas aos interesses das crianças e às rotinas diárias dos adultos.
Superada a etapa de criação de vínculo, o que nem sempre é fácil,
devemos explorar e melhorar a conscientização do paciente perante seu pro-
blema. Assim como aquele motivado, o que percebe as suas dificuldades tem
mais chances de sucesso no acompanhamento. Podemos ir além, e dizer que
um paciente sem essa conscientização não é um bom paciente e as melho-
res estratégias escolhidas estarão fadadas ao insucesso. Quando falamos das
crianças esta percepção deve ser mais ampla ainda, pois o trabalho com os pais
e seus responsáveis (ou seja, cuidadores) é crucial. Um pai que não entende
198
o motivo do tratamento do seu filho e que não acredita nele, passará pouca

Terapia Fonoaudiológica da Fala (como eu trato) – Angela Busanello-Stella & Ana Maria Toniolo da Silva
confiança para a criança, bem como acatará de forma superficial as orientações
e tarefas propostas em terapia. É fundamental ter os pais ao nosso lado e por
isso o vínculo deve se estender a eles também e ser reforçado a cada encontro.
Em nossa prática, no consultório e na clínica escola, temos adotado
a premissa de que cada paciente é um caso. Em outras palavras a elaboração
de metas e o raciocínio clínico devem ser totalmente diferenciados. Sabe-se
que as funções de mastigação, deglutição e respiração devem anteceder o
trabalho da função de fala, por exemplo, já que em termos evolutivos tam-
bém a precedem. Porém, para alguns pacientes, isso não é possível ou até
mesmo necessário, seja quanto às necessidades de vida do paciente, seja
quanto à configuração das alterações de fala e das demais funções ou pela
própria evolução do tratamento. Por isso o nosso grande foco é na individu-
alização dos planejamentos.
Na maioria das vezes o trabalho muscular é necessário e realizado
para oferecer condições mínimas para que a fala seja desempenhada de modo
correto. O que não quer dizer que o treino da musculatura seja feito totalmen-
te separado da função. Conforme a terapia avança e a funcionalidade começa
a ser trabalhada, estes exercícios vão sendo gradualmente eliminados. Eles po-
dem ser isométricos, isotônicos e/ou isocinéticos e serão escolhidos conforme
as necessidades de cada paciente. Ou seja, nos casos de ceceio anterior, fre-
quentemente exercícios de tonificação da língua (isométricos) são necessários,
porém pacientes com a mesma patologia podem necessitar de frequências e
intensidades diferentes de exercícios. Um deles pode apresentar condições de
realizar um estalo de língua mantido por dez segundos com dez repetições (op-
ção que usamos muito na clínica) e outro não conseguir manter inicialmente os
dez segundos de contração. Ou ainda nos casos de posteriorização de líquidas
um trabalho mais específico de relaxamento do dorso lingual será necessário e
o enfoque muscular será totalmente diferente do exemplo anterior.
De modo geral, conforme a musculatura que necessita ser trabalha-
da para auxiliar no tratamento das alterações de fala, seja ela das bochechas,
dos lábios ou da língua, usamos no início do tratamento basicamente exer-
cícios isométricos e, conforme o paciente evolui, aumentamos a dificuldade
tornando-os exercícios isocinéticos (com resistência). Os exercícios isotônicos
(movimento) também são bastante utilizados, mas o fazemos com o objetivo
de trabalhar a mobilidade, quando esta interfere na produção dos fones e
199
também para o desenvolvimento das praxias não verbais que auxiliam no de-
Capítulo 12

senvolvimento das verbais.


No treino articulatório propriamente dito seguimos uma inserção
coerente do ponto articulatório correto que vai desde a produção do fone
isoladamente, passa pela produção em sílabas, palavras pequenas, palavras
maiores, frases e textos, até alcançar a fala espontânea. Esta etapa ocupa um
tempo variável dentro do tratamento e dependerá da resposta e da facilida-
de de cada paciente. Aqui estratégias lúdicas são imprescindíveis no caso das
crianças, e toda e qualquer estratégia que possa ser usada e que mostre ao
paciente seu desempenho, como filmagens e gravações devem ser utilizadas.
Embora a superação desta fase ofereça ao paciente grande sensa-
ção de melhoria e bem estar, uma vez que ele possui controle sobre a pro-
dução dos fones que não conseguia anteriormente, ainda falta uma parte
fundamental, sem a qual o tratamento não se dá por finalizado e completo,
a automatização. Automatizar refere-se a tornar rotineira uma determinada
tarefa aprendida, ou seja, inserir e manter na vida diária uma determinada
função até que ela se torne automática. Por esse motivo, o nosso tratamento
não será satisfatório e estará extremamente suscetível a recidivas, se tudo
o que ensinamos aos pacientes não se tornar rotina, não se tornar uma ato
automático, para o qual o cérebro não precise prestar atenção para reali-
zar. Para tanto, nesta etapa as sessões tornam-se gradativamente espaçadas,
com a finalidade de se observar justamente como o paciente se mantém sem
os reforços semanais dos atendimentos, até que a alta completa seja pos-
sível. Este processo não possui um tempo correto e exato, como já falamos
anteriormente ele dependerá de vários aspectos do próprio paciente.
Mesmo assim, existem casos em que a alta de modo exemplar como
o clínico gostaria não é possível, ou porque os procedimentos solicitados não
foram realizados na íntegra, ou porque o paciente não cooperou como deve-
ria, entre outros. Porém, nestes casos sempre devemos deixar extremamente
esclarecido ao paciente, aos seus responsáveis e aos outros profissionais que
o acompanham, tais condições (de preferência ainda no início do tratamento).
Cabe aqui comentar a frase de um médico que certa vez teve sua entrevista
televisionada, mas que de momento não será recordado o nome. Ele falou a
seguinte frase ao ser questionado sobre o processo terapêutico de determi-
nada doença “tudo que você passa de orientações para o paciente antes do
tratamento é esclarecimento, mas o que você passa depois dele é desculpa”.
200
Considerações finais

Terapia Fonoaudiológica da Fala (como eu trato) – Angela Busanello-Stella & Ana Maria Toniolo da Silva
Cada profissional, em distintas regiões do país, pode apresentar
realidades e condutas diferentes de trabalho, porém em nosso contexto a
estruturação e raciocínios apresentados neste capítulo têm resultado bas-
tante êxito. Quando falamos de terapia em motricidade orofacial sabemos
que embora exista grande objetividade em tudo que fazemos, trata-se de um
trabalho bastante árduo, onde cada fase do tratamento tem sua importância
e o que faz um tratamento satisfatório é a somatória de todas estas fases
bem sucedidas.

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