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A CONSTRUÇÃO ESPACIAL DA FLORESTA AMAZÔNICA NA OBRA “A

SELVA” DE FERREIRA DE CASTRO E SUA INFLUÊNCIA NO INDIVIDUO


SOCIAL: MISTÉRIO E IMAGINAÇÃO.

Juliano de Oliveira Batista – 508728

Resumo: Este ensaio tem como objetivo principal analisar como a construção espacial
(poética e imagética) da floresta amazônica na obra “A Selva” do escritor português
Ferreira de Castro influencia as condutas dos indivíduos e permeia suas relações,
principalmente no âmbito íntimo e pessoal do protagonista. Tendo como base a obra
“A Poética do Espaço” de Gaston Bachelard, demonstraremos como mistério e
imaginação estão conectados e como “a selva” se comporta diante das volições
humanas.

A SELVA COMO UMA PERSONAGEM: ONIPOTÊNCIA E


ONIPRESENÇA.

Ferreira de Castro, ao escrever sua obra “A Selva” em 1930, comenta o sobre


o “Medo de reabrir, com a pena, as minhas feridas, como os homens lá avivavam, com
pequenos machados, no mistério da grande floresta, as chagas das seringueiras...”
CASTRO (1972). É visível o respeito e o temor que o autor cultiva em relação à imensa
floresta amazônica, tanto, que no pórtico da obra, diz dever “este livro a essa majestade
verde, soberba e enigmática, que é a selva amazónica...” CASTRO (1972). O autor,
um dos precursores do neorrealismo português, conta, também, um pouco sobre a
construção imagética da selva e da sua busca de fugir de meras descrições pragmáticas
da floresta que acabassem por tornar a obra “fastidiosa”:

Pretendera realizar um livro de argumento muito simples, tão possível,


tão natural, que não se sentisse mesmo o argumento. Um livro
monótono porventura, se não pudesse dar-lhe colorido e vibração, mas
honesto, onde o próprio cenário, em vez de nos impelir para o sonho
aventuroso, nos induzisse ao exame e, mais do que um grande pano de
fundo, fosse uma personagem de primeiro plano, viva e contraditória,
ao mesmo tempo admirável e temível, como são as de carne, sangue e
osso. A selva, os homens que nela viviam, o seu drama
interdependente, uma plena autenticidade e nenhum efeito fácil — era
essa a minha ambição. (CASTRO, 1972, p. 30)
Dessa forma, brota a floresta amazônica de Ferreira de Castro, uma personagem que,
mesmo não interagindo diretamente com os demais personagens, influencia todas as
vidas que comporta.
O enredo da obra é simples: um jovem português que, por uma série de
infortúnios, acaba inserido numa trama opressora em um seringal nos confins da
floresta amazônica. Lá, conhece a realidade de inúmeros outros homens oprimidos que
foram seduzidos pela promessa de enriquecimento rápido por meio da exploração das
riquezas presentes na floresta. Com o passar do tempo, o protagonista se afeiçoa aos
demais oprimidos e, com eles, busca uma maneira de superar a opressão. Enredo
comum em obras neorrealistas portuguesas de denúncia social, nas quais protagonistas
assumem o dever histórico de restaurar a sociedade, acabando com a opressão da
burguesia sobre o proletariado, como o caso de outro romance neorrealista muito
famoso “Gaibéus’ (1939), do autor português Alves Redol. A obra de Redol e a de
Ferreira de Castro têm algo em comum: ambas possuem uma espacialização definida
que condiciona aos sujeitos, atores da mudança, as ferramentas necessárias para a
transformação; seringais nesta e campos de plantio de arroz naquela. Contudo, o objeto
de análise deste ensaio, não é o seringal propriamente dito, mas sim a floresta que o
cerca.
Desde o primeiro contato com a imagem da selva construída dentro do romance
de Ferreira de Castro, de todas as impressões, a mais marcante é a selva ser onipotente,
e todos aqueles que buscam aventurar-se no seio da floresta precisam ter determinadas
virtudes: “E não te aborreças, pois aquilo, para quem tem sorte e juízo, são terras
onde se enriquece em pouco tempo.” CASTRO (1972). Para se ter êxito em qualquer
trabalho, o juízo pode ser considerado indispensável, porém, na concepção de
prosperidade meritocrática, a sorte não é, nem de longe, indispensável. É nesse
primeiro contato entre o indivíduo e a imagem da selva, que ele percebe que, embora
possua inúmeras virtudes (coragem, bravura), a qualidade mais importante (a sorte) e
que definirá se terá sucesso ou não, está fora de seu controle, e o êxito não é mais
garantido, pois lá imperam forças maiores do que ele: “A questão é uma pessoa ter
sorte e esperteza! O diabo não é tão feio como o pintam.” CASTRO (1972). Não
demora muito para a revelação da onipotência da selva, pois termos como “selva
dominadora” e “selva densa e feroz”, que permeiam quase todo o romance, ajudam na
construção dessa onipotência, em contraste com o indivíduo que ”Sem futuro definido,
entregue apenas ao arbítrio das circunstâncias, talvez não conseguisse mesmo
regressar.” CASTRO (1972).
A revelação da onipotência da selva permite que o individuo perceba o quão
insignificante é diante da magnitude que o cerca:

Adivinhava-se a luta desesperada de caules e ramos, ali onde


dificilmente se encontrava um palmo de chão que não alimentasse vida
triunfante. A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o
primeiro em força e categoria, tudo abandonando a um plano
secundário. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-
se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo. O animal
esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão
reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. (CASTRO, 1972,
p 114)

A onipotência da selva nos revela seu ethos divino, e sendo divina, pressupõe-se que
possua outras características divinas também, como, por exemplo, a onipresença.
Pra discorrer acerca da onipresença da selva na obra de Ferreira de Castro,
precisamos salientar que o caráter divino que a selva possui é estabelecido somente
por causa da relação entre a perspectiva espacial do indivíduo (percepção pelos
sentidos, sendo a visão o principal) e a grandeza geográfica da floresta amazônica. A
selva é (obviamente) maior que o indivíduo, entretanto, essa grandiosidade melhor se
manifesta pelo que não é apreensível, visível, pelo indivíduo, pois o que revela a
onipresença da selva (e dos deuses) é, além da aparente ausência de limites, o mistério:

Tudo era brenha e tudo era dado admitir para além do que não se via.
O estranho, vindo de outro cenário, com a sua ambição, subia o mundo
ignorado, entregando-lhe a vida. Não sabia sequer se poderia descer.
Mas, vencido o abaulado da margem, outra esteira flúvia se
escortinava e se via o já visto. Era sempre a mataria, a mataria e a água
em amplitudes de pasmar a quem não concebesse que nos oceanos
pudessem também crescer bosques mitológicos. (CASTRO, 1972, p
85-86)

Gaston Bachelard, em sua obra “A Poética do Espaço”, discorre acerca da relação entre
o indivíduo e a ideia de imensidão, e define a imensidão como um tipo de devaneio:

A imensidão é, poderíamos dizer, uma categoria filosófica do


devaneio. Sem dúvida, o devaneio se alimenta de espetáculos
variados, mas por uma espécie de inclinação inata contempla a
grandeza. E a contemplação da grandeza determina uma atitude tão
especial, um estado de alma tão particular, que o devaneio põe o
sonhador fora do mundo mais próximo, diante de um mundo que traz
a marca do infinito. (BACHELARD, 1978, p 316)

A conclusão que chega acerca da relação entre o indivíduo e a ideia de imensidão é


que a contemplação da imensidão causa no indivíduo a consciência de sua fraqueza e
imobilidade diante do infinito:

Desde então, nessa meditação, não somos "atirados no mundo", já que


abrimos de alguma maneira o mundo num ultrapassar do mundo tal
como ele é, tal como era antes do nosso sonho. Mas se estamos
conscientes do nosso ser fraco — pela própria ação de uma dialética
brutal — tomamos consciência da grandeza.
Somos entregues então a uma atividade natural de nosso ser
imensificante. A imensidão está em nós. Está presa a uma espécie de
expansão do ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que volta
de novo na solidão. Quando estamos imóveis, estamos além; sonhamos
num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A
imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranquilo.
(BACHELARD, 1978, p 317)

O protagonista da obra de Ferreira de Castro, Alberto, em muitos momentos


quando está vislumbrando as magníficas paisagens da floresta amazônica, vê-se diante
de inúmeros cenários que parecem não caber em sua visão, como no trecho: “E sempre,
sempre, nas pupilas de Alberto, aquela grandeza inabarcável.” CASTRO (1972). Por
não conseguir captar o todo dos planos conforme aparecem e por conta de serem
sempre tão similares uns aos outros, Alberto se vê cercado, tanto pelo mistério, quanto
pela dúvida:

Os olhos inexperientes não encontravam referência nessas margens


aparentemente sempre iguais, na vegetação que se repetia, senão na
espécie, no entrançado, despersonalizando o indivíduo em prol do
conjunto, único que ali se impunha. Cada curva se parecia com outra
curva, cada recta com a recta antecedente; onde não existia barraca ou
cidade, o espírito quedava-se, perplexo, a formular a pergunta íntima:
« Já passei aqui ou é a primeira vez que passo aqui?» (CASTRO, 1972,
p 65-66)

Quando o mistério e a dúvida se instalam na mente de Alberto, cria-se o ambiente


perfeito para a imaginação, a partir daí, seus medos e anseios o condicionam para uma
única ideia fixa: a sobrevivência.

MISTÉRIO E IMAGINAÇÃO; A IMPOSSIBILIDADE DE VENCER A


SELVA.
Conforme fora construída na obra de Ferreira de Castro, a floresta amazônica
guarda inúmeros mistérios, além de segredos e perigos. Pode-se dizer que, na vida real,
de fato, a floresta amazônica é assim. É desafiador para o leitor da obra perscrutar os
mistérios e segredos da selva, quando nem mesmo aqueles que adentraram seu interior
puderam compreender sua magnitude. Até hoje, mesmo com inúmeros satélites que do
espaço fotografam o planeta em imagens de alta definição, não foi possível acessar
todo o intimo da colossal floresta, logo, o temor do protagonista sobre a própria vida
é visto como uma resposta natural do indivíduo à imensidão desconhecida. Bachelard
parece compreender muito bem essa resposta natural:

O que seria necessário exprimir é a grandeza escondida, uma


profundidade. Longe de nos entregarmos à prolixidade das impressões,
longe de nos perdermos no detalhe da luz e das sombras, sentimo-nos
diante de uma impressão "essencial" que busca sua expressão de
imediato na perspectiva do que chamam de um "transcendente
psicológico". Se queremos "viver a floresta", como dizer melhor que
nos achamos diante de uma imensidão local, diante da imensidão local
de sua profundeza? (BACHELARD, 1978, p 318)

Para Alberto, a selva causa medo. Seja pelos os nativos assassinos, pelos grandes
felinos carnívoros, por insetos transmissores de doenças incuráveis ou até mesmo por
parasitas que invadem silenciosamente os hospedeiros e se alimentam deles até não
restar mais nada. Em determinado momento da obra, Alberto deseja adquirir um rifle
com intuito de se proteger, contudo, o que pode um único indivíduo armado de um
rifle fazer contra tudo isso?
Ferreira de Castro com sua obra, realiza seus dois principais objetivos:
consegue entregar uma obra neorrealista comprometida com a denúncia social e
consegue construir uma magnífica obra poética em reverência à majestosa floresta
amazônica. Além disso, deixa claro que é impossível vencer a selva à força. Com a
força, pode-se derrubar governos autoritários, ditaduras e sistemas econômicos
opressores, porém, contra a selva, não há como vencer. Apenas um personagem da
obra parece saber disso, Lourenço, o caboclo, que “Atreito a vida sedentária, não
conhecia as ambições que agitavam os outros homens...” e em relação à terra tinha
sempre a mesma atitude:

não a cultivava (a terra) e quase desconhecia o sentimento da posse.


Generoso na sua pobreza, magnífico na humildade, entregava esse solo
fecundo, pletórico de riquezas, à voracidade dos estranhos — e deixava-
se ficar Pachorrento e sempre paupérrimo, a ver decorrer,
indiferentemente, o friso dos séculos. (CASTRO, 1972, p 61)

De certo há algum segredo que o caboclo guarda, com certeza existe algo que só ele e
seus ancestrais conhecem, porém, como todo mistério da floresta, deve ser preservado.
Da mesma forma que o caboclo vive sua indiferença, a floresta vive indiferente a ele
também, e não só a ele, ela vive indiferente a todos, e a maior prova disso é o seu
silêncio:

E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfónico, feito de milhões de


gorjeios longínquos, que se casavam ao murmúrio suavíssimo da
folhagem, tão suave que parecia estar a selva em êxtase. [...] Mas o
silêncio volvia. E, com ele, uma longa, uma indecifrável expectativa.
Dir-se-ia que a selva, como uma fera, aguardava há muitos milhares de
anos a chegada de maravilhosa e incognoscível presa. (CASTRO, 1972,
p 104)

Como todos os deuses, a selva apenas observa de longe as vaidades humanas. Os


desejos vãos, as vidas desperdiçadas, a indiferença e o silêncio dos deuses e da selva
tornam-nos cúmplices: “De nítido ficava apenas o drama obscuro do seringueiro, na
selva cúmplice e silente.” CASTRO (1972). O drama humano não significa nada diante
da magnitude da natureza. Nossa era já acabou. Acabou quando o desejo de acumular
superou o desejo de viver. Só não percebemos isso ainda.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, José Maria Ferreira de. A Selva. São Paulo. Ed. Verbo Ltda. 1972.

BACHELARD, Gaston, 1884-1962. BI 19f A filosofia do não; O novo espírito


científico; A poética do espaço / Gaston Bachelard; seleção de textos de José Américo
Motta Pessanha; traduções de Joaquim José Moura Ramos (et al.). São Paulo: Abril
Cultural, 1978. (Os pensadores)

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