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Introdução

1 Que são os Mabinogi?

Os Mabinogi são uma coleção


de contos que representam a
mais antiga literatura em prosa
da Grã-Bretanha. O lexicógrafo
galês John Davies (c. 1567–
1644), escrevendo no final do
Renascimento, citou brevemente
um desses contos em seu
Antiquae Linguae Britannicae
Dictionarium Duplex. Coube a William Owen Pughe
(1759 – 1835), antiquário e gramático galês, resgatar os
Mabinogi aos leitores modernos (Cambrian Register em
1795, Cambro-Briton Journal em 1821, Cambrian
Quarterly Magazine and Celtic Repository em 1829).
Contudo, foi Lady Charlotte Elizabeth Guest (1812 –
1895) a responsável pelo lugar que esse monumento da
literatura britânica hoje ocupa na cultura ocidental. Sua
tradução, publicada entre 1838-45 e depois em volume
único (1877), teve grande influência e permanece muito
lida ainda hoje.

O título Mabinogion foi usado por Pughe em 1795 (The


Mabinogion, or Juvenile Amusements, Being Ancient
Welsh Romances), retirado da frase que fecha o primeiro
conto: Ac yuelly y teruyna y geing hon yma o’r
Mabynnogyon (“E assim termina o ramo destes
mabinogion aqui”). A forma usada nos demais textos é
mabinogi (mabinẏogi, mabinogẏ, mabinogi). Acredita-se
que mabinogion tenha sido um erro do escriba, que teria
considerado fosse o plural de mabinogi. Mabinogi,
porém, já é o plural de mabinog, palavra cujo sentido
exato é desconhecido, embora claramente ligada a mab,
“filho, menino” em galês. Seja como for, Lady Guest
manteve em seu livro o título Mabinogion herdado de
Pughe. Antes de suas traduções, somente os quatro
primeiros dentre os doze contos eram conhecidos como
Pedeir Ceinc y Mabinogi, “Os Quatro Ramos dos
Mabinogi”. Desde então, a palavra Mabinogion tem sido
usada como um termo conveniente para designar todos os
contos, com exceção de Hanes Taliesin, “A História de
Taliesin”.

Os textos anônimos foram preservados no Llyfr Gwyn


Rhydderch (“Livro Branco de Rhyderch”), escrito entre
1300 e 1325, e no Llyfr Coch Hergest (“Livro Vermelho
de Hergest”), escrito entre 1375 e 1425, embora
fragmentos desses contos já tenham sido encontrados em
manuscritos do séc. XIII e acredite-se que tenham
existido muito antes sob forma oral. A questão da data de
composição dos Mabinogi é importante, pois pode
demonstrar que seja anterior à Historia Regum
Britanniae (“História dos Reis da Grã-Bretanha”) de
Geoffrey de Monmouth, sendo a evidência de que o
folclore e a cultura galeses seriam muito mais antigos e
resistentes.

Os Mabinogi, desconhecidos fora de Gales até a época de


Lady Guest, são parte da longa, consistente e gloriosa
tradição da poesia galesa, que merece ser melhor
conhecida. Mesclada sutilmente em seu contexto, está a
magia dos druidas, intrigantes “sacerdotes” célticos e
guardiães das antigas tradições, talvez uma das forças
que garantiram a sobrevivência dos Mabinogi à conquista
saxônica e ao triunfo do cristianismo romano e, depois,
anglicano.

2 As lendas dos Mabinogi

Os Mabinogi propriamente ditos abrangem quatro lendas,


também chamadas “Os Quatro Ramos dos Mabinogi”.
Essas lendas são:

1) Pwyll, Príncipe de Dyfed (Pwyll, Pendeuic Dyuet,


Primeiro Ramo): durante uma caçada, Pwyll encontra
Arawn (“Língua Prateada”), Senhor de Annwfyn (o Outro
Mundo da tradição céltica) e, como compensação por um
insulto não intencional, oferece-se para trocar de lugar
com Arawn e lutar contra seu inimigo Hafgan (“Verão
Branco”). Pwyll passa um ano sob a forma de Arawn e
ganha sua amizade graças a suas boas maneiras e pelo
sucesso em sobrepujar Hafgan, assim obtendo o título de
Penannwn (“Senhor de Annwn”). Ele se casa com
Rhiannon, mas somente depois de derrotar Gwawl, o
antigo pretendente. O casal vive feliz até o nascimento de
Pryderi.

2) Branwen, Filha de Llyr (Branwen uerch Lyr,


Segundo Ramo): Branwen casou-se com Matholwch, rei
da Irlanda, e deu à luz Gwern, mas os irlandeses, que
tinham sofrido um grave insulto feito por Efnyssien,
meio-irmão de Branwen, quando a comitiva de
Matholwch estava na Grã-Bretanha, vingaram-se
obrigando Branwen a servir na cozinha do castelo, onde
era agredida pelo cozinheiro. Ela criou um pássaro e
enviou uma mensagem a Bran, seu irmão, rei da Grã-
Bretanha, que veio com uma frota para resgatá-la.
Efnyssien lançou Gwern numa fogueira e seguiu-se uma
batalha entre britanos e irlandeses; ela morreu de tristeza
e foi supultada num “túmulo de quatro lados” nas
margens do rio Alaw, em Anglesey. Seu mito, que tem
uma forte semelhança com o de Cordélia, filha de Lear, é
um tipo de Soberania, como fica óbvio quando sua
história é investigada com atenção. Quanto à Irlanda,
ficaram vivas na ilha somente cinco mulheres grávidas,
cujos filhos foram os fundadores dos Cinco Reinos.

3) Manawyddan, Filho de Llyr (Manawydan uab Llyr,


Terceiro Ramo): Manawyddan ap Llyr é mencionado no
conto Culhwch e Olwen como um seguidor de Arthur.
Nos Mabinogi, é irmão de Bendigeid Fran (“Bran, o
Abençoado”), ficando sem terras depois da morte deste e
tornando-se marido de Rhiannon. Ajudou a quebrar os
encantamentos lançados por Llwyd sobre Dyfed como
vingança pelo tratamento violento dado a Gwawl por
Pwyll, primeiro marido de Rhiannon. Manawyddan é um
homem engenhoso e mestre artesão, capaz de ganhar seu
sustento enquanto a terra está enfeitiçada. Como instrutor
e homem de poder, ele fica no lugar do pai de Pryderi e
herda as qualidades de Pwyll.

4) Math, Filho de Mathonwy (Math uab Mathonwy,


Quarto Ramo): o filho de Mathonwy é tio de Gwydion,
Gilfaethwy e Arianrhod e irmão de Penardun. Era
onisciente, possuindo, entre outras habilidades, o
estranho dom de ouvir tudo que fosse dito em seus
domínios tão logo as palavras fossem transportadas pelos
ventos. Era muito sábio, um grande rei. Neste conto, ele
somente pode viver enquanto seus pés estiverem no colo
de uma virgem, Goewin, a não ser em tempo de guerra.
Como Gwydion provoca uma guerra entre Math e
Pryderi, Math deixa-a temporariamente, sendo Goewin
violada por Gilfaethwy, que nutria por ela uma paixão
secreta. Para aliviar a vergonha da jovem, Math casa-se
com ela e pune seus sobrinhos, Gilfaethwy e Gwydion,
transformando-os em vários animais. É com a ajuda de
Gwydion que Math cria Blodeuedd com flores como
noiva para Lleu Llaw Gyffes, seu sobrinho-neto.

Sete outros contos foram associados aos “Quatro


Ramos”:

5) O Sonho de Macsen Wledig: um imperador romano,


Magnus Maximus (383-388 EC), conhecido na tradição
galesa como Macsen Wledig. Geoffrey de Monmouth,
que o chama Maximianus, diz que ele fez de Conan
Meriadoc governante da Bretanha Menor, na atual
França. Neste conto, o imperador sonha com uma mulher
desconhecida por quem fica apaixonado. Por fim,
mensageiros finalmente informam que esta realmente
existe em Cymru (Gales), de forma que Macsen deixa
Roma para casar-se com ela. Seu nome é Elen. O
Maximus histórico, subjacente à lenda, realmente serviu
na Grã-Bretanha, mas levou muitas tropas da ilha em sua
luta contra Gratianus, imperador do Ocidente (367 a
383), assim deixando a ilha sem proteção. Traços dos
fatos permanecem nas lendas: os galeses retiveram seu
nome, que aparece em várias genealogias de famílias
nobres como ligação com a Roma imperial. Os soldados
romanos que partiram tomaram esposas estrangeiras,
mas, conta a lenda, cortaram suas línguas para que não
pudessem corromper o idioma britânico de seus filhos.
Vemos assim como é antiga e poderosa a devoção dos
Cymry (galeses) a seu idioma.

6) Lludd e Llefelys: Lludd é filho de Beli e irmão de


Llefelys. Foi o rei da Grã-Bretanha que reconstruiu a
cidade de Londres, cujo nome vem dele: Caer Lludd,
Caer Llundein. Três pragas caíram sobre a ilha: uma raça
chamada Coranianos (genedyl y Coraneit, “a raça dos
Coranianos”), que podia saber tudo o que era dito; um
grito que era ouvido a cada Véspera de Maio (Calan Mai,
correspondente ao Bealtaine irlandês) e fazia murchar as
lavouras, matava os animais e crianças e deixava as
mulheres estéreis e o desaparecimento dos mantimentos
do rei. Lludd procurou conselhos junto a seu irmão,
Llefelys, que lhe disse que os Coranianos seriam
vencidos depois de beber uma infusão de insetos
esmagados em água; que o grito era provocado por
dragões que seriam vencidos depois de se embebedar
com hidromel forte, sendo necessário enterrá-los
exatamente no centro da Grã-Bretanha, e que o ladrão
das provisões era um homem de poder capaz de lançar
um feitiço de sono sobre a corte e então roubar toda a
comida. Lludd venceu as três pragas e a paz da ilha foi
restabelecida.

7) Culhwch e Olwen: Culhwch é o filho de Celyddon


Wledig e sobrinho de Arthur. Sua mãe, Goleuddydd
(“Dia Brilhante”), deu-o à luz depois de ficar apavorada
com a visão de uma vara de porcos, de modo que ele foi
chamado Culhwch, ou “Chiqueiro”. Seu pai casou-se
outra vez depois da morte de Goleuddydd. A madrasta de
Culhwch lançou um feitiço sobre ele para que não
pudesse casar-se senão com Olwen (“A dos Rastros
Brancos”), filha de Yspaddaden Pencawr (“Espinheiro,
Chefe dos Gigantes”), o gigante. Na corte de
Yspaddaden, Culhwch recebeu trinta e nove anoethu ou
tarefas impossíveis, que deveriam ser cumpridas antes de
casar-se com Olwen, todas as quais foram cumpridas
com a ajuda dos cavaleiros de Arthur. A principal tarefa
era caçar o Twrch Trwyth, um javali gigante, para o que
seria necessário o auxílio de vários cavalos específicos,
cães de caça e homens, incluindo Mabon, o jovem
miraculoso, cujo encontro é narrado nesse conto. Outras
missões incluem a viagem de Arthur ao Outro Mundo
para obter alguns dos Objetos Sagrados, ou Treze
Tesouros da Grã-Bretanha – feito que é também relatado
num poema galês do séc. IX, o Preiddu Annwfn, “Os
Espólios de Annwfyn”, atribuído ao bardo Taliesin. O
poder de Yspaddaden é vencido e Culhwch casa-se com
Olwen.

8) O Sonho de Rhonabwy: Rhonabwy adormece a


sonha que Arthur e Owain estão jogando gwyddbwyll
(um jogo de tabuleiro céltico) ante um campo de batalha.
Durante o jogo, os cavaleiros de Arthur lutam contra os
corvos de Owain, mas os jogadores apenas continuam
com seu passatempo, até que Arthur, impaciente por
começar a perder, esmaga as peças. O jogo talvez
simbolizasse uma batalha pela soberania.
Os contos Culhwch e Olwen e O Sonho de Rhonabwy
despertaram o interesse dos estudiosos por preservarem
tradições mais antigas envolvendo o material arturiano. A
narração de O Sonho de Macsen Wledig é uma história
romântica sobre o imperador romano Magnus Maximus.

Três dos contos são versões galesas de romances


arturianos que também aparecem no trabalho de Chrétien
(ou Chréstien) de Troyes. Os críticos do séc. XIX
acreditavam que os contos baseavam-se nos próprios
poemas de Chrétien, porém as opiniões mais recentes
inclinam-se a afirmar que as duas coleções são
independentes, mas têm um ancestral comum:

9) A Dama da Fonte: Owain, inspirado pelo conto de


Cynon (na tradição galesa, o filho de Clydno – um dos
guerreiros de Arthur – e amante de Morfudd, irmã
gêmea de Owain), sai em busca do Castelo da Fonte, que
era guardado pelo Cavaleiro Negro. Ele atravessa o mais
belo vale e vê um brilhante castelo numa colina. Depois
de entrar nesse lugar sobrenatural, Owain derrota o
Cavaleiro Negro e casa com sua viúva. Após um começo
difícil, vence seu ressentimento e guarda o reino até que
sua sede por aventuras o faz partir, deixando para trás a
esposa. Dama da Fonte é também o título da condessa
misteriosa no Yvain, de Chrétien de Troyes.

10) Peredur, Filho de Efrawg: na mitologia galesa,


Peredur era o sétimo filho de Efrawg e o único do sexo
masculino a sobreviver. Seu pai e irmãos morreram antes
que ele atingisse a maioridade. Isso não impediu Peredur
de tornar-se um dos cavaleiros de Arthur e suas muitas
aventuras formaram a base para o Sir Percival posterior.
Talvez por causa de sua posição como sétimo filho,
Peredur era particularmente adepto de matar bruxas, que,
em Gales, compareciam ao campo de batalha trajando
armaduras completas. No fim de seu conto nos Mabinogi,
Peredur enfrenta a “líder das bruxas” e, com sua espada,
rompe seu elmo e armadura em duas partes, enquanto as
demais feiticeiras fogem.

11) Gereint, Filho de Erbin: Gereint é o rei de


Dumnonia (reino que, no, período pós-romano, abrangia
Devon, a Cornualha e outras áreas do sudoeste da
Inglaterra) cujas aventuras são contadas nesta narrativa.
No romance francês, o herói deste conto é Erec, mas,
como este não é comumente conhecido em Gales,
substituíram-no por Gereint. Este pode ser uma figura
histórica, um primo de Arthur. Embora seja listado como
contemporâneo desse rei, pode ter pertencido a uma
geração anterior, pois o conto O Sonho de Rhonabwy diz
que Cadwy, seu filho, era um contemporâneo de Arthur.
O nome do pai de Gereint é citado como Erbin, mas, na
Vida de São Cyby, Erbin é chamado seu filho. Em
Culhwch e Olwen, encontramos os nomes de dois de seus
irmãos, Ermid e Dywel. Gereint, suspeitando que sua
esposa é infiel, força-a a acompanhá-lo numa exaustiva
jornada de aventuras para testar seu amor e obediência a
cada passo do caminho. Como outras fortes heroínas
célticas, ela suporta calmamente sua provação,
permanecendo leal e amorosa durante todo o tempo.
Gereint finalmente sentiu “duas tristezas”, do remorso
por ter desconfiado de sua esposa e por tratá-la tão mal.
Lady Guest também incluiu em sua tradução um oitavo
conto (removido das traduções inglesas posteriores, que,
no entanto, continuam a usar o termo
Mabinogi/Mabinogion), não encontrado nem no Livro
Branco de Rhyderch, nem no Livro Vermelho de Hergest,
mas em um manuscrito do séc. XVII:

12) Taliesin – seu nome significa “Testa Brilhante”. Foi


um bardo galês e, de acordo com o mito, a primeira
pessoa a adquirir a habilidade da profecia. Em uma
versão da história, ele é o servo da feiticeira Cerridwen,
uma deusa da fertilidade, mãe de Afagddu, o homem
mais feio do mundo, e chamava-se Gwion Bach.
Cerridwen preparava uma beberagem mágica que, depois
de um ano fervendo, produziria três gotas que dariam a
quem as bebesse toda a sabedoria do mundo. Essa pessoa
conheceria todos os segredos do passado, do presente e
do futuro. Ela queria dá-las a Afagddu como
compensação por sua feiúra. Enquanto Gwion Bach
cuidava do fogo sob o caldeirão, uma parte do líquido
quente caiu em seu dedo e ele a sorveu ao sentir a dor.
Eram as três gotas da sabedoria. Todo o líquido restante
era veneno. A furiosa Cerridwen empregou todos os seus
poderes mágicos para perseguir o menino. Durante a
caçada, ele se transformou numa lebre, num peixe e num
grão de trigo, que Cerridwen, metamorfoseada em
galinha, engoliu, descobrindo-se então grávida. Mais
tarde, Gwion, renascido de Cerridwen, foi jogado ao mar
e apanhado numa armadilha para peixes, quando passou a
chamar-se Taliesin por causa de sua testa brilhante.
Os Quatro Ramos são, essencialmente, histórias
medievais e seus personagens comportam-se, falam e
vivem de modo muito semelhante a sua audiência do séc.
XIV. Suas maneiras são (em geral) corteses e refinadas,
invocam frequentemente o deus cristão e suas roupas
incluem brocados, sedas, toucados e outros itens
medievais. Contudo, ainda que sejam produto de uma
sociedade cristã da Idade Média, os Quatro Ramos
baseiam-se também numa visão de mundo
profundamente pagã, proveniente de tradições e crenças
das culturas neolíticas e da Idade do Bronze, bem como
da Idade do Ferro céltica e da era romano-britânica.

Os Mabinogi são verdadeiramente peças encantadoras da


literatura galesa, que abrem caminho a fantásticas
narrativas dramáticas, capazes de encher a mente do
leitor com a vibrante e imaginativa natureza dos povos
célticos. As duras realidades históricas são transformadas
por uma percepção sonhadora que subjuga a mente com o
imaginário ancestral soberano no pensamento mítico dos
celtas.

III Sobre esta tradução

Os contos sobre os cavaleiros da Távola Redonda (que


conheci de forma resumida numa edição do Tesouro da
Juventude da década de 1920) foram companheiros de
infância. Minha cabeça de menino já estava tomada pela
“Matéria da Bretanha”, apenas não sabia que era esse o
seu nome, tampouco que sua origem estivesse nos celtas.
Foi então que vi pela primeira vez fotos de páginas do
famoso Livro de Kells. A identificação e o fascínio pelas
cores, espirais e formas intrincadas, entrelaçadas, capazes
de confundir os olhos foram imediatos. Aprendi que isso
era “arte celta” e rapidamente descobri que a riqueza e
alcance imensos dos mitos célticos era tão estonteante
quanto suas artes visuais.

Os celtas mostram dedicação milenar às artes da palavra,


do canto, da música instrumental, além de persistência
exemplar. Derrotados em suas batalhas contra romanos e
saxões, acharam nos mitos um local de refúgio onde seus
velhos deuses, disfarçados de reis, cavaleiros e magos,
encontraram abrigo seguro contra a passagem do tempo,
atravessando a Idade Média e chegando à era dos
computadores sem nada perder de seu brilho e grandeza
épica.

Podemos considerar Os Quatro Ramos dos Mabinogi


como uma introdução ao imaginário onírico dos celtas,
com suas muitas referências às crenças pré-cristãs:
passagens ao Outro Mundo, contatos com seres
sobrenaturais, montes e castelos encantados, o caldeirão
miraculoso, gigantes, metamorfoses mágicas e muitos
outros elementos primordiais que permeiam a mente mais
recôndita do homem ocidental.

Usei aqui os textos originais em galês medieval (que


aparece salpicado em muitos trechos) e versões para a
língua inglesa, sobretudo a de Lady Guest que, apesar de
às vezes sofrer determinadas críticas, continua a ser
considerada uma tradução clássica e é sumamente
esclarecedora pelo conteúdo de suas Notas aos Quatro
Ramos.

Nesta época em que a Internet tornou o conhecimento


disponível e acessível como nunca antes na história
humana, confio (na verdade, insto, incito e insisto) que o
Leitor interessado saberá buscar a informação para
esclarecer os muitos pontos obscuros destas lendas,
aprofundando com suas pesquisas e descobertas o prazer
da leitura.

Rogério Gonzalez Fernandes


Bellouesus Isarnos
Sumário

O Primeiro Ramo: Pwyll...25

I Pwyll encontra Arawn...27


II Na Corte de Annwfyn..30
III Pwyll mata Hafgan...31
IV Rhiannon...35
V No palácio de Hefeyd Hen...40
VI O jogo do Texugo na Bolsa
O casamento de Rhiannon e Pwyll...43
VII Nascimento e rapto de Pryderi...48
VIII A égua de Teirnyon...51
IX O retorno de Pryderi...54

O Segundo Ramo: Branwen...59

I A chegada de Matholwch...61
II A ira de Efnissyen...64
III O casamento de Branwen e Matholwch
O Caldeirão da Renovação...67
IV O desprezo a Branwen...71
V Bran parte para a Irlanda...72
VI Uma casa para Bran...76
VII Efnissyen mata Gwern
A luta entre britanos e irlandeses...78
VIII A morte de Branwen...80
IX Os pássaros de Rhiannon...82
X A Assembleia da Extraordinária Cabeça...82
XI A Terceira Ocultação Agradável...83

O Terceiro Ramo: Manawyddan...85

I O Terceiro Príncipe Humilde


Manawyddan casa-se com Rhiannon...87
II O encantamento sobre Dyfed...90
III A peregrinação dos muitos trabalhos...91
IV O castelo encantado
Pryderi e Rhiannon desaparecem...94
V A segunda viagem para Lloegyr...97
VI Retorno a Dyfed
As três plantações e o assalto dos ratos...99
VII Libertai o rato!...102
VIII Llwyd. Pryderi e Rhiannon são libertados...106

O Quarto Ramo: Math...109

I A paixão de Gilfaethwy...111
II Na corte de Pryderi
A magia de Gwydion...114
III A fuga de Gwydion
Prepara-se a batalha entre Gwynedd e Dyfed...116
IV Gilfaethwy viola Goewin...118
V A paz entre Gwynedd e Dyfed
A morte de Pryderi...119
VI Math toma Goewin como esposa
A punição de Gwydion e Gilfaethwy...121
VII Arianrhod
O nascimento de Dylan e Lleu...125
VIII Arianrhod amaldiçoa Lleu...127
IX Como Lleu obteve seu nome...129
X Gwydion engana Arianrhod novamente...131
XI A criação de Blodeuedd...134
XII Blodeuedd apaixona-se por Gronw Pebyr
A conspiração contra Lleu...136
XIII Lleu desaparece...140
XIV A águia no carvalho...141
XV Cura e vingança de Lleu Llaw Gyffes...143

Anexo...147

Pronunciando o Galês...149
O PRIMEIRO RAMO

PWYLL PRÍNCIPE DE DYFED


27

No Primeiro Ramo (Y gainc gyntaf), Pwyll, governante do reino de


Dyfed, no sul de Gales, troca de lugar com Arawn, Senhor de
Annwn, o Mundo Inferior dos Mortos e do Povo das Fadas na
tradição britânica. Pwyll trava uma batalha no lugar de Arawn,
selando assim uma duradoura amizade entre sua terra e o Outro
Mundo. Voltando ao mundo dos homens, Pwyll se casa com uma
mulher chamada Rhiannon, que ele encontrou inicialmente num
gorsedd. Os gorseddau são antigos lugares tribais de reunião,
frequentemente montes artificiais de sepultamentos pré-históricos.
Rhiannon é a evemerização de uma deusa equina pré-cristã que
encarna a Soberania da terra. Eles têm um filho, Pryderi, nascido na
Véspera de Maio, que continuará a aparecer em cada conto restante
dos Quatro Ramos.

I
Pwyll encontra Arawn

wyll, príncipe de Dyfed [Pwẏll pendeuic dẏuet],

P era o senhor das Sete Províncias de Dyfed. Certa


vez, ele estava em Arberth, seu palácio principal
[priflẏs], e teve desejo de sair e caçar, sendo Glyn Cuch a
parte de seus domínios em que lhe agradava caçar.
Assim, partiu de Aarberth à noite e foi até Llwyn
Diarwyd, onde pernoitou. Levantou-se bem cedo pela
manhã e foi a Glyn Cuch, começando a caçada tão logo
soltou os cachorros no bosque e soou o chifre. Pwyll
seguiu os galgos e acabou perdendo-se de seus
companheiros. Escutava ainda o ladrido de seus cães de
caça, mas ouviu outros cães latindo, diferentes dos seus,
aproximando-se dele na direção oposta.

Viu então uma clareira no mato formando uma área


limpa. Quando seus cães chegaram à extremidade da
clareira, Pwyll avistou um veado perseguido pelos outros
cachorros. Assim que o veado chegou ao meio da
28

clareira, esses cães alcançaram-no e o derrubaram.


Olhando a cor dos cachorros, Pwyll nem prestou atenção
ao veado, pois, de todos os mastins que já tinha visto no
mundo, nenhum era como estes. Seu pelo era de um
branco lustroso, brilhante, e suas orelhas eram vermelhas,
tão lustrosas quanto a brancura de seus corpos. Foi em
direção aos cachorros que tinham derrubado o veado e
afugentou-os, açulando seus próprios cães contra a presa.

Enquanto Pwyll atiçava-os, percebeu vindo em sua


direção um cavaleiro montado num grande corcel cinza
claro, trazendo um chifre de caça ao redor do pescoço e
trajando vestes de lã cinzenta próprias para caçar. O
cavaleiro parou perto dele e falou-lhe então:

– Príncipe – disse ele –, sei quem sois e não vos saúdo.


– Porventura – respondeu Pwyll – possuís dignidade tal
que poderíeis não o fazer.
– Verdadeiramente, não é minha dignidade que me
impede.
– Que é então, ó príncipe? – perguntou Pwyll.
– Pelos Céus, a razão é vossa própria ignorância e falta
de cortesia!
– Qual descortesia, príncipe, vistes em mim?
– Jamais vi descortesia maior do que espantar os cães
alheios que estavam matando o veado e jogar sobre a
presa os seus próprios. Isso foi descortês e, no entanto,
posso não me vingar de vós pessoalmente, mas declaro
ao Céu que hei de trazer-vos mais desonra que o valor de
cem veados!
– Príncipe, se procedi mal saberei recuperar vossa
amizade.
29

– Como a recuperareis?
– De acordo com qual possa ser vossa dignidade, mas
não sei quem sois.
– Sou um rei coroado na terra de onde venho.
– Senhor, possa o dia fazer-vos prosperar. E de qual terra
vindes?
– De Annwfyn [O annwuẏn] – respondeu ele. – Arawn,
rei de Annwfyn [arawn urenhin annwuẏn], eu sou.
– Senhor, como posso ganhar vossa amizade?
– Depois de agir desse modo, vós ainda o podeis – disse.
– Há um homem cujos domínios são opostos aos meus e
que está sempre guerreando contra mim. É Hafgan, um
rei de Annwfyn [Hafgan urenhin o annwuẏn], e, por
libertar-me de tal opressão, o que facilmente podeis
fazer, ganhareis minha amizade.
– Com prazer o farei. Mostrai-me como é possível.
– Mostrar-vos-ei. Vede, então, como podeis fazer. Farei
uma firme amizade convosco. Enviar-vos-ei a Annwfyn
em meu lugar, dar-vos-ei a mais adorável mulher que
jamais vistes para dormir convosco toda noite e, ainda
mais, colocarei sobre vós minha forma e minha
semelhança, de modo que nenhum pajem da câmara real,
nenhum oficial, nem qualquer outro homem que algum
dia me seguiu saberá que não sou eu. Isso será pelo
espaço de um ano a partir de amanhã e então nos
encontraremos neste lugar.
– Sim – disse Pwyll –, mas, quando um ano se passar,
como descobrirei esse de quem falais?
– Em um ano a contar desta noite – respondeu Arawn – é
o tempo marcado para que nos encontremos em campo;
comparecei lá sob a minha aparência e, com um só golpe
que lhe deis, já não viverá. E, se pedir que lhe deis outro,
30

não o façais, não importa o quanto insista convosco, pois,


quando o atendi, lutou comigo no dia seguinte tão bem
como antes.
– Na verdade, que farei em relação ao meu reino? –
perguntou Pwyll.
– Farei com que ninguém em todos os vossos domínios,
nem homem nem mulher, saiba que eu não sou vós e lá
estarei em vosso lugar – prometeu Arawn.
– Então prazerosamente seguirei adiante.
– Claro será vosso caminho, nada vos deterá até que
entreis em meus domínios e eu próprio serei vosso guia.

II
Na Corte de Annwfyn

Assim, Arawn conduziu-o até avistarem o palácio e suas


habitações.

– Vede – disse Arawn – a corte e o reino em vosso poder.


Entrai na corte, ninguém lá vos reconhecerá e, quando
virdes os serviços lá feitos, sabereis quais são seus
costumes.

Pwyll então se adiantou para a corte e, quando entrou,


contemplou dormitórios e salões e câmaras e os mais
belos edifícios jamais vistos. Ele entrou no salão para
desmontar, vindo jovens e pajens auxiliá-lo, os quais os
saudaram ao adentrarem as dependências do palácio.
Vieram dois cavaleiros e tiraram-lhes as roupas de caça,
vestindo-o com uma túnica de seda e ouro. O salão estava
preparado e Pwyll viu a mansão e o anfitrião que nela
entrava. Este era o mais gracioso dos anfitriões e o mais
31

bem equipado que Pwyll havia conhecido. Com eles


entrou igualmente a rainha e ele nunca vira mulher tão
formosa. Ela trajava uma túnica de brilhante seda
amarela. Lavaram-se, foram para a mesa e sentaram-se, a
rainha a um lado de Pwyll e do outro um que parecia ser
um conde.

Ele começou a conversar com a rainha e pensou, em


razão de suas palavras, que ela era a senhora mais
decente e de mais nobre conversação, bem como a mais
alegre que já houvera. Partilharam a carne e a bebida,
cantando e festejando. De todas as cortes na terra, era
esta a melhor provida de comida e bebida e recipientes de
ouro e joias reais.

Quando chegou a hora de dormir, Pwyll e sua rainha


foram para o leito. Ele virou seu rosto para a beira da
cama e deu-lhe as costas, não lhe dizendo palavra alguma
antes que amanhecesse. No dia seguinte, o carinho e a
afeição voltavam à conversação deles, embora durante o
ano que se seguiu noite alguma fosse diferente da
primeira.

III
Pwyll mata Hafgan

Pwyll levou o ano a caçar e ouvir os menestréis,


festejando, divertindo-se e tagarelando com seus
companheiros até chegar a noite fixada para a luta. E,
quando essa noite chegou, lembraram-se dela até mesmo
aqueles que viviam nas regiões mais distantes de seus
domínios. Pwyll foi ao encontro e os nobres do reino com
32

ele. Chegando todos ao campo, um cavaleiro ergueu-se e


falou:

– Senhores – disse –, escutai bem. Este encontro é entre


estes dois homens e entre eles apenas. Cada um reclama
do outro sua terra e território, assim cada um de vós fique
apartado e deixe que a luta se dê entre eles somente.

Logo após, os reis encontraram-se no meio do campo e,


ao primeiro empurrão, o homem que estava no lugar de
Arawn golpeou Hafgan bem no centro de seu escudo e
este se partiu em dois, sua armadura quebrou-se e o
próprio Hafgan foi lançado ao solo pela distância de um
braço e uma lança por cima de seu cavalo, recebendo um
ferimento mortal.

– Ó chefe – falou Hafgan –, que direito tendes de


provocar minha morte? Eu não vos estava prejudicando
em nada e não sei, assim, porque me mataríeis. Mas, pelo
amor do Céu, uma vez que começastes a matar-me,
completai vosso trabalho.
– Príncipe – replicou Pwyll –, posso ainda arrepender-me
por matar-vos. Faça-o quem o possa, pois eu não o farei.
– Meus fiéis senhores – gemeu Hafgan –, socorrei-me
desde agora. Minha morte chegou. Não mais serei capaz
de apoiar-vos.
– Meus nobres – também falou aquele que estava sob a
semelhança de Arawn –, deliberai e dizei quem deveriam
ser os meus homens.
– Senhor – disseram os nobres –, todos poderiam ser
vossos homens, pois já não há rei algum sobre Annwfyn
além de vós.
33

– Sim – disse Pwyll –, está certo que aquele que vem


com humildade seja recebido graciosamente, mas aquele
que não vem com obediência seja compelido pela força
das espadas.

Ele recebeu depois as homenagens dos homens e


começou a conquista do país. No dia seguinte, por volta
do meio-dia, os dois reinos estavam em seu poder. Logo
depois, ele foi manter seu compromisso e chegou a Glyn
Cuch. Quando chegou lá, o rei de Annwfyn esperava para
encontrá-lo e cada um regozijou-se ao ver o outro.

– Verdadeiramente – disse Arawn –, possa o Céu


recompensar-vos pela vossa amizade por mim, eu ouvi
falar disso! Quando vós mesmo chegardes a vossos
domínios, vereis o que fiz por vós.
– O Céu possa premiar-vos por qualquer coisa que
tenhais feito por mim – respondeu-lhe Pwyll.

Então, Arawn restituiu a Pwyll, príncipe de Dyfed, sua


própria forma e semelhança e ele próprio retomou as
suas. Arawn partiu para a corte de Annwfyn [lẏs ẏ
annwuẏn] e alegrou-se ao contemplar os habitantes e o
palácio que não vira por tão longo tempo. Porém, como
não chegaram a perceber sua ausência, não se espantaram
de sua vinda mais do que o habitual. O dia da chegada foi
gasto com alegria e divertimentos e Arawn sentou-se
com sua esposa e seus nobres. Quando já era mais hora
de dormir que de divertir-se, foram todos descansar.

Pwyll, príncipe de Dyfed, veio igualmente ao seu país e


domínios, começando a indagar dos nobres da terra como
34

fora seu governo no último ano em comparação com o


que antes tinha sido.

– Senhor – disseram eles –, jamais foi tão grande vossa


sabedoria, nunca fostes tão gentil ou tão liberal ao
distribuirdes vossos dons e em época alguma vossa
justiça foi vista assim tão meritória quanto no último ano.
– Pelo Céu! – exclamou Pwyll. – Por todo o bem de que
desfrutastes deveríeis agradecer-lhe pelo que vos fez,
pelo modo como se resolveu esse assunto.

E depois Pwyll relatou-lhes toda a aventura.

– Em verdade, senhor – disseram eles -, rendei graças ao


Céu por haverdes alcançado tal amizade e não nos
negueis o governo de que desfrutamos neste ano que
passou.
– Tomo o Céu como testemunha de que não vô-lo
negarei – respondeu Pwyll.

E desde então fortaleceram a amizade que havia entre


eles e cada um enviou ao outro cavalos, galgos, falcões e
todas as joias que pensaram poderiam agradar ao outro.
Por motivo da sua permanência daquele ano em
Annwfyn, por havê-lo governado tão prosperamente, em
um só dia unindo os dois reinos através de seu valor e
coragem, desde aquela época em diante Pwyll perdeu seu
título de príncipe de Dyfed e foi chamado de “Senhor de
Annwfyn” [penn annwuẏn].
35

IV
Rhiannon

Certa vez, Pwyll estava em Aarberth, seu palácio


principal onde uma festa fora preparada para ele, e com
ele havia uma grande multidão de homens. Após a
primeira refeição, Pwyll levantou-se e subiu ao topo de
um monte que estava além do palácio, chamado Gorsedd
Arberth. Disse-lhe um da corte:

– Senhor, é próprio deste monte que qualquer um a


sentar-se sobre ele não possa partir sem antes receber
ferimentos ou golpes ou ainda ver alguma maravilha.
– Eu – respondeu Pwyll – não temo receber ferimentos
ou golpes no meio de uma multidão como esta. Agradar-
me-ia muito, porém, ver essa maravilha de que falais. Lá
irei então me sentar no monte.

E no alto do monte sentou-se. Enquanto lá estava


sentado, viu uma dama montada num grande cavalo
puramente branco, envolvida numa veste de dourado
brilhante, vindo pela estrada que partia do monte.

– Homens – disse Pwyll -, há algum dentre vós que


conheça aquela dama?
– Não há, senhor – tornaram eles.
– Vá um de vós e conheça-a para que possamos saber
quem é.

Um deles ergueu-se e foi até a estrada para conhecê-la,


mas ela passou. O homem seguiu-a tão depressa quanto
pôde estando a pé, e, quanto maior era sua velocidade,
36

mais ela se distanciava dele. Ao perceber que de nada lhe


adiantaria segui-la, retornou a Pwyll e disse-lhe:

– Senhor, é impossível a qualquer um no mundo segui-la


a pé.
– Realmente, vai ao palácio, toma o cavalo mais rápido
que vires e persegue-a – ordenou o príncipe.

Ele tomou então um cavalo e seguiu adiante. Chegou a


um descampado e esporeou seu cavalo. Contudo, quanto
mais o apressava, mais ela se afastava dele, mantendo
ainda o mesmo passo de antes. O cavalo dele começou a
falhar e, quando as patas do animal deram sinal de que
não prosseguiriam, o cavaleiro retornou ao lugar em que
Pwyll estava.

– Senhor – disse ele –, ninguém terá proveito em seguir


aquela dama. Não conheço nestes reinos qualquer cavalo
mais rápido que este, o qual não foi capaz de ajudar-me a
persegui-la.
– Na verdade – respondeu Pwyll -, deve haver alguma
ilusão aqui. Partamos para o palácio.

Partiram assim para o palácio e lá passaram aquele dia.


Levantaram-se no dia seguinte e estiveram no palácio até
a hora de comer. Depois da refeição, Pwyll determinou:

– O mesmo grupo de ontem, nós iremos para o topo do


monte. E tu – disse ele para um dos rapazes que o
acompanhavam –, leva ao campo o mais rápido cavalo
que conheceres.
37

Assim fez o jovem e foram todos para o monte, levando


o cavalo consigo. Estando já sentados, viram a dama no
mesmo cavalo, com as mesmas vestes e vindo pela
mesma estrada.

– Vede – exclamou Pwyll –, eis ali a mesma dama de


ontem! Fica pronto jovem, para saber quem ela é.
– Fá-lo-ei alegremente, meu senhor.

Logo depois, veio a dama na direção oposta à deles. E o


rapaz montou no cavalo, mas ela passou antes mesmo
que ele se houvesse acomodado na sela e havia um claro
espaço entre eles, embora a velocidade dela não fosse
maior que a do dia anterior. O jovem, pois, colocou-se a
caminho e pensou que, apesar do passo suave de sua
montaria, haveria de alcançá-la rapidamente. Entretanto,
isso não o serviu e ele deu de rédeas no cavalo. Ainda
assim, não chegou mais perto dela do que se estivesse a
pé e, quanto mais apressava seu cavalo, mais ela se
distanciava dele. A dama, contudo, não cavalgava mais
rápido do que antes. Ao ver que de nada lhe adiantaria
segui-la, retornou ao lugar onde Pwyll estava.

– Senhor – disse ele –, o cavalo não pode mais nada além


do que já vistes.
– Percebo sem dúvida que não seria de auxílio a qualquer
um que devesse segui-la. E, pelo Céu, ela deve ter
alguma tarefa a cumprir para alguém nesta planície, se
sua pressa nos permite afirmá-lo. Mas voltemos ao
palácio.
38

E para o palácio eles foram, passando aquela noite com


canções e celebração, como lhes agradou.

No dia seguinte, eles se divertiram até chegar a hora de


comer e, quando a refeição terminou, Pwyll disse:

– Onde estão todos aqueles que ontem e no dia anterior


foram ao cimo do monte?
– Vede, senhor – responderam eles –, aqui estamos.
– Vamos ao monte e sentemo-nos lá. E tu – ordenava
Pwyll ao pajem que conduzia seu cavalo –, sela bem meu
cavalo, apressa-te com ele para a estrada e traze também
minhas esporas contigo.

Assim fez o jovem. E eles foram e sentaram-se no monte.


Antes que estivessem lá por mais que um curto tempo,
perceberam a dama vindo pela mesma estrada, da mesma
maneira e com o mesmo passo.

– Rapaz – disse Pwyll –, eu vejo a dama chegando. Dá-


me meu cavalo.

Mas ela passou por ele antes mesmo que houvesse


acabado de montar no cavalo. Pwyll virou depois dela e
seguiu-a. Ele deixou que seu cavalo saltasse alegremente
e pensou que se aproximaria dela no segundo ou terceiro
salto, mas não conseguiu chegar mais perto do que estava
no princípio. Fez então o cavalo acelerar-se à velocidade
máxima, porém percebeu que seria inútil para segui-la.

– Ó donzela – gritou-lhe Pwyll –, pelo amor de quem


mais amais, esperai-me.
39

– Com prazer vos esperarei – disse ela – e seria melhor


para o vosso cavalo que o tivésseis pedido desde logo.

Ela então deixou cair de sua cabeça a parte da veste que


lhe cobria o rosto. Fixou seus olhos em Pwyll e começou
a falar-lhe.

– Senhora – perguntou ele –, de onde vindes e para onde


vos dirigis em vossa jornada?
– Viajo a meu próprio serviço e estou certamente
contente em vos ver.
– Sejam para vós minhas saudações.

Pwyll então pensou que a beleza de todas as donzelas e


de todas as damas que jamais vira não era nada em
comparação com a dessa jovem.

– Senhora, não quereis dizer-me algo acerca do vosso


propósito?
– Contar-vos-ei – disse ela. – minha principal busca era
para encontrar-vos.
– Ora, essa é para mim a mais agradável procura que vos
poderia ter trazido. E não quereríeis dizer-me quem sois?
– Sou Rhiannon, filha de Hefeyd Hen [Riannon uerch
heueẏd hen] e procuram dar-me um marido contra minha
vontade. Mas eu não teria um marido em razão do meu
amor por vós e nem terei um, a menos que me rejeiteis. E
aqui eu vim ouvir vossa resposta.
– Pelo Céu, esta é a minha resposta: pudesse eu escolher
entre todas as damas e donzelas do mundo, a vós eu
escolheria.
40

– Verdadeiramente, se assim pensais, fazei a promessa de


irdes conhecer-me antes que eu seja dada a outro.
– Maior será meu prazer quanto mais cedo puder fazê-lo
e irei encontrar-me convosco em qualquer lugar onde o
desejeis.
– Desejo que me encontreis em um ano a contar deste dia
no palácio de Hefeyd. E farei com que seja preparado um
banquete, de modo que esteja pronto quando vierdes.
– Com satisfação manterei meu compromisso.
– Senhor, permanecei com saúde e sede cuidadoso para
manterdes vossa promessa. E agora eu me vou.

Assim eles se separaram. Pwyll voltou para onde estavam


seus homens e seguiu com eles para casa. E, ao ouvir
quaisquer perguntas que lhe fizessem sobre a donzela,
desviava a conversa para outros assuntos.

V
No palácio de Hefeyd Hen

E, quando se passou um ano desde aquele dia, Pwyll fez


cem cavaleiros equiparem-se e acompanharem-no ao
palácio de Hefeyd Hen. Ele chegou ao palácio e havia
grande alegria por sua causa, multidões de pessoas
regozijando-se e vastos preparativos para sua vinda. Toda
a corte foi colocada sob suas ordens.

O salão estava guarnecido, todos foram para a refeição e


sentaram-se. Hefeyd Hen estava a um lado de Pwyll e
Rhiannon do outro. Eles comeram e festejaram e
conversaram um com o outro e, ao começar o
divertimento depois da comida, adentrou o salão um alto
41

jovem ruivo, de aparência real, vestido com um traje de


cetim. Quando entrou no salão, saudou Pwyll e seus
companheiros.

– A saudação do Céu esteja convosco, minha alma –


disse Pwyll. – Vinde e sentai-vos.
– Não – o recém-chegado respondeu -, eu sou um
pretendente e cumprirei minha incumbência.
– Fazei-o de boa-vontade.
– Senhor, minha incumbência é para convosco, é
pretendendo um dom vosso que venho.
– Qualquer benefício que possais pedir-me, desde que
esteja ao meu alcance, vós o obtereis.
– Ah! – Rhiannon exclamou. – Portanto lhe destes essa
resposta?
– Porventura não a deu ele na presença de todos estes
nobres? – perguntou o rapaz.
– Minha alma, qual é o dom que pedis?
– A dama que mais amo está para tornar-se vossa noiva
nesta noite. Vim para vô-la pedir, com a festa e o
banquete neste lugar.

A resposta que lhe fora dada deixou Pwyll silencioso.


Rhiannon lhe falou:

– Ficai silencioso tanto quanto quiserdes. Nunca homem


algum fez pior uso de sua inteligência do que vós.
– Senhora, eu não sabia quem ele era.
– Ora, esse é o homem a quem desejavam dar-me contra
minha vontade. Ele é Gwawl, o filho de Clud [gwaul uab
clut], um homem de grande poder e riqueza e, em razão
42

da palavra que dissestes, entregai-me a ele para que a


vergonha não caia sobre vós.
– Não compreendo vossa palavra, senhora. Nunca
poderei fazer como dizeis!
– Entregai-me a ele e eu farei com que eu jamais seja
dele.
– Através de quais meios o fareis?
– Darei em vossas mãos um saquinho, cuidai de guardá-
lo bem. Gwawl vos pedirá o banquete, a festa e os
preparativos, que não estão em vosso poder. Em relação
aos convidados e à casa, eu lhe darei isso. No que
concerne a mim mesma, concordarei em tornar-me sua
noiva em doze meses a contar desta noite. Que estejais
aqui ao fim desse ano e trazei este saco convosco,
deixando também que vossos cem cavaleiros fiquem
escondidos no pomar além do palácio. E, quando ele
estiver no meio da alegria e festejando, entrai no salão
vestido em trajes rotos, segurando esse saco em vossas
mãos. Não lhe pedireis nada além de um saco cheio de
comida. E eu farei com que, se toda carne e toda bebida
existentes nestas sete províncias forem colocadas dentro
dele, ainda assim o saco não fique mais cheio do que
antes. Depois que uma grande quantia tenha sido posta
ali dentro, ele vos perguntará se vossa bolsa já está cheia.
Direis então que ela nunca se encherá, a menos que surja
um homem de nobre nascimento e grande riqueza e
pressione a comida no saco com ambos os pés, dizendo:
“Bastante foi colocado aí dentro”. Eu farei com que ele
vá e empurre a comida para baixo dentro da bolsa e,
enquanto ele estiver assim ocupado, virai o saco de
maneira que Gwawl fique de cabeça para baixo dentro
dele. Trazei também ao redor do vosso pescoço uma
43

corneta de chifre e, tão logo o tenhais jogado no saco,


soprai o chifre e seja esse o sinal entre vós e vossos
cavaleiros. Quando eles ouvirem o som do chifre, que
desçam ao palácio.
– Senhor – disse Gwawl, impaciente –, espera-se que eu
tenha uma resposta ao meu pedido.
– Como está em meu poder dar-vos muito do que
pedistes, vós o tereis – replicou Pwyll.
– Minha alma – Rhiannon falou a Gwawl -, sobre a festa
e o banquete que aqui estão, eu os ofereci aos homens de
Dyfed e a casa e os guerreiros que estão conosco. Estes
eu não posso suportar que sejam dados a qualquer um.
Em um ano a contar desta noite, um banquete será
preparado para vós neste palácio a fim de que eu possa
tornar-me vossa noiva.

VI
O jogo do Texugo na Bolsa
O casamento de Rhiannon e Pwyll

Assim, Gwawl partiu para seus domínios e Pwyll


também voltou para Dyfed. E todo aquele ano se passou,
até chegar o tempo do banquete no palácio de Hefeyd
Hen. Então Gwawl, o filho de Clud, foi à festa que lhe
fora preparada no palácio, onde houve grande alegria no
momento de sua chegada. E Pwyll também, o rei de
Annwfyn, veio ao pomar com seus cem cavaleiros,
consoante Rhiannon lhe ordenara, trazendo o saco
consigo. Pwyll usava vestimentas grosseiras e rasgadas e
calçava sapatos desajeitados, grandes demais para seus
pés. Quando ele soube que haviam começado as
diversões após a refeição, ele foi em direção ao salão e,
44

ao adentrá-lo, saudou Gwawl, filho de Clud, e seus


companheiros, tanto homens quanto mulheres. Gwawl
respondeu-lhe:

– O Céu vos faça prosperar e a saudação do Céu esteja


convosco.
– Senhor – disse Pwyll –, possa o Céu recompensar-vos,
tenho um dom para vos pedir.
– Bem-vindo seja vosso rogo e, se me pedirdes o que é
justo, com satisfação o alcançareis.
– Está certo. O benefício que peço e além do qual nada
desejo é que se encha com carne este saquinho que vedes.
– Um pedido razoável é esse e prazerosamente o tereis.
Trazei-lhe comida – Gwawl ordenou.

Surgiu um grande número de criados que começaram a


encher a bolsa, mas, apesar de tudo que lhe punham
dentro, não estava mais cheia do que ao começarem. E
Gwawl perguntou:

– Minha alma, não se encheu ainda esse vosso saco?


– Não se encherá, juro pelo Céu, a não ser que apareça
um possuidor de terras e domínios e tesouros e empurre
com ambos os seus pés a comida que está dentro do saco,
enquanto diz: “Bastante foi colocado aí dentro”.

Rhiannon então disse a Gwawl, o filho de Clud:

– Erguei-vos rapidamente.
– Com boa-vontade me erguerei – Gwawl replicou.
45

Ele se levantou e pôs os dois pés dentro do saco.


Imediatamente Pwyll virou a bolsa, ficando Gwawl de
cabeça para baixo lá dentro. Fechou-a depressa e fez um
forte nó com os cordões. Soou o chifre e logo os de sua
casa que estavam escondidos desceram sobre o palácio.
Eles prenderam todos os que tinham vindo com Gwawl e
jogaram-nos em sua própria prisão. Pwyll livrou-se dos
trapos, dos sapatos velhos e de todos os andrajos. Cada
um dos seus cavaleiros que entravam dava um golpe no
saco, perguntando:

– O que tem aí?


– Um texugo – respondiam os outros.

Cada um que entrava perguntava:

- Que jogo estais jogando assim?


- O jogo do texugo na bolsa.

E foi então jogado pela primeira vez o jogo do “Texugo


na Bolsa” [guare broch ẏg got].

– Senhor – disse o homem dentro do saco -, se apenas


quiserdes ouvir-me, não mereço ser morto em um saco.
– Senhor – Hefeydd Hen interveio –, ele fala a verdade. É
adequado que o escuteis, pois ele não merece tal destino.
– Realmente, seguirei vossa orientação quanto a ele –
disse Pwyll.
– Vede – Rhiannon falou –, este é então o meu conselho.
Estais agora numa posição em que vos compete satisfazer
pretendentes e trovadores. Deixai que ele o faça em
vosso lugar e tomai dele a promessa de que não buscará
46

vingança por tudo que lhe foi feito. E isso será punição
suficiente.
– Com prazer farei o que dissestes – gemeu o homem
dentro do saco.
– Com prazer eu o aceitarei – tornou Pwyll –, uma vez
que é a deliberação de Hefeydd e Rhiannon.
– Tal é então nosso conselho – responderam eles.
– Fazei que vos dê as garantias.
– Nós responderemos por ele até que seus homens
estejam livres para fazê-lo – disse Hefeydd.

Deixaram-no então sair da bolsa e seus vassalos foram


libertados.

– Exigi agora de Gwawl as garantias – Hefeydd dizia. –


Sabemos quais deveriam ser-lhe tomadas.

E Hefeydd enumerou as garantias. Disse Gwawl:

– Preparai vós mesmos o acordo.


– Bastar-me-á que seja feito como Rhiannon disse –
respondeu Pwyll.

Estavam assim empenhadas as garantias para aquele


acordo.

– Na verdade, senhor – falava Gwawl –, estou


grandemente ferido e necessito de um banho. Tenho
necessidade de ser medicado e com vossa permissão eu
partirei. Deixarei alguns de meus nobres em meu lugar
para que respondam a todos que vos façam solicitações.
– Com toda a minha boa-vontade podeis fazê-lo.
47

Assim, Gwawl partiu para seus próprios domínios.

E o salão foi preparado para Pwyll e os homens de sua


companhia. Todos foram para as mesas e sentaram-se
naquela noite como se haviam sentado um ano antes.
Eles comeram e festejaram e passaram a noite em alegria
e tranquilidade, até chegar o momento em que todos
deveriam dormir, quando Pwyll e Rhiannon foram para
seus aposentos. Na manhã seguinte, ao raiar do dia,
Rhiannon disse:

– Meu senhor, levantai-vos e começai a dar vossos


presentes aos menestréis. Hoje a ninguém recuseis que
vos possa reclamar a generosidade.
– Assim seja alegremente – Pwyll respondeu –, tanto
hoje quanto em todos os dias em que deva durar a
comemoração.

E assim Pwyll surgiu e fez que se proclamasse o silêncio,


a fim de que todos os pretendentes e menestréis
expusessem e mostrassem que dons eram de sua vontade
e desejo. Tendo isso sido feito, a festa continuou e Pwyll
nada recusou a quem quer que fosse enquanto ela durou.
Quando o banquete enfim terminou, Pwyll dirigiu-se a
Hefeydd:

– Meu senhor, com vossa permissão partirei amanhã para


Dyfed.
– Certamente – respondeu o sogro –, possa o Céu
prosperar convosco. Fixai também um tempo quando
Rhiannon possa seguir-vos.
– Sem dúvida iremos juntos.
48

– Isso desejais, senhor?


– Sim, pelo Céu – Pwyll afirmou.

No dia seguinte, eles partiram para Dyfed e viajaram para


o palácio de Arberth, onde um banquete estava sendo
preparado para recebê-los. Lá, veio até eles um grande
número de homens importantes e as mais nobres damas
da terra e, de todos esses, não houve um só a quem
Rhiannon não desse um rico presente, fosse uma pulseira,
um anel ou alguma pedra preciosa. E eles governaram o
país prosperamente naquele ano e no seguinte.

VII
Nascimento e rapto de Pryderi

E, no ano seguinte, os nobres do país começaram a


entristecer-se, vendo que um homem a quem tanto
amavam e que, além disso, era seu senhor e irmão de
criação, sem um herdeiro. Vieram até ele e o lugar onde
se encontraram foi Preseleu, em Dyfed. Disseram os
nobres:

– Senhor, sabemos que não sois tão jovem quanto alguns


homens deste país e tememos não possais ter um herdeiro
da esposa que tomastes. Tomai, pois, outra esposa de que
possais ter herdeiros. Não podeis continuar sempre
conosco e, embora desejeis permanecer como estais, não
vô-lo permitiremos.
– Verdadeiramente – tornou Pwyll –, não faz muito
tempo que nos unimos e muitas coisas podem ainda
acontecer. Concedei-me um ano a partir de agora e pelo
49

espaço de um ano nós ficaremos juntos. Depois disso,


farei de acordo com vossos desejos.

Os nobres assim lhe permitiram fazer. E, antes do fim do


ano, nasceu-lhes um filho. Ele nasceu em Arberth e, na
noite em que nasceu, foram trazidas mulheres para
assistir a mãe e o menino. As mulheres dormiram, bem
como Rhiannon, a mãe do menino. O número de
mulheres trazidas ao quarto era seis. Elas vigiaram por
uma boa parte da noite, mas, antes da meia-noite, cada
uma delas caiu adormecida e somente despertaram perto
do amanhecer. Quando acordaram, olharam para onde
tinham colocado o menino e perceberam que ele não
estava lá.

– Oh – disse uma das mulheres –, o menino desapareceu!


– Sim – disse outra – e será uma vingança pequena se
formos queimadas ou levadas de outra forma à morte por
causa da criança.
– Há no mundo – perguntava uma terceira – algum
conselho que nos possa ser útil em relação a isso?
– Há sim – respondeu outra –, ofereço-vos um bom
conselho.
– Qual é?
– Há uma cadela de caça aqui e ela tem uma ninhada de
filhotes. Matemos alguns dos cãezinhos e esfreguemos o
sangue na face e mãos de Rhiannon e depositemos os
ossos diante dela. Afirmemos que ela própria devorou
seu filho. Sozinha, não será capaz de contradizer-nos.

Tudo foi feito de acordo com essa deliberação. Ao


acordar de manhã, Rhiannon disse:
50

– Mulheres, onde está meu filho?


– Senhora, nada queirais perguntar-nos em relação a
vosso filho, nada temos além das feridas e contusões que
recebemos lutando convosco. Na verdade, jamais vimos
mulher tão violenta quanto vós, por isso de nada nos
adiantou contender convosco. Não devorastes vós mesma
o vosso filho? Assim, não o reclameis de nós.
– Tende piedade – disse a mãe –, o Senhor Deus sabe
todas as coisas! Não me acuseis falsamente. Se é por
medo que me falais essas coisas, juro pelo Céu que vos
hei de defender!
– Em verdade – retrucaram as mulheres –, nós mesmas
não desejamos provocar o mal a ninguém no mundo.
– Por misericórdia, não recebereis qualquer mal dizendo
a verdade – implorava Rhiannon.

Mas, a todas as suas palavras, fossem suaves ou severas,


ela recebia a mesma resposta das mulheres.

E Pwyll, Senhor de Annwfyn, surgiu e com ele toda a sua


casa e as multidões que o acompanhavam. O fato não
pôde ser escondido, mas sua história passou adiante,
atravessou o país e os nobres ouviram-na. Eles vieram até
Pwyll e pediram-lhe que aprisionasse sua esposa, em
razão do grande crime que cometera. Mas Pwyll
respondeu-lhes que não possuíam um motivo para pedir-
lhe que prendesse sua esposa, exceto por ela não ter
filhos.

– Mas filhos, ela agora mostrou que pode tê-los, então


não a prenderei. Se ela fez mal, deixai-a penitenciar-se
por isso – disse o príncipe.
51

Assim, Rhiannon chamou os mestres e os homens sábios


e, como preferiu o castigo a enfrentar as mulheres, tomou
sobre si uma penitência. E, pela pena que lhe foi imposta,
ela deveria permanecer naquele palácio de Arberth até
que se passassem sete anos, sentando-se diariamente em
um montadouro que estava sem o portão. Ela deveria
contar sua história a todos os que lá chegassem os quais
pudesse supor que ainda não a soubessem. Ela deveria
oferecer-se aos convidados e estranhos, pedindo a estes
que lhe permitissem carregá-los em suas costas ao
interior do palácio. Mas raramente ocorreu que qualquer
um o aceitasse. Desse modo ela passou parte do ano.

VIII
A égua de Teirnyon

Naqueles dias, Teirnyon Twryf Fliant [teirnon twrẏf


uliant] era o senhor de Gwent Is Coed e era o melhor
homem do mundo. Em sua casa havia uma égua que não
se podia encontrar no reino outra égua ou cavalo mais
bonitos. Na noite de cada primeiro de maio [nos
calanmei ẏ moei], ela paria e ninguém sabia o que
acontecia ao potro. Certa noite, Teirnyon disse a sua
esposa:

– Mulher, é muito fácil para nós que nossa égua deva


parir todos os anos e não tenhamos nenhum dos seus
potros.
– E o que podemos fazer a esse respeito?
– Esta é a noite do primeiro de maio. A vingança do Céu
caia sobre mim se eu não descobrir quem é que leva os
potros!
52

Assim, ele ordenou que a égua fosse trazida para dentro


de uma casa e armou-se. Teirnyon começou a vigiar
naquela noite. Logo no começo da noite, a égua pariu um
grande e belo potro. O animalzinho já se estava pondo
em pé. Teirnyon ergueu-se, olhou o tamanho do potro e,
enquanto o fazia, ouviu um grande tumulto. Logo depois,
viu uma enorme garra entrar pela janela da casa e agarrar
o potro pela crina. Teirnyon puxou sua espada e golpeou
o braço no cotovelo, de forma que a porção do braço que
agarrava o potro ficou na casa com ele. Imediatamente,
Teirnyon escutou outro rebuliço e um alto lamento. Abriu
a porta e correu para fora na direção do barulho, no
entanto a escuridão da noite impediu-o de ver a causa de
toda a agitação. Ele correu atrás da coisa e seguiu-a.
Lembrou-se então de ter deixado a porta aberta e
retornou. Viu que havia à porta uma criancinha usando
fraldas, enrolada numa manta de seda. Ele tomou-a,
vendo que era um menino muito forte para a pouca idade
que tinha. Teirnyon então fechou a porta, indo para o
quarto onde sua esposa estava.

– Senhora – disse ele –, estais dormindo?


– Não, senhor. Eu estava adormecida, mas despertei
quando entrastes.
– Vede, eis aqui para vós um menino, se o quiserdes,
uma vez que nunca tivestes um.
– Que aventura foi essa, meu senhor?
– Foi assim... – respondeu Teirnyon e contou-lhe como
tudo havia acontecido.
– Na verdade, senhor, como estava ele vestido?
– Usava uma manta de seda.
53

– É então de nobre linhagem – replicou a esposa. – Meu


senhor, se o quiserdes eu terei grande alegria e satisfação.
Chamarei a mim minhas mulheres e lhes direi que estive
grávida.
– Prontamente permito que o façais.

E assim agiram eles. Determinaram que o menino fosse


batizado e lá foi realizada a cerimônia. O nome que lhe
deram foi Gwri Wallt Euryn [gwri wallt eurẏn], porque o
cabelo em sua cabeça era tão amarelo quanto o ouro. O
menino foi criado na corte até um ano de idade. Antes
que o ano houvesse acabado, ele já podia caminhar com
segurança e era maior do que um menino de três anos, até
mesmo do que um de grande tamanho. E o menino foi
cuidado no segundo ano, sendo então maior do que uma
criança de seis anos. Antes do final do quarto ano, ele
subornaria os cavalariços para que lhe permitissem levar
os cavalos à água.

– Meu senhor – disse a Teirnyon sua esposa –, onde está


o potro que salvastes na noite em que encontrastes o
menino?
– Ordenei aos cavalariços que cuidassem dele.
– Não seria bom, senhor, determinardes que ele fosse
trazido e dado ao menino, vendo que, na mesma noite em
que encontrastes o menino, o potro nasceu e vós o
salvastes?
– Não me oporei a vós nessa questão. Permitir-vos-ei
dar-lhe o potro.
– Senhor, possa o Céu recompensar-vos. Dá-lo-ei ao
menino.
54

Assim, o cavalo foi dado ao menino. Ela foi então aos


cavalariços e àqueles que cuidam dos cavalos e ordenou-
lhes tomarem conta do animal, de forma que pudesse ser
trazido tão logo o menino estivesse apto a montá-lo.

IX
O retorno de Pryderi

Enquanto essas coisas se passavam, eles ouviram


novidades sobre Rhiannon e o seu castigo. E Teirnyon
Twrif Fliant, por causa da piedade que sentia ao ouvir tal
história sobre Rhiannon e seu castigo, fez indagações
minuciosas a esse respeito, até já ter ouvido muitos dos
que vinham a sua corte. Então Teirnyon, repetidas vezes
lamentando a triste história, ponderou consigo mesmo e
olhou com grande atenção o menino. Enquanto o
observava, pareceu-lhe que jamais vira tão grande
semelhança entre pai e filho quanto entre o menino e
Pwyll, Senhor de Annwfyn. O rosto de Pwyll era-lhe bem
conhecido, pois fora outrora um de seus seguidores. Ele
foi logo depois afligido pelo erro que cometera,
mantendo junto a si um menino que sabia ser o filho de
outro homem. E, na primeira vez que ficou a sós com sua
esposa, Teirnyon lhe disse que não era correto manterem
o menino consigo, permitindo que uma senhora tão
excelente quanto Rhiannon fosse tão duramente castigada
por causa dele, uma vez que o menino era o filho de
Pwyll, Senhor de Annwfyn. A esposa concordou com ele
que deveriam mandar o menino para Pwyll.

– E três coisas, senhor – disse ela –, assim ganharemos.


Agradecimentos e presentes por libertar Rhiannon de sua
55

punição, agradecimentos de Pwyll por alimentar e


restituir-lhe seu filho e, se o menino for de natureza
gentil, será nosso filho adotivo e fará por nós todo o bem
que estiver em seu poder.

Assim foi resolvido de acordo com essa deliberação.

Não depois do dia seguinte, Teirnyon equipou-se e com


ele dois outros cavaleiros. O menino, como um quarto em
sua companhia, foi com eles no cavalo que Teirnyon lhe
dera. Eles viajaram para Narberth e não levaram muito
tempo para chegar ao lugar. Quando se aproximaram do
palácio, viram Rhiannon sentada junto ao montadouro.
Eles vinham em sua direção e ela lhes falou.

– Chefe, não vos aproximeis mais, eu carregarei cada um


de vós para dentro do palácio. Esse é meu castigo por
matar meu próprio filho e devorá-lo.
– Boa dama – disse Teirnyon –, não penseis levar-me em
vossas costas.
– Tampouco a mim – acrescentou o menino.
– Realmente, minha alma – Teirnyon falou à criança –,
não iremos desse modo.

Entraram assim no palácio e houve grande alegria pela


sua chegada. No palácio, uma grande festa havia sido
preparada, pois Pwyll retornara dos confins de Dyfed.
Entraram no salão e lavaram-se e Pwyll alegrou-se por
ver Teirnyon. Sentaram-se nesta ordem: Teirnyon entre
Pwyll e Rhiannon e os dois companheiros de Teirnyon do
outro lado de Pwyll, com o menino entre eles. Depois da
refeição, começaram a divertir-se e discursar. O discurso
56

de Teirnyon era concernente à aventura da égua e do


menino e de como ele e sua esposa tinham alimentado e
cuidado da criança como se fosse sua.

– E vede, aqui está o menino, senhora – disse Teirnyon. –


Agiu mal quem quer que tenha dito aquela mentira a
vosso respeito. Quando ouvi sobre vossa tristeza, fiquei
preocupado e aflito. Acredito não haver ninguém nesta
multidão que não perceberá ser este menino o filho de
Pwyll.
– Não há um só – responderam todos – que não esteja
certo disso.
– Juro pelo Céu – Rhiannon exclamou – que, se isso for
verdade, sem dúvida minhas dificuldades chegaram ao
fim.
– Senhora – falou Pendaran Dyfed [pendaran dẏuet] –,
bem chamastes Pryderi vosso filho e bom tornou-se para
ele o nome de Pryderi, filho de Pwyll, Senhor de
Annwfyn.
– Senhor – disse Rhiannon –, o seu próprio nome não
seria melhor para ele?
– Que nome ele tem? – perguntou Pendaran Dyfed.
– Gwri Gwallt Euryn – respondeu Teirnyon – é o nome
que lhe demos.
– Pryderi – Pendaran disse – será o seu nome.
– Seria mais apropriado – interveio Pwyll – que o menino
tomasse o nome da palavra que sua mãe falou ao receber
as felizes novidades a seu respeito.

Assim foi resolvido de acordo com essa deliberação.


57

– Teirnyon – disse Pwyll –, o céu vos recompense por


haverdes cuidado do menino até este momento e, sendo
de linhagem nobre, seria apropriado que ele vos
retribuísse por isso.
– Meu senhor – respondeu Teirnyon –, foi minha esposa
quem o alimentou e não houve ninguém no mundo tão
aflito por vê-lo partir quanto ela. Seria bom que ele
pudesse lembrar-se do quanto eu e minha esposa fizemos
por ele.
– Chamo o Céu como testemunha de que, enquanto eu
viver, hei de apoiar-vos e a vossos domínios, tanto
quanto eu possa preservar os meus próprios. E, quando
ele subir ao poder, irá sustentá-los mais adequadamente
do que eu. E, se esta deliberação for agradável a vós e
aos meus nobres, ocorrerá que, como cuidastes dele até
esta data, eu o entregarei para ser conduzido por
Pendaran Dyfed de agora em diante. E vós sereis
companheiros e ambos pais adotivos do menino.

– Essa é uma boa deliberação – disseram todos.

Assim, o menino foi dado a Pendaran Dyfed e os nobres


do país foram enviados com ele. Teirnyon Twrif Fliant e
seus companheiros partiram para seu país e suas posses,
com carinho e alegria, não sem que antes lhe fossem
oferecidos os melhores cavalos, os cães mais escolhidos e
as mais belas joias. Mas nada quis levar para si.

Todos depois permaneceram em seus próprios domínios.


E Pryderi, filho de Pwyll, Senhor de Annwn [prẏderi uab
pwẏll penn annwn], foi cuidadosamente educado, como
era mister, de modo que se tornou o mais decente rapaz e
58

o mais gracioso e mais habilidoso em todos os bons jogos


do que qualquer outro no reino. Passaram-se anos e anos,
até que o fim da vida de Pwyll, Senhor de Annwn,
chegou e ele morreu.

E Pryderi governou prosperamente as Sete Províncias de


Dyfed. Era amado por seu povo e por todos ao seu redor.
À extensão de seu reino, ele acrescentou as três
províncias de Ystrad Tywi e as quatro províncias de
Cardigan. Estas foram chamadas as Sete Províncias de
Seissyllwch. Quando fez esta adição, Pryderi, filho de
Pwyll, o Senhor de Annwn, quis tomar uma esposa. A
escolhida foi Cicfa, filha de Gwynn Gohoyw, filho de
Gloyw Wallt Lydan, filho do Príncipe Casnar, um dos
nobres desta ilha [kicua uerch wẏnn gohoẏw uab gloẏw
wallt lẏdan uab cassnar wledic o dẏledogẏon ẏr ẏnẏs
hon].

E assim termina o ramo destes mabinogion aqui [ac


ẏuellẏ ẏ teruẏna ẏ geing hon ẏma o’r mabẏnnogẏon].
O SEGUNDO RAMO

BRANWEN FILHA DE LLYR


61

O Segundo Ramo (Yr ail gainc) conta como Branwen (“Corvo


Branco”), filha de Llyr (“Mar”), casa-se com Matholwch, rei da
Irlanda. Seu irmão, o gigante Bran, o Abençoado, dá a Matholwch
um caldeirão mágico que pode devolver a vida aos mortos.
Matholwch leva Branwen para a Irlanda, mas a maltrata. Bran vadeia
o Mar da Irlanda, rebocando atrás de si uma frota de navios de
guerra. Branwen é resgatada, mas todos os galeses são mortos,
exceto sete, e o próprio Bran é mortalmente ferido. Entre os sete que
escapam incluem-se Pryderi, Manawyddan e o bardo Taliesin. Eles
retornam a Gales e Bran pede que sua cabeça seja cortada e enterrada
no Monte Branco, onde hoje está a Torre de Londres, para proteger a
Grã-Bretanha de invasões. Bran significa “Corvo” e um bando de
corvos é ainda hoje mantido na Torre de Londres. A tradição diz que,
se os corvos deixarem a Torre, o país cairá sob a invasão estrangeira.

I
A chegada de Matholwch

B endigeid Fran, filho de Llyr [Bendigeiduran uab


llẏr], era o rei coroado desta ilha e era honrado
com a coroa de Londres [ac ardẏrchawc o goron
lundein]. Certa tarde, ele estava em Harlech, em
Ardudwy, na sua corte, e sentou-se no rochedo de
Harlech, examinando o mar [weilgi]. Com ele estavam
seu irmão Manawyddan, filho de Llyr [manawẏdan uab
llẏr], e seus irmãos por parte de mãe, Nissyen e
Efnissyen [nissẏen ac efnẏssẏen], e igualmente muitos
outros nobres, como era adequado ver-se em torno de um
rei. Seus dois irmãos pelo lado materno eram os filhos de
Eurosswydd [eurosswẏd] com sua mãe, Penardun, filha
de Beli, filho de Manogan [penardun uerch ueli uab
mẏnogan] . E um desses rapazes era um bom jovem, de
gentil natureza e faria a paz entre seus parentes, levando
seus familiares a ser amigos quando sua ira estivesse no
mais alto ponto; e esse era Nissyen. Mas o outro levaria
62

seus irmãos à contenda quando estivessem em perfeita


paz. Ao se sentarem, viram treze navios vindo
rapidamente do sul da Irlanda [o deheu iwerdon] em sua
direção. O vento soprava atrás deles e aproximavam-se
rapidamente.

– Vejo navios ao longe – disse o rei –, vindo velozmente


em direção a terra. Ordenai aos homens da corte que se
armem e vão até lá para descobrir suas intenções.

Assim, os homens armaram-se e foram rumo aos navios.


Ao verem os navios próximos, ficaram certos de jamais
ter visto embarcações melhor equipadas. Belas bandeiras
de cetim estavam nelas. Viram que um dos navios
sobrepujava os demais e enxergaram um escudo erguido
no lado do navio e a ponta do escudo voltada para cima
em sinal de paz. Os homens acercaram-se o suficiente
para poder conversar. Lançaram então os botes e vieram
para terra, saudando o rei, que já podia ouvi-los do lugar
onde estava, no rochedo sobre suas cabeças.

– O Céu vos faça prosperar – disse ele – e sede bem


vindos. A quem pertencem estes navios e quem é o chefe
entre vós?
– Senhor – eles disseram –, Matholwch, rei da Irlanda
[matholwch brenhin iwerdon], está aqui e estes navios
lhe pertencem.
– Para que ele vem? - perguntou o rei. – E ele virá a
terra?
– Ele veio até vós como pretendente, senhor – disseram
eles –, e não virá a terra a menos que obtenha de vós o
seu dom.
63

– E que seria isso? – inquiriu o rei.


– Ele deseja aliar-se convosco, senhor – disseram eles –,
pelo casamento [ẏm·gẏuathrachu] e vem para pedir
Branwen, filha de Llyr [branwen uerch lẏr], a fim de que,
se bem vos parecer, a Ilha dos Poderosos [ẏnẏs ẏ kedeirn]
possa unir-se à Irlanda [iwerdon], tornando-se ambas
mais fortes.
– Realmente – disse ele -, que venham a terra e vamos
então conversar.

E essa resposta foi levada a Matholwch.

– De boa vontade irei – disse ele.

Então desembarcou e receberam-no alegremente. Grande


foi a multidão no palácio naquela noite, reunindo a
comitiva do visitante e os da corte. No dia seguinte,
reuniram-se em conselho e resolveram dar a mão de
Branwen a Matholwch. Ela era uma das três principais
damas desta Ilha e a mais linda donzela do mundo.

E escolheram Aberffraw como o lugar onde se tornaria


sua noiva. Com essa finalidade partiram e rumo a
Aberffraw dirigiram-se as multidões. Matholwch e sua
comitiva em seus navios, Bendigeid Fran e seu séquito
por terra, até chegarem a Aberffraw. Em Aberffraw
começaram a festa e sentaram-se da seguinte maneira: o
rei da Ilha dos Poderosos [brenhin ẏnẏs ẏ kedeirn] e
Manawyddan, filho de Llyr, a um lado e Matholwch do
outro lado e Branwen, filha de Llyr, ao lado dele. E não
estavam dentro de uma casa, mas sob tendas. Casa
alguma jamais pôde conter Bendigeid Fran. Começaram
64

o banquete, divertiram-se e fizeram discursos. E quando


lhes era mais agradável dormir do que se divertirem,
foram descansar.

II
A ira de Efnissyen

No dia seguinte, eles se levantaram e todos os da corte e


os oficiais começaram a equipar e ordenar os cavalos e os
criados, dispondo-os ordenadamente ao longo do mar.

Nesse dia, Efnissyen, o homem briguento de quem


falamos acima [gwr anagneuedus a dẏwedassam uchot],
chegou por acaso ao local onde estavam os cavalos de
Matholwch e perguntou de quem os cavalos poderiam
ser:

– São os cavalos de Matholwch, rei da Irlanda, que se


casou com Branwen, vossa irmã; dele são os cavalos.
– E é então o que fizeram com uma moça como ela, além
de tudo minha irmã, entregaram-na sem meu
consentimento? Não me poderiam ter oferecido insulto
algum maior do que esse! - exclamou ele.

Lançou-se sobre os cavalos e cortou-lhes os lábios até os


dentes, as orelhas até perto de suas cabeças, os rabos
quase na raiz e, onde quer que pudesse agarrar suas
pálpebras, cortou-as até o osso, desfigurando os cavalos e
tornando-os inúteis.

Chegaram com essas novas a Matholwch, dizendo que os


cavalos haviam sido desfigurados e machucados, de
65

forma a nenhum deles jamais poder ser utilizado outra


vez.
– De fato, senhor – disse um da comitiva –, foi um
insulto contra vós e como tal deve ser entendido.
– Na verdade, é um espanto para mim que, se desejavam
insultar-me, me houvessem dado uma donzela de tão alta
estirpe e tão amada por sua família como fizeram.
– Senhor – disse outro –, vedes que assim é e nada tendes
a fazer além de irdes para vossos navios.

E logo ele partiu para seus navios.

Notícias chegaram a Bendigeid Fran de que Matholwch


estava deixando a corte sem pedir permissão e
mensageiros foram enviados para perguntar-lhe o porquê
de agir assim. E os mensageiros enviados foram Iddic,
filho de Anarawd, e Hefeydd Hir. Estes o alcançaram e
perguntaram-lhe o que pretendia fazer e por que partia.

– Na verdade – disse ele –, se eu soubesse, não teria


chegado perto daqui. Fui completamente insultado [cwbẏl
waradwyd a geueis], ninguém jamais teve tratamento
pior do que eu tive neste lugar. Mas uma coisa acima de
todas me surpreende.
– O que é? – perguntaram eles.
– Que Branwen, filha de Llyr, uma das três principais
damas desta ilha e filha do rei da Ilha do Poderoso, me
fosse dada como minha noiva e depois disso eu fosse
insultado. E fico espantado de que o insulto não me fosse
feito antes de me concederem uma donzela tão excelente
quanto ela.
66

– Verdadeiramente, senhor, não era o desejo de qualquer


um dos que estão na corte – disseram eles –, nem de
qualquer um dos que estão no Conselho que recebêsseis
tal insulto. Como fostes insultado, a desonra é maior para
Bendigeid Fran do que para vós.
– Exatamente – concordou Matholwch –, assim penso.
Porém, ele nunca será capaz de elinar a desonra que foi
deixada em mim [ac eissos ni eill ef uẏ niwaradwẏdaw i
o hẏnnẏ].

Os homens retornaram com essa resposta ao lugar onde


Bendigeid Fran estava e contaram-lhe qual resposta
Matholwch lhes dera.

– Na verdade - disse ele –, não há meios pelos quais o


impedir de partir em inimizade conosco que não iremos
tomar.
– Bem, senhor – disseram eles –, enviai-lhe outra
embaixada.
– Assim farei – disse ele. – Erguei-vos, Manawyddan,
filho de Llyr, e Hefeydd Hir e Unic Glew Ysgwyd e ide
atrás dele para dizer-lhe que terá um cavalo bom para
cada um dos que foram machucados. E, além disso, como
compensação pelo insulto, ele terá um bastão de prata,
tão grande e alto como ele mesmo e um prato de ouro do
tamanho do seu rosto. E contai-lhe quem fez isso tudo e
que foi feito contra minha vontade, mas quem o fez é
meu irmão por parte de mãe e seria então duro para mim
condená-lo à morte. Deixai-o vir e encontrar-se comigo –
disse ele – e faremos a paz em quaisquer termos que ele
possa desejar.
67

A embaixada foi até Matholwch e disse-lhe todas essas


palavras de modo simpático e ele as escutou.

– Homens – disse ele –, vou buscar conselho.

Assim, ele reuniu seu conselho, onde consideraram que,


se ele recusasse a proposta, o mais provável seria
sofrerem mais vergonha em lugar de obter uma tão
grande compensação. Resolveram então aceitá-la e
retornaram em paz à corte.

III
O casamento de Branwen e Matholwch
O Caldeirão da Renovação

Então os pavilhões e as tendas foram dispostos à maneira


de um salão. E eles vieram comer e, como se haviam
sentado no início da festa, sentaram-se agora. Matholwch
e Bendigeid Fran começaram a discursar. Pareceu a
Bendigeid Fran, enquanto falavam, que Matholwch não
estava tão alegre quanto estivera antes. E pensou que o
soberano poderia estar triste em razão da pequenez da
compensação que obtivera pelo erro que fora cometido
contra ele.

– Ó homem – disse Bendigeid Fran –, não estais falando


nesta noite tão animadamente quanto antes. E, se é por
causa da pequenez da compensação, vós lhe
acrescentareis qualquer coisa que possais escolher e
amanhã mesmo vos entregarei os cavalos.
– Senhor – disse ele –, o Céu vos recompense!
68

– E eu vos aumentarei a compensação – disse Bendigeid


Fran –, pois vos darei um caldeirão cuja propriedade é
que, se um dos vossos homens for morto hoje e jogado lá
dentro, amanhã ele estará tão bem como jamais esteve
nos melhores dias, exceto que não recuperará sua fala
[Mi a rodaf ẏt peir a chẏnnedẏf ẏ peir ẏw; ẏ gwr alader
hediw ẏt. ẏ uwrw ẏn ẏ peir ac erbẏn auorẏ ẏ uot ẏn gẏs tal
ac ẏ bu oreu eithẏr na bẏd llẏuerẏd ganthaw].

Matholwch deu-lhe grandes agradecimentos e ficou


muito alegre por esse motivo.

Na manhã seguinte entregaram a Matholwch tantos


cavalos treinados quantos havia. E então viajaram para
outro distrito, onde o pagaram com potros até completar
o número total. Desde então, esse distrito foi chamado
Talebolyon.

Uma segunda noite sentaram-se juntos.

– Meu senhor – disse Matholwch –, de onde obtivestes o


caldeirão que me destes?
– Ganhei-o de um homem que esteve em vosso país –
disse Bendigeid Fran –, e não o daria a não ser a alguém
que viesse de lá.
– Quem era? – perguntou ele.
– Llassar Llaesgyfnewid [llassar llaes gẏfnewit]. Ele
chegou aqui vindo da Irlanda com Cymideu Cymeinfoll
[chẏmidei kẏmeinuoll], sua esposa, que escapou da Casa
de Ferro [tẏ haẏarn] na Irlanda, quando a aqueceram até
que ficasse rubra ao redor deles e fugiram para cá. E é
69

um assombro para mim nada saberdes em relação a esses


fatos.
– Na verdade, sei alguma coisa e tudo quanto souber vô-
lo contarei. Certo dia, eu estava caçando na Irlanda e
cheguei a um monte junto a um lago, que é chamado
Lago do Caldeirão [llẏn ẏ peir]. Vi um enorme homem de
cabelos amarelos vindo do lago com um caldeirão em
suas costas. Era um homem de grande tamanho e de
horrível aspecto e uma mulher o seguia. E, se o homem
era alto, duas vezes maior era a mulher. Eles vinham em
minha direção e saudaram-me. ‘Na verdade’, eu
perguntei, ‘para onde estais viajando?’ ‘Vede’, disse-me,
‘este é o motivo pelo qual viajamos. Ao fim de um mês e
uma quinzena esta mulher terá um filho. E a criança que
nascerá ao fim de um mês e uma quinzena será um
guerreiro totalmente armado’. Assim, levei-os comigo e
sustentei-os. Estiveram comigo por um ano. E esse ano
eu os tive comigo não de má vontade. Mas então houve
murmúrios porque eles estavam comigo. Pois, desde o
começo do quarto mês, eles começaram a fazer-se
odiados e a fazer desordens na terra, cometendo afrontas
e molestando e estorvando os nobres e as damas. Então
meu povo se ergueu e pediu-me que me separasse deles.
Obrigaram-me a escolher entre eles e meus domínios. E
eu utilizei o conselho do meu país para saber o que seria
feito em relação a eles, pois não partiriam por sua própria
vontade, nem contra sua vontade poderiam ser
compelidos a fazê-lo, através de luta. E, estando o povo
do país nesse dilema, ordenaram que fosse feita uma
câmara toda de ferro. Quando o quarto já estava pronto,
lá veio cada ferreiro que havia na Irlanda e cada um que
possuía tenazes e martelo. Empilharam carvões tão alto
70

que chegaram ao topo da câmara. Serviram ao homem, à


mulher e à criança uma abundância de comida e bebida.
Quando perceberam que estavam bêbados, começaram a
por fogo nos carvões ao redor do quarto e a soprá-los
com foles até que a casa ficasse incandescente em volta
deles. E houve uma reunião no meio do chão do quarto.
O homem permaneceu até que as placas de ferro
estivessem todas brancas de calor. E então, em razão do
grande calor, o homem chocou-se contra as placas com
seu ombro e rebentou-as e sua esposa o seguiu; mas,
exceto ele e sua esposa, ninguém escapou na ocasião.
Assim, eu suponho, senhor – disse Matholwch a
Bendigeid Fran –, que eles vieram até vós.
– Sem dúvida, eles vieram para cá – disse ele – e deram-
me o caldeirão.
– De que maneira vós os recebestes?
– Espalhei-os em cada parte dos meus domínios e eles se
tornaram numerosos e estão prosperando por toda parte e
fortalecem os lugares onde estão com homens e armas
dos melhores jamais vistos.

Naquela noite, continuaram a conversar tanto quanto


quiseram e tiveram menestréis e diversão e, quando lhes
era mais agradável dormir do que permanecer mais
tempo sentados, foram descansar. E assim o banquete
continuou com alegria. Quando terminou, Matholwch
viajou para a Irlanda e Branwen com ele. Partiram de
Aber Menei com treze navios e chegaram à Irlanda, onde
houve grande alegria em razão da sua chegada. Nenhum
grande homem ou nobre dama visitou Branwen a quem
ela não desse um broche, anel ou joia real como presente
com o qual era honroso ser visto ao partir. Nessas
71

atividades, ela gastou o ano com muito renome e passou


agradavelmente seu tempo, desfrutando de honra e
amizade. E, entretanto, ocorreu que ela ficou grávida. No
devido tempo, nasceu-lhe um filho e o nome que lhe
deram foi Gwern, filho de Matholwch [guern uab
matholwch]. Mandaram o menino para ser criado num
lugar onde estavam os melhores homens da Irlanda.

IV
O desprezo a Branwen

E no segundo ano ergueu-se um tumulto na Irlanda em


razão do insulto que Matholwch recebera em Gales e do
pagamento que lhe fora feito por seus cavalos. Seus
irmãos de criação que, como tais, estavam mais próximos
dele, culpavam-no abertamente por esse motivo. E ele
não pôde ter paz em razão do tumulto até o vingarem
dessa desgraça. A vingança que tomaram foi afastar
Branwen do quarto dele e fazê-la cozinhar para a corte. E
ordenaram que o açougueiro, depois de picar a carne,
fosse até ela e lhe desse a cada dia um golpe na orelha.
Tal foi a punição que lhe deram.

– Realmente, senhor – disseram a Matholwch seus


homens –, proibi já os navios, as balsas de transporte e os
botes de irem a Gales e todos os que vierem de Gales até
aqui, prendei-os para que não possam voltar e fazer com
que estas coisas sejam conhecidas lá.

Assim ele fez e assim foi por não menos do que três anos.
72

Branwen criou um estorninho na cobertura da padaria do


palácio, ensinou-o a falar e ensinou ao pássaro qual era a
aparência de seu irmão. Escreveu uma carta sobre suas
aflições e sobre o desprezo com que era tratada,
amarrando-a na raiz da asa do pássaro, que enviou em
direção a Gales. O pássaro chegou à ilha e, certo dia,
encontrou Bendigeid Fran em Caer Seiont, em Arfon,
onde estava reunido com seus nobres. A ave pousou em
seu ombro e arrepiou suas penas, de modo que a carta
fosse vista. Souberam então que o pássaro fora criado em
casa.

V
Bran parte para a Irlanda

Bendigeid Fran tomou a carta e olhou-a. Depois de a ler,


entristeceu-se excessivamente pelas notícias das aflições
de Branwen. E imediatamente começou a enviar
mensageiros que reunissem toda a ilha. Fez com que sete
vintenas e quatro países viessem a ele e queixou-se ele
mesmo diante de todos pela aflição que sua irmã
suportava. Então deliberaram e no Conselho resolveram
ir para a Irlanda e deixar sete homens como príncipes
[twẏsogian] aqui e Caradawc, o filho de Bran, como o
chefe deles e dos seus sete cavaleiros. Em Edeyrnion
esses homens foram deixados. Por essa razão foram os
cavaleiros deixados na cidade. Os nomes desses sete
homens eram Caradawc, filho de Bran, e Hefeydd Hir e
Unic Glew Ysgwyd e Iddic, o filho de Anarawc
Gwalltgrwm e Fodor, filho de Erfyll, e Gwlch
Minascwrn e Llassar, filho de Llaesar Llaesgygwyd e
Pendaran Dyfed, como um jovem pajem com eles. Esses
73

foram estabelecidos como sete ministros para


encarregarem-se desta ilha. E Caradawc, filho de Bran,
era o chefe entre eles.

Bendigeid Fran, com a multidão de que falamos, velejou


para a Irlanda. Não era então o mar tão grande quanto
hoje: avançou vadeando-o. Não costumava haver senão
dois rios chamados Lli e Archen. E depois disso o ocano
abria-se e o mar avançava sobre os reinos. Ele então
avançou, levando nas costas todos os seus menestréis, em
direção à Irlanda [ac yna y kerdwys ef ac a oed a gerd
arwest y geuyn e hun a chyrchu tir Iwerdon].

Os porqueiros de Matholwch estavam próximos da costa


e foram a Matholwch.

– Senhor – disseram eles –, saudação a vós.


– O Céu vos proteja – ele respondeu –, tendes quaisquer
novidades?
– Senhor, vimos coisas maravilhosas, vimos uma floresta
no mar, num lugar onde jamais vimos uma só árvore.
– Isso sem dúvida é uma maravilha. Vistes qualquer
outra coisa?
– Vimos, senhor – disseram eles –, uma vasta montanha
ao lado da floresta que se movia e havia um alto cume no
topo da montanha e um lago em cada lado do cume. E a
floresta e a montanha e todas essas coisas se moviam.
– Na verdade – disse ele –, não há ninguém que possa
saber qualquer coisa em relação a isso, exceto Branwen.

Mensageiros foram mandados a Branwen.


74

– Senhora - disseram eles –, que pensais seja isso?


– Os homens da Ilha dos Poderosos, que vieram aqui por
ouvirem sobre meus maus-tratos e minhas aflições.
– Que é a floresta vista sobre o mar? – perguntaram eles.
– As velas e os mastros dos navios – ela respondeu.
– Ai! Que é a montanha que se vê ao lado dos navios?
– Bendigeid Fran, meu irmão, chegando à água rasa; não
há navio que possa contê-lo.
– Que é o alto cume com um lago em cada um dos seus
lados?
– Ao olhar na direção desta ilha ele está irado e seus dois
olhos, um em cada lado de seu nariz, são os dois lagos
que ladeiam o cume.
Os guerreiros e os principais homens da Irlanda foram
reunidos apressadamente e fizeram um conselho.

– Senhor - disseram os nobres a Matholwch -, não há


outro conselho além de retirar-vos para além do Linon
(um rio que há na Irlanda) e manter o rio entre vós e ele,
destruindo a ponte que atravessa o rio, pois há em seu
fundo magnetitas [mein sugẏn] sobre as quais nenhum
barco ou navio poderá passar.

Assim, eles se retiraram pelo rio e quebraram a ponte.

Bendigeid Fran chegou a terra e a frota com ele pela


margem do rio.

– Senhor – disseram os capitães –, conheceis a natureza


deste rio, que nada pode atravessá-lo e que não há ponte
sobre ele?
75

– Não há nenhuma – replicou o rei –, exceto que aquele


que será o chefe, que seja uma ponte [a vo penn bit pont].
Eu o serei.

Foi então essa declaração proferida pela primeira vez e é


ainda usada como provérbio. Quando ele se deitou
atravessando o rio, tábuas foram colocadas sobre ele e o
exército passou por cima.

Quando o gigante levantou-se, os mensageiros de


Matholwch chegaram até ele, saudaram-no e deram-lhe
cumprimentos em nome de Matholwch, seu parente, e
mostraram como, pela sua benevolência, ele não tinha
merecido de Bendigeid Fran senão o bem.

– Pois Matholwch deu o reino da Irlanda a Gwern, vosso


sobrinho e filho de vossa irmã. E isso ele coloca diante
de vós como uma compensação pelo erro e desprezo
feitos a Branwen. E Matholwch será mantido onde
quiserdes, seja aqui ou na Ilha do Poderoso.

Disse Bendigeid Fran:

– Não terei eu mesmo o reino? Então porventura eu possa


aconselhar-me em relação a vossa mensagem. Deste
momento até lá, nenhuma outra resposta obtereis de mim.
– Em verdade – disseram eles –, a melhor mensagem que
recebermos para vós, nós vô-la traremos e esperai que
falaremos ao nosso rei.
– Esperarei – respondeu Bendigeid Fran – e retornai
rapidamente.
76

VI
Uma casa para Bran

Os mensageiros partiram e chegaram a Matholwch.

– Senhor – disseram eles –, preparai uma mensagem


melhor para Bendigeid Fran. Ele absolutamente não
escutaria aquela que lhe transmitimos.
– Meus amigos – disse Matholwch –, qual poderia ser
vosso conselho?
– Senhor, não há outro conselho exceto este apenas. Ele
nunca soube o que é estar dentro de uma casa, fazei então
uma casa que possa contê-lo e aos homens da Ilha do
Poderoso de um lado e a vós e ao vosso exército do
outro. Entregai vosso reino à vontade dele e prestai-lhe
homenagem. Assim, em razão da honra que lhe fizestes
construindo-lhe uma casa, considerando que ele nunca
teve uma casa que o pudesse conter, ele fará a paz
convosco.

Os mensageiros então voltaram a Bendigeid Fran


levando-lhe essa mensagem.

E ele buscou o conselho e no conselho resolveu-se que


essa decisão seria aceita. Tudo foi feito de acordo com o
aviso de Branwen e a fim de que o país não fosse
destruído. A paz foi feita e tão vasta quanto forte a casa
foi construída. Mas os irlandeses planejaram uma
maquinação astuta. E a astúcia foi que pusessem suportes
em cada lado dos cem pilares que estavam na casa.
Colocaram um saco de couro em cada suporte e um
homem armado dentro de cada um deles. Então
77

Efnissyen entrou antes do exército da Ilha do Poderoso,


esquadrinhando a casa com olhares ferozes e selvagens e
observou os sacos de couro que estavam pendurados nos
pilares.

– Que há nesse saco? – perguntou ele a um dos


irlandeses.
– Comida, boa alma [eneit] – disse este.

Efnissyen apalpou-o até chegar à cabeça do homem e


apertou a cabeça até sentir seus dedos se encontrarem no
cérebro através do osso. Ele deixou aquele saco e pôs sua
mão sobre outro, perguntando o que havia lá dentro.

– Comida – disse o irlandês.

E daquele modo ele fez a cada um deles até que, de todos


os duzentos homens, não deixara nenhum vivo senão um.
Ele perguntou o que estava ali.

– Comida, boa alma – disse o irlandês.

Efnissyen apalpou-o até sentir a cabeça e apertou-a como


fizera aos outros. Embora achasse que a cabeça deste
estava protegida, não o deixou até matá-lo. E então
cantou uma estrofe.

Há neste saco um diferente tipo de comida:


O combatente pronto para quando o ataque é feito
Por seus companheiros, preparado para a batalha.
78

Logo após vieram os guerreiros para a casa. Os homens


da Ilha da Irlanda entraram na casa por um lado e os
homens da Ilha do Poderoso pelo outro. Tão logo se
sentaram, houve harmonia entre eles e a soberania foi
conferida ao menino. Quando se concluiu a paz,
Bendigeid Fran chamou o menino a si e de Bendigeid
Fran o menino foi para Manawyddan e foi amado por
todos os que o viram. De Manawyddan o menino foi
chamado por Nissyen, o filho de Eurosswydd, indo
amorosamente até ele.

– Por que – disse Efnissyen – não vem meu sobrinho,


filho de minha irmã, até mim?
– Alegremente o deixo ir a vós – disse Bendigeid Fran.

E o menino alegremente foi até ele.

– Pela minha crença no Céu – disse Efnissyen em seu


coração –, jamais imaginado por alguém desta casa foi o
massacre que vou cometer neste momento.

VII
Efnissyen mata Gwern
A luta entre britanos e irlandeses

Efnissyen se ergueu, pegou o menino pelos pés e, antes


que qualquer um na casa pudesse agarrá-lo, ele depressa
o empurrou no fogo ardente. E quando Branwen viu seu
filho queimando no fogo, ela, do lugar onde estava
sentada entre seus dois irmãos, esforçou-se para também
saltar no fogo. Mas Bendigeid Fran agarrou-a com uma
mão e seu escudo com a outra. Então todos eles correram
79

pela casa e nunca um tão grande tumulto foi feito por


uma multidão dentro de uma casa quanto o que foi feito
por eles enquanto cada homem se armava. Então disse
Morddwyd Tyllyon:

– Os moscardos da Vaca de Morddwydd Tyllyon!

Enquanto todos buscavam suas armas, Bendigeid Fran


mantinha Branwen entre seu escudo e seu ombro.

Os irlandeses acenderam um fogo sob o Caldeirão da


Renovação [peir dadeni]. Lançaram ali os cadáveres até
que estivesse cheio. No dia seguinte, eles voltavam tão
bons lutadores quanto antes, exceto que não eram
capazes de falar. E quando Efnyssien não viu os corpos
mortos dos homens da Ilha do Poderoso ressuscitados em
parte alguma, pensou em seu coração:

– Ai! Desgraçado sou eu, que devo ter sido a causa de


chegarem os homens da Ilha do Poderoso a um tão
grande dilema. Que o mal me castigue se eu não
encontrar uma libertação para eles.

Ele se lançou sobre os cadáveres dos inimigos. Dois


irlandeses descalços vieram até ele e, pensando que fosse
um dos seus, arremessaram-no no caldeirão. Efnyssien
esticou-se dentro do caldeirão, quebrando-o em quatro
partes. Mas o esforço estourou também seu coração.

Em consequência disso, os homens da Ilha do Poderoso


obtiveram tanto sucesso quanto os irlandeses. Contudo,
não foram vitoriosos, pois, dentre todos eles, apenas sete
80

homens escaparam e ao próprio Bendigeid Fran um


dardo envenenado ferira no pé.

Eis que os sete homens que escaparam foram Pryderi,


Manawyddan, Gluneu Eil Taran, Taliesin, Ynawc,
Grudyen, o filho de Muryel, e Heylin, o filho de Gwynn
Hen.

Bendigeid Fran ordenou-lhes que cortassem sua cabeça:

– Tomai minha cabeça e levai-a ao Monte Branco, em


Londres [gwẏnurẏn ẏn llundein], para sepultá-la com o
rosto [wẏneb] em direção à França [ar freinc]. Por longo
tempo estareis na estrada. Em Harlech estareis festejando
por sete anos, os pássaros de Rhiannon [adar riannon]
cantando para vós durante esse tempo. Durante todos
esses dias, a cabeça será para vós uma companhia tão
agradável como já era quando em meu corpo. E em
Gwales, em Penfro, estareis por quatro vintenas de anos.
Lá podereis permanecer e a cabeça intacta convosco até
que abrais a porta que dá para Aber Henfelen e para a
Cornualha. Depois de haverdes aberto a porta não
podereis mais permanecer lá. Parti então para Londres
para enterrar a cabeça e segui adiante.

VIII
A morte de Branwen

Cortaram-lhe a cabeça e esses sete prosseguiram com ela.


Branwen era a oitava com eles. O grupo chegou a terra
em Aber Alaw, em Talebolyon, e sentaram-se para
81

descansar. Branwen olhou em direção à Irlanda e em


direção à Ilha do Poderoso, para ver se as podia enxergar.

– Ai – disse ela –, a aflição esteve comigo desde que


nasci; por minha causa foram duas ilhas destruídas!

Ela então proferiu um alto gemido e assim se partiu o seu


coração. Fizeram-lhe um sepulcro de quatro lados e
enterraram-na nas margens do rio Alaw.

Os sete homens viajaram para Harlech levando a cabeça


consigo; ao chegarem lá encontraram uma multidão de
homens e mulheres.

– Tendes alguma novidade? – perguntou Manawyddan.


– Não temos nenhuma – disseram eles –, salvo que
Caswallawn, filho de Beli, conquistou a Ilha dos
Poderosos e foi coroado rei em Londres.
– Que aconteceu a Caradawc, o filho de Bran, e aos sete
homens que foram deixados com ele nesta ilha?
– Caswallawn veio sobre eles e matou seis dos homens.
O coração de Caradawc partiu-se de tristeza por isso,
pois ele podia ver a espada que matava os homens, mas
não sabia quem a empunhava. Caswallawn tinha
arremessado sobre ele o Véu da Ilusão [llen hut], de
modo que ninguém podia vê-lo matar os homens, mas
apenas a espada podia ser vista. E não lhe agradou matar
Caradawc porque ele era seu sobrinho, filho de seu
primo. E agora ele é o terceiro cujo coração se quebrou
pela aflição. Pendaran Dyfed, que permanecera como um
jovem pajem com esses homens, escapou para a floresta -
disseram eles.
82

IX
Os pássaros de Rhiannon

Então foram para Harlech, onde pararam para descansar,


começaram um festim [eisted] e providenciaram comida
e bebida. Estavam sentados fazendo a refeição quando
vieram três pássaros e começaram a cantar-lhes uma
certa canção. Todas as canções que eles jamais tinham
ouvido eram desagradáveis em comparação a essa e os
pássaros pareciam-lhes estar a uma enorme distância,
embora aparecessem tão distintamente como se
estivessem perto. Nesse repasto continuaram por sete
anos.

X
A Assembleia da Extraordinária Cabeça

Ao fim do sétimo ano eles foram para Gwales, em


Penfro. Lá encontraram um lugar bom e digno de um rei,
dando para o oceano, onde havia um espaçoso salão. Eles
entraram no salão e duas das suas portas estavam abertas,
mas a terceira porta estava fechada, aquela que olhava
em direção à Cornualha.

– Vede lá – disse Manawyddan –, é a porta que não


podemos abrir.

E naquela noite eles se regalaram e ficaram alegres. De


todas as comidas que tiveram diante de si e de tudo que
ouviram, nada lembraram; nem disso, nem de qualquer
tristeza, fosse qual fosse. Lá permaneceram quatro
vintenas de anos, inconscientes de jamais terem passado
83

um tempo mais alegre ou tranqüilo. E não ficaram mais


cansados do que no primeiro instante em que chegaram,
nem qualquer um deles sabia o tempo que haviam estado
lá. A conversação da cabeça era-lhes tão agradável como
se o próprio Bendigeid Fran estivesse com eles. Em razão
dessas quatro vintenas de anos, o período foi chamado “a
assembleia da extraordinária cabeça” [ẏspẏdawt urdaul
benn]. E a assembleia de Branwen e Matholwch
[ẏspẏdawt uranwen a matholwch] foi no tempo em que
foram para a Irlanda.

XI
A Terceira Ocultação Agradável

Certo dia, disse Heilyn, o filho de Gwynn:

– O mal me castigue se eu não abrir essa porta para saber


se é verdade o que dizem a esse respeito.

Ele assim abriu a porta e olhou em direção à Cornualha e


Aber Henfelen. E, quando eles olharam, ficaram
conscientes de todos os males que tinham suportado, de
todos os amigos e companheiros que tinham perdido e de
toda a miséria que lhes ocorrera como se tudo tivesse
acontecido naquele mesmo momento e, especialmente,
do terrível destino de seu senhor. Não puderam descansar
por causa de sua perturbação, mas viajaram com a cabeça
rumo a Londres. Sepultaram a cabeça no Monte Branco
e, quando estava enterrada, essa foi a terceira ocultação
agradável [trẏdẏd matcud]; e o terceiro descobrimento
desafortunado [trẏdẏd datcud] se deu quando ela foi
84

desenterrada, já que nenhuma invasão pelo mar viria a


esta ilha enquanto a cabeça estivesse oculta.

E esta é então a história contada por aqueles que viajaram


pela Irlanda. Na Irlanda ninguém ficou com vida, exceto
cinco mulheres grávidas em uma caverna na floresta
irlandesa. Essas cinco mulheres na mesma noite deram à
luz cinco filhos a que alimentaram até se tornarem jovens
adultos. Eles pensaram em esposas e ao mesmo tempo
desejaram possuí-las. Cada um tomou como esposa a
mãe de um dos seus companheiros e eles governaram o
país e povoaram-no. E esses cinco dividiram-no entre si.
Por causa dessa partilha estão ainda assim arranjadas as
cinco províncias da Irlanda [pẏmp rann ẏwerdon]. Eles
examinaram a terra onde a batalha teve lugar e
encontraram ouro e prata suficientes para se tornarem
ricos.

E assim termina esta parte dos Mabinogi [a llẏna ual ẏ


teruẏna ẏ geing honn o’r mabinẏogi] relativa ao golpe
dado a Branwen, que foi o terceiro infeliz golpe desta
ilha; e relativa ao entretenimento de Bran quando as
hostes de sete vintenas e quatro países foram à Irlanda
para vingar o golpe [paluawt] dado a Branwen; e relativa
ao banquete de sete anos em Harlech e à canção dos
pássaros de Rhiannon e à permanência da cabeça pelo
espaço de quatro vintenas de anos.
O TERCEIRO RAMO

MANAWYDDAN FILHO DE LLYR


87

No Terceiro Ramo (Y drydedd gainc), Manawyddan casa-se com


Rhiannon, ganhando assim a soberania sobre Dyfed. O país cai então
sob um feitiço que faz todos os habitantes e suas casas
desaparecerem, exceto os principais personagens do conto. Rhiannon
e seu filho, Pryderi, entram em um caer (castelo), talvez uma antiga
fortificação de terra, onde encontram uma tigela de ouro ao lado de
uma fonte. Quando tocam a tigela, ambos desaparecem, bem como o
caer. Manawyddan recupera Rhiannon, Pryderi e a terra de Dyfed,
capturando a esposa do mágico que causara seu desaparecimento e
ameaçando enforcá-la caso ele não retirasse seu feitiço.

I
O Terceiro Príncipe Humilde
Manawyddan casa-se com Rhiannon

Q uando os sete homens de que falamos acima já


haviam enterrado a cabeça de Bendigeid Fran no
Monte Branco, em Londres, com sua face voltada
para a França, Manawyddan contemplou a cidade de
Londres e seus companheiros, soltando um grande
suspiro. Muita tristeza e peso caíram sobre ele.

– Ai, Céu Todo-Poderoso, ai de mim! – ele exclamou. –


Não há ninguém sem um lugar para si senão eu [nẏt oes
neb heb le idaw heno namẏn mi].
– Senhor – disse Pryderi –, não fiqueis triste. Vosso
primo é rei da Ilha dos Poderosos e, embora possa ter
agido mal para convosco, jamais estivestes a reclamar
terras ou posses. Sois o terceiro príncipe humilde [trẏdẏd
lledẏf unben] desta ilha.
– Sim – respondeu ele –, mas embora esse homem seja
meu primo, entristece-me não ver ninguém no lugar de
Bendigeid Fran, meu irmão, nem posso eu estar feliz na
mesma habitação que ele.
88

– Seguireis o conselho de outro homem?


– Permaneço necessitando de um conselho – respondeu
Manawyddan. – Qual seria ele?
– Sete províncias continuam sendo minhas – disse
Pryderi –, onde mora Rhiannon, minha mãe. Dá-la-ei a
vós e com ela as sete províncias e, embora não tenhais
posses além dessas províncias somente, jamais poderíeis
ter visto províncias tão belas quanto essas. Cicfa, filha de
Gwynn Gloyw, é minha esposa e, uma vez que a herança
das províncias pertence a mim, que vós e Rhiannon
desfruteis dela e, se jamais desejardes quaisquer
domínios, tomareis esses.
– Não desejarei, Príncipe – ele disse –, o Céu vos
recompense por vossa amizade.
– Eu vos demonstraria a melhor amizade do mundo se o
permitísseis.
– Eu o farei, meu amigo, e o Céu vos recompense. Irei
convosco procurar Rhiannon e ver vossos domínios.
– Fareis bem - respondeu Pryderi – e acredito que jamais
escutastes uma dama falando melhor do que ela. Quando
estava no seu auge, ninguém era mais bela. Ainda agora
seu aspecto não é desagradável.

Eles partiram e, conquanto a jornada fosse longa,


chegaram por fim a Dyfed. Uma festa fora preparada por
Rhiannon e Cicfa para recebê-los em sua chegada a
Narberth. Manawyddan e Rhiannon então se sentaram
juntos e começaram a conversar e as palavras de
Rhiannon inflamaram a mente e os pensamentos dele.
Manawyddan pensou em seu coração que jamais
contemplara uma dama mais cheia de graça e beleza do
que ela.
89

– Pryderi – ele falou –, quero que seja como dissestes.


– Que cochicho foi esse? – perguntou Rhiannon.
– Senhora – disse Pryderi –, eu vos ofereci como esposa
a Manawyddan, filho de Llyr.
– Com esse desejo eu de boa vontade concordo – disse
Rhiannon.
– Muito feliz também estou eu – disse Manawyddan. –
Possa o Céu recompensar aquele que me mostrou uma
amizade tão perfeita quanto essa.

Antes que a festa terminasse, ela se tornou sua noiva.


Disse Pryderi:

– Permanecei aqui pelo resto da festa. Eu irei a Lloegyr


prestar minha homenagem [hebrwng uy gwrogaeth] a
Caswallawn, filho de Beli.
– Senhor – falou Rhiannon –, Caswallawn está em Kent,
podeis assim permanecer na festa e aguardar até que ele
esteja mais próximo.
– Esperaremos – ele respondeu.

Terminaram então a festa. E começaram a percorrer


Dyfed, a caçar e a dedicar-se aos prazeres. Enquanto
atravessavam o país, descobriram que nunca tinham visto
terras mais agradáveis nas quais viver, nem melhores
campos de caça e tampouco maior abundância de mel e
peixes. Era tal a amizade entre aqueles quatro que não
podiam separar-se nem à noite, nem durante o dia.

No meio de tudo isso, Pryderi foi encontrar Caswallawn


em Oxford e prestar-lhe homenagem. Teve lá uma
90

honrosa recepção e foi altamente louvado por oferecer


sua homenagem.

II
O encantamento sobre Dyfed

Depois de retornar, Pryderi e Manawyddan festejaram,


viveram confortavelmente e dedicaram-se aos prazeres.
Começaram uma festa em Arberth, pois era o palácio
principal, onde se originava toda celebração. Ao
terminarem a primeira refeição daquela noite, enquanto
aqueles que os serviram comiam, eles se ergueram e
saíram, dirigindo-se todos os quatro ao gorsedd, isto é, o
monte de Arberth e seu séquito com eles. Ao sentarem-
se, sobreveio um estrondo de trovão com a violência de
uma tempestade e caiu sobre eles uma névoa tão espessa
que nenhum deles podia ver o outro. Depois da névoa,
tudo em volta ficou claro outra vez. Quando olharam na
direção do lugar onde antes estavam, não viram gado,
rebanhos, moradias, não enxergaram nada, nem casa,
nem animal, nem fumaça, nem fogo, nem homem, nem
habitação, nada além das casas vazias da corte, desertas e
desabitadas, sem qualquer homem ou animal dentro
delas. Seus companheiros estavam verdadeiramente
perdidos para eles, sem que estes quatro soubessem
qualquer coisa do que lhes acontecera.

– Em nome do Céu – gritou Manawyddan –, onde estão


todos os da corte e todos os meus acompanhantes que
estavam ao seu lado? Vamos ir e ver o que aconteceu.
91

Assim, eles chegaram ao salão e lá não havia homem


algum. Foram ao castelo, entraram no dormitório e não
viram ninguém. Na adega e na cozinha nada havia além
de desolação. Eles quatro então festejaram, caçaram e
dedicaram-se aos prazeres. Começaram a viajar pelo país
e por todos os domínios que tinham, visitaram as casas e
as habitações e nada acharam além de bestas selvagens.
Como já haviam terminado a festa e consumido todas as
suas provisões, começaram a alimentar-se das presas que
mataram na caça e do mel de enxames silvestres. Assim
passaram agradavelmente o primeiro ano e o segundo,
mas no último ano começaram a sentir-se exaustos.

III
A peregrinação dos muitos trabalhos

– Realmente – disse Manawyddan –, não devemos


esperar assim. Vamos para Lloegyr e procuremos algum
ofício pelo qual possamos ganhar nosso sustento.

Foram então para Lloegyr e chegaram até Hereford, onde


se dedicaram a fazer selas. Manawyddan começou
também a fazer capas para cavalos. Ele dourou-as e
coloriu-as com esmalte azul, do mesmo modo que vira
ser feito por Llasar Llaesgywydd. Ele fez o esmalte azul
como fora feito por outro homem. Desde então é ainda
chamado “azul celeste” [calch lassar], porque Llassar
Llaesgyfnewid o forjara.

Durante todo o tempo em que esse trabalho pôde ser feito


por Manawyddan, nenhuma sela ou capa foi comprada de
qualquer outro seleiro em toda a Hereford. Até que, por
92

fim, cada um dos seleiros percebeu que estavam


perdendo muito do seu ganho e que homem algum
comprava deles além daquele que não podia obter de
Manawyddan o que procurava. Reuniram-se então e
concordaram em matá-lo e a seus companheiros.

Eles, no entanto, foram avisados a esse respeito e


deliberaram para decidir se deixariam a cidade.

– Pelo Céu – disse Pryderi –, não sou da opinião de que


abandonemos a cidade, mas sim de que matemos esses
campônios [taeogau].
– Discordo – disse Manawyddan –, pois, se lutarmos com
eles, adquiriremos má fama e seremos jogados à prisão.
Seria melhor para nós irmos buscar o sustento em outra
cidade.
– Que ofício exerceremos? – disse Pryderi.
– Fabricaremos escudos – respondeu Manawyddan.
– Sabemos algo sobre esse trabalho?
– Tentaremos.

Começaram então a fazer escudos, moldando-os de


acordo com os melhores que já tinham visto.
Esmaltaram-nos como haviam feito com as selas. Eles
prosperaram naquele lugar, a ponto de escudo algum ser
encomendado na cidade além daqueles que eles mesmos
fabricavam. Porém, terminaram marcados pelos artesãos,
que se reuniram apressadamente trazendo consigo seus
concidadãos e todos concordaram em que deveriam
procurar um meio de matá-los. Mas eles foram avisados e
souberam como os homens haviam decidido destruí-los.
93

– Pryderi – disse Manawyddan –, esses homens querem


nos matar.
– Não suportemos tal ameaça da parte desses campônios.
Caiamos sobre eles e matêmo-los!
– Discordo. – respondeu Manawyddan. – Caswallawn e
seus homens poderiam ouvir falar sobre isso e nós
seríamos arrasados. Partamos para outra cidade.

Assim, para outra cidade eles foram.

– Que ofício exerceremos? – disse Manawyddan.


– Qualquer um que desejeis e nós conheçamos –
respondeu Pryderi.
– Discordo – ele replicou. – Vamos fazer sapatos, pois
não há coragem suficiente entre os sapateiros nem para
lutar conosco, nem para molestar-nos.
– Nada sei sobre esse ofício – Pryderi comentou.
– Mas eu sei e irei ensinar-te a costurar. Não tentaremos
preparar o couro, mas o compraremos pronto e com ele
faremos os sapatos.

Assim, começaram comprando o melhor couro que havia


na cidade e ele não comprou senão o couro para as solas.
Associou-se ao melhor ourives da cidade, ordenou-lhe
que fizesse fechos para os sapatos e os dourasse. Ele
observou como era feito até aprender o processo e, desde
então, foi chamado de um dos “três sapateiros de ouro”.

E, na medida em que podiam ser obtidos dele, nenhum


sapato ou meia era comprado dos sapateiros da cidade.
Porém, quando os sapateiros perceberam que seus ganhos
estavam caindo (pois enquanto Manawyddan dava forma
94

ao trabalho, Pryderi o costurava), reuniram-se e


deliberaram e concordaram que haveriam de matá-los.

– Pryderi – disse Manawyddan –, esses homens


tencionam matar-nos.
– De modo que devemos então suportar isso desses
ladrões grosseiros? – Pryderi exclamou. – É preferível
matá-los a todos!
– Discordo. Não os mataremos, nem tampouco
permaneceremos mais tempo em Lloegyr. Partamos para
Dyfed e vejamos como se encontra.

Eles então viajaram até chegar a Dyfed e foram em


direção a Narberth. Lá acenderam o fogo e sustentaram-
se caçando. Assim passaram um mês. Reuniram seus
cachorros ao seu redor e lá permaneceram por um ano.

IV
O castelo encantado
Pryderi e Rhiannon desaparecem

Certa manhã, Pryderi e Manawyddan levantaram-se para


caçar. Eles juntaram os cães e saíram do palácio. Alguns
dos mastins correram à frente deles e chegaram a um
pequeno arbusto que estava bem próximo. Entretanto, tão
logo haviam chegado ao arbusto, retrocederam depressa,
seu pelo fortemente eriçado.

– Aproximemo-nos do arbusto – disse Pryderi – e


vejamos o que está lá.
95

Assim que chegaram perto, um javali selvagem


puramente branco surgiu de dentro do arbusto. Os
homens então açularam os mastins, que investiram contra
o javali. Este, porém, deixou o arbusto e recuou, ficando
um pouco mais longe dos caçadores. Ele resistiu aos
cachorros sem fugir deles até que os homens se
acercassem. Quando Pryderi e Manawyddan chegaram, o
javali retrocedeu uma segunda vez e preferiu fugir. Eles
então o perseguiram até enxergarem um vasto e
imponente castelo, todo recentemente construído, num
lugar onde nunca antes tinham visto uma pedra ou
construção. O javali correu rapidamente para dentro do
castelo e os cães foram atrás dele. Quando o javali e os
cães já haviam desaparecido dentro do castelo, Pryderi e
Manawyddan começaram a maravilhar-se por
encontrarem um castelo num local onde jamais tinham
visto qualquer espécie de edificação. Do alto do gorsedd
eles olharam e tentaram escutar os cachorros, mas
durante todo o tempo que lá estiveram, nada ouviram dos
cães, nem puderam saber coisa alguma a seu respeito.

– Senhor – disse Pryderi -, entrarei no castelo para ter


notícias dos cachorros.
– Na verdade – replicou Manawyddan -, seríeis tolo em
entrar nesse castelo que nunca antes vistes. Se seguirdes
meu conselho, não entrareis lá. Quem quer que tenha sido
o responsável pelo feitiço que caiu sobre esta terra
também fez com que esse castelo aparecesse aqui.
– Realmente, mas ainda assim não posso abandonar meus
cães.
96

Quando entrou no castelo, não viu lá nem homem, nem


besta, nem javali, nem cães, nem casa, nem habitação.
Mas no centro do pavimento do castelo ele contemplou
uma fonte com mármore trabalhado ao seu redor. Havia
na borda da fonte uma tigela de ouro sobre uma placa de
mármore e correntes que pendiam do ar, das quais ele
não conseguia discernir o fim.

Agradaram-no grandemente [gorawenu] a beleza do ouro


e o rico artesanato da tigela. Ele avançou para o precioso
objeto e segurou-o. Ao agarrar a tigela, suas mãos
ficaram presas, bem como seus pés prenderam-se à placa
acima da qual estava colocada a tigela. Toda a sua alegria
o abandonou para que ele não pudesse proferir sequer
uma palavra. E Pryderi ficou ali, imóvel.

Manawyddan esperou por ele até perto do fim do dia. Já


era bem tarde quando, estando certo de que não teria
novas de Pryderi ou dos cães, Manawyddan retornou ao
palácio. Assim que entrou, Rhiannon olhou para ele.

– Onde – disse ela – estão vosso companheiro e vossos


cães?
– Vede que aventura – respondeu Manawyddan – ocorreu
comigo.

E contou-lhe tudo.

– Fostes um mau companheiro – Rhiannon acusou-o - e


um companheiro bom tendes perdido.
97

Com essas palavras, ela saiu e seguiu rumo ao castelo, de


acordo com a direção que ele lhe indicara. O portão do
castelo, encontrou-o aberto. Ela não estava nada
assustada e entrou. Tão logo pôs os pés dentro do castelo,
percebeu Pryderi segurando a tigela e dirigiu-se até ele.

– Ó meu senhor – ela disse –, que estais fazendo aqui?

Ela agarrou a tigela com ele e, assim que o fez, suas


mãos prenderam-se à tigela e seus pés, à placa. Ficou
também incapaz de dizer uma só palavra. Anoiteceu
então e um trovão se fez ouvir. Uma névoa caiu sobre
eles e o castelo desapareceu, levando Rhiannon e Pryderi.

V
A segunda viagem para Lloegyr

Quando Cicfa, filha de Gwynn Gloyw, viu que no palácio


não havia ninguém além dela mesma e de Manawyddan,
entristeceu-se tanto que não lhe interessava mais se iria
viver ou morrer. Percebeu-o Manawyddan:

– Estais enganada – disse ele – se é por medo de mim que


vos entristeceis. Chamo o Céu como testemunha de que
jamais vistes amizade mais pura do que esta que terei
para convosco enquanto o Céu desejar que estejais assim.
Declaro-vos que, estivesse eu na aurora da minha
juventude, ainda assim manteria minha lealdade para
com Pryderi e hei de mantê-la também para convosco.
Portanto, não tenhais medo de mim. Tomo o Céu como
testemunha de que encontrareis em mim toda a amizade
que puderdes desejar e que estiver em meu poder
98

mostrar-vos, durante todo o tempo em que agradar ao


Céu prolongar nossa tristeza e aflição.

– O Céu vos recompense – ela disse –, era esse o


julgamento que eu fazia de vós.

A jovem dama tomou então coragem e ficou mais alegre.

– Na verdade, senhora – falou Manawyddan –, não é


adequado para nós ficarmos aqui, pois perdemos nossos
cães e não podemos conseguir comida. Partamos para
Lloegyr, será mais fácil encontrarmos sustento lá.
– Com satisfação, senhor – Cicfa respondeu –, é assim
que faremos.
– Senhor – ela perguntou –, qual carreira seguireis?
Escolhei uma que seja decente.
– Nenhuma outra escolherei – ele respondeu – senão a de
fabricar sapatos, como fiz anteriormente. – Senhor, tal
ofício não é adequado para um homem de nascimento tão
nobre quanto vós.
– Entretanto, irei conformar-me com isso.

Ele começou então a exercer seu ofício e fez todo seu


trabalho com o melhor couro que pôde obter na cidade.
Como havia feito no outro lugar, mandou que fechos de
ouro fossem fabricados para os sapatos. Exceto ele
mesmo, todos os sapateiros da cidade ficaram
desocupados, sem trabalho. Pois, enquanto podiam obtê-
los de Manawyddan, nenhum sapato ou meia eram
comprados de qualquer outro. Assim permaneceram por
um ano, até que os sapateiros tornaram-se invejosos e
reuniram-se para decidir o que fazer em relação a ele.
99

Mas Manawyddan foi avisado disso e contaram-lhe que


os sapateiros haviam concordado em juntar-se para matá-
lo.

– Portanto, senhor – exclamou Cicfa –, devemos suportar


isso desses campônios?
– Não,voltaremos para Dyfed.

Assim, rumo a Dyfed eles partiram.

VI
Retorno a Dyfed
As três plantações e o assalto dos ratos

Manawyddan, ao iniciar a viagem de retorno a Dyfed,


levou consigo um fardo de trigo. Ele prosseguiu em
direção a Narberth e lá habitou. Nunca esteve ele mais
feliz do que ao ver Narberth outra vez e as terras onde se
acostumara a caçar com Pryderi e Rhiannon. Ele
habituou-se a pescar e caçar em suas terras. Manawyddan
começou a preparar um terreno e semeou uma plantação
e uma segunda e uma terceira. Trigo algum no mundo
jamais brotou melhor. E as três plantações prosperaram
com perfeito crescimento e nunca homem algum viu um
trigal tão belo quanto esse.

Passaram-se as estações do ano até que a colheita


chegou. Ele foi olhar uma de suas lavouras e viu que
estava madura.

– Vou ceifar isto amanhã - ele disse.


100

Naquela noite ele voltou a Narberth e pela manhã bem


cedo, com a chegada da aurora, ele foi ceifar a plantação.
Ao chegar lá, nada encontrou além da palha nua. Cada
uma das espigas de trigo fora cortada da haste. Todas as
espigas haviam sido levadas embora, não restando nada
além da palha. E com isso ele ficou grandemente
espantado.

Ele foi então examinar outro trigal e viu que também


estava maduro.

– Certamente – disse ele –, este eu virei ceifar amanhã.

E pela manhã ele veio com a intenção de ceifá-lo. Ao


chegar lá, nada encontrou além da palha nua.

– Ó Céu cheio de graças – ele exclamou –, sei que aquele


que começou minha ruína está completando-a e também
destruiu o país comigo.

Ele foi então examinar a terceira plantação e, quando


chegou lá, encontrou um trigo melhor do que jamais fora
visto e também este estava maduro.

– Que o mal me castigue – disse ele – se eu não vigiar


aqui esta noite. Quem quer que tenha levado os outros
grãos virá da mesma maneira para carregar estes. E eu
descobrirei quem é. Assim, ele apanhou suas armas e
começou a vigiar a lavoura. Ele contara a Cicfa tudo que
havia acontecido.
– Na verdade – ela perguntou –, que pensais fazer?
– Vigiarei a plantação esta noite.
101

Ele foi vigiar o trigal. À meia-noite, então, surgiu o maior


tumulto do mundo. Ele olhou e viu a maior multidão de
ratos do mundo, tão grande que não poderia ser contada
nem medida. Ele não soube o que era até que os ratos
abriram caminho pela plantação; cada um deles subia
pela haste e dobrava-a com seu peso, cortava as espigas
de trigo e levava-as embora, deixando apenas a palha.
Manawyddan viu que não havia uma só haste sem um
rato pendurado nela. Todos eles seguiam seu caminho,
carregando as espigas consigo.

Com ira e fúria ele correu para os ratos, mas não pôde
aproximar-se deles mais do que se fossem mosquitos ou
pássaros no ar, exceto por um só que, embora lento, ia
tão depressa que um homem a pé dificilmente poderia
alcançá-lo. Ele correu atrás desse, apanhou-o e colocou-o
em sua luva, amarrando a abertura com uma corda e
levando-o consigo ao retornar ao palácio. Ele então
chegou ao salão onde Cicfa estava e acendeu um fogo.
Ele pendurou a luva pela corda em um gancho na parede.

– Que tendes aí, senhor? – Cicfa quis saber.


– Um ladrão – respondeu Manawyddan – que encontrei
roubando-me.
– Que tipo de ladrão poderia ser, meu senhor, que podeis
colocá-lo dentro de vossa luva?
– Já vos direi.

Manawyddan mostrou-lhe então como seus campos


tinham sido devastados e destruídos e como os ratos
tinham vindo ao último dos campos bem sob seus olhos.
102

– E um deles era menos ágil que os demais e está agora


em minha luva. Enforcá-lo-ei amanhã e, pelo Céu, se a
todos eu tivesse, a todos eu enforcaria.
– Meu senhor – ela disse –, isso é espantoso, mas ainda
assim seria impróprio para um homem da vossa
dignidade ser visto a enforcar um ser repugnante como
esse. E, se agirdes bem, não vos ocupareis dessa criatura,
mas deixareis que se vá.
– A aflição recaia sobre mim se, podendo pegá-los, eu
não os enforcasse a todos. Mas este único que tenho, irei
enforcá-lo.
– Na verdade, senhor, não há razão pela qual eu
socorreria esse verme, além de impedir que o descrédito
recaia sobre vós. Fazei portanto, senhor, como quiserdes.
– Soubesse eu de qualquer razão no mundo por que o
devêsseis socorrer, eu aceitaria vosso conselho em
relação a esse assunto. Mas como não conheço nenhuma,
senhora, estou decidido a destruí-lo.
– Fazei-o então de boamente - disse ela.

VII
Libertai o rato!

Então ele foi para o gorsedd de Arberth levando o rato


consigo. Ele montou duas forquilhas na parte mais alta
do gorsedd. Enquanto fazia isso, viu um sábio vindo em
sua direção, em velhas, pobres e esfarrapadas
vestimentas. Há sete anos Manawyddan não via naquele
lugar nem homem, nem animal, ninguém além daquelas
quatro pessoas que haviam permanecido juntas até se
perderem duas delas.
103

– Meu senhor – disse o sábio –, um bom dia para vós.


– O Céu vos faça prosperar e minha saudação para vós.
De onde vindes, ó sábio? - perguntou Manawyddan.
– Venho de Lloegyr, onde estive cantando. Por que o
perguntais?
– Porque nos últimos sete anos não vi homem algum por
aqui, exceto quatro segregados e vós mesmo, neste
momento.
– Na verdade, senhor, atravesso esta terra para chegar à
minha própria. E que trabalho estais fazendo, senhor?
– Estou enforcando um ladrão que apanhei a roubar-me.
– Que tipo de ladrão é esse? - perguntou o sábio. – Vejo
em vossa mão uma criatura semelhante a um rato e
parece muito impróprio para um homem da vossa
posição tocar um ser assim tão asqueroso como esse.
Deixai que se vá em liberdade.
– Não o deixarei partir, pelo Céu! – exclamou
Manawyddan. – Eu o peguei roubando-me e o destino de
um ladrão eu hei de infligir-lhe. Irei enforcá-lo.
– Senhor – disse ele –, antes de ver um homem da vossa
posição fazendo um trabalho como esse, prefiro dar-vos
uma libra que recebi como gratificação para que deixeis o
animal partir livre.
– Eu não o deixarei partir, pelo Céu, e tampouco o
venderei!
– Como o quiserdes, senhor. Exceto pelo fato de que eu
não desejaria ver um homem de posição igual à vossa
tocando um animal como esse, eu não me importo
absolutamente.

E o sábio seguiu seu caminho.


104

Enquanto ele estava colocando a trave sobre as duas


forquilhas, um sacerdote veio em sua direção montado
num cavalo coberto com arreios.

– Um bom dia para vós, senhor – disse ele.


– O Céu vos faça prosperar – Manawyddan respondeu –;
vossa benção.
– A benção do Céu esteja convosco. E o que, senhor,
estais fazendo?
– Estou enforcando um ladrão que apanhei a roubar-me.
– Que tipo de ladrão, senhor?
– Uma criatura em forma de rato. Esteve me roubando e
vou infligir-lhe o destino de um ladrão.
– Senhor, antes de ver-vos tocando esse asqueroso, eu
preferiria comprar-lhe a liberdade.
– Pela minha confissão do Céu, não irei vendê-lo nem
tampouco libertá-lo.
– É verdade, senhor, que não é nada digno de se comprar,
mas, a ver que vos estais sujando por tocardes nessa
criatura repulsiva, prefiro dar-vos três libras para que o
deixeis ir.
– Pelo Céu, eu não aceitarei qualquer valor por ele. Será
enforcado como deve ser.
– De boa vontade, senhor, fazei o que vos der satisfação.

E o sacerdote seguiu seu caminho.

Manawyddan então passou o laço pelo pescoço do rato e,


quando estava a ponto de enforcá-lo, viu a comitiva de
um bispo, com seus cavalos de aparato e servidores. E o
próprio bispo foi em sua direção. Manawyddan parou o
que estava fazendo.
105

– Senhor Bispo, vossa benção.


– A benção do Céu esteja convosco. Que trabalho estais
fazendo?
– Enforcando um ladrão que apanhei a roubar-me.
– Isso que vejo em vossa mão não é um rato?
– Sim. E me roubou.
– Uma vez que cheguei na hora de sua condenação, vou
resgatá-lo de vós. Dar-vos-ei sete libras por ele, o que é
preferível a ver um homem de posição igual à vossa
destruindo uma criatura repugnante tão vil quanto essa.
Deixai-o partir e tereis o dinheiro.
– Ao Céu declaro que não o deixarei partir!
– Se não o quereis libertar por essa quantia, dar-vos-ei
vinte e quatro libras em dinheiro vivo para que o solteis.
– Não o libertarei por quantia alguma, pelo Céu!
– Se não o quereis libertar pelo que já vos ofereci, dar-
vos-ei todos os cavalos que vedes nesta planície e as sete
cargas da minha bagagem e os sete cavalos sobre os
quais estão.
– Pelo Céu, não o aceitarei - Manawyddan replicou.
– Uma vez que não o quereis libertar por tudo que já vos
ofereci, dizei qual é vosso preço.
– É o que farei. Quero que Rhiannon e Pryderi sejam
libertados.
– Isso obtereis.
– Ainda assim, pelo Céu, não libertarei esse rato.
– Então que mais quereis?
– Que o feitiço e a ilusão sejam removidos das Sete
Províncias de Dyfed.
– Isso também obtereis. Deixai, portanto, que o rato parta
livre.
106

VIII
Llwyd
Pryderi e Rhiannon são libertados

– Pelo Céu que não o libertarei. Devo saber quem é esse


rato.
– É minha esposa.
– Ainda mesmo que o seja, não a libertarei. Por que ela
veio até mim?
– Para despojar-vos. Eu sou Llwyd, filho de Cilcoed
[llwẏt uab kil coet], e lancei o encantamento [hut] sobre
as Sete Províncias de Dyfed. E foi para vingar Gwawl,
filho de Clud, pela amizade que lhe dedicava, que lancei
o encantamento. Em Pryderi vinguei Gwawl, filho de
Clud, pelo jogo do “Texugo na Bolsa”, que Pwyll Pen
Annwn precipitadamente jogou com ele na corte de
Hefeydd Hen. E, quando se soube que havíeis chegado
para viver nesta terra, todos os de minha casa vieram e
imploraram-me que os transformasse [eu rithẏaw] em
ratos para que pudessem destruir vossos grãos. Foram
esses mesmos que vieram na primeira noite, bem como
na segunda, e destruíram vossas duas plantações. Na
terceira noite, vieram a mim minha esposa e as damas da
Corte, suplicaram-me que as transformasse e assim eu
fiz. Porém, ela está grávida. Não fosse isso e vós não
poderíeis tê-la apanhado. No entanto, uma vez que
aconteceu e ela foi presa, irei devolver-vos Pryderi e
Rhiannon. Retirarei também o feitiço e a ilusão [ẏr hut
a’r lletrith] de Dyfed. Agora já vos contei quem ela é.
Deixai, pois, que se vá.
– Não a libertarei, pelo Céu.
– Que mais quereis?
107

– Vede o que devo ter: a promessa de que nunca vos


vingareis por isto, seja sobre Pryderi, Rhiannon ou sobre
mim mesmo.
– Tudo obtereis. Na verdade, agistes com sabedoria ao
pedi-lo, pois sobre vossa cabeça poderia ter recaído todo
esse problema.
– Sim, foi por receio de que assim ocorresse que fiz tal
pedido.
– Dai agora a liberdade a minha esposa.
– Não o farei, pelo Céu, até que veja Pryderi e Rhiannon
livres comigo.
– Vede, ali vêm eles - respondeu Llwyd.

Imediatamente surgiram Pryderi e Rhiannon.


Manawyddan ergueu-se para encontrá-los, saudou-os e
sentou-se a seu lado.

– Ah, príncipe, deixai agora que parta minha esposa -


disse o bispo. - Já não recebestes tudo quanto pedistes?
– Alegremente a libertarei.

E no mesmo instante soltou-a.

Llwyd então a tocou com uma vara mágica [hudlath] e


ela transformou-se numa jovem, a mais bela jamais vista.

– Olhai ao vosso redor e vereis vossa terra toda cultivada


e povoada, como esteve em seus melhores dias.

Manawyddan ergueu-se e olhou em volta. Viu todas as


terras cultivadas e cheias de rebanhos e habitações.
108

– Qual servidão - ele perguntou - foi imposta a Pryderi e


Rhiannon?
– Pryderi teve as aldravas do portão do meu palácio sobre
seu pescoço e Rhiannon usou a coleira dos burros depois
que passaram a carregar feno em seus pescoços. Essa a
servidão que lhes foi imposta.

Em vista de tal servidão, esta história é chamada “O


Mabinogi de Mynnweir (‘Coleira’) e Mynord
(‘Martelo’)” [mabinogi mẏnweir a mẏnord].

E assim termina o ramo destes mabinogi aqui [ac ẏ·uellẏ


ẏ teruẏna ẏ geing honn ẏma o’r mabinogẏ].
O QUARTO RAMO

MATH FILHO DE MATHONWY


111

O Quarto Ramo (Y bedwaredd gainc) conta como o mago Gwydion


(“Filho da Floresta”) e seu irmão, Gilfaethwy, usam as artes mágicas
para obter de Pryderi os porcos do Outro Mundo que o Senhor de
Annwn lhe enviara. Pryderi persegue-os através de Gales até ser
morto por Gwydion. Gilfaethwy viola Goewin, donzela que serve de
escabelo a Math (“Riqueza” ou “Tesouro”), senhor de Gwynedd, no
norte de Gales. O escabelo de Math deve ser uma virgem. Goewin
conta a Math o que aconteceu e diz que ele deve procurar outra para
ocupar seu lugar. Mah escolhe Arianrhod ("Roda de Prata"), que
demonstra não ser mais virgem dando à luz filhos gêmeos, Lleu
Llaw Gyffes ("Leão da Mão Firme") e Dylan ap Ton ("Oceano, Filho
da Onda). O ciclo de histórias ligado a Lleu inclui seu casamento
com uma noiva magicamente criada, Blodeuwedd ("Rosto de Flor"),
sua morte e renascimento, terminando com sua chegada ao trono de
Gwynedd. Tais eventos são dirigidos ou criados por Gwydion, quase
do mesmo modo que Merlin guiará a vida do jovem Arthur nos
romances posteriores.

I
A paixão de Gilfaethwy

M ath, filho de Mathonwy [Math uab


mathonwẏ], era o senhor de Gwynedd e
Pryderi, filho de Pwyll [prẏderi uab pwẏll],
era o senhor das vinte e uma Províncias do Sul. Estas
eram as sete províncias de Dyfed, as sete províncias de
Morganwc, as quatro províncias de Ceredigiawn e as três
de Ystrad Tywi.

Naquele tempo, Math, filho de Mathonwy, não podia


existir a não ser que seus pés estivessem enrolados no
colo de uma donzela [ẏmlẏc croth morwẏn], exceto
quando se estivesse preparando para o tumulto da guerra.
A donzela que estava com ele era Goewin, filha de Pebin
de Dol Pebin, em Arfon [goewin uerch pebin o dol pebin
112

ẏn aruon], e ela era, entre as donzelas conhecidas por lá,


a mais bela de sua época.

Math sempre habitou em Caer Dathyl, em Arfon. Ele não


era capaz de percorrer o país, mas Gilfaethwy, filho de
Don [giluaethwẏ uab don], e Gwydion [guẏdẏon], filho
de Don, seus sobrinhos, filhos de sua irmã, juntamente
com seus domésticos, percorriam o país em seu lugar.

A donzela estava continuamente com Math e a afeição de


Gilfaethwy, o filho de Don, recaiu sobre ela. Ele amou-a
tanto que não sabia mais o que fazer por causa dela e
logo sua cor, seu aspecto e seu ânimo mudaram por amor
a ela, de sorte que não era fácil reconhecê-lo.

Um dia, seu irmão Gwydion olhou-o firmemente.

– Jovem – ele disse –, o que te incomoda?


– Por quê? – replicou o outro. – Que vês em mim?
– Vejo que perdeste teu aspecto e tua cor. Portanto, o que
te incomoda?
– Meu senhor irmão, o que me incomoda, não me serviria
confessá-lo a quem quer que fosse.
– Mas que poderia ser, minha alma?
– Tu sabes que Math, o filho de Mathonwy, é dono desta
propriedade; que, se homens sussurrarem juntos, ainda
que em tom muito baixo, se o vento os encontrar, ele
ficará sabendo.
– Sim, mantém tua paz, conheço teu intento. Amas
Goewin.
113

Quando viu que seu irmão conhecia seu desejo,


Gilfaethwy soltou o mais profundo suspiro do mundo.

– Fica em silêncio, minha alma, e não suspires – falou


Gwydion. – Não é assim que terás sucesso. Provocarei,
se não puder ser de outro modo, um levante de Gwynedd,
Powys e Deheubarth para conseguir a donzela. Que a
partir de agora fique melhor o teu ânimo e eu farei os
planos.

Assim, eles foram até Math, o filho de Mathonwy.

– Senhor – Gwydion disse –, ouvi dizer que chegaram ao


sul certos animais como nunca antes foram conhecidos
nesta ilha.
– Como se chamam? – o rei perguntou.
– Suínos [hobeu], senhor.
– E que tipo de animais são?
– São animais pequenos e sua carne é melhor que a dos
bois.
– Então eles são pequenos?
– E mudam seus nomes. Agora são chamados porcos
[mocheu].
– Quem é o dono deles?
– Pryderi, filho de Pwyll. Os animais foram-lhe enviados
de Annwn por Arawn, o rei de Annwn, e ainda nesta
época esse nome está preservado na expressão: ‘meio
porca, meio porco’ [ac etwa ẏd ẏs ẏn cadw o'r hwnnw
hanner hwch, hanner hob].
– Realmente, de que modo podemos obtê-los de Pryderi?
– Eu irei, senhor, como um dentre doze sob o disfarce de
bardos, procurar os porcos.
114

– Mas pode ser que ele os recuse a ti.


– Minha viagem não será infrutífera, senhor. Não voltarei
sem os suínos.

II
Na corte de Pryderi
A magia de Gwydion

Ele e Gilfaethwy partiram e com eles outros dez homens.


Eles chegaram a Ceredigiawn, ao lugar agora chamado
Rhuaddlan Teifi, onde ficava o palácio de Pryderi. Sob o
disfarce de bardos eles chegaram. Foram alegremente
recebidos e Gwydion foi acomodado ao lado de Pryderi
naquela noite.

– De verdade – disse Pryderi –, eu ficaria muito feliz em


ouvir uma história de algum dos vossos homens.
– Senhor – falou Gwydion –, temos um costume pelo
qual, na primeira noite em que chegamos à corte de um
grande homem, quem recita é o chefe da canção. Assim,
com toda a boa vontade, eu contarei uma história.

Gwydion era o melhor contador de histórias do mundo


[ẏnteu wẏdẏon goreu kẏuar·wẏd ẏn ẏ bẏt oed]. Naquela
noite, ele divertiu a corte com um discurso agradável e
contos, de tal maneira que encantou a cada um na corte e
conversar com ele deu grande prazer a Pryderi.

Depois disso:
115

– Senhor – ele disse a Pryderi –, seria mais agradável


para vós que outro cumprisse minha missão em relação a
vós do que se eu mesmo vos dissesse o que é?
– Não –, respondeu Pryderi –, podeis falar livremente.
– Vede então, senhor, esta é a minha missão: obter de vós
os animais que vos foram enviados de Annwn.
– Realmente, seria a coisa mais fácil de conceder, não
houvesse um acordo entre mim e minha terra a respeito
deles. O acordo é que não posso desfazer-me deles até
que tenham produzido o dobro do seu número.
– Senhor, posso liberar-vos de vossas palavras e este é o
meio pelo qual eu o farei: não me deis os suínos nesta
noite, nem os recuseis a mim e amanhã de manhã vos
mostrarei uma troca por eles.

Gwydion e seus companheiros foram para o alojamento e


deliberaram:

– Ah, meus homens, com o pedido que fiz não obteremos


os suínos.
– Bem, como podem os animais ser conseguidos?
– Eu farei com que os obtenhamos – disse Gwydion.

Ele recorreu a suas artes e começou a mostrar su magia


[ac ẏna ẏd aeth ef ẏn ẏ geluẏdodeu ac ẏ dechreuawt
dangos ẏ hut]. E ele conjurou [hudwẏs] doze cavalos e
doze galgos, cada um deles com o peito branco e tendo
doze coleiras e doze correias que ninguém diria que
fossem feitas de outra coisa que não ouro. Sobre os
cavalos havia doze selas e cada uma das partes que
deveria ser de ferro era inteiramente de ouro. As rédeas
116

eram feitas do mesmo artesanato. Com os cavalos e os


cães ele foi até Pryderi.

– Bom dia para vós, senhor – ele disse.


– O Céu vos faça prosperar e saudações para vós.
– Senhor, eis para vós a libertação da palavra que
dissestes na noite de ontem sobre os suínos: que não os
poderíeis dar, nem vender. Podeis trocá-los pelo que é
melhor. Eu darei estes doze cavalos, todos ajaezados
como estão, com suas selas e suas rédeas e os doze
galgos, com suas coleiras e correias e ainda os doze
escudos dourados que ali vedes.

Esses escudos ele formara com um fungo.

– Bem – disse Pryderi –, vou aconselhar-me a esse


respeito.

Eles deliberaram e decidiram dar os suínos a Gwydion,


ficando com seus cavalos, cães e escudos.

III
A fuga de Gwydion
Prepara-se a batalha entre Gwynedd e Dyfed

Então Gwydion e seus homens pediram-lhes licença e


partiram com os porcos.

– Ah, meus companheiros – disse Gwydion -, é


necessário viajarmos com rapidez. A ilusão não vai durar
uma hora além deste mesmo horário amanhã.
117

Naquela noite, eles viajaram até a parte superior de


Ceredigiawn, até o lugar que, por essa razão, é ainda
chamado Mochdref. No dia seguinte, coninuaram seu
caminho através de Elenydd e, quando anoiteceu,
chegaram à cidade que, por esse motivo, também se
chama Mochdref, entre Ceri e Arwystli. Então foram
adiante e, à noite, alcançaram aquele distrito em Powys
que passou assim a ser chamado Mochnant, onde
pernoitaram. Eles viajaram para a província de Rhos e o
lugar onde permaneceram à noite é ainda chamado
Mochdref.

– Meus homens – disse Gwydion –, devemos prosseguir


para a segurança de Gwynedd com estes animais, pois há
uma reunião de exércitos perseguindo-nos.

Viajaram para a maior cidade de Arllechwedd. Lá


fizeram um chiqueiro para os suínos e, por isso, o nome
de Creuwyryon foi dado àquela cidade. Depois de fazer o
chiqueiro para os suínos, eles foram até Math, filho de
Mathonwy, em Caer Dathyl. Quando chegaram lá, estava
havendo uma mobilização no país.

– Que novas há por aqui? – perguntaram eles.


– Pryderi está reunindo vinte e uma províncias para
perseguir-vos – responderam-lhes. – É surpreendente que
tenhais viajado tão lentamente.
– Onde estão os animais em busca dos quais fostes? -
quis saber Math.
– Construiu-se um chiqueiro para eles em outra
província.
118

Logo depois, eles ouviram as trombetas e o exército no


país. Colocaram-se em ordem, partiram e chegaram a
Penardd, em Arfon.

IV
Gilfaethwy viola Goewin

À noite, o filho de Don e Gilfaethwy, seu irmão,


retornaram a Caer Dathyl. Gilfaethwy tomou o divã de
Math, filho de Mathonwy. Enquanto ele, sem a menor
cortesia, botava para fora da sala as outras donzelas,
obrigava Goewin a permanecer contra sua vontade.

Pela manhã, assim que viram o dia, eles voltaram ao


lugar onde estava Math, o filho de Mathonwy, com seu
exército. Quando chegaram lá, os guerreiros estavam
deliberando sobre a localidade em que deveriam esperar
a chegada de Pryderi e dos homens do sul. Eles foram
para o conselho e resolveu-se aguardá-los nas fortalezas
de Gwynedd, em Arfon. Dentro de dois fortes eles se
posicionaram, Maenor Penardd e Maenor Coed Alun. Lá
Pryderi atacou-os e teve lugar o combate. Grande foi a
matança em ambos os lados, mas os homens do sul foram
forçados a fugir. Eles fugiram para o local que é agora
chamado Nant Call. Até lá os homens de Gwynedd os
seguiram e fizeram uma vasta matança entre os do sul,
que novamente fugiram, indo para o lugar chamado Dol
Pen Maen. Ali os homens de Dyfed se detiveram e
pediram para fazer a paz.
119

V
A paz entre Gwynedd e Dyfed
A morte de Pryderi

Para que pudesse ter paz, Pryderi deu como reféns a


Gwrgi Gwastra e a vinte e três outros, filhos de nobres.
Depois disso, eles viajaram em paz até Traeth Mawr.
Contudo, enquanto seguiam juntos para Melenryd, os
homens que iam a pé não podiam ser impedidos de
disparar flechas. Pryderi despachou uma embaixada para
Math, a fim de pedir-lhe que proibisse seu povo de lutar e
deixasse a questão ser resolvida entre ele e Gwydion,
filho de Don, pois fora este o provocador da contenda. E
os mensageiros chegaram a Math.

– Chamo o Céu como testemunha de que, se isso for


agradável a Gwydion, filho de Don, eu de boa vontade
permitirei que assim seja. Jamais compelirei quem quer
que seja a lutar, a não ser que nós mesmos estejamos
dispostos a dar o melhor de nós.

– Realmente – disseram os mensageiros a Gwydion –,


Pryderi disse que seria mais justo que o homem que lhe
causou esse dano opusesse seu próprio corpo ao dele,
deixando que o povo de Dyfed ficasse incólume.
– Declaro ao Céu que não pedirei ao povo de Gwynedd
para lutar por minha causa. Se for posível que eu mesmo
lute com Pryderi, prazerosamente oporei meu corpo ao
dele.

Essa resposta levaram de volta a Pryderi, que disse:


120

– A ninguém mais, senão a mim mesmo, pedirei que lute


por meus direitos.

Esses dois então chegaram ao local combinado,


armaram-se e combateram. Graças à força, à ferocidade e
pela magia e encantamentos [o nerth grẏm ac angerd a
hut a lledrith] de Gwydion, Pryderi foi morto.
Enterraram-no em Maen Tyriawc, acima de Melenryd, e
lá está sua sepultura.

Tristes, os homens do sul voltaram para sua própria terra.


Não era de causar espanto que estivessem pesarosos,
vendo que haviam perdido seu senhor, muitos de seus
melhores guerreiros e a maior parte de seus cavalos e
armas.

Cheios de alegria e triunfantes voltaram os homens de


Gwynedd.

– Senhor – disse Gwydion a Math –, não seria adequado


para nós que soltássemos os reféns que nos foram dados
pelos homens do sul como garantia de paz? Pois não
devemos jogá-los na prisão.
– Deixa então que sejam libertados – concordou o rei.

Assim, aquele jovem e os outros reféns que estavam com


ele foram libertados para seguir os homens do sul.
121

VI
Math toma Goewin como esposa
A punição de Gwydion e Gilfaethwy

O próprio Math foi adiante para Caer Dathyl. Gilfaethwy,


filho de Don, e todo o pessoal da casa que estava com ele
foram percorrer Gwynedd, como estavam habituados,
sem retornarem à corte. Math foi diretamente para sua
câmara e ordenou que um lugar lhe fosse preparado para
reclinar-se, de modo que pudesse colocar seus pés no
colo da donzela.

– Senhor – disse Goewin –, buscai outra donzela para


acomodar vossos pés, pois sou agora mulher.
– Que significa isso? – o rei perguntou.
– Um ataque, senhor, inesperadamente foi feito contra
mim. Não fiquei quieta, mas não havia ninguém na corte
que o pudesse saber. Esse ataque foi feito por vossos
sobrinhos, os filhos de vossa irmã. Gwydion, filho de
Don, e Gilfaethwy, filho de Don. Fizeram o mal contra
mim e trouxeram-vos desonra. Deitaram-se comigo e
fizeram-no em vosso quarto e em vossa cama.
– Na verdade – ele exclamou–, irei fazer tudo que estiver
em meu poder quanto a esse assunto! Contudo, primeiro
farei com que sejas recompensada e depois procurarei
uma indenização para mim mesmo. Quanto a ti, serás
minha esposa e a posse de meus domínios darei em tuas
mãos.

Gwydion e Gilfaethwy não se aproximaram da corte, mas


permaneceram nos confins do país até que se tornou
proibido dar-lhes comida e bebida. Primeiramente, não
122

chegaram perto de Math, mas, por fim, tiveram de fazê-


lo.

– Senhor – disseram eles –, bom dia para vós.


– Bem, é para compensar-me que viestes?
– Senhor, obedeceremos vosso desejo.
– Pelo meu desejo, eu não teria perdido meus guerreiros,
nem tantas armas quantas perdi! Não podeis compensar-
me pela minha vergonha, isso sem falar na morte de
Pryderi [angheu prẏderi]. Porém, como viestes aqui vos
colocar à minha disposição, agora mesmo começarei a
punir-vos!

Ele pegou seu bastão mágico [ac ẏna ẏ kẏmerth e hutlath]


e golpeou Gilfaethwy, mudando-o em uma corça [ewic]
de bom tamanho. Rapidamente agarrou Gwydion para
que não escapasse e golpeou-o com o mesmo bastão,
transformando-o em outro cervo [carw].

– Uma vez que agora estais presos, desejo que partais


juntos e sejais companheiros e possuais a mesma
natureza das criaturas cuja forma ostentais. Vinde a mim
dentro de doze meses a partir de hoje.

Ao término de um ano a partir daquele dia, houve um


alto barulho sob o muro da câmara e o latido dos cães do
palácio junto com o barulho.

– Olhai - disse Math – o que está lá fora.


– Eu olhei, senhor – disse alguém –, há dois cervos e um
filhote com eles.
123

O rei ergueu-se, foi para fora e, ao sair do palácio, viu os


três animais. Ele ergueu seu bastão e falou:

– Como cervos fostes no ano passado, no ano que há de


vir sereis porcos selvagens.

Golpeou-os imediatamente com o bastão mágico.

– Este jovem eu pegarei e ordenarei que seja batizado.

E o nome que lhe deu foi Hydwn [hẏdwn].

– Ide e sede suínos selvagens e que tenhais a natureza de


suínos selvagens [moch coet]. Que estejais sob este muro
dentro de doze meses a partir de hoje.

No fim do ano, o latido dos cães foi escutado sob o muro


da câmara real. A corte reuniu-se e logo o rei se ergueu e
saiu. Ao chegar lá fora, viu três animais. Foram estes os
animais que ele viu: dois porcos selvagens das florestas e
um filhote bem crescido com eles, que era muito grande
para sua idade.

– Na verdade - disse Math -, este eu vou pegar e fazer


com que seja batizado.

Golpeou-o com seu bastão mágico e o filhote tornou-se


um lindo jovem de cabelos ruivos e o nome que o rei lhe
deu foi Hychdwn [hẏchdwn].
124

– Agora, quanto a vós, como fostes porcos selvagens no


ano passado, sereis um casal de lobos pelo ano que está
por vir.

Tocou-os imediatamente com seu bastão mágico e eles se


tornaram lobos [bleid].

– Que sejais da natureza dos animais cuja semelhança


está sobre vós e retornai aqui sob este muro no prazo de
doze meses a contar deste dia!

No mesmo dia ao fim do ano, ele escutou um clamor e


um ladrido de cães sob o muro da câmara real. O rei se
levantou e saiu. Ao chegar, viu dois lobos e um forte
filhote com eles.

– Este eu vou pegar - disse Math – e fazer com que seja


batizado. Há um nome pronto para ele e é Bleiddwn
[bleidwn]. Eis que esses três, tais são eles:

Os três filhos de Gilfaethwy, o Falso,


os três fiéis combatentes,
Bleiddwn, Hydwn e Hychdwn, o Alto.

[Tri meib giluaethwẏ enwir


tri chenrẏssedat kẏwir.
bleidwn. hẏdwn. hẏchdwn hir.]

Então, ele golpeou os dois com seu bastão mágico e eles


reassumiram sua própria natureza.
125

– Ó homens, pelo erro que contra mim cometestes


suficientes já foram vossa punição e vossa desonra. Fazei
agora um bálsamo precioso para estes homens, lavai suas
cabeças e aprontai-os.

Depois de preparados, eles foram até Math.

– Ó homens – disse o rei –, obtivestes paz e tereis


igualmente amizade. Dai-me vosso conselho, qual
donzela devo buscar?
– Senhor – disse Gwydion, filho de Don –, fácil é dar-vos
conselho. Buscai Arianrhod, filha de Don [aranrot uerch
don], vossa sobrinha, filha de vossa irmã [dẏ nith uerch
dẏ chwaer].

VII
Arianrhod
O nascimento de Dylan e Lleu

Trouxeram a donzela até Math e ela entrou.

– Ah, jovem dama, és tu donzela [a uorwẏn heb ef a wẏt


uorwẏn di]?
– Desconheço, senhor, outra que o seja mais do que eu
[nẏ wnn ni amgen no’m bot].

Então Math pegou seu bastão mágico e depositou-o no


chão.

– Passai por cima disto – ele disse – e saberei se és a


donzela.
126

Ela passou sobre o bastão mágico e surgiu em seguida


um belo e roliço menino de cabelos loiros. Enquanto o
menino gritava, ela se dirigia para a porta. Logo uma
pequena forma [pethan] foi vista mas, antes que qualquer
um pudesse dar uma segunda olhada, Gwydion pegou-a,
envolveu-a num lenço de seda e escondeu-a. O lugar
onde a ocultou foi o fundo de uma arca nos pés de sua
cama.

– Realmente – disse Math em relação ao belo menino de


cabelos loiros -, ordenarei que seja batizado e Dylan será
o nome que lhe darei.

Eles assim batizaram o menino e, tão logo acabaram a


cerimônia, ele mergulhou no mar. Imediatamente,
quando já estava no mar, mostrou sua natureza e nadou
tão bem quanto o melhor peixe que estivesse nas águas.
Por essa razão, foi chamado Dylan, Filho da Onda [dẏlan
eil ton]. Debaixo dele jamais se quebrou uma onda. E o
golpe pelo qual encontrou a morte foi desferido por seu
tio Gofannon [gouannon]. Foi chamado “o terceiro golpe
fatal” [trẏdẏd anuat ergẏt].

Uma manhã, quando Gwydion estava deitado em sua


cama, acordado, ele escutou um choro dentro da arca que
ficava nos pés. Embora não fosse alto, era o bastante para
que pudesse ouví-lo. Então ele se levantou depressa e
abriu a arca. Ao abri-la, viu uma criança de colo
estendendo os bracinhos das dobras [plyc] do lençol e
tirou-a dali de dentro. Ele pegou o menino em seus
braços e levou-o a um lugar onde sabia haver uma
mulher que poderia amamentá-lo. Ele combinou com a
127

mulher que ela cuidaria do menino. E este foi assim


alimentado naquele ano.

No fim do ano, ele parecia, por seu tamanho, uma criança


de dois anos. No segundo ano, era um menino grande,
capaz de ir sozinho à corte. Quando chegou à corte,
Gwydion notou-o e o menino tornou-se-lhe familiar,
amando-o mais do que a qualquer outra pessoa. O
menino foi então educado na corte até os quatro anos de
idade, quando então estava grande como se tivesse oito.

VIII
Arianrhod amaldiçoa Lleu

Gwydion certo dia saiu caminhando e o menino seguiu-o.


Ele foi para o Castelo de Arianrhod [caer aranrot], tendo
o menino consigo. Quando entrou na corte, Arianrhod
ergueu-se para encontrá-lo e deu-lhe as boas-vindas.

– O Céu te faça prosperar [Duw a ro da it]. Quem é o


menino que te segue? – ela perguntou.
– Este jovem é teu filho [Ẏ mab hwnn mab ẏ ti ẏw]?
– Ai! Que te aconteceu para me envergonhares assim?
Por que buscas minha vergonha [kẏwilẏd] e a guardas por
tanto tempo [aẏ gadw ẏn gẏhẏt a hẏnn]?
– A menos que suportes desonra maior do que eu ter
criado um menino tão lindo, então uma coisa pequeninha
será tua vergonha [ẏs bẏchan a beth uẏd dẏ gẏwilẏd].
– Qual o nome do menino [Pwẏ enw dẏ uab]?
– Na verdade, ele ainda não tem nome.
128

– Bem, eu vou lançar este destino sobre ele: jamais terá


um nome até que de mim o receba [Ie heb hi mi a
dẏnghaf dẏghet idaw na chaffo enw ẏnẏ caffo ẏ genhẏf i].
– Ante o Céu eu seja testemunha de que és uma mulher
malvada! Contudo, o menino terá nome, por mais
desagradável que isso possa ser para ti. E, quanto a ti, o
que te aflige é já não seres chamada donzela!

Furioso, ele partiu imediatamente e voltou a Caer Dathyl,


onde passou aquela noite.

No dia seguinte, ele se levantou e tomou o menino


consigo. Foram ambos caminhar pela orla do mar, entre o
lugar onde estavam e Aber Menei. Lá, Gwydion viu
alguns juncos e algas marinhas e transformou-os em um
barco. E de madeira seca e juncos fez couro de cordovão
em grande quantidade. Deu-lhe cor de tal maneira que
jamais alguém viu couro mais belo do que esse. Fez
então uma vela para o barco. Ele e o menino entraram no
porto do Castelo de Arianrhod. Gwydion começou a dar
forma aos sapatos e a costurá-los até ser observado pelos
habitantes do castelo. Quando soube que já o estavam
observando, disfarçou seu aspecto, colocando outra
aparência sobre si mesmo e sobre o menino, a fim de que
não os reconhecessem.

– Que homens são aqueles naquele barco? – perguntou


Arianrhod.
– São sapateiros – responderam-lhe.
– Ide e vede que tipo de couro possuem e que espécie de
trabalho fazem.
129

Foram, portanto, ao encontro deles. Ao chegarem,


Gwydion estava dando a cor a um couro de cordovão e
dourando-o. Os mensageiros retornaram e contaram-no a
Arianrhod.

– Bem, tomai a medida do meu pé e dizei ao sapateiro


que faça sapatos para mim.

Assim, ele fez sapatos para ela, mas não de acordo com a
medida, porém maiores. Os sapatos foram levados a
Arianrhod e ela viu que estavam muito grandes.

– Estes ficaram muito grandes, mas ele receberá seu


pagamento - ela disse. – Deixai-o fazer também outros
que sejam menores do que estes.

Gwydion fez outros sapatos que eram muito menores do


que o pé dela e enviou-os ao castelo.

– Dizei-lhe que nestes meus pés não cabem.


– Na verdade – falou Gwydion –, não lhe farei mais
sapatos a não ser que veja seu pé.

IX
Como Lleu obteve seu nome

Assim, ela desceu ao barco e quando chegou lá Gwydion


estava dando forma aos sapatos e o menino os estava
costurando.

– Ah, senhora – disse ele –, bom dia para vós.


130

– O Céu vos faça prosperar. Fico surpresa de que não


consigais fazer sapatos de acordo com uma medida.
– Eu não podia, mas agora serei capaz.

Logo uma enorme carriça [drẏw] pousou no assoalho do


barco e o menino atirou contra ela, acertando-a na pata,
entre o tendão e o osso. Arianrhod sorriu.

– Realmente – ela disse –, foi com mão firme que o


resplendente mirou [Dioer heb hi ẏs llaw gẏfes ẏ
medrwẏs ẏ lleu ef].
– Que o Céu não te recompense, mas ele já ganhou um
nome. E é um nome bom o bastante. Lleu Llaw Gyffes
será chamado a partir de agora.

O trabalho então desapareceu em algas e juncos. Ele não


mais continuou a fazê-lo. Por essa razão, foi chamado “o
terceiro sapateiro de ouro”.

– Na verdade – disse ela –, não prosperareis da melhor


forma fazendo-me o mal.
– Não te fiz mal algum ainda – respondeu Gwydion.

Nesse momento, ele devolveu ao menino e a si mesmo


suas próprias formas.

– Bem - disse ela –, lançarei um destino sobre esse


menino [Ie heb hitheu i minheu a dẏghaf dẏghet ẏr mab
hwnn]: ele nunca terá armas e armadura até que eu
mesma o invista com elas.
– Pelo Céu, seja tua malícia qual for, ele terá armas.
131

Eles então foram para Dinas Dinllef. Lá, Gwydion criou


Lleu Llaw Gyffes até que este pudesse controlar qualquer
cavalo e fosse perfeito em todas as qualidades, em força e
altura. Gwydion, porém, viu que Lleu estava abatido pela
falta de cavalos e armas. Chamou-o e disse:

– Ah, jovem, amanhã partiremos juntos numa missão.


Por isso, fica mais alegre do que estás agora.
– É o que quero – Lleu respondeu.

X
Gwydion engana Arianrhod novamente

Na manhã seguinte, quando o dia raiava, eles se


levantaram. Foram ao longo da costa do mar, rumando
para Bryn Aryen. No alto de Cefn Clydno equiparam-se
com cavalos e seguiram em direção ao Castelo de
Arianrhod. Eles mudaram suas formas e foi sob a
semelhança de dois rapazes que se apresentaram ante o
portão, mas o aspecto de Gwydion era mais calmo que o
do outro.

– Porteiro – disse ele –, entra e dize que aqui estão bardos


provenientes de Glamorgan.
E o porteiro entrou.

– As boas-vindas do Céu estejam com eles, deixa-os


entrar – disse Arianrhod.

Com grande alegria foram saudados. O salão estava


preparado e eles foram comer. Quando a refeição estava
terminada, Arianrhod conversou com Gwydion sobre
132

contos e histórias. Gwydion era um excelente narrador de


contos. Quando chegou o momento de deixarem os
festejos, um quarto estava pronto para eles, que foram
descansar.

Gwydion levantou-se logo que o sol começou a se por e


então chamou a si seu encantamento e seus poderes [ẏna
ẏ gelwis ef ẏ hut a’ẏ allu attaw]. No momento em que o
dia raiou, ressoou pela terra um grande alvoroço, com
trombetas e gritos. Quando já era dia, eles ouviram uma
batida na porta do quarto e escutaram Arianrhod
perguntando se poderia abrí-la. O rapaz ergueu-se e
abriu-lhe a porta. Arianrhod entrou acompanhada de uma
donzela.

– Ah, bons homens – disse ela –, estamos em grandes


apuros.
– Sim, é verdade – concordou Gwydion. – Escutamos
trombetas e gritos. Que pensais possam ser?
– Na verdade, sequer podemos ver a cor do oceano por
causa dos navios, lado a lado. Os guerreiros estão vindo à
terra com toda a rapidez possível. E que podemos fazer?
– Senhora, nada podemos fazer além de fechar o castelo e
defendê-lo da melhor maneira que conseguirmos.
– É verdade, que o Céu vos recompense. Vós dois o
defendereis. E aqui encontrareis abundância de armas.

Imediatamente, ela foi buscar armas e retornou com duas


donzelas, trazendo consigo couraças para dois homens.
133

– Senhora – disse ele –, armai este moço e eu me


aprontarei com a ajuda de vossas donzelas. Depressa, eu
ouço o barulho dos homens aproximando-se.
– Assim farei de boa vontade.

Ela armou-o completamente e com grande satisfação.

– Já terminastes de armar o jovem? – perguntou


Gwydion.
– Sim, terminei – Arianrhod respondeu.
– Da mesma forma terminei eu. Vamos agora tirar nossas
armas, não temos necessidade delas.
– Por quê? Há um exército em volta da casa!
– Cara senhora, não há exército algum aqui.
– Oh! – ela gritou. – De onde vem então todo esse
tumulto?
– Esse tumulto foi apenas para quebrar tua profecia e
conseguir armas para teu filho. E agora ele tem armas
sem que deva qualquer agradecimento a ti.
– Pelos Céus, és um homem perverso! Muitos jovens
podem ter perdido suas vidas pelo tumulto que
provocaste hoje nesta província. Vou agora lançar um
destino sobre este jovem – ela disse. – Ele jamais terá
uma esposa da raça que agora habita esta terra.
– Em verdade – falou Gwydion –, sempre foste uma
mulher maliciosa e ninguém nunca te pôde suportar.
Todavia, uma esposa ele terá.
134

XI
A criação de Blodeuedd

Logo depois, eles foram a Math, o filho de Mathonwy, e


queixaram-se muito amargamente de Arianrhod.
Gwydion também lhe mostrou como havia se esforçado
para conseguir armas para o rapaz.

– Bem – disse Math –, procuraremos, eu e tu, por meio


de encantamentos e ilusão [oc an hut an lledrith], formar
com flores [or blodeu] uma esposa [gwreic] para ele.
Lleu chegou agora à altura de um homem e é o mais
agradável jovem jamais visto.

Eles apanharam então as flores do carvalho, as flores da


giesta e as flores da ulmária [blodeu ẏ deri. a blodeu ẏ
banadẏl. a blodeu ẏr erwein]. Com elas criaram uma
donzela, a mais bela e graciosa que um homem jamais
viu. Eles a batizaram e deram-lhe o nome de Blodeuedd
[blodeued].

Depois que ela se tornou sua noiva e todos festejaram,


Gwydion disse:

– Não é fácil para um homem manter-se sem posses.


– É verdade - disse Math. – Darei ao rapaz a melhor
província para governar.
– Senhor – disse ele –, que província é essa?
– A província de Dinodig – ele respondeu.

Tal lugar chama-se nestes dias Eifionydd e Ardudwy. O


lugar na província onde ele morou era um ponto chamado
135

Mur y Castell, nos confins de Ardudwy. Lá ele habitou e


reinou e tanto ele quanto seu governo eram amados por
todos.

Certo dia [treigẏlgueith], ele seguiu para Caer Dathyl


para visitar Math, filho de Mathonwy. No dia em que ele
iniciou a viagem para Caer Dathyl, Blodeuedd chegou a
sua corte. Ela escutou o som de um chifre de caça sendo
soprado e viu um cervo cansado passar, perseguido por
cães e caçadores. Depois dos cachorros e dos caçadores
vinha uma multidão de homens a pé.

– Mandai um jovem – disse ela – para perguntar que


turba possa ser aquela.

Assim, o jovem foi e inquiriu quem seriam eles.


– Aquele – disseram eles – é Gronw Pebyr [Gronw
pebẏr], senhor de Penllyn.

E assim o jovem lhe falou.

Gronw Pebyr perseguiu o cervo, vindo a apanhá-lo perto


do rio Cynfael, onde o matou. Esfolando o cervo e dando
pedaços aos seus cães, ele ficou lá até que a noite
começou a fechar-se. Como o dia estava desaparecendo e
a noite se aproximava, ele chegou ao portão da Corte.

– Na verdade – disse Blodeuedd –, o príncipe falará mal


de nós se, a esta hora, deixarmos que parta para outra
terra sem convidá-lo a entrar.
– Sim, senhora – concordaram eles –, será mais
apropriado convidá-lo a entrar.
136

Mensageiros foram então mandados ao seu encontro e


convidaram-no a entrar. Ele aceitou contente a oferta e
foi para a corte. Blodeuedd veio recebê-lo e saudá-lo,
dando-lhe as boas-vindas.

– Senhora – disse ele –, que o Céu vos pague por vossa


gentileza.

XII
Blodeuedd apaixona-se por Gronw Pebyr
A conspiração contra Lleu

Quando já haviam desmontado, foram sentar-se.


Blodeuedd olhou para o hóspede e, desde esse momento,
encheu-se de amor por ele. Ele a contemplou e o mesmo
pensamento que a invadira preencheu-o também, de
forma que ele não pôde esconder-lhe que a amava, mas
declarou-se a Blodeuedd, que ficou por isso tomada de
felicidade. Toda a conversa deles foi sobre a afeição e o
amor que sentiam um pelo outro e que havia surgido em
espaço não maior do que uma noite. E essa noite
passaram um na companhia do outro.

No dia seguinte, ele quis partir. Mas ela disse:

– Suplico-te que não me deixes hoje.

E naquela noite ele permaneceu. Tentavam descobrir um


meio de ficar sempre juntos.

– Não há outra possibilidade – falou Gronw – além de te


esforçares para saber de Lleu Llaw Gyffes como ele pode
137

ser levado à morte. E isso deve ser feito sob a aparência


de solicitude para com ele.

No dia seguinte, Gronw quis partir.

– Aconselho-te a não me deixares hoje – ela disse.


– Porque me pedes, não partirei. Contudo, há o perigo de
que o chefe que possui este castelo possa retornar à casa.
– Amanhã – ela respondeu – sem dúvida permitirei que
sigas teu caminho.

No dia seguinte, ele quis partir e ela não o impediu.

– Sê cuidadosa – disse Gronw – com o que te disse.


Conversa muito com ele e, sob o disfarce das
brincadeiras do amor, procura descobrir como é possível
dar-lhe a morte.

Lleu Llaw Gyffes voltou para casa naquela noite. Eles


passaram o dia conversando, ouvindo os menestréis e
festejando. À noite, foram descansar e ele falou com
Blodeuedd uma vez e falou-lhe ainda uma segunda vez,
mas, por mais que fizesse, não obteve dela palavra
alguma.

– O que te incomoda? Estás bem?


– Eu estava pensando – ela disse – sobre aquilo que
jamais pensaste em relação a mim. Eu ficaria cheia de
tristeza por tua morte, caso partisses mais cedo do que
eu.
138

– O Céu te recompense por tua preocupação por mim,


mas, até que o próprio Céu determine, eu não serei morto
com facilidade.
– Pelo amor do Céu e pelo meu próprio, mostra-me como
podes ser morto. Minha memória é melhor do que a tua
para recordá-lo.
– Digo-te com prazer. Não posso ser morto facilmente, a
não ser por um ferimento. A lança pela qual eu for
atingido deve ser preparada no decorrer de um ano. Nada
deve ser feito em relação a isso exceto durante o
sacrifício dos domingos.
– Isso é verdadeiro?
– Está conforme a verdade. E eu não posso ser morto
dentro de uma casa, nem fora dela. Não posso ser morto
estando a cavalo, nem a pé.
– Realmente, de que maneira podes ser morto?
– Já te digo. Preparando-se um banho para mim ao lado
de um rio, colocando-se um teto sobre o caldeirão,
cobrindo-o bem e firmemente. Deve-se trazer um cervo
[bwch] e deixá-lo ao lado do caldeirão. Então, se eu puser
um pé no dorso do cervo e o outro na borda do caldeirão,
qualquer um que me atingir poderá provocar minha
morte.
– Bem - disse ela –, agradeço ao Céu que seja fácil evitar
tudo isso.

Assim que obteve essa informação [ẏmadrawd], ela não


esperou um momento sequer para mandar uma
mensagem a Gronw. Este trabalhou para fazer a lança e,
em doze meses a contar daquele dia, ela estava pronta. E,
no mesmo dia em que a terminou, Gronw ordenou que
Blodeuedd fosse informada.
139

– Senhor – ela disse –, estive pensando sobre como é


possível ser verdade o que anteriormente me disseste.
Poderias mostrar-me de que modo seria possível ficares
ao mesmo tempo sobre a borda do caldeirão e sobre um
bode, se eu preparar o banho para ti?
– Eu te mostrarei – disse ele.

Ela então mandou mensagem a Gronw e sugeriu que ele


ficasse emboscado na colina agora conhecida como Bryn
Cyfergir, na margem do rio Cynfael. Ela também
ordenou que fossem reunidos todos os bodes da província
e levados ao outro lado do rio, em direção oposta a Bryn
Cyfergir.

No dia seguinte, ela falou assim:

– Senhor, eu ordenei que o telhado e o banho fossem


preparados e eis que estão prontos.
– Bem, irei com prazer examiná-los.

Um dia depois, Lleu veio e examinou o banho.

– Entrarás no banho, senhor? – ela perguntou.


– É com prazer que o farei – ele disse.

Ele foi para o banho e começou a lavar-se.

– Senhor, aqui estão os animais de que falaste como


tendo a natureza de cervos [llẏma ẏr aniueuleit a
dẏwedeisti uot bwch arnunt].
– Bem, faze com que um deles seja trazido e colocado
aqui.
140

O bode foi trazido. Lleu ergueu-se do banho, pôs suas


calças e colocou um pé na borda do banho e o outro no
dorso do bode.

XIII
Lleu desaparece

Gronw imediatamente surgiu da colina que é agora


chamada Bryn Cyfergir. Ele ficou sobre um pé só,
arremessou o dardo envenenado e atingiu-o no lado. A
haste ficou para fora, mas a ponta do dardo permaneceu
dentro do corpo de Lleu. Este voou sob a forma de uma
águia, dando um grito terrível. Não foi mais visto deste
então.

Assim que ele partiu, Gronw e Blodeuedd foram juntos


ao palácio, naquela noite. No dia seguinte, Gronw
levantou-se e apoderou-se de Ardudwy. Depois de tomar
a terra, ela a governou, de forma que Ardudwy e Penllyn
estavam ambas sob seu domínio.

Essas notícias alcançaram Math, filho de Mathonwy. Um


grande peso e a tristeza caíram sobre Math e muito mais
sobre Gwydion do que sobre ele.

– Senhor – disse Gwydion –, não terei descanso até obter


notícias de meu sobrinho.
– Realmente – Math respondeu –, que o Céu seja tua
força.

Gwydion partiu e começou a andar pelo país. Ele


atravessou Gwynedd e Powys até os confins. Quando já o
141

havia feito, foi ao Arfon e avizinhou-se da casa de um


vassalo, em Maenawr Penardd. Ele chegou à casa e ficou
lá naquela noite. O dono da casa e seus domésticos
voltaram e o último a vir foi o porqueiro, a quem o dono
da casa disse:

– Bem, jovem, tua porca veio esta noite?


– Veio – respondeu o rapaz – e neste momento já está
com os porcos.
– Aonde vai essa porca? – quis saber Gwydion.
– Todos os dias, quando o chiqueiro é aberto, ninguém
consegue ficar de olho nela, nem sabe se ela corre por aí
ou afunda terra adentro.
– Peço-te que me concedas não abrires o chiqueiro até
que eu esteja lá contigo.
– Com toda boa vontade eu o farei.

XIV
A águia no carvalho

Eles foram descansar naquela noite. Tão logo o


guardador de porcos viu a luz do dia foi despertar
Gwydion. Este se levantou e vestiu-se, indo com o
guardador até o chiqueiro, onde permaneceu. O porqueiro
então abriu o chiqueiro. No mesmo momento, a porca
saltou para fora e partiu com grande velocidade.
Gwydion seguiu-a e ela foi em direção contrária ao curso
do rio, dirigindo-se para um riacho que é agora chamado
Nant y Lleu. Ali ela parou e começou a alimentar-se.
Gwydion chegou embaixo da árvore e olhou para
descobrir o que a porca poderia estar comendo. Ele viu
que ela estava comendo carne podre e vermes. Olhando
142

então para o topo da árvore, ele viu uma águia [erẏr] e,


quando a águia se balançava, a carne estragada e os
vermes caíam dela e a porca devorava-os. De sua parte,
isto é o que fez, pensar que a águia era Lleu [sef a wnaeth
ẏnteu, medẏlẏaw ẏ mae Lleu oed ẏr erẏr]. Ele cantou uma
estrofe:

Carvalho que cresces entre duas margens:


escurecidos estão o céu e a colina!
Não direi por sua feridas
que este é Lleu?

Depois disso, a águia desceu até alcançar o centro da


árvore. E Gwydion cantou outra estrofe:

Carvalho que cresces no chão do planalto,


não estás ainda molhado? Não ficaste encharcado
por nove vintenas de tempestades?
Não acolhes em teus ramos Lleu Llaw Gyffes?

A águia desceu então ao mais baixo ramo da árvore.


Gwydion cantou logo esta estrofe:

Carvalho que cresces abaixo da colina íngreme:


imponente e majestoso é teu aspecto!
Não o direi eu?
Que Lleu virá para meu colo?

A águia desceu para os joelhos de Gwydion e este a


tocou com sua vara mágica. Ele assim retornou à sua
própria forma. Jamais viu alguém uma visão tão digna de
pena, pois Lleu era apenas pele e ossos.
143

XV
Cura e vingança de Lleu Llaw Gyffes

Ele foi então para Caer Dathyl e foram-lhe trazidos os


bons médicos que havia em Gwynedd. Antes do fim do
ano ele já estava quase curado.

– Senhor – disse ele a Math, filho de Mathonwy –, já é


chegado o tempo de que eu receba uma compensação
daquele que me fez passar por todas essas aflições.
– É verdade – respondeu o rei. – Ele jamais será capaz de
manter-se na posse do que é teu por direito.
– Bem, quanto antes eu recobrar meus direitos, mais
satisfeito ficarei.

Eles então convocaram e reuniram todo o Gwynedd e


partiram para Ardudwy. Gwydion foi à frente e seguiu
para Mur y Castell. Quando Blodeuedd ouviu que ele
estava chegando, tomou suas donzelas e fugiu para a
montanha. Elas passaram pelo rio Cynfael e foram em
direção a um abrigo que havia na montanha. Seu medo
era tanto que corriam sempre com os rostos voltados para
trás. Desavisadas, não viram o lago e caíram dentro dele.

Todas elas se afogaram, exceto a própria Blodeuedd.


Gwydion prendeu-a. Disse-lhe então:

– Não te matarei. O que farei contigo é pior do que isso.


Pois irei transformar-te em um pássaro e, pela vergonha
que lançaste sobre Lleu Llaw Gyffes, de agora em diante
jamais tornarás a mostrar tua face à luz do sol e isso por
medo dos outros pássaros. Será da natureza deles atacar-
144

te e perseguir-te onde quer que te encontrem. Não


perderás teu nome, mas serás sempre chamada
Blodeuwedd [blodeuwed].

Eis que Blodeuwedd, na linguagem desta época, é uma


coruja e por esse motivo a coruja é odiosa a todos os
pássaros. E ainda agora a coruja é chamada Blodeuwedd.

Gronw Pebyr retirou-se então para Penllyn, de onde


enviou uma embaixada. Os mensageiros que ele mandou
perguntaram a Lleu Llaw Gyffes se este aceitaria terras,
um domínio, ouro ou prata pelo dano que havia recebido.

– Não aceitarei coisa alguma, pela minha fé no Céu! – ele


exclamou. – Vede que isto é a única coisa que aceitarei
dele: que ele vá ao ponto em que eu estava quando ele
me feriu com o dardo e eu ficarei no lugar onde ele
estava e com um dardo irei mirar nele. E isso é o mínimo
que aceitarei.

E essas palavras foram ditas a Gronw Pebyr.

– Realmente – ele disse –, isso é necessário para mim?


Meus fiéis guerreiros, todos os de minha casa e meus
irmãos adotivos, não há nenhum dentre vós que suporte o
golpe em meu lugar?
– Verdadeiramente não há – responderam eles.
Em razão da recusa de sofrerem um golpe por seu senhor,
eles são chamados até este dia “a terceira tribo desleal”.

– Bem – falou Gronw –, irei ao seu encontro.


145

Os dois foram então para as margens do rio Cynfael.


Gronw parou no lugar em que Lleu Llaw Gyffes estava
quando ele o golpeou, enquanto Lleu ficou no lugar onde
Gronw estava. E Gronw Pebyr disse-lhe:

– Uma vez que foi pelos ardis de uma mulher que vos fiz
o que fiz, conjuro-vos em nome do Céu a deixar-me
colocar entre mim e o golpe a pedra que vedes lá adiante,
no banco do rio.
– Na verdade – disse Lleu –, não o recusarei a vós.
– Possa o Céu recompensar-vos.

Lleu então arremessou o dardo contra ele. O dardo


perfurou a pedra e atravessou Gronw igualmente, indo
sair em suas costas. Assim Gronw Pebyr foi morto. A
pedra existe ainda na margem do rio Cynfael, em
Ardudwy, tendo em si o buraco. Portanto, é ainda hoje
chamada Pedra de Gronw [llech gronwẏ].

Uma segunda vez Lleu Llaw Gyffes tomou posse da terra


e governou-a prosperamente. E, como a história conta,
ele foi depois disso o senhor de Gwynedd.

E assim termina esta parte dos mabinogi [ac velly y


teruyna y geing honn o’r mabinogi].
ANEXO
149

Pronunciando o Galês

1 A língua de Gales

O idioma de Gales, mais adequadamente chamado


Cymraeg de preferência ao termo inglês Welsh (palavra
germânica com o sentido de “estrangeiro”), pertence ao
ramo céltico das línguas indo-européias. O idioma dos
galeses é primo distante do irlandês e irmão do bretão. O
galês é ainda utilizado por cerca de meio milhão de
pessoas dentro do País de Gales e, possivelmente, outras
poucas centenas de milhares na Inglaterra e áreas além-
mar.

Nas regiões mais densamente povoadas de Gales, tais


como o sudeste (contendo os grandes centros urbanos de
Cardiff, Newport e Swansea), a língua cotidiana normal é
o inglês, mas há outras áreas, notadamente nas regiões do
oeste e do norte (particularmente Gwynedd e Dyfed)
onde o Galês permanece forte e grandemente visível. O
nome galês do país é Cymru (kámrü), “Terra dos
Compatriotas”; o povo é conhecido com Cymry (kámri) e
a língua, como Cymraeg (kámraig). Diferenças regionais
no galês falado não impedem que usuários de regiões
150

diferentes entendam-se mutuamente e o galês padrão é


compreendido por falantes do idioma em toda parte.

Apesar de sua aparência extraordinária para o não


iniciado, o galês é hoje uma língua cuja ortografia é
completamente regular e fonética, de forma que, tendo
compreendido as regras, você poderá a ler e pronunciar
sem muita dificuldade. Para crianças pequenas, aprender
a ler o galês oferece muito menos dificuldades do que o
inglês, pois as muitas inconsistências da ortografia
inglesa não são encontradas no galês, em que todas as
letras são pronunciadas.

2 O alfabeto galês

O alfabeto da língua galesa possui 28 letras:

A B C Ch D Dd E F Ff G Ng H I L
Ll M N O P Ph R Rh S T Th U W Y

3 As vogais

A como em pai. Palavras galesas: am, ac.

E como no inglês bet ou echo. Palavras galesas: gest


(guést); enaid (énaid).

U como no francês mur (aqui representado por ü).


Palavras galesas: ganu (gánü); Cymru (kahmrü); tu (tü);
un (ün).

O como no inglês lot ou moe. Palavras galesas: o’r (or);


dod (dod); bob (bob).
151

W como em tu, nu. Palavras galesas: cwm (kum); bws


(bus); yw (i-u); galw (gálu).

Y tem dois sons diferentes, o som final do inglês happy


(i, neste texto) ou o som representado pelo u do inglês
bus (ah, neste texto): y (ah); yr (ahr); yn (ahn); fry (vri);
byd (bid).

Todas as vogais (inclusive w e y) podem ser alongadas


pela adição de um acento circunflexo (^), conhecido em
galês como to bach (“pequeno teto”).

4 Os ditongos

Ae, ai e aw são pronunciados como o inglês eye: ninnau


(ninái); mae (mái); henaid (hénaid); main (máin); craig
(kráig).

Eu e ei são pronunciados como ei na palavra pray:


deusiau (dêixái), ou, em alguns dialetos, (dixah); deil
(dêil ou dáil); teulu (têilü ou táielü).

Ew é semelhante a e-u, ou, talvez, ao inglês mount: mewn


(me-un ou máun); tew (te-u).

Oe como em mói: croeso (króiso); troed (tróid); oen


(óin).

Wy como no inglês win ou u-i: wy (u-i); wyn (win);


mwyn (mu-in).
152

Ywy como no inglês Howie: bywyd (bowid); tywyll


(towithl).

Aw como no inglês áu: mawr (máur); prynhawn


(prinháwn); lawr (láur).

5 As consoantes

Na maioria das vezes, B, D, H, L, M , N, P, R, S e T são


pronunciados aproximadamente da mesma forma que
seus equivalentes em português (o H é sempre
pronunciado como no inglês hat, jamais mudo). As
diferenças são as seguintes:

C sempre como em carrro, nunca como em cigarro:


canu (kánü); cwm (cum); cael (káil) e, é claro, Cymru
(kamrü).

CH como no escocês loch ou no alemão ach ou noch. O


som nunca é como no inglês church, mas como em
Dogherty: edrychwn (edráchun); uwch (ü-uch); chwi
(chu-i).

Dd é como o th inglês nas palavras seethe ou them: bydd


(bithe); sydd (sith); ddofon (thovon); ffyddlon (fith-lon).

Th é como o th inglês em think, forth, thank: gwaith


(gwáith); byth (beeth).

F é como o v português: afon (ávon); fy (vi); fydd (vith);


hyfryd (havrid); fawr (váur); fach (vach).
153

Ff é como o f português: ffynnon (finon); ffyrdd (firth);


ffaith (fáith).

G é sempre como em gado, guerra: ganu (gánü); ganaf


(gánav); angau (angái); gem (guem).

Ng é como no inglês finger ou Long Island. O ng


comumente surge com um h depois, como uma mutação
do c: Yng Nghaerdydd (“em Cardiff”, pronunciado ung
háir dith) ou Yng Nghymru (“em Gales”, pronunciado ang
humri).

Ll é um l com uma expiração. Isso significa que você


deve fazer com seus lábios e língua como se fosse
pronunciar um l e então soprar o ar suavemente pelos
lados da língua ao invés de dizer qualquer outra coisa.
Em inglês, o som mais próximo a esse seria um l com um
th (de think) antes: llan (thlan); llawr (thláur); llwydd
(thlu-ith).

Rh soa como uma ligeira expiração antes que o r seja


pronunciado: rhengau (hrengái); rhag (hrag); rhy (hri).
Referências

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Londres: Swan Sonnenschein and Co., 1901.

Ford, Patick K. (tradução). The Mabinogion. Nova York:


Viking Press, 1976.

Gruffud, Henri. Cymraeg Da; gramadeg cyfoes ac


ymarferion (a Welsh grammar for learners). Talybont: Y
Lolfa, 2000.

Guest, Charlotte E. (tradução). The Mabinogion.


Londres: Harper & Collins Publishers Ltd., 2002.

Jones, Gwyn & Jones, Thomas (tradução). Mabinogion.


Londres: Everyman’s Library, 1974.

Thorne, David A. Gramadeg Cymraeg (Welsh


Grammar). Llandysul: Gomer Press,1996.

Walton, Evangeline. The Mabinogion Tetralogy. Nova


York: Overlook Press, 2002.

Williams, Ifor (edição). Pedeir Keinc y Mabinogi.


Cardiff: University of Wales Press, 1951.
Internet

Geiriadur Ar-lein Cymraeg-Saesneg / Saesneg-Cymraeg.


Disponível em <https://geiriadur.uwtsd.ac.uk/>.

Geiriadur Prifysgol Cymru (A Dictionry of the Welsh


Language). Disponível em <http://www.welsh-
dictionary.ac.uk/>.

Gwefan Cymru-Catalonia. Disponível em


<http://www.kimkat.org/>.

Morgan, Gareth. Reading Middle Welsh; a course book


based on the Welsh of the Mabinogi. Disponívl em
<https://www.mit.edu/~dfm/canol/>.

Luft, Diana, Thomas, Peter Wynn & Smith, D. Mark


(editores). Rhyddiaith Gymraeg 1300-1425. Disponível
em <http://www.rhyddiaithganoloesol.caerdydd.ac.uk>.

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