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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências da Sociedade de Macaé

Curso de Graduação em Direito

Ariane Costa Menezes

A dívida pública e a soberania estatal sob a perspectiva da dignidade


da pessoa humana

Macaé
2020

Ariane Costa Menezes


A dívida pública e a soberania estatal sob a perspectiva da dignidade
da pessoa humana

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso


de Graduação em Direito da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção do
Grau de Bacharel em Direito.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Fabiane Manhães

Ariane Costa Menezes


A dívida pública e a soberania estatal sob a perspectiva da dignidade
da pessoa humana

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso


de Graduação em Direito da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção do
Grau de Bacharel em Direito.

Aprovada em 10 de dezembro de 2020.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Fabiane Manhães - Orientador


Universidade Federal Fluminense - UFF

Prof. Dr. Heron Abdon


Universidade Federal Fluminense - UFF

Prof. Dr. Camilo Plaisant Carneiro


Universidade Federal Fluminense - UFF

Macaé

2020
Resumo
O presente trabalho trata da verificação se a utilização da dívida pública enquanto um instrumento
catalisador do processo de desigualdade social e crescente pauperização do povo é verdade dentro da
perspectiva neoliberal do Estado. Procura-se verificar se a qualidade de provedor de direitos sociais do
Estado é mitigada com a ascensão das políticas neoliberais e internacionalização da economia. Num
contexto de mundo globalizado, os países subdesenvolvidos têm a sua soberania relativizada em função
da cobrança dos organismos internacionais para a solidez das suas economias e o cumprimento das metas
de superávits, ficando presos aos ditames dos fundos monetários internacionais com relação à condução
de política econômica nacional, desligando o principio constitucional de dignidade da pessoa humana das
atividades econômicas. O método de pesquisa utilizado foi o descritivo com forma de abordagem
explicativa onde foram usadas as técnicas de coleta de dados, além de referências bibliográficas. A
presente pesquisa serve para obter dados descritivos que expressam os sentidos dos fenômenos. Os
principais autores que contribuíram com o trabalho foram: Marcelo Dias Carcanholo (2007) e Maria
Lúcoa Fatorelli (2014).

Palavras-chave: Divida Pública; Soberania Nacional; Estado Mínimo;Neoliberalismo;Dignidade


da pessoa humana.

Ficha catalográfica automática -

M541d Menezes, Ariane Costa Menezes


A divida publica e a dívida estatal sob a perspectiva da
dignidade da pessoa humana / Ariane Costa Menezes
Menezes ; Fabiane Manhães, orientador. Niterói, 2020.
68 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
Física)- Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Física, Niterói, 2020.
1. Dívida Pública. 2. Soberania Nacional. 3.
Neoliberalismo. 4. Dignidade da Pessoa Humana. 5.
Produção intelectual. I. Manhães, Fabiane, orientador. II.
Universidade Federal Fluminense. Instituto de Física. III.
Título.
CDD -
SDC/BIF Gerada com informações
fornecidas pelo autor
Bibliotecário responsável: Sandra Lopes Coelho - CRB7/3389
Agradecimentos

Aos meus irmãos Amanda e André que me dão motivação para perseguir um caminho
de cooperação e amor, por serem minha rocha firme de sustentação.
A minha orientadora que demonstrou uma capacidade de empatia que eu nunca imaginei
encontrar no percurso da minha graduação e me fez não desistir da carreira acadêmica, dedico
todo o meu respeito e admiração.
Ao meu querido amigo e companheiro de vida Guilherme Viveiros que me cuidou, me
deu a atenção que eu precisei e me orientou em todo o caminho.
A minha amiga Françoise Medeiros que foi minha companheira fiel durante todo o
processo árduo de altos e baixos emocionais, me dando sustentação através de amor e capacidade
de compreensão que me ensinou e me dedicou.
A minha amiga Sara Abreu que me ajudou a superar a dificuldade de escrever e me
ensinou como começar quando eu não sabia o caminho.
A minha amiga Jackcéia Firmino que esteve do meu lado quando eu precisei e teve a
coragem de enfrentar os meus problemas comigo, além de me apontar as soluções.
A minha amiga Amanda Lopes que é minha inspiração e foi responsável pelas críticas
que levaram a amarração final do meu trabalho, trazendo um pouco da qualidade de tudo que ela
faz para o meu trabalho também.
As minhas avós que são os exemplos de mulheres mais fortes que eu conheço e a quem
eu espero poder dar o orgulho que elas merecem sentir.
A minha terapeuta Samantha que acreditou em mim quando eu não consegui acreditar e
me levou a finalização do presente trabalho, sem ela eu não conseguiria.
Por fim agradeço toda a sociedade por me proporcionar estudo superior gratuito, espero
um dia poder retribuir.
Lista de Tabelas

TABELA 1: RECEITAS E DESPESAS COM SEGURIDADE SOCIAL

TABELA 2: DADOS DOS ÚLTIMOS VINTE ANOS DA DÍVIDA EXTERNA

TABELA 3: DADOS DOS ÚLTIMOS VINTE ANOS DA DÍVIDA INTERNA

TABELA 4: DOMICÍLIOS COM ÁGUA POTÁVEL

TABELA 5: DOMICÍLIOS COM INSTALAÇÃO DE REDE DE ESGOTO

TABELA 6: BPC PARA IDOSOS - VALOR TOTAL

TABELA 7: BENEFÍCIOS DO BOLSA FAMÍLIA

TABELA 8: TAXA DE DESEMPREGO

TABELA 9: POPULAÇÃO DESOCUPADA


Lista de Gráficos

GRÁFICO 1- RECURSOS DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E OUTRAS


TRANSFERÊNCIAS EM RELAÇÃO AOS JUROS E ENCARGOS DA DÍVIDA PÚBLICA
(R$ BILHÕES) (2003-2017)

GRAFICO 2- DADOS DOS ÚLTIMOS VINTE ANOS DA DÍVIDA EXTERNA

GRÁFICO 3- DADOS DOS ÚLTIMOS VINTE ANOS DA DÍVIDA INTERNA


“A dívida pública criou uma classe de capitalistas ociosos,
enriqueceu, de improviso, os agentes financeiros que servem de
intermediários entre o governo e a nação. As parcelas de sua
emissão adquiridas pelos arrematantes de impostos,
comerciantes e fabricantes particulares lhes proporcionam o
serviço de um capital caído do céu. Mas, além de tudo isso, a
dívida pública fez prosperar as sociedades anônimas, o
comércio com os títulos negociáveis de toda espécie, a
agiotagem, em suma, o jogo da bolsa e a moderna bancocracia”.
Marx, 1867.
SUMÁRIO

RESUMO

AGRADECIMENTOS
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 1

CAPITULO 1 – FUNDAÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA INTERNA E EXTERNA ATÉ OS


ANOS 90 NO BRASIL ............................................................................................................... 5
1.1 O CONTEXTO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA NO BRASIL........5

1.2 UMA BREVE ANÁLISE DA DÍVIVA PÚBLICA INTERNA A PARTIR DO INÍCIO DA


DÉCADA DE SESSENTA .......................................................................................................... 7
1.3 UMA BREVE ANÁLISE DA DÍVIDA PÚBLICA EXTERNA DOS ANOS
SESSENTA ATÉ OS ANOS NOVENTA.................................................................................. 14
CAPITULO 2 - O O ESTADO SOBERANO E A GLOBALIZAÇÃO ...................................... 17
2.1 A SOBERANIA ESTATAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 .............................................. 17
2.2 A SOBERANIA ESTATAL NO MUNDO GLOBALIZADO .............................................. 21
2.3 MECANISMOS DE CONTROLE EXTERNO ATRAVÉS DO SISTEMA DA DÍVIDA.....24

CAPITULO 3- A AUTONOMIA DAS NAÇÕES EM DESENVOLVIMENTO E A


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA .................................................................................... 26
3.1 O NEOLIBERALISMO E O PAPEL DO ESTADO...............................................................26

3.2 A DÍVIDA PÚBLICA NOS GOVERNOS FHC LULA, DILMA E TEMER ........................28
3.3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A ATIVIDADE ECONÔMICA .................... .49
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................................................58
INTRODUÇÃO

O cenário político da atualidade, observando as desigualdades sociais experimentadas


1
pelo povo indo de encontro à corrente moderna da dogmática constitucional emancipatória 2,
levanta o questionamento sobre como o dinheiro público é utilizado e a maneira como este é
investido em favor dos cidadãos partícipes do Estado nacional brasileiro.
Os direitos sociais como saúde, educação e emprego são de fundamental importância para
a qualidade de vida da população, e sobre o Estado, que representa o povo, recai a
responsabilidade de fornecer garantias sociais de existência aos seus partícipes, como consagra o
artigo sexto da Constituição Federal de 1998:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Do povo brasileiro emana todo o poder conforme o parágrafo único do artigo primeiro da
CF/88: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”. Sendo estes quem elegem seus representantes
através da democracia participativa garantida pela Constituição vigente.
Os cidadãos partícipes do Estado possuem o dever fundamental de pagar impostos:
É por intermédio do imposto que o estado brasileiro, atendendo aos ditames da
capacidade contributiva, retira a riqueza de quem a detém e a redistribui,
proporcionalmente, por meio das prestações estatais negativas ou positivas, à população
desfavorecida economicamente. 3

Dívida Pública estatal pode se tornar um tema de grande relevância para a sociedade,
pois, a maneira com que se dá o pagamento da referida dívida, norteia as diretrizes orçamentárias
dos governos devedores bem como dispõe do dinheiro é público que é arrecadado através dos
impostos.

1
Em 2018, o país tinha 13,5 milhões pessoas com renda mensal per capita inferior a R$ 145, ou U$S 1,9 por dia,
critério adotado pelo Banco Mundial para identificar a condição de extrema pobreza. Esse número é equivalente à
população de Bolívia, Bélgica, Cuba, Grécia e Portugal. Embora o percentual tenha ficado estável em relação a 2017,
subiu de 5,8%, em 2012, para 6,5% em 2018, um recorde em sete anos. Disponível em:
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25882-extrema-pobreza-
atinge-13-5-milhoes-de-pessoas-e-chega-ao-maior-nivel-em-7-anos acesso em 01/08/2020
2
Na moderna concepção do direito constitucional desenvolveu-se uma renovada linha doutrinária conhecida como
dogmática constitucional emancipatória, tendo, esta vertente, o objetivo de estudar o texto constitucional à luz da
idéia de dignidade da pessoa humana. Consiste em formação discursiva que procura demonstrar a radicalidade do
Constituinte de 1988, tendo em vista que o tecido constitucional passou a ser costurado a partir de uma hermenêutica
prospectiva que não procura apenas conhecer o direito como ele é operado, mas que, conhecendo suas entranhas e
processos concretizadores, ao mesmo tempo fomente uma mudança teorética capaz de contribuir para a mudança da
triste condição que acomete a formação social brasileira. A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
SOCIAIS.Revista de Direito Constitucional e Internacional vol. 54 28 Jan / 2006. Doutrinas Essenciais de Direitos
Humanos | vol. 3 | p. 239 | Ago / 2011, p.1
3
Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-tributario/do-poder-de-tributar-ao-dever-
fundamental-de-pagar-impostos-a-via-da-efetivacao-dos-direitos-sociais/ acesso em 01/08/2020
Apesar da utilização técnica do recuso do endividamento público ser extremamente útil
para economia dos países que estão desenvolvendo suas forças produtivas, no sentido de que é o
instrumento apropriado para financiar o investimento público, historicamente, no Brasil, o que se
percebe é que tal instrumento não tem sido apropriadamente utilizado: “Financiar uma proporção
grande e crescente do consumo público com dívidas sujeitas ao pagamento de juros significa
destruir a riqueza pública”. A hipótese levantada na presente pesquisa é se a utilização do recurso
do endividamento publico como se dá no Brasil trás ou não benefícios à população.

Os objetivos para aquisição de divida pública se dão principalmente por:

Segundo a literatura econômica, existem quatro objetivos básicos pelos quais é


economicamente justificável a existência de dívida pública: (i) financiar o déficit
público; (ii) propiciar instrumentos adequados à realização da política monetária (no
caso específico da dívida interna); (iii) criar referencial de longo prazo para
financiamento do setor privado, uma vez que as emissões públicas, dados seu alto
volume e menor risco de crédito, servem como referência para a precificação de dívida
privada; e (iv) propiciar a alocação de recursos entre gerações, na medida em que (a
depender do prazo dos instrumentos de financiamento) à geração futura caberá
o,pagamento das despesas realizadas no presente com recursos oriundos do
endividamento. 4

Entretanto, quando se adota o livre mercado em países periféricos, que não possuem o
mesmo tipo de capacidade e complexidade tecnológica e diversidade industrial que os países
centrais, o resultado são períodos de recessão prolongada, tendo em vista que os países que não
possuem sua economia desenvolvida também não possuem capacidade para competir com os
países mais desenvolvidos economicamente. Um mecanismo perverso:
A dívida pública criou uma classe de capitalistas ociosos, enriqueceu, de
improviso, os agentes financeiros que servem de intermediários entre o governo e a
nação. As parcelas de sua emissão adquiridas pelos arrematantes de impostos,
comerciantes e fabricantes particulares lhes proporcionam o serviço de um capital
caído do céu. Mas, além de tudo isso, a dívida pública fez prosperar as sociedades
anônimas, o comércio com os títulos negociáveis de toda espécie, a agiotagem, em suma,
o jogo da bolsa e a moderna bancocracia.5

Emerge então a necessidade de novos instrumentos para controle da dívida pública das
soberanias mais vulneráveis:
A experiência histórica demonstra, por conseguinte, que são necessários novos
mecanismos, nacionais e internacionais, para controlar os processos de endividamento.
Da mesma maneira, pode-se assinalar que nas etapas das renegociações (depois das
crises financeiras) é necessário que se estabeleça um marco de regras normas muito mais
equilibrado, que não submeta os países latino-americanos à coação dos credores, de
forma inteiramente assimétrica e sem a possibilidade de apelar a outras instancias ais
neutras, como a corte de Haia.6

4
Ib. p. 58, grifo meu
5
Marx, 1867.
6
FATORELLI, Maria Lucia. Auditoria da Dívida Externa: Uma questão de soberania/ – Brasília: Editora
Contraponto, 2002 – p. 19
Partindo desta explanação, a situação problema deste trabalho, recai sobre a forma como
os recursos financeiros do Estado são utilizados para pagamento da dívida pública, e como a
capacidade do Estado, enquanto garantidor de direitos sociais é mitigada por esta razão.
O sistema da dívida, como veremos, subtrai do Estado verbas que poderiam ser
destinadas a programas sociais e investimentos públicos. A ilustração prática de tal situação se
dá, por exemplo, através de programas de ajustes fiscais que visam recolher recursos do Estado
para pagamento da dívida, quando, o que se percebe na prática é que os recursos públicos são
deslocados para o capital do setor privado através de medidas como reforma trabalhista, reforma
tributária, privatizações, reforma da previdência, medidas de controle inflacionário etc. 7
O endividamento público como se dá no Brasil funciona de maneira diversa daquela a que
se propõe a utilização de tal instrumento, sem promover um efetivo desenvolvimento produtivo
das forças nacionais e subtraindo recursos públicos para o pagamento de dívidas com o setor
privado, sobre o tema:
Portanto é possível concluir que o sistema correspondente à utilização do endividamento
público, como se dá no Brasil, se comporta de maneira diversa da qual se propõe, pois,
no lugar da utilização do endividamento público com o intuito de aportar recursos ao
Estado, o processo de endividamento tem funcionado como um instrumento que
promove uma contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados
principalmente ao setor financeiro privado internacional8
O objetivo da pesquisa em tela é demonstrar que o modelo neoliberal não se sustenta com
a autonomia de todas as nações, se mantendo, à custa do endividamento dos países cujas
economias são fracas, por meio do sistema de trocas desiguais.
Torna-se necessário, portanto, para que se alcance autonomia, e por consequência,
soberania de fato, uma alternativa ao modelo neoliberal, a exemplo da experiência do Equador
que renegociou a forma de pagamento de sua dívida, podendo utilizar os recursos públicos em
outros setores fundamentais para garantir os direitos sociais de seus cidadãos. 9
A presente pesquisa se justifica pela necessidade cada vez maior de um Estado soberano
de fato, que seja garantidor de direitos sociais tendo em vista a situação de pauperização
crescente do povo brasileiro.
O método de pesquisa utilizado é o descritivo com forma de abordagem explicativa onde
foram usadas as técnicas de coleta de dados, além de referências bibliográfucas. A presente
pesquisa serve para obter dados descritivos que expressam os sentidos dos fenômenos. Os
principais autores que contribuíram com o trabalho foram: Marcelo Dias Carcanholo (2007) e
Maria Lúcia Fatorelli (2014).

7
FATORELLI, Maria Lúcia. Auditoria Cidadã da Dívida – Experiências e Métodos. Auditoria Cidadã da Dívida,
CADTM y CETIM – Brasília, novembro, 2013. p.1
8
FATORELLI, 2014, p. 12
9
FATORELLI, 2014, p. 6
Para perseguir o objetivo de investigar se o sistema da dívida pública mitiga a capacidade
do Estado de promover direitos, foi dada a preferência de que no primeiro capitulo fosse
abordado o tema da formação histórica da dívida pública, os motivos para sua aquisição primária
e a forma como esta evoluiu desde o período colonial até o período anterior ao governo de
Fernando Henrique Cardoso. O estudo será dividido entre dívida interna e externa, para
facilitação do entendimento das medidas econômicas adotadas.
O segundo capítulo tratará da soberania estatal, primeiramente trazendo a evolução
histórica do conceito, para relacioná-lo com o processo de globalização, que tende a mitigar o
principio outorgado pela carta magna abordando também a maneira com que os fundos
monetários internacionais interferem nas soberanias mais vulneráveis.
O terceiro capítulo trará a discussão sobre a implantação tardia do neoliberalismo no
Brasil, fazendo uma abordagem mais atual da dívida pública analisando os governos de Fernando
Henrique Cardoso, os governos petistas e o governo de Michel temer, além disso, este capítulo
abordará a perspectiva do princípio da dignidade da pessoa humana enquanto norteador da
hermenêutica constitucional do que tange a prática econômica.
CAPITULO 1 - A FUNDAÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA INTERNA E EXTERNA
BRASILEIRA

1.1 O CONTEXTO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO DA DÍVIDA PÚBLICA NO BRASIL

Para tratar da dívida pública é necessário primeiramente expor do que se trata o objeto de
estudo. A dívida pública pode ser concebida como um instrumento de captação de investimentos
de pessoas físicas e jurídicas, instituições financeiras, organismos nacionais e internacionais e
outros governos utilizando tais recursos para financiamento de políticas públicas. Maria Lúcia
Fatorelli define:
A dívida pública abrange empréstimos contraídos pelo Estado junto a instituições
financeiras públicas ou privados, no mercado financeiro interno ou externo, bem como
junto a empresas, organismos nacionais e internacionais, pessoas ou outros governos. 10

A dívida é constituída por títulos públicos. Tais papéis circulam no mercado de capitais
ou por meio do sistema bancário através de emissões de títulos, que quando pagos em real, são
chamados de dívida interna, e, quando pagos em qualquer moeda estrangeira, são classificados
como dívida externa. 11
O que se percebe atualmente é que diante da ausência de restrições ao ingresso e saída de
moedas internacionais neste mercado de circulação, bancos e instituições estrangeiras podem ser
credores da dívida “interna”, e também bancos e instituições brasileiras podem ser credores da
dívida “externa”, portanto, é importante estudar a evolução das duas dívidas de forma separada.
A soma das duas dívidas anteriormente referidas compõe o montante da dívida pública estatal. 12
Antes de adentrarmos ao estudo da dívida pública nos tempos mais recentes, é preciso
compreender seu início ainda no período colonial quando foi adquirida para fins de subsidiar a
guerra pela independência do Brasil:
O chamado empréstimo da Independência foi autorizado pelo Decreto de 30 de julho de
1822, no montante de 400:000$, prazo de dez anos e juros de 6%. A destinação principal
era para a “aquisição de vasos de guerra”. Com uma subscrição rápida e superior ao
necessário, a demanda excedente foi subscrita posteriormente, em 27 de outubro, “para
atender às despesas também maiores com a consolidação da Independência ”. 13
...o Brasil precisava urgente de empréstimo da Inglaterra que ainda não tinha
reconhecido nossa Independência. Exige que precisa que antes, Portugal, a reconheça.
Este, por sua vez, exige, em troca, como compensação, 3 milhões de libras esterlinas.
Era a dívida de Portugal para a Inglaterra. Acontece que o Brasil estava com o Tesouro
zerado e para conseguir pagar Portugal teve que fazer um empréstimo com os bancos da

10
Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2013/10/FAQ-Auditoria-Cidad%C3%A3.pdf
acesso em 31/10/2020
11
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p. 13
12
Ib.
13
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009.36
Inglaterra. Tal dívida só terminou de se pagar 68 anos depois de mais quatro
empréstimos para pagar os juros.14

No período imperial se observou o início institucionalização da dívida pública, criou-se a


primeira agência de administração dívida, onde foram reconhecidas dívidas passadas até o ano de
1826, além de que se estabeleceram regras para inscrição de todas as dívidas reconhecidas
cuidando da “fundação” da dívida pública e lançando os primeiros títulos da dívida interna que
foi fundada em 12 (doze) mil contos de rés15:
A história da dívida pública interna no Brasil Imperial ganha proeminência a partir da
iniciativa do imperador D. Pedro I de designar, em 20 de setembro de 1825, por meio de
decreto, uma comissão para promover a apuração e a institucionalização da dívida
pública interna no Brasil. “Pela primeira vez na história do país executava-se uma
medida com a finalidade de institucionalizar a dívida pública interna, dar-lhe caráter de
dívida nacional, pela qual toda a Nação é responsável, desvinculando-a do caráter de
dívida pessoal do governante” 16

O Brasil terminou o período imperial com uma dívida interna relativamente elevada,
conforme Leão17, ao final do Império a dívida interna fundada federal era de 435.500 contos de
réis, enquanto o montante de dívida externa de era de 270 mil contos de réis18, tendo sido
contraídos no período colonial 15 empréstimos entre 1824 e 1888, além disso, por conta da
Convenção Secreta Adicional ao Tratado de 29 de agosto de 1825, o Brasil assumiu a
responsabilidade pelo empréstimo contraído por Portugal em 1823 no valor de £ 1.400.000 19.20
A evolução da dívida externa tem estreita semelhança com a dívida interna e é possível
perceber, também, um aumento expressivo no volume de emissões de títulos da dívida na década
de 1860, influenciado principalmente pelas despesas com a Guerra do Paraguai, e pela percepção
mais favorável do crédito brasileiro no exterior. Os empréstimos adquiridos foram elevados
consideravelmente21. Houve uma uniformização da dívida externa:
Em outubro de 1889, diante de uma situação favorável das finanças e sob o comando do
visconde de Ouro Preto como ministro da Fazenda, o governo lançou uma mega
operação no valor de £ 19.837.000 de conversão de débitos antigos com juros de 5% por
um novo e único empréstimo com juros de 4% e prazos mais dilatados (56 anos). Essa
operação de reestruturação de passivos, negociada com os banqueiros Rothschild, foi
considerada um grande sucesso. Além de uniformizar quase toda a dívida em um único
nível de juros e cronograma de pagamentos, a operação conduziu a uma economia anual
de £ 437.985 em quotas de juros e amortização.22

14
Disponível em: https://radios.ebc.com.br/em-conta/edicao/2016-09/brasil-assume-divida-de-portugal-para-
inglaterra-reconhecer-nossa acesso em 29/06/2020
15
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p. 37
16
NETO, 1980Apud
17
2003
18
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009 38
19
(BOUÇAS, 1950) Apud
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública: a
experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p. 39
21
Ib., p. 44
22
Ib. p. 39
O que se observou no Brasil Republica foi uma preocupação maior em torno das finanças
públicas: ocorreu um longo período de estabilidade no processo de endividamento externo que
foi interrompido no final da década de 1890. Logo após, foram realizadas uma sucessão de
empréstimos chamados de consolidação23 em 1898, 1914 e 1931. Em sequência o país retomou a
política de controle do endividamento público até meados da década de sessenta: 24
Embora as portas para a retomada do endividamento externo no médio prazo tenham
sido abertas após os dois primeiros empréstimos de consolidação, o último significou
apenas o início de uma longa seqüência de negociações até o acordo permanente da
dívida externa de 1943. O Brasil ficaria, a partir daí, ausente dos mercados financeiros
privados por um longo período, ou seja, até o início do segundo ciclo do endividamento,
em meados da década de 1960. 25
A partir dos anos 60 as dívidas públicas interna e externa passam a adquirir características
mais próximas do atual sistema de endividamento, o tema retornará no segundo capítulo quando
serão tratadas questões relativas à soberania estatal e a forma com que a dívida pública afeta a
autonomia do país.

1.2 UMA ANÁLISE DA DÍVIDA INTERNA A PARTIR DO INÍCIO DA DÉCADA DE


SESSENTA

Compreendidas tais premissas históricas, passa-se à análise mais aprofundada da dívida


pública consolidada desde a década de 1960 até a década de 1990. Após os primeiros anos de
endividamento público, a gestão e as características da dívida pública interna sofreram influência
das reformas institucionais lançadas a partir de 1964. Iniciou-se um novo ciclo de endividamento
externo brasileiro e um processo de desenvolvimento do mercado da dívida interna, o que
possibilitou a análise posterior da estrutura atual da dívida pública e sua evolução institucional o
que é razão para uma análise mais aprofundada. 26
O montante de dívida interna até a década de sessenta era representado por uma grande
quantidade de títulos públicos diferentes, não possuindo unicidade. As taxas de inflação27 se
apresentavam crescentes e a conjugação desses fatores demandou do Estado ações de
reformulação das políticas de endividamento público. Sobre as características da dívida interna
no período anterior a década de sessenta:

“... a dívida pública interna se apresentava sob a forma de uma grande


diversidade de títulos públicos, nominativos, emitidos para as mais diversas
finalidades e com reduzida credibilidade junto ao público. Além disso, em
meados da década de 1960, as taxas de inflação encontravam-se já na casa dos

23
O empréstimo de consolidação de dívidas é um empréstimo cujo valor corresponde à soma de todas as suas
dívidas. Com esse dinheiro emprestado, você paga todas as dívidas, ficando apenas com uma – a do empréstimo de
consolidação de dívidas. Por isso, o processo de consolidação também é chamado de unificação de dívidas.
Disponível em: https://www.bidu.com.br/credito/consolidacao-de-dividas/ acesso em 15/07/2020
24
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida
Pública: a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p. 49
25
Ib.
26
Ib. p. 57
27
Inflação é o nome dado ao aumento dos preços de produtos e serviços. Ela é calculada pelos índices de preços,
comumente chamados de índices de inflação. https://www.ibge.gov.br/explica/inflacao acesso em 30/06/2020
30% anuais. A conjugação desses fatores veio contribuir para a necessidade de
uma completa reformulação da política de endividamento público no Brasil.” 28

A reformulação do endividamento público que aconteceu a partir dos anos sessenta, se


deu com os objetivos de: obter recursos não inflacionários para a cobertura dos déficits
orçamentários29 da União, também para a realização de investimentos específicos, não
contemplados no orçamento; consolidar as operações de mercado aberto30 e promover o giro da
Dívida Pública Mobiliária Interna da União. 31
Os anos finais da década de 1960 e início da década de 1970 foram particularmente
positivos para a economia do país. As taxas de crescimento32 da economia apresentavam níveis
bastante elevados, e a inflação apresentava níveis inferiores aos que aconteceram na segunda
metade da década anterior. 33
Os aparentes resultados positivos alcançados através da política de endividamento público
experimentados no início da década de setenta, quando a dívida pública passou de um
instrumento de financiamento de governo, para uma importante aliada na condução de política
monetária34, foram mitigados pelo primeiro choque do petróleo 35. Sobre tal crise:

“Desde 1967, com o fechamento do Canal do Suez e com a decisão árabe de impedir o
fornecimento de petróleo aos Estados Unidos e à Inglaterra, o mundo se viu manipulado
pelos detentores deste insumo. Caracterizando-se por uma demanda inelástica, os países
ocidentais podiam apenas acatar as imposições de tais oligopolistas. Em 1970, a Líbia se
estabelece como principal fornecedora do ocidente graças à explosão do oleoduto
IraqueLíbano, e logo aplica um aumento de seus preços de venda. Os outros membros da
OPEP a seguiram e aplicaram outros aumentos, pressionando cada vez mais os
consumidores, como consta a tabela 2, que inclui os principais exportadores de petróleo.

28
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009 p. 59
29
O orçamento do governo é composto por receitas públicas e por despesas públicas. As receitas públicas são
provenientes de impostos, taxas e contribuições de melhorias. Já as despesas públicas estão relacionadas aos gastos
com a manutenção da máquina pública e com gastos sociais; Quando as despesas públicas são maiores do que a
receita pública em um determinado período (por exemplo, um ano), tem-se um déficit orçamentário. Disponível
em:https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/3169/1/Modulo%203%20-
%20A%20Divida%20Publica%20e%20o%20Financiamento%20Orcamentario.pdf acesso em 30/06/2020
30
As operações de mercado aberto acontecem quando o Banco Central compra ou vende títulos de dívida pública a
bancos comerciais. Este processo faz parte da política monetária no país, onde o objetivo é expandir ou contrair a
quantidade de moeda no sistema bancário. Disponível em: https://www.dicionariofinanceiro.com/open-
market/#:~:text=No%20mercado%20financeiro%2C%20as%20opera%C3%A7%C3%B5es,de%20moeda%20no%2
0sistema%20banc%C3%A1rio. acesso em 30/06/2020
31
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p.59
32
O crescimento econômico, de acordo com os manuais de economia mais comuns, corresponde ao aumento da
produção e consumo de bens e serviços; O crescimento econômico é geralmente medido como o aumento do produto
interno bruto (PIB) ou produto nacional bruto (PNB) https://steadystate.org/act/sign-the-position/read-the-position-
statement/posicao/ acesso em 30/06/2020
33
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, 61
34
A política monetária de um país é um modo de controlar a oferta de dinheiro em circulação e, com isso, estimular
ou desestimular a economia. Ou seja, todas as medidas adotadas para tais objetivos visam o controle de juros e taxas
que incidem sobre a inflação Disponível em:. https://www.capitalresearch.com.br/blog/investimentos/politica-
monetaria/ acesso em 29/06/2020
35
Dívida Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida
Pública: a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p.61
O resultado disto foi que, no curto intervalo de outubro de 1973 a janeiro de 1974, os
preços tiveram uma elevação de, praticamente, quatros vezes.”
Enquanto que esses países experimentaram uma elevação no superávit36 da balança
comercial e da conta corrente do balanço de pagamentos, assim como um aumento
significativo de suas receitas e suas reservas internacionais, o resto do mundo vivenciou
desequilíbrios em quase todos os setores da economia.37
No Brasil os feitos da crise dos anos setenta foram externados pela economia de várias
maneiras: em 1974, as taxas de inflação foram duplicadas em relação ao ano anterior, as taxas de
crescimento interromperam o padrão até então verificado para algo em torno de 5% a.a. dessa
forma, a participação dos instrumentos prefixados38, que havia chegado a 52% em 1977, ao
terminar a década encontrava-se em 41%, e cairia ainda mais nos anos seguintes. 39

A década de 80 foi marcada pelo agravamento da situação de crise que assolava o país:
“Na década de 1980, a situação agravou-se com a eclosão do segundo choque do
petróleo em 1979. Nesse momento, a inflação atingiu patamares sem precedentes,
alcançando a barreira dos três dígitos, e as taxas de crescimento da economia começaram
a enveredar para o terreno negativo. Iniciava-se a chamada “década perdida”. 40
No início dos anos oitenta o principal instrumento de dívida pública foram as ORTNs41
indexadas42 à inflação e constituíam 96% do montante da dívida. Estes instrumentos tinham
prazo mais longo e pôde-se verificar o aumento do prazo médio da dívida que em comparação
com o ano de 1972 que durariam quinze meses, havendo uma dilatação até que no final de 1983 o
prazo chegaria a vinte e seis meses.43

As soluções encontradas para lidar com o as dificuldades para o refinanciamento dos


títulos foram duas inicialmente: a redução de seus prazos e a maior colocação de instrumentos
pós-fixados44, entretanto, apesar dos anos de 1984 e 1985 terem apresentado crescimento mais

36
Superávit consiste no resultado positivo a partir da diferença entre aquilo que se ganha (receita) e aquilo que se
gasta (despesa). https://www.significados.com.br/superavit/ acesso em 15/07/2020
37
As Crises Do Petróleo E Seus Impactos Sobre A Inflação Do Brasil – MELO, Isabela Estermínio de - 2008, p.10
38
Instrumentos pré-fixados são títulos públicos com rentabilidade definida no momento da compra. O investidor
sabe exatamente o valor que irá receber se ficar com o título até a data de seu vencimento. Disponível em:
http://www.tesouro.fazenda.gov.br/-/titulos-prefixados aceso em 29/06/2020
39
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p.61
40
Ib.
41
ORTN é um título público federal emitido com a característica de pagar remuneração acrescida de correção
monetária. O valor unitário do título passou a representar indexador utilizado na economia brasileira. O "Plano
Cruzado" (Decreto-Lei 2.284/86) mudou a denominação da Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN)
para Obrigação do Tesouro Nacional (OTN) e congelou o valor desta em Cr$ 106,40, no período de março/86 a
fevereiro/87. As ORTN's foram criadas em 1964 e vigoram até Fev/86. Disponível em:
https://www.lefisc.com.br/indexadores/ortn.htm acesso em 26/06/2020
42
Indexação: Instrumento de política econômica que corrige a desvalorização da moeda, mediante a aplicação de
índices fixados pela autoridade que corrige a desvalorização da moeda, mediante a aplicação de índices fixados pela
autoridade monetária; qualquer procedimento de correção de valor mediante utilização de índices. CAVALCANTE,
Francisco. Mercado de capitais. Elsevier Brasil, 2002. p. 10
43
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p. 62
44
Instrumentos pós-fixados são títulos públicos cujo valor é corrigido pelo seu indexador. Assim, a rentabilidade do
título depende tanto do desempenho do seu indexador, quanto da taxa contratada no momento da compra. Disponível
em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/-/titulos-pos-fixados acesso em 26/06/2020
acentuados, o déficit publico45 não foi controlado. O governo então passou a implementar
políticas econômicas restritivas o que significava na prática penalizar a população pelas medidas
financeiras adotadas até então:46

As políticas econômicas restritivas caracterizam-se por escolhas que exigem grandes


sacrifícios da população, seja porque aumentam a carga tributária, seja pela
implementação de medidas que restringem a oferta de benefícios, bens e serviços
públicos em razão de cortes de despesas públicas ou da realização de reformas
estruturais, afetando de forma significativa os estratos mais vulneráveis. 47

Emergiu a partir das dificuldades que foram enfrentadas até aquele momento a
necessidade de uma reestruturação institucional da área fiscal através do controle mais acirrado
das políticas a serem adotadas: Foi criada a Secretaria do Tesouro Nacional, por meio do Decreto
nº 92.452, de 10/08/1986, que teve o objetivo de centralizar e viabilizar o controle dos gastos
públicos.

A administração da dívida pública foi transferida de responsabilidade do Banco Central


para o Ministério da fazenda visando a separar ainda mais as atribuições de autoridade monetária
e fiscal:48
O Decreto nº 94.443, de 12/06/1987 determinou a transferência das atividades relativas à
colocação e ao resgate da dívida pública para o Ministério da Fazenda, onde essa função
ficou a cargo da Secretaria do Tesouro Nacional. Entre as funções dessa secretaria,
regulamentadas pela Portaria MF nº 430, de 22/12/1987, estava explicitamente: [...]
efetuar o controle físico/financeiro da dívida emitida [...] determinar os títulos e os
volumes das Ofertas Públicas, inclusive elaborando e publicando os editais, em estreito
relacionamento com o Banco Central do Brasil [...] e [...] administrar o limite de
colocação dos títulos [...]49

A dívida pública só poderia ser elevada se o objetivo de tal elevação fosse o de cobrir o
déficit no Orçamento Geral da União (OGU), e só seria aceita mediante autorização legislativa,
para atender à parcela da dívida que não se encontrasse no OGU.
Entretanto o Decreto-Lei nº 2.376, de 25/11/1987 dizia que: “[...] se o Tesouro Nacional
não fizer colocação de títulos junto ao público, em valor equivalente ao montante dos que forem
resgatados, o Banco Central do Brasil poderá subscrever a parcela não colocada”, o que
significava na prática que o banco central poderia ainda financiar as políticas de endividamento
caso o mercado se recusasse a fazer.50

45
O déficit público acontece quando nas contas públicas existem mais dívidas e despesas sendo pagas do que
receitas sendo arrecadadas no país. O acumulado de déficits resulta na dívida pública. Disponível em:
https://www.dicionariofinanceiro.com/deficit/ acesso em 17/07/2020
46
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p. 62
47
de Souza Júnior, M. A., & Mendes, Á. N. (2019). Efeitos das políticas econômicas restritivas sobre a condição de
saúde dos brasileiros. JMPHC| Journal of Management & Primary Health Care| ISSN 2179-6750, 11(Sup).
48
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p. 62-63
49
Ib. p. 63
50
Ib.
A inauguração da Constituição de 1988 trouxe mais rigidez à maneira em que a política
econômica ocorria no país, o Banco Central, que não emitia mais títulos, também não poderia
mais ser financiador do governo 51:

Com a promulgação da Constituição em 1988, o Banco Central, que naquele momento


estava proibido de emitir títulos, ficou também impedido de financiar o governo. Pela
nova sistemática, o Banco Central só poderia adquirir títulos diretamente do Tesouro
Nacional em montante equivalente ao principal vencendo em sua carteira. Tinha-se
chegado assim à clássica forma de relacionamento entre autoridade monetária e
autoridade fiscal. Posteriormente, em 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal tornou
ainda mais rígida, a legislação ao estabelecer que as colocações para a carteira do
Banco Central só poderiam ser efetuadas à taxa média do leilão realizado, no dia, em
mercado, regra esta que permanece até os dias atuais.52

Na tentativa de encontrar uma solução para questão do déficit financeiro foi criado o
Plano Cruzado que tinha como objetivo um combate à inflação que já havia atingido uma taxa
anual de 517 % nos meses de janeiro e fevereiro de 198953. Tal plano consistiu no congelamento
dos preços54, decretação do fim da correção monetária 55 e na redução real das taxas de juros56.
Tais medidas, juntas à necessidade de reduzir os déficits fiscais, levaram o Banco Central, e não
o mercado, a absorver as novas emissões de dívida, em conformidade com a legislação anterior.
Neste novo cenário, as ORTN’s não teriam mais funcionalidade e, portanto não poderiam
ser postas no mercado, afinal, a correção monetária não estava sendo realizada, por consequencia
não ocorrendo à indexação do título. O Banco Central obteve então a permissão do Conselho
Monetário Nacional para a criação de um novo título de sua inteira responsabilidade para fins de
política monetária: “... Foi então criada a Letra do Banco Central (LBC) que tinha como

51
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p.64
52
Ib.
53
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/plano-cruzado acesso em 29/06/2020
54
O congelamento de preços é a fixação temporária de um preço máximo legal instituído pelo poder público.
Normalmente, os governos o utilizam para garantir que os consumidores tenham maior acesso aos bens e serviços,
mesmo em situações de escassez. ARANDIA, Alejando Kahara. O mercado de trabalho frente á crise dos anos 80 e
aos planos de estabilização.Vol.18,No4(1991).Disponível em:
http://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/view/380/612>. Acesso em: 30/06/2020
55
Também conhecida como atualização monetária, a correção monetária é basicamente a adequação da moeda
perante a inflação, dentro de um período determinado. O intuito é compensar a perda econômica com os reajustes.
Disponível em: https://blog.rebel.com.br/o-que-significa-correcao-monetaria-qual-a-diferenca-com-os-juros/ acesso
em 10/08/2020
56
A taxa de juros pode ser definida como o preço do uso do dinheiro para um determinado período de tempo. Porém,
enquanto a taxa de juros for um preço, seu impacto na economia não é limitado para o seu próprio mercado. Assim,
enquanto uma mudança no preço da laranja afeta o mercado desse produto, e uma mudança na taxa do salário atinge
o mercado da mão-de-obra, a mudança na taxa de juros tem implicações muito mais sérias para a economia, porque
afeta uma grande variedade de decisões, desde as despesas diárias dos consumidores até decisões críticas de
investimentos que afetam a estrutura econômica de um determinado país. OMAR, Jabr H. D.. Taxa de juros:
comportamento, determinação e implicações para a economia brasileira. Rev. econ. contemp., Rio de Janeiro , v.
12, n. 3, p. 463-490, Dec. 2008 disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
98482008000300003&lng=en&nrm=iso. Acesso em 02 de julho de 2020.
característica ímpar o fato de ser remunerada pela taxa Selic 57, com indexação diária” 58 e que foi
muito bem recebida no mercado59.
Por conta dos bons resultados, no sentido de aceitação do mercado, experimentados com
as LBC’s, além da falta de outros títulos utilizáveis, tendo em vista a política econômica adotada
no Plano Cruzado, o governo criou também as Letras Financeiras do Tesouro que possuíam
características iguais às LBC’s, no entanto, estas eram de responsabilidade do Banco Central e
tinham a utilização determinada para o financiamento dos déficits orçamentários. 60
O plano cruzado não obteve o sucesso esperado e os níveis de inflação voltaram a subir no
final do ano de sua implantação, além da moratória da dívida externa que gerou maior
necessidade de financiamento via dívida interna. O Cenário de desestabilização da moeda gerou
situações de desvalorização dos produtos e serviços, diminuiu o lucro das empresas dificultando
o ajustamento das contas públicas, sobre tal situação:
O congelamento de preços provocou inúmeras distorções no sistema de preços, como
ensina a boa teoria econômica. Por exemplo, em meados de 1986, o preço de um
automóvel Monza com um ano de uso era maior do que o mesmo carro zero quilômetro.
As empresas estatais de petróleo, eletricidade e telecomunicações tornaram-se vítimas
do Plano Cruzado, pois não tinham mecanismos para contornar o congelamento de
preços, como poderiam fazer as empresas privadas através, por exemplo, da maquiagem
de produtos. A lucratividade real dessas empresas diminuiu ao longo de 1986,
contribuindo para agravar as contas públicas do governo. 61

O governo sucessor ao de José Sarney teve como objetivo acabar com o processo
inflacionário e o sucessivo fracasso das políticas de estabilização procurando enfrentar, de uma
só vez, os três problemas identificados nos anos anteriores: a tendência de monetização acelerada
e de explosão da demanda em momentos de desinflação abrupta; as implicações da elevada
liquidez dos haveres financeiros e da moeda indexada e as precárias condições de financiamento
da dívida pública mobiliária através das medidas representadas pelo Plano Collor.62

As medidas drásticas representadas pelo Plano Collor em 1990, que entre outras,
determinou o congelamento de 80% dos ativos financeiros do país, representou, para a dívida
pública, gerou impacto sem precedentes. Com esse artifício, o governo promoveu a troca
compulsória da dívida em poder do mercado por outra, retida por 18 meses no Banco Central, ou
seja, o estoque, antes remunerado pela taxa Selic, passou a ser remunerado a uma taxa muito
inferior, gerando ganhos consideráveis para o governo.63

57
A taxa Selic é a taxa média ponderada das operações compromissadas por um dia, lastreadas em títulos públicos
federais. Ib.
58
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p.64
59
Ib.
60
Ib.
61
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/plano-cruzado acesso em 29/06/2020
62
Carvalho, C. E. (2006). As origens e a gênese do Plano Collor. Nova economia, 16(1), 101-134.
63
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p. 65
No ano seguinte os ativos que foram congelados começaram a ser devolvidos através da
emissão de títulos de dívida:
A partir de setembro de 1991, os valores referentes aos ativos congelados começaram a
ser devolvidos, e, a partir de outubro, os recursos para pagá-los eram obtidos com novas
emissões de títulos. Ao final do ano de 1991 foi criado um novo instrumento,
regulamentado pelo Decreto nº 317, de 30/10/1991 e denominado Notas do Tesouro
Nacional (NTNs), com diversas séries, a depender do indexador utilizado. Dentre os
mais comuns destacam-se o dólar (NTN-D), o IGP-M (NTN-C) e a TR (NTN-H).
Buscava-se diversificar os instrumentos para tentar ampliar a base de investidores,
tentando garantir os recursos para pagamento das BTN-Es vincendas. A criação dessa
diversidade de instrumentos reflete não apenas as turbulências passadas pela economia
doméstica ao longo dos anos 1980 e início dos anos 1990, mas também a heterodoxia
então dominante no plano macroeconômico. 64

Durante o inicio da década de noventa, o governo continuava tentando diminuir a


inflação, que, chegou a atingir o patamar de 1.000% ao ano. Enquanto isso, as taxas de
crescimento da economia continuavam muito baixas, com o país apresentando crescimento médio
real negativo de 1,3% de 1990 a 1993. Buscando dar um fim a essa situação, em 1994 era
lançado mais um plano para a redução da inflação: o Plano Real.

O elemento to central do Plano Real foi a criação da âncora cambial, como já havia
ocorrido em outros países da América Latina, em processos de estabilização, na busca do
combate a processos inflacionários crônicos.65

Parte do plano consistiu na elevação das taxas de juros foram utilizadas neste momento
com o objetivo de atrair o mercado externo além de combater a inflação, conforme o seguinte
trecho:

Neste período foram utilizadas a taxas de juros altas como um instrumento para alcançar
dois objetivos principais: combater a inflação restringindo a demanda agregada e servir
como instrumento para atrair capital externo com a finalidade de cobrir o déficit da
conta-corrente na balança de pagamentos e aumentar as reservas internacionais. A
mesma política, porém, produziu efeitos negativos sobre o investimento, aumentando
não apenas o déficit do governo e a dívida pública, como também a vulnerabilidade
externa da economia brasileira.66

O plano inicialmente deu certo do ponto de vista econômico podendo ser observados
níveis de inflação razoáveis, entretanto, apesar do relativo sucesso na estabilização da inflação, a
partir do ano de 1994 a dívida se elevou consideravelmente, tal fato se deu por conta dos
seguintes fatores:

(i) a rígida política monetária da época, a qual acarretou uma taxa real de juros média no
período extremamente elevada; (ii) o reduzido superávit primário, que se apresentava até
negativo para alguns entes de governo; e (iii) a política de propiciar maior transparência
às contas públicas, reconhecendo vários passivos que antes se encontravam disfarçados,

64
Ib.
65
LUIZ, C. B. P. (1994). A economia e a política do Plano Real. Revista de Economia Política, 14(4), p. 56.
66
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p. 65
como, por exemplo, o programa de saneamento das finanças estaduais e municipais e a
capitalização de alguns bancos federais. 67

Apesar do grande avanço representado pela estabilização da economia, seus efeitos sobre
a dívida pública em termos de composição dos instrumentos não se fizeram sentir tão fortemente
como seria esperado. O desencadeamento das tentativas de estabilização da dívida interna será
abordado novamente no terceiro capítulo do presente trabalho, quando serão tratadas também as
conseqüências do esquema da dívida pública para um estado soberano que tenha o princípio da
dignidade da pessoa humana enquanto norteador na hermenêutica constitucional.

1.3 UMA BREVE ANÁLISE DA DÍVIDA PÚBLICA EXTERNA DOS ANOS SESSENTA
ATÉ OS ANOS NOVENTA

Bem como a dívida interna se relaciona diretamente com os acontecimentos decorrentes


da macroeconomia68 doméstica, a dívida externa é um reflexo do plano internacional que varia de
acordo com o período a ser estudado possuindo várias fases dos anos de 1960 até os dias atuais. 69
A economia internacional nos períodos anteriores ao primeiro choque do petróleo
apresentou liquidez abundante, fato que foi responsável por ofertas de créditos
igualmente abundantes durante o período de expansão econômica internacional,
entretanto, a década de setenta apresentou uma situação diferente: 70
Durante o século XIX, para financiar a atividade econômica, era comum as jovens nações
captarem empréstimos no exterior com pagamento em moeda estrangeira. A prática, chamada
de “Pecado Original” era comum no regime do padrão ouro e objetivava garantir aos
credores segurança num mercado financeiro ainda em desenvolvimento, que não oferecia
instrumentos de proteção contra a flutuação de moedas não lastreadas e para casos de
mercado secundário pouco desenvolvido no país devedor. A prática de fornecer empréstimos
com serviço em moeda estrangeira perdura pelo século XX com notável estabilidade, haja
vista a retomada do sistema de câmbio fixo (Padrão Dólar-Ouro) durante o Fordismo. Neste
período, protegidos pela estabilidade cambial, os países em desenvolvimento fizeram uso da
prática de “rolagem da dívida” para cumprir suas obrigações e obter recursos para custear o
crescimento de suas economias. O Brasil foi um bom exemplo desta prática. A crise da
década de 1970, porém, põe fim ao regime de câmbio fixo.71

Com o segundo choque do petróleo as taxas de juros internacionais aumentaram


rapidamente o que diminuiu abruptamente a oferta de crédito aos países em desenvolvimento no
início dos anos de 1980, gerando uma crise da dívida externa em todos esses países que se

67
Ib.
68
A macroeconomia estuda o comportamento da economia como um todo, e não apenas de segmentos ou empresas
individuais. Assim, pode ser levada em consideração a economia de uma região, de um país inteiro ou de vários em
conjunto, tendo a possibilidade de ampliar para a esfera internacional.A macroeconomia inclui diversas variáveis
importantes da economia, como pobreza, desigualdade, desemprego, preço, Produto Interno Bruto (PIB),
importações, exportações, globalização, política monetária, questões sociais, políticas e Enômicas, etc. Disponível
em:https://andrebona.com.br/microeconomia-e-macroeconomia-quais-as-diferencas/ acesso em 11/08/2020
69
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p. 70
70
Ib.
71
Araujo, M. L. D. Rompendo o pecado original-a mudança de postura nas recomendações do FMI entre o plano
Baker (1985) e o plano Brady (1989): um estudo do caso brasileiro (Doctoral dissertation, Universidade de São
Paulo).p.6
encontravam completamente dependentes de crédito externo para o financiamento de suas
políticas internas. 72
Os créditos provenientes de dívida externa eram pagos na moeda do país ou instituição
credora, o que tornava o pagamento da dívida ainda mais penoso instaurando uma situação de
crise onde países em desenvolvimento foram obrigados procurar soluções para a questão do
endividamento externo.73
Com o calote mexicano em 198274, e temendo a generalização da prática, o FMI
estabeleceu uma estratégia para administração das dívidas que implicou em pesados sacrifícios
aos países devedores. Após uma seqüência de acordos alinhavados segundo o pensamento
Ortodoxo Liberal75 nos anos seguintes, e que resultaram no agravamento da crise, o Secretário do
Tesouro dos Estados Unidos propôs, em 1985, um conjunto de propostas que foi chamado de
Plano Baker que seria voltado para promover o crescimento econômico dos países endividados, o
que, entretanto não se verificou na prática, pois não resultou em redução das dívidas nem em
redução dos riscos aos investidores.
Apesar da situação crítica dos países dependentes de dívida, o FMI menteve a postura
irredutível quando o assunto foi o valor das dívidas e a moeda de pagamento dos empréstimos.
Para o FMI o plano Plano Baker foi na um conjunto de propostas voltadas também à
administração das dívidas dos países em desenvolvimento. O Plano manteve as mesmas bases já
definidas pelo FMI e tentadas, junto aos países devedores, desde 1982, e nunca foi obtido
sucesso a partir de sua implementação.76
Em 1989 institui-se o plano Brady onde se permitiu que as dívidas fosse pagas em real:

...após quase uma década da chamada Crise da Dívida do Terceiro Mundo, o FMI
apresenta o Plano Brady, um Plano para a administração das dívidas dos países em
desenvolvimento que previa a redução do valor destas, a emissão de novos títulos
lastreados pelo Fundo e, dentre outras coisas, abria caminho para a flexibilização de
uma cláusula, até então, praticamente “pétrea”: a obtenção de empréstimos em
moeda estrangeira, também chamada “Pecado Original”.
Durante mais de um século, o Brasil, assim como outros países em desenvolvimento,
para financiar seus projetos internos, via-se obrigado a aceitar empréstimos com
serviços em moeda estrangeira. Por parte dos emprestadores, ao longo do século,
nada era feito para flexibilizar esta cláusula. No entanto, em 1989 surge a brecha.
Entendemos o Plano Baker e o Plano Brady dentro do contexto das recomendações
estrangeiras propostas por nações credoras, entidades privadas ou órgãos

72
Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (organizadores). Dívida Pública:
a experiência brasileira– Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional : Banco Mundial, 2009, p.70
73
Ib.
74
Na década de 1970, a economia mexicana já era muito atrelada à americana. Com grande peso da indústria
petrolífera, viveu momentos difíceis com os dois choques do Petróleo (1973 e 1979). As finanças públicas estavam
no vermelho e o país quebrou quando os Estados Unidos aumentaram os juros, tornando inviável o pagamento da
dívida. O então presidente do México, José López Portillo, decretou moratória em 1982. Disponível em
https://exame.com/economia/10-calotes-de-paises-que-entraram-para-a-historia-economica/ acesso em 24/09/2020
75
Por “Ortodoxia Liberal”, usa-se o conceito de “Liberalismo” adotado por SANDRONI, Dicionário de economia
do Século XXI, 1999, p. 347.
76
Araujo, Marcelo Luiz Delizio. Rompendo O Pecado Original- A Mudança De Postura Nas Recomendações Do
Fmi Entre O Plano Baker (1985) E O Plano Brady (1989): Um Estudo Do Caso Brasileiro. Universidade de São
Paulo, 2015, p.2
supranacionais à economia brasileira e demais nações endividadas por ocasião da
tomada de empréstimos no exterior. São, assim, dois exemplares de uma longa lista
de recomendações que remontam ao início do século XIX e que perduram por todo o
século XX.77

Diante da permanência do fracasso, em 1989, o novo Secretário do Tesouro dos


Estados Unidos propôs um novo conjunto de medidas. Denominado Plano Brady este novo
conjunto de estratégias de estabilização financeira dos países devedores abriu brechas para a
redução das dívidas e das taxas de juros embutidas. O resultado foi um relativo e lento
sucesso, com negociações que se prolongaram ao longo dos anos 1990.78
Pode-se concluir a partir da observação dos fatos históricos ocorridos,que os governos
buscaram constantemente adaptar as características do endividamento público às exigências
dos investidores de acordo com a conjuntura econômica na qualse encontrava o país. Em
diversos episódios foram criados novos instrumentos e se alteraram os prazos dos ativos
emitidos pelo governo, estimulando a sociedade a financiar as contas públicas. 79
O desenvolvimento da dívida pública brasilera será retomado no terceiro capítulo após
o debate lavantado no segundo capítulo acerca da soberania estatal no contexto de mundo
globalizado, onde se questiona a validade e eficácia de tal conceito na conjuntura geopolítica
do atual modelo econômico.

77
Ib.
78
Ib.
79
Cordovil, Vitor Silva. A evolução da Dívida Pública Brasileira:Uma análise do período compreendido entre
1964-2008. UFRJ, 2013, p.58
CAPITULO 2 - O ESTADO SOBERANO NO CONTEXTO DE GLOBALIZAÇÃO

Neste capítulo o processo de globalização será tratado de forma que se conecte


diretamente com as sequelas sociais advindas do neoliberalismo adotado a partir da queda das
estratégias keynesianas80 para o desenvolvimento do estado capitalista, mitigando a
autonomia e a soberania das nações em desenvolvimento e subdesenvolvidas.
Também serão abordadas as maneiras com que os organismos internacionais
interferem na ordem econômica das soberanias mais fracas para que se mantenha a oferta de
crédito e o processo de financeirização da economia, em detrimento do social, cada vez mais
necessário para garantir direitos fundamentais ao povo que aqueles representantes do Estado e
se encontram cada dia em condições mais vulneráveis.

2.1 A SOBERANIA ESTATAL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Desde a Antiguidade até o fim do Império Romano não se verificou qualquer idéia
semelhante à de soberania, que nasceu em contraposição ao feudalismo, caracterizando-se,
especialmente, pela busca de um equilíbrio para o poder da Igreja e do monarca. Neste
período, várias eram as fontes do Direito, havendo um forte desmembramento interno, e, por
esta razão foi necessário a obtenção de um só critério para realização da justiça. 81
Foi no decorrer do século XII que a concepção de soberania se desenvolveu,
permitindo a composição do Estado Moderno, colocando fim às relações feudais e abrindo
caminho para o desenvolvimento da burguesia. A Idade Média ficou marcada por frequentes
disputas entre os senhores feudais, os soberanos, a realeza e a Igreja. É apenas ao término da
Idade Média, em torno do ano de 1500, que o conceito de soberania se fortalece. 82
Pioneiro no desenvolvimento do significado de soberania, o filósofo Jean Bodin, na
obra “Os Seis Livros da República”, de 1576, conceitua-a como “[...] o poder absoluto e
perpétuo de uma república [...]” 83, que não sofre limitação de qualquer poder terrestre ou leis
divinas e naturais. Tratava-se de um atributo do Estado, de autodeterminação absoluta,
indivisível, perpétua, inalienável, imprescritível, que somente poderia ser exercida por uma

80
FAGUNDES, Jeferson Mandracio. O enfraquecimento do Estado-Nação na globalização: uma análise dos
componentes econômicos e suas implicações políticas. 2005 p. 1
81
Ribeiro, D. M., & Flores, S. F. (2019). A (r) evolução do conceito de soberania estatal e a efetividade do
princípio da dignidade da pessoa humana. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, 1(41), p. 196
82
STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência política e teoria geral do Estado.8. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 130.
83
Ib.
pessoa. Com isso, o poder absoluto e perpétuo somente poderia existir em uma monarquia,
sendo o seu único e legítimo detentor, o soberano 84.
Embora alguns autores reportem os princípios fundamentais do direito internacional
moderno a origens históricas diferentes, os tratados de Vestefália, que em 1648 puseram fim à
guerra dos trinta anos entre as principais potências da Europa, representam um marco
histórico na consagração do princípio da soberania: ao retirarem legitimidade à ideia de uma
comunidade política universal, eles reconheceram o estado como detentor da autoridade
última sobre o respectivo território: “a regra fundamental de Vestefália consiste na atribuição
ao estado da autoridade exclusiva sobre o respectivo território, espaço aéreo e três milhas de
costa marítima.”85
Thomas Hobbes, no ano de 1651, quando escreve sobre a formação do Estado
Leviatã, como originário de um contrato entre os homens, trata a soberania como a “alma
artificial” do organismo estatal, de titularidade do soberano, segundo o autor, a força e a
autoridade das leis, escritas ou não, advinham da vontade do Estado, que se equiparava à
vontade do soberano.86
John Locke e, após, Jean-Jacques Rousseau, teorizaram a que o poder soberano, não
pertenceria ao monarca, mas sim ao povo, tendo como limite o contrato originário do
Estado.87O Estado, sujeito originário de Direito Internacional, é constituído por três elementos
basilares que são fundamentalmente: possuir uma base territorial, uma comunidade humana
estabelecida sobre este território e um governo que não está subordinado a qualquer outra
autoridade.88
John Locke ao escrever sobre o necessário consentimento para a sujeição dos homens
ao governo e sobre a imposição de um limite à atividade legislativa, que deve ser voltada ao
bem comum, apesar de não fazer com tanta clareza quanto Jean-Jacques Rousseau, transfere o
poder ao povo. O que também fica nítido quando admite o direito de resistência, quando o
poder de dizer o direito, que fora transferido pelo contrato, retorna ao indivíduo. 89

84
Ribeiro, D. M., & Flores, S. F. (2019). A (r) evolução do conceito de soberania estatal e a efetividade do
princípio da dignidade da pessoa humana. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, 1(41), p. 198
85
Texto soberania e globalização
86
HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico ou civil. Tradução: Alex
Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 15
87
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Tradução:
Carlo Coccioli. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 8-9.
88
REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar.15. ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2014, p. 161. Apud.
89
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Tradução:
Carlo Coccioli. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 8-9. Apud.
18
Georg Jellinek90 define o Estado como “[...] a corporação formada por um povo,
dotada de um poder de mando originário e estabelecida em um determinado território”.91 A
insubordinação a que está sujeito o governo de um Estado caracteriza-o como governo
soberano. A soberania caracteriza o Estado no âmbito interno e a autonomia, no âmbito
externo.92
Hans Kelsen afirma que o poder estatal é caracterizado pela sua soberania e que a
soberania é um atributo do Estado que consiste na “[…] propriedade de ser uma ordem
suprema, uma ordem que não deve a sua validade a uma ordem superior”. 93
A soberania, que é uma das bases do Estado Moderno 94, segundo Dallari95, seria um
atributo do terceiro elemento do Estado, que é o governo, “[…] visto este como síntese do
segundo – a dimensão pessoal do Estado –, o qual se projeta sobre seu suporte físico, o
território”.96
Para Jean-Jacques Rousseau, soberania é o poder absoluto que, encaminhado pela
vontade geral, é dado ao corpo político, para ser exercido sobre todos os seus, quando firmado
o pacto social. 97
A Carta da ONU, que é o tratado que estabeleceu as Nações Unidas e foi assinada em
São Francisco, em 26 de junho de 1945, após o término da Conferência das Nações Unidas
98
sobre Organização Internacional entrando em vigor a 24 de outubro do mesmo ano e a
Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), adotada em 30 de abril de 1948,
durante a IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá, são marcos do
Direito Internacional e ambas estabelecem em seus textos a garantia da soberania dos Estados:

90
JELLINEK, Georg. Teoria general del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 147. Apud.
91
Ib.
92
Ib.
93
KELSEN, Hans. Teoria geral do Estado. Tradução: Fernando de Miranda. São Paulo: Saraiva, 1938, p. 42.
94
Norberto Bobbio conceitua o Estado Moderno como forma política determinada, uma forma de ordenamento
político surgida na Europa desde o séculos XIII e que se difundiu para todo o mundo civilizado. Diz o autor:
“Para a nossa geração, reentra agora, no seguro patrimônio do conhecimento científico, o fato de o conceito de
„Estado‟ não ser um conceito universal, mas serve apenas para indicar e descrever uma forma de ordenamento
político surgida na Europa a partir do século XIII até o fim do século XVIII ou início do XIX, na base de
pressupostos e motivos específicos da história européia e após esse período se estendeu – libertando-se, de certa
maneira, das suas condições originais e concretas de nascimento – a todo o mundo civilizado”. In: BOBBIO,
Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 17. ed. Brasília: Universidade
de Brasília, 2004, p. 425Apud
95
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 81. 8
96
REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar.15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 217. Apud
97
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.
43. Apud.
98
Ribeiro, D. M., & Flores, S. F. (2019). A (r) evolução do conceito de soberania estatal e a efetividade do
princípio da dignidade da pessoa humana. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, 1(41). p. 197
19
A primeira prevê em seu artigo 2º, parágrafo 1º, que a organização é“[...] baseada no
princípio da igualdade soberana de todos os seus membros”.A segunda estatui, no
artigo 3º, alínea “f”, que “a ordem internacional é constituída essencialmente pelo
respeito à personalidade, soberania e independência dos Estados” 99

Da soberania estatal advém o direito de autodeterminação dos povos sem sofrer


intervenções externas quer sejam de outras soberanias quer sejam de organizações
internacionais. Tais direitos caracterizam os princípios da autodeterminação dos povos e da
não-intervenção, os quais vigem atualmente nas relações de Direito Internacional e estão
previstos nas cartas supracitadas.100

Foi no século XVI que o conceito de soberania atingiu a maturidade, como


consequência de um extenso processo histórico, de condensação e fortalecimento
do exercício do poder político dos monarcas diante dos senhores feudais, da Igreja,
das corporações de ofício e de muitos outros núcleos de poder presentes na Idade
Média.101

Portanto se entende que o principio da soberania estatal é uno, ou seja, dentro de um


mesmo Estado não pode existir duas soberanias, além de ser inalienável, afinal, se não existir
a soberania aquele que a detém, seja o povo, a nação ou o estado também desaparece. A
soberania é prisma do Estado contemporâneo brasileiro e garantida pela lei suprema, como
reza o artigo primeiro da Constituição Federal: 102

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos


Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de
direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 103

Portanto, o texto constitucional é claro ao estabelecer soberania e autonomia ao


Estado-nação, consagrando ainda que todo o poder emane do povo, desde que seja possuidor
de uma base territorial, tendo comunidade humana estabelecida sobre este território e um
governo que não está, de acordo com a Carta Maior, subordinado a qualquer outra autoridade.

99
OEA. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Departamento de Direito Internacional. Secretaria
de Assuntos Jurídicos. Carta da Organização dos Estados Americanos (A-41). Acesso em: 21 de setembro de
2020.
100
Ribeiro, D. M., & Flores, S. F. (2019). A (r) evolução do conceito de soberania estatal e a efetividade do
princípio da dignidade da pessoa humana. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, 1(41). p. 197
101
Ib.
102
Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-83/o-conceito-de-soberania-do-estado-moderno-
ate-a-atualidade/ acesso em 22/09/2020
103
Grifo nosso
20
No contexto atual de endividamento interno e externo do país, o que se percebe é um
enfraquecimento da soberania do estado. A transferência de capitais entre soberanias ocorre
de maneira desigual em países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Em relação às dívidas
adquiridas pelos estados em desenvolvimento, estimulada pelo processo de globalização e das
relações cada vez mais intensas de trocas e fluxos de capitais.
O que se observa da maneira como de dá o endividamento das soberanias mais
vulneráveis é uma forma de transferência de capitais dos países subdesenvolvidos para países
desenvolvidos, aumentando as relações de desigualdade social e econômica entre os povos.

2.2 A SOBERANIA ESTATAL NO MUNDO GLOBALIZADO

A evolução do sistema interestatal surgiu desde a consagração do princípio da


soberania, tal princípio configura-se a partir da assinatura dos tratados de Vestefália, como o
elemento principal da ordem jurídica internacional: cada estado detém a autoridade última
sobre o respectivo território e não existe qualquer entidade acima dos estados no plano
internacional. 104
Entretanto o fenômeno da globalização tem significado que o princípio da soberania
não tem tido um conteúdo substantivo relativo à capacidade de cada estado para determinar
autonomamente o seu próprio destino; a maioria dos estados não são aquilo a que
habitualmente chamamos “soberanos”. A igualdade formal dos estados, no quadro do
princípio da soberania, na verdade vela uma desigualdade real entre eles: mesmo no plano
estritamente militar, a soberania da maioria dos estados esteve sempre ameaçada pela
possibilidade de uma intervenção dos estados mais fortes.105
Esta vulnerabilidade da maioria dos estados subdesenvolvidos e em desenvolvimento
aos mais fortes foi mais claramente percebida no século XX, com a invenção de meios de
destruição total e, precisamente, a bomba atômica. A concentração do poder na ordem
internacional, portanto, acontece independentemente do quadro jurídico e mesmo dentro do
respeito formal do princípio da soberania. 106
Para diversos autores, o fenômeno da globalização, principalmente observado sob o
viés econômico, se desligou de toda vocação de Soberania dos Estados, trazendo como

104
Nunes, Ivan. "Globalização e soberania dos Estados." Sociologia, Problemas e Práticas 37 (2001): 77-89.
105
Ib.
106
Ib.
21
consequência uma enorme interdependência econômica das nações, consolidada no fluxo do
comércio, do capital, de pessoas e tecnologia entre elas. 107
O mundo atualmente está incorporado num vasto mercado e os cidadãos foram
convertidos em “consumidores”. Pode-se ressaltar o exemplo da abertura das fronteiras dos
Estados-nação para as associações empresariais e agências internacionais, os fluxos de bens e
capitais e os obstáculos que deles insurgem em detrimento do fortalecimento dos organismos
privados e o consequente enfraquecimento do Estado. 108Portanto:
Com a globalização em todas as suas interconexões, emerge frente a isso não só uma
nova pluralidade de conexões e relações entre Estados e Sociedades, mas, além
disso, se aprofunda com maior força e estrutura dos desígnios teóricos que o
concebiam, organizavam e viviam até agora as Sociedades e os Estados como
unidades territoriais reciprocamente delimitadas. Em resumo, é notório que, como
efeito do processo de globalização, o Estado Constitucional Moderno oferta cada
vez menos respostas às demandas de segurança e desenvolvimento, sendo, dessa
forma, cada vez menos soberano.109

Grandes volumes de capital circulam no mercado financeiro a todo instante e em


qualquer lugar do planeta, livres de controle, enfraquecendo a regulação do Estado sobre o
tempo e o espaço e consolidando fluxos globais de capital, produtos, serviços, tecnologia,
comunicação e informação.110
Dessa maneira, os Estados nacionais, principalmente em países subdesenvolvidos,
estão cada vez mais enfraquecidos, com pouca margem de inserção efetiva nos rumos do
desenvolvimento econômico, vulneráveis a crises externas e destituídos de sua função de
promover o bem-estar econômico e social, diante das demandas sociais, cada vez mais
urgentes e acentuadas pelo próprio processo de globalização.111
Com o final da era de reformas keynesianas 112 renasce o uma vertente reformulada do
liberalismo econômico, com um a vestimenta reorientada política e economicamente: o
chamado neoliberalismo, que, impulsionado pela modernização tecnológica do capitalismo
gerou a necessidade de expansão das forças produtivas em escala global. 113

107
Ib.
108
Ib.
109
Ib.
110
FAGUNDES, Jeferson Mandracio. O enfraquecimento do Estado-Nação na globalização: uma análise
dos componentes econômicos e suas implicações políticas. 2005, p. 2
111
Ib.
112
Alternativa fordista como forma de expansão da acumulação do capital, juntamente com a ajuda do Estado
orientada pela forte influência keynesiana para o enfrentamento da crise de 1929. Paniago, Maria Cristina
Soares. "Keynesianismo, neoliberalismo e os antecedentes da “crise” do Estado." MELO, Edivânia. PANIAGO,
Maria Cristina Soares Paniago; ANDRADE, Mariana Alves. Marx, Meszáros e o Estado. São Paulo: Instituto
Lukács (2012).
113
Aliado a esse fato, também teve significativa contribuição a desintegração do Estado socialista, que mantinha
um certo equilíbrio nas relações internacionais. No final dos anos 50 e início dos anos 60, iniciou-se a inserção
de mecanismos de mercado e, por conseqüência, a redução da planificação ou da ação consciente do homem
22
As relações econômicas são reguladas pelo mercado num mundo sem fronteiras, de
reestruturação tecnológica, que afeta tanto as formas de produção, organização e
gestão empresarial quanto a própria natureza do Estado e a sua função como
instituição reguladora e promotora do bem-estar social e econômico.
As instituições financeiras internacionais manipulam países de todo o mundo, pois
com os capitais mundiais globalizados e com o grande volume de recursos que
administram, pressionam os governos locais com as ameaças de fuga de capitais
voláteis e com relatórios e análises sobre as economias locais o que influencia o
mercado financeiro global.114

O Estado enquanto garantidor de direitos tem esta função mitigada para dar
espaço livre regulamentação do mercado, o que por um lado trás consequencias positivas
como o avanço técnologico alcançado através do estímulo a livre concorrência, por outro
lado reduz direitos trabalhistas, traz reformas fiscais que fazem com que a população mais
empobrecida pague a conta das dívidas de bancos e grandes empresas sob a justificativa de
estímulo à economia.115
A discussão a respeito da intervenção do Estado na promoção do interesse
público, nas suas mais diversas áreas e nos vários níveis de intensidade, conciliando a
responsabilidade ou dever de conduzir uma economia de mercado estabilizada perante o
sistema financeiro internacional com os problemas sociais urgentes de uma sociedade
necessitada de condições mínimas de sobrevivência para uma parcela imensa de sua
população, precisam ser resolvidos, principalmente nos países periféricos. 116

2.3 MECANISMOS DE CONTROLE ATRAVÉS DO SISTEMA DA DÍVIDA

Pode-se inferir do exposto até aqui que o sistema financeiro mundial, como se dá
atualmente, se sustenta através de trocas em escala global. Os governos das economias mais
fracas, principalmente nos momentos de crise, se vêem dependentes de uma estrutura
financeira internacionalizada, que mescla setores privados e públicos, nacionais e
internacionais, enquanto sustentadores de financiamentos para que os estados dependentes
possam manter suas economias minimamente estáveis.
Com objetivo de manter o status de bom pagador, e, portanto, poder receber mais
crédito no mercado, os governos dependentes se sujeitam ao cumprimento de metas fiscais
como a do superávit primário que é obtido por meio do aumento da carga tributária e do

sobre as forças econômicas. Essas mudanças estruturais culminaram com a queda do muro de Berlim, em 1989.
FAGUNDES, Jeferson Mandracio. O enfraquecimento do Estado-Nação na globalização: uma análise dos
componentes econômicos e suas implicações políticas. 2005, p. 2 Apud.
114
Ib.
115
Ib., p. 3
116
Ib.
23
represamento do investimento público, o que é muito delicado em se comparando com os
índices de desenvolvimento de tais países que são baixíssimos.
É consensual entre os economistas que os investimentos públicos, sobretudo em
infraestrutura, não podem ser adiados indefinidamente sob pena de representar um gargalo
para o crescimento econômico, ou seja, o objetivo principal de utilização do crédito não pode
ser alcançado pela forma com que se paga esse crédito ofertado.117
O neoliberalismo, sob o pretexto de controlar a inflação, construiu sociedades
radicalmente desiguais, a partir da crença em que os elevados recursos que seriam
concentrados nas mãos dos ricos pudessem dar origem a uma autêntica elevação dos níveis
de investimentos para o país. 118
Essa estratégia, ancorada em políticas de “exclusão social”, pode não ter servido para
a retomada do investimento produtivo, na verdade o que cresceu com esse processo foi a
especulação financeira, contudo, este processo facilitou, em muito, o aumento da
119
subordinação das economias nacionais aos ditames dos Fundos Internacionais.
De fato, no Terceiro Mundo, neoliberalismo tornou-se sinônimo de aplicar o que dita
a ortodoxia econômica do Banco Mundial e do FMI. Nos dias atuais, não existe, na América
Latina, qualquer ministro de Estado que possa tomar uma decisão macroeconômica
importante, sem o consentimento da tecnoburocracia mundial do FMI.120
A crise da dívida enfrentada pelos países da América latina a partir dos anos 70 foi a
oportunidade que os países imperialistas, em particular os Estados Unidos, utilizaram para
impor aos países devedores a regra básica do neoliberalismo de “menos Estado e mais
mercado”. Os meios utilizados para realizar este objetivo foram o ajuste estrutural da
economia e as reformas do Estado.121
O Fundo Monetário Internacional (FMI) foi criado em 1944 e tinha como objetivo
regular o sistema monetário internacional. Visava assegurar a estabilidade do novo sistema
monetário criado com os acordos de Bretton Woods122, baseados no dólar. Os empréstimos

117
Silva, Alexandre Manoel Angelo da, e Manoel Carlos de Castro Pires. "Dívida pública, poupança em conta
corrente do governo e superávit primário: uma análise de sustentabilidade." Brazilian Journal of Political
Economy 28.4 (2008): 612-630.
118
Braga, Ruy. "Globalização ou neocolonialismo? O FMI e a armadilha do ajuste." Revista Outubro 4
(2000). p. 56-57
119
Ib.
120
Ib.
121
Arantes, Aldo. O FMI e a soberania nacional Disponível em:
http://revistaprincipios.com.br/artigos/70/cat/1169/o-fmi-e-a-soberania-nacional.html acesso em 22/10/2020
122
O padrão ouro, teoricamente, determinava regras de criação e circulação monetária em nível nacional e
internacional de modo que a emissão de dinheiro seria baseada no estoque de ouro e teria livre conversão nesse
24
realizados pelo FMI podiam ser tomados com base nas quotas que os países membros
dispunham no Fundo.
O padrão imposto estratégia dos “fundos” — FMI, BM, etc. — para as “economias
emergentes” foram e são usualmente a desregulamentação dos direitos sociais, ajustes
fiscais, privatizações e “reformas” estruturais e políticas. O endividamento internacional, por
sua vez, aumenta, tendo em vista a necessidade da manutenção das conversões dolar-real, do
financiamento dos investimentos, mas, sobretudo, do financiamento das importações. A
estratégia neocolonialista do capital, portanto, interfere diretamente na autonomia das nações
em desenvolvimento.123
Através dos programas de ajuste estrutural, elaborados com o objetivo de indicar aos
países endividados os meios para a obtenção dos recursos necessários ao pagamento dos
juros, o FMI e o Banco Mundial condicionam sistematicamente seu “auxílio” financeiro à
colocação em prática dos planos elaborados e definidos por sua tecnoburocracia mundial.
Numerosos países endividados passam, desse modo, à tutela do sistema financeiro
internacional que, por sua vez, recoloniza o dito “terceiro mundo”.124
Portanto os organismos internacionais credores são interessados na necessidade de
crédito dos países em desenvolvimento. Tais organismos utilizam do instrumento da dívida
pública para mitigar a autonomia das nações que são dependentes do crédito ofertado,
suprimindo a soberania dos paises de terceiro mundo, mitigando a capacidade do Estado de
promover o bem estar social.

metal, enquanto os pagamentos internacionais seriam feitos em ouro, e as taxas de câmbio entre as moedas
seriam proporcionais ao seu lastro em ouro. Desta forma, ocorreria um ajuste automático dos desequilíbrios dos
balanços de pagamentos, pois seria gerado um fluxo internacional de ouro e uma adaptação da oferta monetária,
o que provocaria uma reação dos preços internos e o correspondente ajuste da competitividade internacional do
país em desequilíbrio. Bretton Woods significou, em princípio, um meio termo entre uma visão não unilateralista
e a admissão de que os EUA eram a potência dominante. Esta foi uma situação específica, em que os países
europeus estavam enfraquecidos, além de que, logo após, surgiu a guerra fria. No entanto, os poderes
econômico, político e militar dos EUA impuseram o dólar como a moeda internacional. Barreiros, Daniel de
Pinho. "Atuação da delegação brasileira na formulação do Acordo Internacional de Bretton Woods (1942-
1944)." História (São Paulo) 28.2 (2009): 515-570, p.3.
123
Arantes, Aldo. O FMI e a soberania nacional Disponível
em:http://revistaprincipios.com.br/artigos/70/cat/1169/o-fmi-e-a-soberania-nacional.html acesso em 22/10/2020
124
Ib.
25
CAPITULO 3- A AUTONOMIA DAS NAÇÕES EM DESENVOLVIMENTO E A
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

3.1 O NEOLIBERALISMO E O PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA


É importante frisar que a partir da década de noventa o Brasil enfrentou os
problemas decorrentes do sistema financeiro sob a perspectiva neoliberal, portanto o estudo
dessa perscpectiva financeira é de grande relevância para a temática abordada neste trabalho,
visa-se aqui observar as consequencias das estratégias neoliberais para os povos dos países
dependentes.
A intensificação do processo de globalização apresentou um mundo sem fronteiras,
de maneira que todos os mercados, de todas as nações, estariam integrados. A forma mais
intensa de manifestação do fenômeno da globalização seria a sua face comercial. 125Nesse
contexto:
Esssa globalização financeira é caracterizada por Chesnais (1996) como a inteiração
entre a eliminação dos mercados financeiros locais segmentados
(desreluglamentação financeira interna), a interpenetração dos mercados monetários
e financeiros nacionais (liberalização financeira interna) e a integração desses nos
mercados mundializados (liberalização financeira externa).126

Portanto, para acompanhar o processo de globalização, as nações deveriam, pela


lógica neoliberal, implementar políticas que garantissem suas respectivas inserções no
mercado de capitais goblalizado, atrávés do maior grau de abertura de suas economas e da
desregulamentação dos diversos mercados,e , por consequencia, a redução da participação
estatal na economia. 127
O neoliberalismo veio acompanhado do liberalismo tradicional 128 e de suas
premissas básicas, admitindo as diferenças entre os autores dessa tradição, segundo Marcelo
Dias Carcanholo: “os conceitos de liberdade e igualdade no neoliberalismo clássico eram
mais prórximos, pelo menos do que diz respeito ao plano jurídico.” 129Segundo a concepção
neoliberal a subordinação mútua pregada pelo liberalismo clássico entre a liberdade e a

125
Carcanholo. Marcelo Dias. A VULNERABILIDADE ECONOMICA DO BRASIL -. Editora: Idéias e
Letras.2005, p. 25.
126
Ib.
127
Ib., p. 26
128
“Em nenhum ponto fica mais claro demonstrar a diferença entre o raciocínio do velho liberalismo e do
neoliberalismo do que no tratamento do problema da igualdade. Os liberais do século XVIII, guiados pelas idéias
da lei natural e do iluminismo exigiam para todos a igualdade dos direitos políticos e civis, porque
pressupunham serem iguais todos os homens... No entanto, nada mais infundada do que a afirmação da suposta
igualdade de todos membros da raça humana. Os homens são totalmente desiguais” (Mises, 1987:53)Apud p. 29
Ib.
129
Ib. p. 29
26
igualdade não existe, no sentido oposto, a desigualdade se transforma em um valor.130
O que a tradição liberal assume é que os agentes individuais tomam decisões em
função unicamente do seu próprio interesse 131 e que as ações decorrentes são frutos de
decisões racionais.
Uma segunda premissa do liberalismo clássico garante que todas as interações
econômicas, políticas e sociais entre os individuos só podem ser explicadas pelas atitudes
individuais de interesse próprio, portanto, concebe-se uma sociedade como a soma das ações
individuais racionais.
Existe uma terceira premissa liberal que garante que as ações individuais egoístas
levam ao bem estar geral, já que elas fazem parte de uma ordem natural harmônica,
garantindo a quarta premissa de que o mercado conseguiria direcionar os interesses privados
na direção do ótimo social, garantindo a ordem social.
Como decorrencia das premissas anteriromente citadas torna-se indesejável
qualquer intervenção do Estado no mercado, já que isto estaria impedindo o livre e natural
funcionamento da sociedade que levaria, por premissa, à ordem harmônica. Portanto a defesa
do Estado mínimo não interventor. 132
O processo de globalização e liberalização da economia tem como fator
condicionante à abertura externa133: “Segundo a concepção neoliberal, dado o acelerado grau
de globalização da economia, quanto mais integrada internacionalmente for uma economia,
tanto maior serão suas perspectivas de desenvolvimento.”134Esta ideia justifica que a
abertura externa e a integração nacional seja a única forma que uma economia possui para
garantir seu desenvolvimento.
Ainda existe a hipótese que sugere que a necessidade de abertura ao livre
movimento dos capitais porque ela seria capaz de promover a perda de autonomia de política
econômica para os países que a implementam, o que seria saudável, pois, reduziria o risco de
políticas inadequadas(sic).

130
Ib.
131
“... as características essenciais do individualismo... são oi respeito pelo homem individual em sua qualidade
de homem, isto é, a aceitação de seus gostos e opiniões como sendo supremos dentro de sua esfera, por mais
estreitamente que isso possa circunscrever, e a conciliação de que é desejável o desenvolvimento dos dotes e
inclinações individuais por parte de cada um” (Hayek, 1977:17) Apud., p. 26
132
Ib.
133
“... a liberalização financeira externa é entendida como o aumento do grau de abertura financeira ou seja, pelo
aumento da facilidade com que os residentes de um país podem adquirir passivos e ativos expressos em moeda
estrangeira e os não residentes podem operar nos mercados financeiros domésticos.” Ib. p. 32
134
Ib. p. 31
27
Entretanto, após a implementação das estratégias neoliberais, utilizando-se
principalmente da abertura externa nos países do cone sul (Argentina, Chile e Uruguai) o que
se percebeu foi um verdadeiro fiasco no plano prático. O fracasso da abertura externa nos
paises da America Latina fez com que os defensores do pensamento ortodoxo liberal
revissem o que estava posto para sugerir a defesa de um argumento sequencial (Mekinnon,
1991). Ou seja:
A simultaniedade do processo de abertura poderia levar a um superendividamento
externo e à valorização cambial, uma vez que, com a desrepressão financeira, as
taxas de juros domésticas seriam superiores às internacionais, provocando um,a
forte e súbita entrada de capitais. Isso traria o superendividamento externo
(overborrowing sundrome) e a valorização cambial. Esta última em conjunto com a
abertura comercial135, levaria a fortes saldos negativos na balança comercial, o que
poderia comprometer as contas extermas do país em questão. Além disso a
simultaneidade do processo de abertura poderia levar aoo financiamento da
importação de bens de inmvestimento e na diminuição do investimento nos setores
produtores de bens exportáveis.136

Portanto justifica-se na teoria que a abertura externa deve-se dar se forma sequencial.
Segundo Mckinnon137 uma sequencia “ótima” deveria ser iniciada com uma reforma fiscal
que se reduzisse a rigidez nas taxas de juros para que a necessidade de rolagem da dívida
pública fosse diminuida.

3.2 A DÍVIDA PÚBLICA NOS GOVERNOS FHC LULA E DILMA

A estratégia neoliberal propugna como metas de uma administração econômica dita


responsável, dois objetivos. O primeiro é a estabilização macroeconômica da inflação e das
contas públicas, enquanto o segundo é a obtenção de um ambiente econômico pró-mercado,
que incentive a maior concorrência entre os capitais e a livre iniciativa para a retomada dos
investimentos e do crescimento econômico. O Consenso de Washington nada mais foi do que
um receituário de políticas que procuravam atingir esses objetivos. Em relação ao primeiro,
não importa muito se a política de estabilização implementada tivesse um cunho mais
ortodoxo ou heterodoxo. Quanto ao segundo, a construção de uma economia de mercado,
baseada na livre iniciativa, seria garantida pelas reformas estruturais, isto é, pela
desregulamentação e abertura dos mercados.

135
“A abertura comercial é entendida por alguns autores como sendo diferente da liberalização comercia, no
sentido de que a primeira estaria composta por um conjunto de politicias para orientar a economia rumo aos
mercados internacionais, em um processo liderado por exportações. Por outro lado, a liberalização comercial
diria respeito ao desmantelamento da proteção e do controle governamentais em um processo liderado pelas
importações”. Ib. p. 32
136
Ib. p. 42
137
(1991:4-10) Apud.
28
Esta estratégia neoliberal, no Brasil, começa a ser implementada de forma mais
sustentada após a eleição de Fernando Collor (1990-1992), mas perpassa toda a década,
durante os governos de Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-1998
e 1999-2002).
Ao longo do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (1995-98), a
fragilidade do quadro externo foi notável e esta acabou interferindo nos rumos tomados
pela dívida pública nestes anos. O aumento das importações que se seguiram ao
lançamento do plano real, função da taxa câmbio sobrevalorizada, juntamente com um
fraco desempenho das exportações, fez com que o país apresentasse consecutivos
déficits na balança comercial. 138
Tais déficits foram financiados com a contratação de novos empréstimos junto a
credores estrangeiros, e também pela entrada de recursos via investimento direto estrangeiro
o que foi facilitado pela política ativa de privatizações promovida na época.
Do ponto de vista da estabilização, a estratégia neoliberal pareceu ser exitosa no país.
As taxas anuais de inflação, que alcançaram quatro dígitos em 1994, passaram a apresentar
dois dígitos já no ano seguinte, e apenas um em 1996 4. As contas públicas, ainda que apenas
no conceito primário, que não inclui o pagamento do serviço da dívida pública, também
melhoraram.
Pareceria que a experiência neoliberal no Brasil dos anos 90 havia sido um sucesso.
Entretanto, se olharmos os resultados macroeconômicos mais gerais, a conclusão é oposta. A
taxa média de crescimento da economia durante os anos 90 foi de 1,78%, inferior aos 2,2%
dos anos 80. A taxa de investimento como proporção do PIB foi de 15,9% na última década,
contra 17,7% na anterior. As taxas de desemprego subiram sistematicamente ao longo do
período, saindo de 3,3% em 1989 para 7,6% em 1999, segundo as estimativas menos
rigorosas. Em janeiro de 1999 ocorre a crise cambial que dá fim ao regime de câmbio quase-
fixo, operante desde 1994.139140
Em termos distributivos também não foram obtidos resultados satisfatórios. A
distribuição da renda piorou basicamente por três razões: a desestruturação do mercado de
trabalho levou a uma mudança na estrutura ocupacional; piora da distribuição funcional da

138
Silva Cordovil, Vitor . A evolução da Dívida Pública Brasileira:Uma análise do período compreendido
entre 1964-2008. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013 –p.38
139
CARCANHOLO, Marcelo Dias. Inserção externa e vulnerabilidade da economia brasileira no governo
Lula. CORECON-RJ. Os anos Lula. Contribuições para um balanço crítico, v. 2010, p. 109-132, 2003.
140
Durante os anos 90, foi muito comum, principalmente na América Latina, a adoção de regimes de câmbio
(quase) fixos, dentro de políticas de estabilização com âncora cambial. Ib. Apud.
29
renda141; e, concentração da riqueza, isto é, da propriedade dos ativos da economia. Quais
seriam as razões para o fracasso neoliberal? Marcelo Dias Carcanholo diz que:
A implementação da estratégia neoliberal implicou, além de uma política de
estabilização restritiva, a promoção de reformas estruturais pró-mercado que, dentre
outras coisas, incluíam um intenso processo de abertura externa, tanto do ponto de
vista comercial quanto do ponto de vista financeiro. A abertura financeira significou
o aumento da facilidade com que os residentes do país podiam adquirir ativos e
passivos expressos em moeda estrangeira e os não-residentes podiam operar nos
mercados financeiros domésticos. Do ponto de vista das contas externas, esse
processo de abertura implicou uma elevação estrutural da necessidade de
financiamento externo, aumentando a dependência dos fluxos externos para o
fechamento do balanço de pagamentos, e da vulnerabilidade externa da economia.142

Ao longo dos anos 90, a dívida externa brasileira cresceu 108%, o passivo externo
líquido 195,7%, o serviço da dívida externa 160%, o serviço do passivo externo 132%, o
estoque da dívida pública, entre 1994 e 1998, subiu 572%, e os juros pagos por essa dívida,
no mesmo período, 415%.143O crescimento dos passivos externos chegou a um ponto tal que
o fluxo de capitais não continuou financiando a rolagem dessas dívidas, o que levou à crise
cambial de 1999.
Após esse colapso, a política cambial é alterada, sendo regida por um regime
flutuante144 com a atuação do Banco Central para estabilizar as flutuações da cotação, e a
política monetária passa a seguir um regime de metas inflacionárias. Essas diretrizes de
política econômica, aliadas a uma política fiscal de obtenção de superávits primários,
basicamente para pagar o serviço da dívida pública, são a característica da política econômica
brasileira desde então.
Assim, a mudança do regime cambial e monetário, após a crise de 1999, não
modificou a característica estrutural da economia brasileira. A piora da situação social, como

141
Em 1994, 32% do PIB era composto pela massa de salários. No final da década, em 1999, essa proporção era
de apenas 26,5%. Ib. Apud.
142
Ib.
143
Ib.
144
Câmbio flutuante é um regime cambial em que as operações de compra e venda de moedas se movimentam
de acordo com a demanda do mercado, sem controle sistemático do governo. Ou seja: a taxa de câmbio depende,
exclusivamente, da oferta e demanda do mercado. Nessas condições, a cotação das moedas varia constantemente
ou para cima ou para baixo. Ela é influenciada por fatores como:taxas de importação e exportação;políticas
monetárias;taxas de juros internas e externas.Além disso, também são decisivos para a oscilação cambial
a:inflação;investimentos estrangeiros;fluxo de turismo e migração.
Em essência, a partir do momento em que um país passa a operar em câmbio flutuante, uma moeda passa a valer
o que seus compradores estão dispostos a pagar. No cenário brasileiro, por exemplo, a cotação do dólar, é
definida diariamente na interação entre importadores, investidores, turistas brasileiros e seus respectivos
ofertantes estrangeiros. Disponível em: https://www.capitalresearch.com.br/blog/investimentos/cambio-
flutuante/#:~:text=C%C3%A2mbio%20flutuante%20%C3%A9%20um%20regime,oferta%20e%20demanda%2
0do%20mercado. Acesso em: 19/11/2020

30
decorrência desse quadro, e a crescente insatisfação popular deram o tom da campanha para
as eleições presidenciais de 2002.
O discurso dos principais candidatos dava ênfase à promoção do capital nacional
produtivo, recuperando as taxas de crescimento da economia e os níveis de emprego, em
detrimento da acumulação financeira que vinha sendo a característica do país. É curioso que
esse discurso era enfatizado tanto pelo principal candidato oposicionista como pelo candidato
da situação.
A vitória do candidato Lula parecia trazer consigo as esperanças, não apenas no Brasil,
mas no restante da América Latina, de que a hegemonia neoliberal começasse a declinar. O
novo governo assume no início de 2003 tendo que equacionar duas coisas: a chamada
“herança maldita” do governo anterior, definida pelas armadilhas construídas pelo processo
de abertura e desregulamentação da economia, e que produziram os resultados pífios dos anos
90 e início do século XXI, e a expectativa popular de mudança na estratégia de
desenvolvimento.
Existe um debate que atualmente ganhou muita relevância sobre a suposta traição do
governo Lula que, depois de eleito, não teria cumprido com as esperanças de rompimento
com a estratégia neoliberal, e teria se resignado frente ao pensamento único. Entretanto, a
economia política do governo Lula podia ser antevista já durante a campanha eleitoral.
Em meados de 2002, durante a campanha presidencial, a candidatura de Lula lança a
Carta ao Povo Brasileiro (Silva, 2002), na qual se compromete a manter todos os contratos
estabelecidos na economia, e sinalizando para a manutenção da política econômica nos
mesmos moldes. Em agosto de 2002, o ainda governo de Fernando Henrique Cardoso assina
um acordo com o FMI, dando garantias de manutenção da política econômica. Esse acordo
teve uma revisão em março de 2003, já no governo Lula, mantendo as garantias.
Eleito o governo Lula mantém-se o discurso – e a prática – da estabilidade
macroeconômica como pré-condição para qualquer política de mais longo prazo. As reformas
estruturais pró-mercado, incluindo a liberalização comercial, financeira e produtiva, não
apenas são mantidas como aprofundadas em seu governo.
Com isso, são mantidos os dois pilares da estratégia neoliberal do Consenso de
Washington, isto é, a estabilização macroeconômica como pré-condição e as reformas pró-
mercado para a retomada dos investimentos privados. Portanto, em termos de
instrumentalização da política econômica, o governo Lula defendeu a manutenção dos
superávits primários, explicitamente pelo controle dos gastos públicos e, de alguma maneira,

31
na expansão da arrecadação como forma de manter sustentável a relação da dívida pública
frente ao PIB.
Do ponto de vista da política monetária, foi mantido o regime de metas inflacionárias.
Do ponto de vista da política cambial, também se mantém o regime de c/ãmbio herdado do
governo anterior. A determinação da taxa de câmbio segue um esquema de flutuação suja, ou
seja, o mercado cambial determina o valor da moeda nacional, em relação à moeda
conversível, e o Banco Central atua no mercado, ora comprando, ora vendendo, de forma a
tentar manter essa flutuação da taxa de câmbio segundo os parâmetros que lhe parecem
conveniente.
Algumas interpretações oficialistas reconhecem essa manutenção da estratégia
neoliberal de desenvolvimento e das políticas fiscal, monetária e cambial, mas sustentam que
a política comercial foi modificada. De fato, a balança comercial volta a ser superavitária a
partir de 2001, depois de sete anos deficitária. Entretanto, isso não se deve a uma mudança na
política comercial do governo que, aliás, manteve o elevado grau de abertura comercial
herdado dos anos 90. O que acontece de fato é uma consequências das estratégias traçadas
pelo governo anterior:
Em primeiro lugar, note-se que essa reversão na balança comercial começa a ocorrer
ainda no governo FHC e, portanto, não seria um “mérito” exclusivo do governo
Lula. Em segundo lugar, a reversão dos saldos deficitários na balança comercial se
deve a outros fatores: (i) conseqüência defasada da desvalorização da taxa de
câmbio, que vem desde a crise cambial de 1999; (ii) nova desvalorização do câmbio
em função de incertezas durante a campanha eleitoral de 2002; (iii) volta do
crescimento da economia mundial que permite a expansão do volume das
exportações, assim como uma alta substancial do preço das commodities, principal
conjunto de produtos de exportação do país; e (iv) momento de alta no ciclo de
liquidez internacional, o que propicia uma baixa nas taxas de juros internacionais e,
portanto, de elevação na demanda das nossas exportações. 145

Antes de ser consequência de uma política comercial mais ativa, o resultado da


balança comercial reflete muito mais a sorte que o governo Lula experimentou de um
ambiente externo favorável. Isto é, antes de mostrar uma ruptura com a estratégia neoliberal
do governo anterior, a obtenção de saldos positivos na balança comercial, a partir de
determinado momento, reflete, como veremos, justamente o grau de dependência da
economia brasileira frente aos movimentos dos mercados internacionais, fruto da inserção
internacional passiva desde o início da década de 90.

145
CARCANHOLO, Marcelo Dias. Inserção externa e vulnerabilidade da economia brasileira no governo
Lula. CORECON-RJ. Os anos Lula. Contribuições para um balanço crítico, v. 2010, p. 109-132, 2003.

32
A abertura comercial, de um lado, promove dois efeitos. O primeiro, em associação
com uma conjuntural valorização cambial, é a construção de elevados déficits comerciais que
precisam ser financiados. O segundo, de uma forma mais estrutural, promoveria uma espécie
de processo de substituição de importações às avessas, isto é, o fato dos produtos importados
ficarem mais baratos que os de produção nacional por um determinado tempo leva à quebra
das empresas nacionais que produziam esses produtos.
Quando a economia retomar, de alguma forma, o crescimento de sua atividade e
demandar esses produtos, não há alternativa a não ser importá-los. Isso ocorreu e vem
ocorrendo, na economia brasileira, dentro do setor de produtos intermediários e de bens de
capital. Tanto um efeito, como o outro, mostram como a abertura comercial leva ao aumento
estrutural da necessidade de financiamento externo, em função do maior crescimento
estrutural das importações.
Por outro lado, a abertura financeira promoveu o crescimento dos empréstimos
diretos e entrada de capital externo. Se, do ponto de vista do curto prazo, isto pode ser
positivo, pois financia as contas negativas das transações correntes, implica na elevação do
passivo externo líquido e, portanto, no crescimento do serviço desse passivo, em momentos
posteriores, o que significa também o aumento da necessidade do financiamento externo para
o futuro. A restrição externa estrutural para o crescimento é a primeira armadilha que essa
inserção externa passiva produz. A vulnerabilidade externa coloca a obrigatoriedade de uma
taxa de juros interna muito maior do que as internacionais, como forma de garantir o fluxo
de capitais que possibilitem o fechamento das contas. Este piso para a taxa de juros interna é
um limite estrutural para o crescimento da economia.
A segunda armadilha é a armadilha financeira das contas externas. O crescimento do
déficit em transações correntes, colocado estruturalmente pelo processo de abertura externa,
leva ao aumento do passivo externo, em virtude da maior entrada de recursos para financiar
aquele déficit. Entretanto, isso implica no maior pagamento do serviço deste passivo, o que
volta a elevar o déficit da balança de serviços, gerando um círculo vicioso de endividamento
externo.
Por outro lado, as altas taxas de juros, necessárias para o fechamento das contas
externas, implicam o aumento do serviço da dívida pública, que necessita ser refinanciado.
Esse refinanciamento foi – e continua sendo - realizado, em maiores proporções, via novo
endividamento, ou seja, por intermédio de lançamento de novos papéis de dívida pública. A

33
conclusão é que se produz uma armadilha fiscal, definida pelo aumento tanto do estoque da
dívida pública como de seu serviço.146
A quarta armadilha diz respeito ao processo de stop and go147 que caracteriza a
economia a partir dos anos 90, e definiu as oscilações conjunturais da atividade econômica.
Se, por alguma eventualidade, esse nível de atividade crescesse, isso implicaria em aumento
da renda que, por sua vez, levava à elevação da demanda por importações e, portanto, do
déficit das transações correntes. A necessidade de financiar este déficit com capital externo
obriga o aumento das taxas internas de juros, o que interrompe aquele ensaio inicial de
crescimento econômico.
Percebe-se a piora significativa da economia brasileira no período 1994-1999. Já
para o período entre 1999-2002, o final do governo FHC, parece haver certa melhora nos
indicadores. Os indicadores de vulnerabilidade mostram melhora durante o governo Lula, o
que, foi constantemente propagandeado não só pelos defensores do governo, mas por
representantes do mesmo.
Além disso, a economia teria voltado a crescer. Em 2004, esse crescimento atingiu
5,7%, em 2005 cerca de 3% e 3,7% em 2006, acima dos valores médios obtidos pelo
governo anterior. Não bastasse isso, do ponto de vista das contas externas, os problemas
pareciam resolvidos, Os déficits em transações correntes são revertidos a partir de 2003,
mantendo o superávit até 2007. Por fim seriam resolvidos os problemas estruturais da
economia. Ao menos esse era o discurso oficial. 148
Isto, entretanto representou mera aparência. Em primeiro lugar, a armadilha fiscal
continuou presente. A dívida interna do setor público aumentou sua participação de 37,5% do
PIB em 2002 para 47,6% do PIB em 2006, chegando a 59,4% no final de 2009. Para o
primeiro mês de 2010, o próprio Banco Central estima que a dívida interna do setor público
chegou a 60% do PIB. 149
O problema da dívida pública permanece justamente pelas razões que conformam a
armadilha fiscal. Altas taxas de juros, combinadas com o lançamento de títulos da dívida
pública pelo governo, como forma de contrabalançar a forte entrada de capital externo, que
tende a expandir a oferta monetária interna para além daquilo programado no regime de metas

146
Oliveira, 2009: 311-323 Apud.
147
Ou seja, com taxas de expansão do PIB (Produto Interno Bruto) que alternam fases de crescimento mais
baixo e outras com um maior dinamismo. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2303200608.htm acesso em 20/11/2020
148
CARCANHOLO, Marcelo Dias. Inserção externa e vulnerabilidade da economia brasileira no governo
Lula. CORECON-RJ. Os anos Lula. Contribuições para um balanço crítico, v. 2010, p. 109-132, 2003.
149
Ib.
34
inflacionárias. Consequentemente, a dívida pública interna explode durante o governo Lula,
chegando a R$ 1.897,642 bilhões em janeiro de 2010.150
O governo acreditou que o processo de stop and go não ocorreria mais porque a
armadilha da restrição externa estrutural ao crescimento foi, supostamente, desarmada. E esta
teria sido resolvida tendo em vista a quebra do círculo vicioso nas contas externas. De fato,
como visto, as contas externas melhoraram muito no período 2002-2006.
Entretanto, a melhora das contas externas só ocorreu por uma eventualidade
conjuntural dos seguintes fatores: (i) alta no ciclo de liquidez internacional, o que reduz as
taxas internacionais de juros, proporcionando um crescimento da economia mundial e uma
redução no risco-país que embasa o fluxo de capitais externos; (ii) forte crescimento da
economia chinesa que importa os produtos justamente que preponderam na pauta de
exportações da economia brasileira; (iii) crescimento do preço das commodities,
predominantes na estrutura exportadora do país. 151Quanto à responsabilidade do governo em
relação a esses fatores:
Qual destas razões se deve a alguma medida do governo brasileiro? Nenhuma. É
tudo fruto de um cenário externo extremamente favorável, que propiciou o forte
crescimento das exportações, a reversão no déficit da balança comercial e de
transações correntes e o acúmulo de reservas internacionais que permitiram, dentre
outras coisas, o pagamento antecipado de montante da dívida com organismos
internacionais.152
Essa melhora dos indicadores de vulnerabilidade externa são meramente conjunturais.
O que ocorreu com a estrutura e, portanto, com a razão última dessas armadilhas? Se o
governo faz exatamente o que se fazia antes, essa estrutura não pode ter mudado. Ao
contrário, intensificou-se. Três pontos ilustram isso.
O primeiro é o aprofundamento da reestruturação industrial, fruto do processo de
abertura comercial, que jogou a economia brasileira dentro de uma lógica muito próxima
àquela das economias primário-exportadoras, que caracterizou nossa região antes dos
processos de substituição de importações. Não há dúvida quanto a isso. A economia brasileira
voltou a ser extremamente dependente das exportações para a sua dinâmica, e essas
exportações são, em sua grande maioria, exportações de produtos primários e/ou baseados em
recursos naturais.
Esse processo de reprimarização das exportações brasileiras, fruto da estratégia
neoliberal de desenvolvimento, foi mantido e aprofundado pelo governo Lula. Em 2004, os
produtos primários já representavam 30,66% do total de nossas exportações, sendo que o

150
Ib.
151
Ib.
152
Ib.
35
segundo colocado nesse ranking eram as manufaturas de média tecnologia com 27,36%. O
processo se aprofunda, com os produtos primários passando a 33,45% em 2007 e 38,26% do
total de exportações em 2008.153
Dessa forma, a manutenção do padrão de inserção comercial regressiva no governo
Lula aprofundou o processo de reprimarização das exportações. Não só a economia brasileira
passou a depender cada vez mais das oscilações dos mercados externos para a demanda de sua
produção interna como o componente primário das exportações se acentuou. As oscilações de
demanda e preço dos produtos primários - notoriamente mais bruscas - no mercado
internacional contribuíram também para a maior vulnerabilidade da economia brasileira.
Um segundo ponto que deve ser destacado nessa aparente melhora dos indicadores
no período 2002-2006 é o fato de que, em que pese a melhora conjuntural dos mercados
externos, um componente estrutural foi acentuando seu desequilíbrio nesse período:
A conta de serviços e renda teve o seu déficit aumentado em todo momento. Sai de
um rombo de US$ 23,1 bilhões em 2002 para US $ 36,8 bilhões em 2006. Por que
isso? Justamente porque durante a fase positiva do cenário externo, além do
crescimento da demanda por nossas exportações, as reservas internacionais cresciam
em razão da forte entrada de recursos externos, muito em conseqüência da alta no
ciclo de liquidez internacional e das elevadas taxas domésticas de juros. Esses
recursos entrantes acresciam o estoque do passivo externo, que redunda, em
períodos posteriores, em elevação do serviço desse passivo (juros, amortizações,
remessa de lucros e dividendos, pagamento de royalties, etc.). Trata-se de uma
elevação estrutural de um desequilíbrio de fluxo, em razão de um desequilíbrio de
estoque. Em suma, mais um elemento na elevação da vulnerabilidade externa
estrutural da economia brasileira. E se é estrutural, isso significa que, quando da
reversão do cenário externo amplamente favorável no período 2002-2006, isto é,
quando a balança comercial reverter seus resultados positivos, estes déficits
estruturalmente crescentes da conta serviços e rendas manifestarão novamente a
armadilha das contas financeiras.
Por último, além do cenário externo favorável, é preciso considerar também que a
retomada do crescimento da economia brasileira no período 2002-2006 foi aparente. De fato,
do ponto de vista dos números absolutos, as taxas médias cresceram em relação a períodos
anteriores. Acontece que todo o resto do mundo cresceu também. No período entre 2003 e
2006 ,a economia mundial cresceu em média 4,9%, enquanto a economia brasileira cresceu
3,3% em média. A conclusão é que o hiato entre o crescimento da economia mundial e a
brasileira se elevou, isto é, a distância entre a economia brasileira e a média da economia
mundial se elevou, no período, em 1,6%. Houve um retrocesso, do ponto de vista da
economia mundial, e não um avanço.
Entretanto o cenário se alterou, no período 2002-2006 - e de alguma maneira uma
parte de 2007 também - significou, portanto, uma melhora dos indicadores de vulnerabilidade

153
Ib.
36
externa por uma única razão. O cenário externo foi o melhor visto em décadas na economia
mundial.
Em primeiro lugar, a alta no ciclo de liquidez internacional levou tanto a uma
ampliação da entrada de recursos externos, em todas suas formas, como a uma baixa
considerável das taxas de juros internacionais, o que deu margem para a redução dos juros
domésticos, ainda que esse movimento tenha sido muito retardado na economia brasileira.
Em segundo lugar, o crescimento da economia mundial levou a uma elevação da
demanda por nossas exportações, favorecidas também pelo forte crescimento do preço das
commodities, principal produto exportado.
Se nem a estratégia de desenvolvimento, nem a política econômica do governo Lula
são distintas do período anterior, a reversão do cenário externo – até então favorável ao
desempenho da economia sob tutela do novo governo – voltou a demonstrar a vulnerabilidade
externa estrutural da economia, fruto da manutenção e aprofundamento da estratégia.
O resumo do período 2002-2006 representou um cenário externo extremamente
favorável, justamente a partir do momento em que o presidente Lula assumia o novo governo;
sem que ele tenha feito nada para isso. Não há outra palavra para descrever o acontecimento
que não sorte. A crise que se abateu sobre a economia mundial a partir de 2007/2008 veio
justamente modificar essa maré de sorte.154
A reversão do cenário internacional significou a volta dos problemas no balanço de
pagamentos basicamente por duas razões: desaceleração do crescimento das exportações, em
função da recessão mundial que diminui a demanda por nossos produtos; e, redução dos
preços das commodities, tanto pela recessão mundial como, principalmente, pela
desvalorização do capital fictício aplicado na especulação dentro do mercado futuro de
commodities. Isso significa que a vulnerabilidade externa estrutural tende a se manifestar
novamente na piora das contas externas.
Já em 2007 os resultados positivos na balança comercial começam a ser revertidos,
com a redução do superávit de US$ 46,2 bilhões em 2006 para US$ 40,3 bilhões no ano
seguinte, como mostra a tabela 2. Esse resultado na balança comercial já é insuficiente para
fazer frente ao déficit em serviços e rendas, que em 2007 atingiu US$ 42,5 bilhões. O saldo
em transações correntes só foi ligeiramente positivo nesse ano por conta das transferências.
Mas já em 2008 a redução ainda maior do saldo na balança comercial (US$ 25,3 bilhões),
somado a um déficit de US$ 57,2 bilhões em serviços e rendas, insuficientemente coberto

154
Ib.
37
pelas transferências (US$ 4,2 bilhões), leva a um déficit em transações correntes, que chega a
1,7% do PIB. A necessidade estrutural de financiamento externo para o fechamento do
balanço de pagamentos volta a se manifestar. 155
Como visto os problemas estruturais e as armadilhas produzidas e aceleradas pelo
aprofundamento da inserção externa passiva da economia brasileira construíram uma situação
que eleva a fragilidade das contas externas e, portanto, da vulnerabilidade da economia a
esses choques. Quanto maior a dependência da economia frente às oscilações da conjuntura
internacional maiores serão os impactos internos das reversões cíclicas na economia mundial:
O impacto da crise mundial nas contas externas é ainda agravado pela dinâmica de
atração de investimentos externos de curto prazo e de natureza especulativa, que se
fazem necessários para o fechamento do balanço de pagamentos. Ainda que as taxas
de juros internacionais estivessem em queda – uma tentativa dos governos centrais
de minorar os impactos da crise no mundo – nesse ambiente de aprofundamento da
incerteza, desenvolveu-se uma maior aversão ao risco, fazendo com que os capitais
exijam um maior diferencial de juros para aplicar nas economias periféricas. O que
ocorreu na economia brasileira no novo cenário de crise na economia mundial é que
as taxas de juros domésticas caem, mas em menor proporção em relação à queda nos
países centrais. O atraso do Banco Central brasileiro em acompanhar os movimentos
internacionais de redução nos juros como forma de aliviar os efeitos da crise só fez
elevar a margem que incentiva uma maior entrada de capital externo de curto
prazo.156
Uma das consequências do cenário conjuntural é um movimento de valorização
cambial, que só foi interrompido no final de 2008, justamente o momento mais agudo da crise
mundial, quando tivemos uma forte reversão dos fluxos de capitais.
Assim, depois da crise mundial, os juros internos caíram mais lentamente que os juros
internacionais, elevando o spread157 de valorização para os ativos domésticos, incentivando a
maior entrada de capital, e levando à nova valorização do cambio, o que aprofunda os
problemas estruturais nas contas externas. Isto por um lado. Por outro, percebe-se que a forte
entrada dos capitais de curto prazo – necessários para o financiamento das contas externas
novamente deficitárias – recoloca a dinâmica de instabilidade e crise cambial.
O início de 2010 mostrou, em fevereiro, que o Balanço de Pagamentos registrou um
superávit de US$ 741 milhões, sendo que as transações correntes foram deficitárias em US$
3,3 bilhões (acumulando um déficit de US$ 28,1 bilhões em 12 meses), o equivalente a 1,66%

155
Ib.
156
Ib.
157
No mercado de ações, o spread refere-se à diferença entre o menor preço de venda e o maior preço de compra
de uma ação disponível em https://conteudos.xpi.com.br/aprenda-a-investir/relatorios/spread-entenda-este-
conceito-usado-no-mercado-financeiro/ acesso em 20/11/2020
38
do PIB. Esse resultado para as transações correntes é o pior para um mês de fevereiro desde
1947. 158
O problema estrutural é agravado pela piora no déficit de serviços nesse mês (US$ 2,1
bilhões), 131,6% superior ao mesmo mês de 2009, e pela remessa líquida de rendas em US$
1,8 bilhão. O superávit no Balanço de Pagamentos de fevereiro só foi possível pela entrada
líquida na conta financeira de US$ 4 bilhões. A dívida externa total estimada nesse mês de
fevereiro de 2010 atingiu US$ 203 bilhões, US$ 4,8 bilhões a mais do que o contabilizado no
final de 2009.159
Para o mês de março, os dados mostraram que a taxa de crescimento das importações
superou a das exportações:
A primeira chegou a 50%, comparando o mesmo mês do ano passado, sendo que o
volume total de importações chegou a US$ 15,059 bilhões. As exportações
atingiram em março US$ 15,727 bilhões, um valor 33% superior ao mesmo mês de
um ano atrás. O saldo comercial de US$ 668 milhões representou uma queda de
62% em relação ao ano passado, confirmando que o recrudescimento do cenário
externo repõe os problemas estruturais nas contas externas da economia brasileira.
Em junho de 2010, os dados divulgados aprofundaram a tendência. O déficit em
transações correntes nesse mês atingiu US$ 5,2 bilhões. A previsão para o ano de
2010 é de um déficit de cerca de US$ 50 bilhões, sendo que apenas 64,6% disso
devemos ser cobertos com investimento direto estrangeiro, o pior resultado desde
1997.160
A conclusão é que os problemas estruturais e as armadilhas do processo de abertura e
liberalização externa da economia brasileira se mantiveram durante o governo Lula. A fase de
aparente melhoria entre 2002 e 2007 não se deveu a uma mudança/ruptura desse governo
frente às estratégias do período anterior. Ao contrário, este governo não só manteve como
aprofundou a estratégia neoliberal de desenvolvimento no que tange à sua inserção externa.
Nada mais natural que a vulnerabilidade externa estrutural volte a se manifestar justamente no
momento em que o cenário externo amplamente favorável se desfez.
Nos governos petistas, assistiu-se a continuidade da garantia dos contratos com os
credores da dívida pública como um dos compromissos que redimensionam o fundo público
brasileiro. Como já mencionado, a “Carta ao povo brasileiro” já se tinha sinalizado ao
capital financeiro que a “premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos
e obrigações do país” 161

158
CARCANHOLO, Marcelo Dias. Inserção externa e vulnerabilidade da economia brasileira no governo
Lula. CORECON-RJ. Os anos Lula. Contribuições para um balanço crítico, v. 2010, p. 109-132, 2003.
159
Ib.
160
Ib.
161
PEREIRA, Jordeana Davi. FUNDO PUBLICO E DÍVIDA PUBLICA BRASILEIRA: a Desvinculação de
Receitas da União um golpe na Seguridade Social Rayssa Kessia Eugênia Rodrigues p.2
39
Para ilustrar a situação de contradição entre o econômico e o social segue uma
tabela que se refere ao comparativo entre as peças orçamentárias destinadas aos juros e
encargos da dívida com o programa Bolsa Família (programa de transferência de renda com
condicionalidade, carro chefe nas políticas sociais nos governos do Partido dos
Trabalhadores):
Gráfico 01 – Recursos do Programa Bolsa Família e outras transferências em relação aos
juros e encargos da dívida pública (R$ bilhões) (2003-2017)

Fonte: SIAFI/SIGA/Senado Federal e ANFIP. Apud.

Boito Jr. destaca que a crise do governo de Dilma Rousseff “foi provocada,
fundamentalmente, pela forte ofensiva restauradora do campo neoliberal ortodoxo que
pretendeu iniciar uma nova rodada de reformas neoliberais no Brasil”162. Esta crise se
desenrola com a participação da chamada classe média e com a participação de setores das
classes trabalhadoras e resulta no golpe parlamentar que depõe a presidenta Dilma 163.
Michel Temer assume ao cargo na Presidência comprometido com o programa “Uma
ponte para o futuro”, lançado em 29 de outubro de 2015, pelo Instituto Ulysses Guimarães.
Neste documento, a questão fiscal e a necessidade de reorganização no orçamento público
são tidos como chave para o “retorno do crescimento econômico do Brasil”. Com um
discurso sintonizado as exigências do capital financeiro, a reforma da previdência16 é
apresentada como “necessária”, e se efetivada passa a direcionar os trabalhadores aos
mercados dos fundos privados de pensão.
Durante o governo Michel Temer (2016-2018), sustentado pelo pacto neoliberal
ortodoxo, uma série de medidas foram propostas e aprovadas, entre as quais se destacam a
reforma trabalhista; a renovação e ampliação (30%) do percentual desvinculado pela DRU;

162
BOITO JR. 2018, p. 211. Ib, Apud.
163
Ib.
40
a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, conhecida como e Emenda do Teto dos
Gastos; a manutenção da meta de superávit primário; as medidas de desonerações fiscais, os
processos de securitização da dívida pública e a apresentação de uma proposta de reforma
previdenciária (PEC 287/016), dentre outras medidas que afetam consideravelmente a vida
dos trabalhadores.
Como forma de legitimar essa apropriação, alguns mecanismos foram
institucionalizados, objetivando desvincular o orçamento público em nome do ajuste fiscal.
Um deles é a Desregulamentação de Recursos da União (DRU), que foi prorrogada até o
ano de 2023. A PEC 877/2015 foi enviada ao Congresso pela presidenta Dilma Rousseff,
mas tendo em vista a ausência de possibilidades de aprovação em seu governo, a proposta só
foi aprovada durante o governo Temer.
Sua mais recente reedição, por meio da EC nº 31, de 2016, legitimou a ampliação das
desvinculações dos recursos, especialmente do orçamento da Seguridade Social, de 20%
para 30%, os quais serão desvinculados para a formação do superávit destinado ao
pagamento dos juros e demais despesas da dívida. O seguinte histórico da DRU demonstra
como o orçamento da Seguridade Social já está sendo comprometido pela utilização desse
mecanismo:

Gráfico 2 - Histórico da Desvinculação de Receitas da União

Há uma tendência crescente de apropriação do Orçamento da Seguridade Social e


destituição da cobertura das políticas sociais, os valores desvinculados pela DRU para a
formação de um superávit e manutenção do sistema da dívida.
O histórico de desvinculação significa a contenção de recursos das políticas de
Seguridade Social, em 2016, foram desvinculados o total de R$ 99.209 (leia-se: noventa e
nove bilhões, duzentos e nove milhões de reais), em prol de uma dívida impagável, que se
multiplica por meio de mecanismos financeiros arbitrários.

41
Desconsiderando as desvinculações, apropriações, desoneração etc, é articulado um
discurso irreal de déficit da previdência social; ocultando a existência desses mecanismos
como a DRU, o injusto sistema tributário, os bônus e desonerações tributários oferecidos aos
empresários, bancos e instituições financeiras e etc. Contudo, ainda assim, o financiamento
da Seguridade Social apresenta um histórico de superávits, como tem sido demonstrado
pelos relatórios anuais da ANFIP.164

Tabela 01: Receitas e despesas da Seguridade Social 165

2014 2015 2016 2017

RECEITAS 688.375 694.497 718.985 780.332

DESPESAS 632.092 683.058 775.983 837.190

SALDO + 56.283 +11.439 - 56.998 - 56.858


166

Os dados da ANFIP indicam um saldo negativo a partir de 2016, ano de aprovação


da ampliação da DRU e da ampliação de percentual de desvinvulação, conforme
demonstrado em gráfico anterior. Em suma, o que assistimos é um claro comprometimento
das frações da burguesia nacional com o culto aos rentistas, e, em contraposição, a
destruição das políticas sociais, especialmente a Seguridade Social, são destituídas do seu
orçamento próprio em benefício ao capital rentista.
Nessa configuração, os recursos do fundo público, advindo da carga tributária que
recai majoritariamente na classe trabalhadora, são utilizados em prol da reprodução do
capital rentista.
Considerando a origem do credor, a dívida pública funciona como um mecanismo
de transferência financeira dos recursos de países devedores para um punhado de rentistas.
Além dessas transferências, os países devedores estabelecem (com o consentimento de suas
burguesias nacionais) relações de dependência com as economias centrais. Seguem os dados
atuais dos últimos vinte anos de acumulação de dívida pública no Brasil:
Tabela 2- Dados dos últimos s vinte anos da dívida externa:
164
Ib.
165
Fonte: ANFIP. Apud

42
Data Dívida Externa (GOV e BCE)
1998 38.812,2400
1999 83.163,8200
2000 85.394,5200
2001 103.252,3500
2002 197.590,3900
2003 160.277,3200
2004 125.117,2400
2005 46.793,3200
2006 -47.003,4400
2007 -177.496,4900
2008 -294.760,4000
2009 -215.870,0200
2010 -219.620,7600
2011 -386.351,5100
2012 -436.877,7500
2013 -471.378,7400
2014 -483.658,4000
2015 -816.850,4200
2016 -677.008,8900
2017 -742.050,5200
2018 -896.394,6200
2019 -858.926,7800
*Descrito em milhões de reais167

Dívida Externa
400,000.0000
200,000.0000
0.0000
2000

2005

2011

2017
1998
1999

2001
2002
2003
2004

2006
2007
2008
2009
2010

2012
2013
2014
2015
2016

2018
2019

-200,000.0000
-400,000.0000
-600,000.0000
-800,000.0000
-1,000,000.0000

167
Elaboração dos gráficos e planilhas por André Costa Menezes, graduando em ciências econômicas pela UFF-
Campos dos Goytacazes. Fonte: Banco Central
43
É possível perceber que a partir de 2007 o Brasil se torna credor externo, entretanto
o gráfico da dívida interna explica que tal situação se seu graças ao aumento exponencial da
dívida interna:

Tabela 3: Os Dados Da Dívida Interna

Data Dívida interna (GOV e BCE)


1998 192.455,4900
1999 233.057,8800
2000 267.572,4300
2001 308.519,5900
2002 363.238,4200
2003 418.470,6900
2004 476.360,4800
2005 617.430,3000
2006 782.803,3300
2007 994.177,3000
2008 1.023.087,1800
2009 1.148.405,3100
2010 1.220.737,5400
2011 1.395.543,3500
2012 1.439.082,4500
2013 1.496.736,5300
2014 1.684.337,9800
2015 2.129.812,1600
2016 2.767.141,5400
2017 3.276.169,3300
2018 3.660.096,9700
2019 3.936.945,8400
*Descrito em milhões de Reais

Dívida Interna
4,500,000.0000
4,000,000.0000
3,500,000.0000
3,000,000.0000
2,500,000.0000
2,000,000.0000
1,500,000.0000
1,000,000.0000
500,000.0000
0.0000

44
Portanto, a dívida pública que caracterizada por Marx168como a “única parte da
chamada riqueza nacional que é realmente posse coletiva dos povos modernos”; e que
entretanto, em termos qualitativos e quantitativos, tem como ser maior beneficiário o capital
rentista, pois a rolagem da dívida incrementa a acumulação financeira e, analogamente, para
a classe trabalhadora, representa uma nova via de expropriação.
Em contraposição dos dados de dívida pública em números impagáveis na casa dos
trilhões, os indicadores de pobreza no país demonstram a vulnerabilidade da maior parte da
população:

DATA DOMICÍLIOS COM ÁGUA POTÁVEL


1998 0,83
1999 0,84
2001 0,85
2002 0,87
2003 0,88
2004 0,87
2005 0,88
2006 0,89
2007 0,90
2008 0,91
2009 0,92
2011 0,93
2012 0,94
2013 0,94
2014 0,95
*Descrito em porcentagem de pessoas

DATA DOMICÍLIOS COM INSTALAÇÃO DE


REDE DE ESGOTO
1998 0,60
1999 0,61
2001 0,63
2002 0,65
2003 0,66
2004 0,65
2005 0,66
2006 0,67
2007 0,71
2008 0,71

168
(1971, p. 872)
PEREIRA, Jordeana Davi. FUNDO PUBLICO E DÍVIDA PUBLICA BRASILEIRA: a Desvinculação de
Receitas da União um golpe na Seguridade Social Rayssa Kessia Eugênia Rodrigues p.11 Apud.
45
2009 0,70
2011 0,75
2012 0,76
2013 0,74
2014 0,75
*Descrito em porcentagem de pessoas

DATA BPC PARA IDOSOS - VALOR TOTAL


1998 27.017.355,43
1999 42.640.085,57
2000 61.076.408,75
2001 84.796.430,73
2002 117.412.183,09
2003 160.241.738,00
2004 243.552.740,51
2005 320.885.739,38
2006 415.573.942,97
2007 493.809.144,24
2008 590.323.148,90
2009 715.960.209,00
2010 826.851.042,16
2011 918.656.410,58
2012 1.087.116.316,98
2013 1.233.457.734,00
2014 74.916.206.276,00
*Descrito em reais

DATA BENEFÍCIOS DO BOLSA FAMÍLIA


2004 6.571.839
2005 8.700.445
2006 10.965.810
2007 11.043.076
2008 10.557.996
2009 12.370.915
2010 12.778.220
2011 13.352.306
2012 13.900.733
2013 14.078.789
2014 13.995.978
2016 13.562.452
*Descrito em reais

DATA TAXA DE DESEMPREGO


1998 9,7
46
1999 10,4
2001 10,0
2002 9,9
2003 10,5
2004 9,7
2005 10,2
2006 9,2
2007 8,9
2008 7,8
2009 9,0
2011 7,3
2012 6,7
2013 7,1
2014 7,5
*Descrito em porcentagem

DATA POPULAÇÃO DESOCUPADA


1998 7.144.591
1999 8.062.109
2001 8.070.413
2002 8.176.513
2003 8.845.558
2004 8.420.848
2005 9.097.910
2006 8.314.071
2007 8.144.902
2008 7.223.874
2009 8.584.458
2011 6.880.630
2012 6.406.735
2013 6.957.619
2014 7.571.693
*Descrito em número de pessoas169

No auge da hipertrofiação das finanças, a dívida pública tornou-se matriz para


efetuação das novas modalidades de expropriação do trabalho. Destarte, o mecanismo
elementar do movimento da hipertrofia das finanças, o sistema da dívida pública, de modo
pérfido se alimenta dos impostos e contribuições que constitucionalmente deveriam ser
destinadas ao custeio e manutenção das políticas sociais.
Assim, a renovação e ampliação da DRU têm um papel no circuito da dívida
pública brasileira, que foi e continua sendo o alicerce das novas modalidades de

169
MENEZES, André Costa. Entrevista realizada dia 27/11/2020, graduando em ciências econômicas pela UFF-
Campos dos Goytacazes. Fonte: IPEA
47
expropriação do trabalho, pela via da evasão dos recursos públicos, tirando a capacidade do
Estado de promover igualdade e dignidade aos seus partícipes.

3.3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A ATIVIDADE ECONÔMICA


A dignidade da pessoa humana é reconhecidamente aceito como o valor essencial
de um Estado Democrático de Direito. Na Constituição Federal de 1988, o princípio da
dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, incluído
dentre as chamadas decisões políticas fundamentais do legislador constituinte. 170
A consagração da dignidade humana como base de uma República implica o
reconhecimento do indivíduo como limite e fundamento do seu domínio político, cuja
organização existe para servir o homem. Denota o sentido de cooperação das pessoas na
condição de cidadão dentro da coletividade e de comunidade constitucional inclusiva,
segundo Joaquim Gomes Canotilho.171
Dentro da ordem econômica a dignidade humana desempenha um papel específico,
pois é alçada à condição de finalidade de toda atividade econômica, seja ela desenvolvida
como serviço público ou como atividade econômica em sentido estrito. A consagração da
dignidade humana como conteúdo finalístico da ordem econômica exerce papel de mais alto
relevo, possibilitando a adequada interpretação das diversas normas de Direito Econômico.
A suposição de que a distribuição constitui outro aspecto da norma, separado da
produção, é um equívoco provocado pela interpretação confusa da Constituição, que tem os
títulos da ordem econômica e da ordem social separados. 172 Antônio Augusto Cançado
Trindade desmistifica o equívoco provocado por esse entendimento, repudiando a visão
frag-mentada e atomizada dos direitos humanos. Segundo o autor, os direitos econômicos e
sociais, assim como os direitos culturais, compõem um todo único, indivisível e
inextrincável. 173
Eros Roberto Grau apresenta três sentidos diferentes à “ordem econômica”. Além
do sentido normativo, pelo qual ordem econômica expressa uma parcela da ordem jurídica
(mundo do dever-ser, tanto de ordem pública como de ordem privada, que não se resume

170
BAUER, Alyson Carlos Kley. Dignidade da pessoa humana e atividade econômica: considerações sobre
a aplicação de uma dogmática constitucional emancipatória sobre a ordem econômica. A&C-Revista de
Direito Administrativo & Constitucional, v. 6, n. 23, p. 109-134, 2007.
171
CANOTILHO, José Joaquim Gomes.. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 225-226. Apud
172
GRAU, Eros Roberto. Interpretação e Crítica. 8. ed. rev. eatual. São Paulo: Malheiros, 2003. Apud.
173
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Do Direito Econômico, aos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais.CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas (Org.)Constitucional: Estudos Jurídicos em Homenagem ao
Professor Washington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995. p. 11-16, 32-38.
Apud.
48
apenas à Constituição), aquela expressão pode significar o conjunto de todas as normas de
regulação do comportamento dos agentes econômicos, seja qual for a sua natureza, assim
como pode referir-se à articulação do econômico como fato (mundo do ser).174
As ciências sociais estudam tanto os sistemas reais como os sistemas ideais. Os
sistemas reais tratam do mundo do ser, ou seja, da maneira como a sociedade interage no
plano da realidade fática. Por serem objeto de descrição científica, os sistemas reais são
sistemas descritivos, uma vez que se limitam apenas a expor como as coisas são observadas.
Os sistemas ideais, por sua vez, ocupam-se da especulação sobre o mundo do dever-ser.
Como são concebidos para tratar de projeções desejáveis, os sistemas ideais são sistemas
normativos.
A ordem econômica na Constituição Federal de 1988, compreendida sob este
enfoque, define um regime intervencionista incidente sobre os fatos econômicos e sociais do
mundo do ser, de modo a implementar um Estado de bem estar reconhecidamente
inalcançável pela simples articulação das relações na realidade, a qual denuncia diversas
contradições inerentes ao próprio sistema capitalista.
Este modelo econômico é identificado ao longo da Constituição, especialmente nos
artigos 1º, 3º e 170, que evidenciam, em última análise, a necessidade da criação de
estruturas que assegurem e realizem a dignidade humana. A economia de mercado visa o
lucro, mas o Direito Econômico não se reduz à “condição de servidor da economia: “O
Direito Econômico não pode renunciar à realização da idéia de justiça e, consequentemente,
a influir na conformação das relações sociais, neste caso da ordenação da economia”.175
176,
A visão economicista do direito muito difundida pela mentalidade pós-
moderna,177 decorre de um entendimento compartimentalizado da realidade, que despreza a
complexidade e a multiplicidade das interações entre os diversos sistemas sociais. A teoria

174
Cf. GRAU, op. cit., p. 49 et. Seq. Apud.
175
DERANI, op. cit., p. 61 Apud.
176
Para Calixto Salomão Filho: o reduzido poder transformador do direito na esfera econômica e o conseqüente
determinismo deste sobre aquele pode ser explicado pela ausência de procedimentalidade no conteúdo das regras
econômicas. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito como Instrumento de Transformação Social e
Econômica.Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 15-44, abr./jun.2003. p. 16-17. Apud.
177
Entende-se por pós-modernidade a ideologia hegemônica do capitalismo videofinanceiro. De acordo com
Perry Anderson, as principais características da ideologia pós moderna são a ausência de distinção entre
esquerda e direita, a ciência como mero jogo de linguagem, a informação contando mais do que a produção, a
desmaterialização do dinheiro, a verdade confundida com desempenho, o relativismo cultural, o pluralismo e
ecletismo doutrinários, a submissão ao Deus mercado, as privatizações, a supremacia do espaço sobre o tempo, o
fim da história e da memória, a simulação da economia, o novo-riquismo, a ubiquidade do espetáculo pop, a
simbiose entre a cultura e o comercio, a pornografia de massa, a diminuição do afeto, a recusa das causas e da
gênese das coisas, a impotência cívica do voto, o banco dominando a fábrica. ANDERSON, Perry. Tradução de:
Marcus Penchel.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, [199?]. passim apud VASCONCELLOS, Gilberto. Vanguarda
Pós-moderna. Apud.
49
do Direito não é uma teoria da Economia. Ao desprezar os demais níveis sociais, o
economicismo evidencia sua limitação, postura esta compatível apenas com o direito
burguês. 178 Direito é prática social, assim como é a Política e a Economia. Como afirma
Cristiane Derani:
O direito unicamente como um sistema de regras não se aplica ao direito econômico.
Ele só realiza plenamente as suas potencialidades à medida que trabalha com as
normas de prática econômica, que, por sua vez, somente po-dem ser compreendidas
como prática social, pois aquela é parte deste todo. (...) não é a soma das vontades
individuais que forma a vontade coletiva. São necessários instrumentos que
resguardem e promovam uma atitude social. E o direito econômico deve, como
norma social, que é a norma jurídica, garantir tais interesses. A natureza pública das
suas normas e os poderes privados a que se dirigem formam os dois pólos do direito
econômico.179
Vinícius Moreira de Lima adverte sobre o enaltecimento do tecnicismo do Direito
em face do caráter político e teleológico das normas jurídicas, dominado pelo aspecto
formal da razão instrumental. Segundo o autor, é questão ontológica do Direito Econômico
superar as diferenças e orientar socialmente a coletividade. 180
Se os conflitos são a própria “matriz da história”, não estando ausentes da realidade,
como sucede no campo econômico, o Direito se constitui como uma instância mediatizada
de uma relação de forças, tal como demonstrado por Clèmerson Merlin Clève a dogmática
jurídica não pode mais ser vista apenas como uma racionalidade instrumental, cabendo a ela
indagar, criar e construir o Direito.
No modelo liberal, atribuía-se ao Direito a tarefa de fixar as estruturas da sociedade,
conferindo às forças produtivas a previsibilidade e a racionalidade que a circulação
econômica almejava. Embora a defesa das estruturas capitalistas continue sendo função
essencial do Direito, as normas jurídicas vêm assumindo uma postura de ordenação das
situações conjunturais e de implementação de políticas públicas.
Com o surgimento das Constituições dirigentes, as normas deixaram de ser
essencialmente instrumentos de governo, passando também a determinar tarefas, estabelecer
programas e definir fins, ao contrário das Constituições estatutárias, que se contentavam em

178
CLÈVE, Clèmerson Merlin. O Direito e os Direitos: Elementos para uma Crítica do Direito
Contemporâneo.CuriCuritiba: Scientia et Labor, 1988. p. 110-111. Apud.
179
DERANI, op. cit., p. 64. Apud.
180
LIMA, Vinícius Moreira de. O Alcance Social do Direito Econômico. CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas
(Org.). Desenvolvimento Econômico e Intervenção do Estado na Ordem Constitucional: Estudos Jurídicos
em Homenagem ao Professor Washington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
1995. p. 185-186. Apud.
50
definir o estatuto dopoder. Constituição dirigente é a Constituição que estabelece um plano
para dirigir uma evolução política, caracterizada por conter normas programáticas. 181
Na medida em que informam o regime político e que apontam os fins sociais para a
aplicação da lei, evidencia-se a peculiaridade das normas programáticas, cuja eficácia
interpretativa ultrapassa, nesse ponto, as outras do sistema constitucional. Segundo José
Afonso da Silva, as normas programáticas importam a tentativa de instauração de um regime
de democracia substancial, “ao determinarem a realização de fins sociais, através da atuação
de programas de intervenção na ordem econômica, com vistas à realização da justiça social e
do bem comum”. 182
A tese de que tais normas encontram-se destituídas de juridicidade está sendo
amplamente combatida. Regina Maria Macedo Nery Ferrari afirma que as normas
programáticas possuem força normativa como qualquer outro dispositivo constitucional,
estando aptas a criarem direitos subjetivos. 17 Nessa mesma linha de raciocínio, mas tratando
especifica-mente das normas de cunho social e econômico, Cristiane Derani defende a
aplicabilidade direta destas normas constitucionais, independentemente de regulamentação
por lei ordinária. 183José Afonso da Silva sobre as normas programáticas quando possuem
eficácia jurídica imediata, direta e vinculante:
I) estabelecem um dever para o legislador ordinário; II) condicionam a legislação
futura; III) informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua
ordenação jurídica; IV) constituem sentido teleológico para a interpretação,
integração e aplicação das normas jurídicas; V) condicionam a atividade da
Administração e do Judiciário; VI) criam situações jurídicas subjetivas, de
vantagem ou de desvantagem.184

É importante frisar que a escassez é inerente ao capitalismo, e sempre vai existir


nesse sistema. Como pondera Gustavo Amaral, “…há pretensões fundadas em direitos
fundamentais cuja satisfação demanda a disponibilização de meios materiais, como esses
meios são finitos, surge a questão da escassez. (…) Escassez, divisibilidade e
homogeneidade dos meios materiais desafiam a visão igualitária de tratamento igual para
todos”.185

181
Normas programáticas são normas de organização, que dispõem sobre a estrutura e funcionamento de órgãos
ou sobre a disciplina de processos técnicos de identificação e aplicação de normas. Ib. p. 112
182
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
157. Apud.
183
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas Constitucionais Programáticas: Normatividade,
Operatividade, e Efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais,2001. p. 222-223. Apud.
184
SILVA, op. cit., p. 164. Apud
185
Cf. AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha: em Busca de Critérios Jurídicos para Lidar com a
Escassez de Recursos e as Decisões Trágicas. São Paulo: Renovar, 2001. p. 133-135. Apud
51
Para fazer frente a essa constatação e não realizar políticas injustas, o Estado é
dotado de instrumentos de incentivo, planejamento, de estruturação de serviços e de ação, os
quais devem ser manejados em função de assegurar a todos existência digna.Desta forma, , a
dignidade humana impõe tratamento eqüitativo de todos em sociedade, exigindo estruturas
que assegurem e realizem essa igualdade, assim como a utilização racional de todos os
recursos públicos.186
Sendo uma norma-objetivo, na acepção de Eros Roberto Grau, a dignidade humana
define uma obrigação de resultado, cabendo aos seus destinatários optarem pelos meios e
formas de comportamento que pretendem dinamizar em busca daquela realização.187
Ainda que o artigo inaugural da ordem econômica seja marcantemente
principiológico, o exame deste dispositivo em sua totalidade denuncia a existência de
normas que desempenham funções diversas no processo econômico.
Ao proceder-se dessa forma, percebe-se que a dignidade humana, conforme os
ditames da justiça social, por ser a finalidade da ordem econômica, possuem um âmbito de
atuação distinto dos demais preceitos contidos no artigo 170. Essa diferenciação funcional
pode ser constatada em diversos autores, variando apenas o modo com que cada qual
classifica sua análise.
Segundo Cristiane Derani, enquanto a dignidade humana indica uma causa final
para a qual o processo econômico deva ser conduzido, os princípios da propriedade privada,
da função social da propriedade, da livre iniciativa e da livre concorrência são destinados a
estruturar a organização da sociedade. 188 Por isso a autora chama a dignidade humana e os
ditames da justiça social de “princípios-essência”189 e os demais princípios enunciados
anteriormente de “princípios-base”, “princípios impositivos” e “princípios políticos
constitucionalmente conformadores”.
Luís Roberto Barroso agrupa os princípios do artigo 170 em “princípios de
funcionamento” (soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade,
livre concorrência, defesa do consumidor, e defesa do meio ambiente) e “princípios-fins”

186
JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de Interesse Público e a “Personalização” do Direito Administrativo.
Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 26, p. 115-136. p. 130-13. Apud
187
GRAU. Norma..., p. 442-445. p. 443. Apud.
188
DERANI, op. cit., p. 248. Apud.
189
“Princípios-essência são prescrições normativas constitucionais, destinadas a traduzir valores sobre os quais
se formam a sociedade. Conferem um caráter determinado, uma feição, ao ordenamento jurídico. São preceitos
que garantem coesão no processo de aplicação das normas jurídicas, pois traduzem uma ética social de
atuação, informam o conteúdo da norma, texto normativo aplicado, por constituírem o núcleo orientador da
interpretação,. Sua modificação altera forçosa,mente o caráter essencial da sociedade. Ib. Apud.

52
(existência digna para todos, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno
emprego, e expansão das empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e
que tenham sua sede e administração no país). 190
A introdução de normas-objetivo na Constituição tem a significativa importância de
“transmutar” fins sociais e econômicos em fins jurídicos. Desta forma, a “postulação de
norma-objetivo tem o mérito de introduzir no universo normativo a consideração dos fins
perseguidos pelo sistema, permitindo desenvolva-se a análise jurídica conforme e segundo
padrões teleológicos perfeitamente juridicizados”. 191
Embora as classificações sejam distintas, todas elas reconhecem a supremacia da
dignidade humana frente aos demais princípios. Tal supremacia não quer indicar a existência
de uma hierarquia dentro da Constituição, mas sim uma ascendência axiológica e funcional
da dignidade humana sobre os demais princípios, mais ou menos ampla conforme a espécie
de norma tratada.
Como um comando legal somente se torna legítimo quando e se possuir exata
correspondência com os princípios, Salomão Viana afirma que a legitimidade das normas de
conteúdo econômico “consiste na circunstância de se encontrar, num dado momento, numa
norma que discipline situações jurídicas cujo conteúdo seja a produção, uma
correspondência entre o comando nela consubstanciado e os princípios que, também naquele
momento, regem a sociedade”. 192
Ao comentar sobre os princípios-base da ordem econômica, Cristiane Derani
assevera que “o conteúdo do princípio da função social da propriedade e dos demais incisos
do artigo 170 e a sua verificação na realidade revelam-se basilares para a consecução do
valor máximo da ordem econômica: assegurar a todos existência digna — princípio-essência
do Estado Brasileiro”.193 Especificamente sobre o princípio da livre iniciativa, elencado pela
Constituição Federal como um dos fundamentos da ordem econômica, pondera a autora:
a comunhão da finalidade da atividade econômica, precipuamente privada, com a
finalidade perseguida pelo Estado poderia ser sucintamente desdobrada no ideal de
melhoria do ser humano como indivíduo e como integrante de uma sociedade,
garantindo-lhe meios para o desenvolvimento de suas capacidades. Isto levaria a

190
BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços.
Revistade Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 226, p. 187-212, out./dez. 2001. p.193-196. “Em linhas
gerais, os princípios de funcionamento estabelecem os parâmetros de convivência básicos que os agentes da
ordem econômica deverão observar. Os princípios-fins que por sua vez, descrevem realidades materiais que o
constituinte deseja sejam alcançadas”. Ibid., p. 193. Apud.
191
GRAU. Norma..., p. 442. Apud.
192
VIANA, Salomão. A Legitimidade das Normas de Conteúdo Econômico e a Função Jurisdicional.
Salvador, n. 7, p. 331-348, jan./dez. 1999. p. 344. Apud.
193
DERANI, op. cit., p. 249. Apud.
53
conclusão de que a produção privada de riqueza não pode estar no Estado
brasileiro dissociada do proveito coletivo.194

Resta claro que a Constituição vigente zela pelo principio da dignidade da pessoa
humana para direcionar sua interpretação, mesmo e inclusive no que tange ao direito
econômico fundamentalmente, considerando que na realidade experimentada pelo modo de
produção capitalista é inerente a questão da desigualdade, a hermenêutica jurídica deve ter
como função a promoção da igualdade e da justiça.

194
Ibid., p. 252.Apud.
54
CONCLUSÃO

A história da formação inicial da dívida pública e sua função no mercado mundial


nos dias atuais possuem uma complexa cadeia de fatos que desembocam numa situação de
extrema relevância para a sociedade, pois, o princípio fundamental que consta da
constituição de 1998 onde se tem que uma nação autônoma possui soberania, se percebe que
tal principio fica notoriamente mitigado em uma inserção quase forçada num mercado com
tendências cada vez mais globalizadoras.
As economias mais vulneráveis são aquelas que na divisão internacional do
trabalho são produtoras de commodities. Portanto, apesar de se defrontar com relativa
abundância de recursos, se desperdiça a oportunidade de transformar a economia brasilera.
Não são poucos os exemplos de países que, como o Brasil, permanecem quase que
absolutamente dependentes de um recurso exaurível como o petróleo – a exemplo de Guiné
Equatorial, Nigéria, Angola, Venezuela – e que estão aprisionados a uma aparente maldição
que se expressa por erros sistemáticos de política econômica, uma alocação de investimentos
públicos de baixo retorno social e a incapacidade dos governos de gerir adequadamente os
recursos. O ciclo do endividamento publico nasce com o objetivo justamente de o Estado ter
a capacidade de investir para o crescimento econômico do país.
Entretanto o que se percebe de fato é que o instrumento da dívida é utilizado pelas
nações mais desenvolvidas economicamente para a manutenção de um sistema
neocolonialista, expropriando riqueza líquida dos Estados dependentes de capital externo
para sobrevivência de suas economias.
O Brasil, país de dimensões continentais, onde tudo que se planta brota, não é capaz
de se sustentar autonomamente, quais seriam as razões naturais para isto? Aparentemente
nenhuma. Entretanto, estar inserido em um mundo globalizado, principalmente após a queda
do muro de Berlim, é estar preso aos ditames da economia capitalista que é genuinamente
desigual.
Precisamos produzir soja para o mundo 195 para que possamos comprar tecnologia
daqueles que possuem capacidade para desenvolver, o que não podemos fazer melhor, pois
ainda estamos preocupados – se é que estamos - em alimentar os que têm fome, educar os

195
A projeção é que o Brasil se mantenha como o maior produtor mundial de soja. A produção para a safra de
grãos 2020/2021 é estimada em 133,7 milhões de toneladas. Disponível em: https://www.gov.br/pt-
br/noticias/agricultura-e-pecuaria/2020/10/brasil-deve-ter-novo-recorde-de-producao-na-safra-de-graos-2020-
21#:~:text=Conab%2C%20Guilherme%20Bastos.-,Soja,133%2C7%20milh%C3%B5es%20de%20toneladas.
Acesso em 20/11/2020.
55
que não possuem acesso à educação, no geral, o Estado não é capaz de promover o mínimo
social.
Interpretar a Constituição vigente sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana
ao fazer a análise do que se gasta em pagamento de dívida em comparação ao que se investe
no social em países que são notoriamente precários como o Brasil levanta o debate sobre
como o Estado de Direito brasileiro é vulnerável.
A soberania estatal é um principio basilar que deve ser resguardado, inclusive tendo
mais espaço no direito internacional que tende a generalizar o conjunto de normas
internacionais com a justificativa de uma segurança jurídica que de fato não ocorre, e, acaba
se tornando um instrumento contra-produtor no sentido de que, algumas vezes, como no
direito internacional econômico, não observa as especificidades de cada país e não se mostra
tão preocupado com o nível de endividamento- enforcamento – que determinadas soberanias
impõem às outras.
O neolioberalismo não funciona tendo como base a autonomia de todas as nações,
e, em sendo a autonomia princípio fundamental do Estado Soberano, por indução se conclui
que o neoliberalismo é nefasto para o Estado Democrático de direito se utilizando da dívida
pública para instrumentalizar a desigualdade entre as nações.
A idéia que se propõe é que finanças públicas não cumprem somente a função de
financiamento dos gastos públicos, mais acrescem duas outras funções: i) a de regulação
interna do sistema de crédito, com o uso das reservas fiscais, como importante componente
das reservas monetárias que determinam a dinâmica do capital de empréstimo, além da
emissão e reciclagem de títulos públicos como meio de mobilização do capital monetário de
empréstimo; ii) o sistema de divida pública atua na função de absorção e destruição de
capital de empréstimo como fator anticiclico do sistema, prejudicando os países em
subdesenvolvidos que são inseridos nesta dinâmica.

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