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UNIÃO DAS INSTITUIÇÕES DE SERVIÇOS, ENSINO E

PESQUISA- UNISEPE
FACULDADES INTEGRADAS DO VALE DO RIBEIRA (FVR)
CURSO DE DIREITO

NUBIA FRANCIELLE MEY WOLF FORMES

O SIGNIFICADO REAL DO PAPEL DO MINISTÉRIO


PÚBLICO JUNTO À COMUNIDADE

Registro – SP
2017
NUBIA FRANCIELLE MEY WOLF FORMES

O SIGNIFICADO REAL DO PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO À


COMUNIDADE

Trabalho de conclusão de curso


apresentado à União das Instituições de
Serviços, Ensino e Pesquisa – UNISEPE
– Faculdades Integradas do Vale do
Ribeira (FVR), como requisito parcial para
obtenção do grau de bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dra. Monike Borges

Registro - SP
2017
TERMO DE APROVAÇÃO

NUBIA FRANCIELLE MEY WOLF FORMES

O SIGNIFICADO REAL DO PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO À


COMUNIDADE

Trabalho de conclusão de curso aprovado como requisito parcial para a obtenção do


grau de Bacharel no curso de Direito da União das Instituições de Serviços, Ensino e
Pesquisa – UNISEPE – Faculdades Integradas do Vale do Ribeira (FVR), pela
seguinte banca examinadora:

Coordenadora do Curso de Direito

Soraia Castellano

Banca Examinadora

Professor Orientador:

Professor Examinador:

Professor Examinador:
Registro, ___ de ________ de 2017.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a União das Instituições
de Serviços, Ensino e Pesquisa – UNISEPE – Faculdades Integradas do Vale do
Ribeira (FVR), a Coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o
Orientador, de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Registro/SP, de novembro de 2.017.

Nubia Francielle Mey Wolf Formes


Dedico este trabalho

AGRADECIMENTO

À Professora Orientadora, pela ajuda em todas as etapas deste trabalho pela


sua atenção e dedicação.
A minha família, pela confiança e motivação e compreensão pela ausência
involuntária.
Aos amigos e colegas, pela força e pela vibração com o meu sucesso em
relação a esta jornada.
Aos professores e colegas de curso, pois juntos trilhamos uma etapa
importante de nossas vidas.
A todos que, com boa intenção, colaboraram para a realização e finalização
deste trabalho e aos que não impediram a finalização deste estudo.
RESUMO

Palavras-chave: Infanticídio, Concurso de pessoas no infanticídio, Exceção


pluralista à teoria unitária.
ABSTRACT

Key-words: Infanticide, Competition people in infanticide, pluralistic exception


to the unitary theory.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................00
1. ASPECTOS HISTÓRICOS ..............................................................................00
1.1 ESTADO..........................................................................................................00
1.2 DICOTOMIA DO PÚBLICO E PRIVADO............................................... ........00
1.3 DIREITO POSITIVADO...................................................................................00
2. DIREITO PÚBLICO E PRIVADO......................................................................00
2.1 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA..........................................................................00
2.2 SERVIÇOS PÚBLICOS...................................................................................00
3. TERCEIRO SETOR...........................................................................................00
3.1 TRAJETÓRIA EVOLUTIVA.............................................................................00
3.2 CATEGORIA DO TERCEIRO SETOR NO BRASIL........................................00
3.3 IMUNIDADE E INSENÇÃO TRIBUTÁRIA.......................................................00
3.4 ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DA ENTIDADE......................................00
4. A UNIVERSALIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA FUNÇÃO CONTRIBUTIVA
NO TERCEIRO SETOR........................................................................................00
4.1 MINISTÉRIO PÚBLICO...................................................................................00
4.2 FUNÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E A LEGISLAÇÃO............................00
4.3 APLICABILIDADE DA FUNÇÃO CONTRIBUTIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
NO SEGMENTO DO TERCEIRO SETOR............................................................00
4.4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS À LUZ DO PRINCÍPIO DA
EFICÁCIA..............................................................................................................00
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................00
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................00
11

INTRODUÇÃO

Na longa trajetória do Estado pode-se dizer que por meio de instrumentos de


controle se instalou o Absolutismo. Após, na busca de uma nova concepção soba a
forma de um Estado Liberal, a sua interferência opressora deixou de se fazer
presente na vida dos indivíduos. Na sequência, o Estado toma para si a
responsabilidade da sua atuação no âmbito econômico e social da sociedade, o que
possibilitou a formação de novas parcerias, estabelecendo a interação entre público
e privado.
Tudo isso fez parte da sua formação. Em face dessa perspectiva é que se
pretende tratar deste instituto, a partir do contexto histórico desde a Antiguidade.
Em relação ao Brasil, impõe-se a necessidade de trazer à tona indagações
como: O papel da Administração Pública na organização do Estado; A prestação dos
serviços públicos no sistema de descentralização; A trajetória evolutiva do terceiro
setor, voltado para o interesse da sociedade por meio de bens ou serviços sem fins
lucrativos, a legislação brasileira, a imunidade e a isenção tributária que o ampara.
Na verdade, a partir da ordem referendada vai ser possível estabelecer o
foco da proposta, sob o enfoque do tema: “O significado real do papel do Ministério
Público junto a comunidade”. Inclusive, buscando nos dispositivos legais da
Constituição Federal de 1988, da Constituição de São Paulo de 5 de outubro de
1989 e na Lei Complementar Estadual n° 734 de 26 de novembro de 1993, que
disciplina as atribuições do Ministério Público, a possibilidade desse utilizar-se de
procedimentos próprios de maneira a que seja possível a interatividade de ações
com o terceiro setor.
Por outro lado, a visão que se tem do Ministério Público como órgão que só
intervém, quando há denúncia ou por meio de ação civil pública, por certo provoca
um distanciamento entre aqueles que oferecem o serviço e esse, cuja
responsabilidade é a defesa da ordem jurídica. Em vista de tudo isso, o presente
trabalho de conclusão de curso espera encontrar uma proposta que possibilite a que
o Ministério Público possa ser qualificado como agente que soma na prestação do
serviço à comunidade como terceiro setor.
Os dados colhidos sob uma forma ou outra, vão servir de subsídio último a
que este trabalho se propõe: detectar a problemática que envolve as necessidades
12

das organizações sociais, com vistas a que essas por meio desse instrumento
possam servir com maior eficiência aqueles que se utilizam dos seus serviços. Sem
dúvida, essa é a possibilidade do Estado estreitar laços com aqueles que estão sob
a sua proteção.
13

1. ASPECTOS HISTÓRICOS

1.1 ESTADO

1
Bobbio nos traz que em verdade, é quase impossível manter certo
distanciamento entre a figura do Estado e aqueles que estão sob a sua tutela. Prova
disso é a linha condutora que une, desde a formação da civilização, fundamentada
em hipóteses, por meio das teorias teológico-religiosas.
Segundo o autor há, no caso, a teoria mais antiga, derivada do núcleo
familiar, a qual com base no cunho religioso teria determinado a origem do Estado.
Assim, dessa concepção se estabeleceria a gênese da sociedade. No entanto, esse
é um ponto controvertido para alguns doutrinadores que pressupõem a formação do
Estado por meio de reunião de inúmeras famílias, quando da formação de “gens”,
compondo a “fratria” e destes grupos a “tribos”, constituída em “polis”, chamada
Estado-Cidade que evoluiu para o Estado nacional ou plurinacional 2.
Na sequência, a teoria patrimonial surgiu na sociedade, em razão da
necessidade do indivíduo estabelecer domínios próprios, em busca da proteção dos
seus próprios direitos. Portanto, a imposição da força sobrepunha a vontade dos
3
mais fracos. Comentando o assunto, dizia Maluf que o que dá origem ao Estado é
a violência dos mais fortes. Ademais, outro aspecto a ser considerado na época
eram as teorias teológico-religiosas, racionalistas (jusnaturalismo/contratualismo),
idealistas (panteísmo/organicismo/neopanteísmo), socialistas (totalitárias) e sociais
democráticas.
Na oportunidade mereceram destaque os pensadores Hugo Grocio,
Emmanuel Kant, Thomas Hobbes, Benedito Spinoza, John Locke, Jean Jacques
Rousseau, Edmundo Burke. É imprescindível que se faça referência à qualidade de

1
BOBBIO, Norbeto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo:
Paz e Terra, 2007, p. 89.
2
BOBBIO, Norbeto.Ibidem.
3
MALUF, Sahid.Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 54.
14

“Civitas” (Estado-municipal), a instituição do Consulado, a criação de magistratura e


pró-magistratura, além da instituição da Ditadura 4.
Para coibir com os abusos da autoridade passou a ser instituído o sistema
de Magistratura Colegiada. Na sequência, instalou-se o principado com propósito de
instaurar a paz.
Chaui 5. leciona que com o início da Idade Média surgiu o feudalismo,
quando a organização política apresentou uma significativa decadência na
organização política. Nessa nova ordem por mais que o senhor feudal detivesse a
prerrogativa de chefe do Estado a sua competência se vinculava ao direito privado,
procedimento que, por certo, causava dano ao povo. Além do mais, a igreja romana
passou a assumir, a partir do século VI, um papel significativo, instituindo um poder
soberano sobre o próprio soberano, ao ponto de o representante eclesiástico
sobrepor a sua vontade sobre o imperador. Santo Tomás de Aquino deixou claro
essa subjugação na obra “De regime principium” e, ainda, em “Summa Theologia”.
Com a dissolução do feudalismo apareceram as monarquias absolutistas,
quando passou a ser travada uma disputa pelo poder entre a Igreja e o Estado.
Nicolau Maquiavel marcou a sua presença naquele tempo por meio das obras
“Discurso sobre Tito Lívio” e “O Príncipe” sendo a última repudiada pela igreja
romana 6.
Por outro lado, o absolutismo monárquico, marco para os tempos modernos,
trouxe consigo a ânsia por um novo Estado, caracterizado pela supremacia do poder
do soberano. As figuras representativas da doutrina absolutista no século XVI eram
Jean Bodin e Giovanni Botero 7. Uma outra linha de pensamento, em contraposição,
se visualizava em John Locke que priorizava a vontade do povo, face a vontade do
soberano. Daí a obra “Segundo Tratado do Governo Civil” em que se traçava a
distinção entre o legislativo e o executivo. Ele ainda assegurava que deveria haver
um contrato social entre as partes (rei e povo), de forma a que fosse rompido,
quando da violação das cláusulas. Assim, a vontade do monarca passava para um
plano secundário, pois ao povo e à Nação eram depositadas as prerrogativas de
domínio, o que possibilitava a substituição dom poder privado pelo poder Estatal 8.

4
CHAUI, Marilena. Iniciação a Filosofia. São Paulo: Ática, 2013, p. 43.
5
CHAUI, Marilena. Ibidem.
6
CHAUI, Marilena. Ibidem, p. 47.
7
CHAUI, Marilena. Ibidem
8
TOMAZI, Nelson Dacio. Iniciação ao estudo de Filosofia. São Paulo: LTD, 1993, p. 72
15

9
De acordo com Rezende em perspectiva diversa nasceu o Liberalismo na
Inglaterra, na busca por uma nova concepção de Estado. Com “Bill of Rights” (1689)
estabeleceram-se princípios que visavam proteger direitos do indivíduo assim como
restringiu os atos do soberano. Os E.U.A. passaram a receber influência, quando da
adequação desses princípios na Declaração de Virgínia (1776), na Constituição
Federal (1787) e nas Constituições Estaduais. A liderança do movimento na França
contou com a liderança de D’ Argenson, Montesquieu e Voltaire. A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão foi promulgada e posteriormente, a primeira
Constituição da República (1791) e em seguida (1793) a segunda, denominada
Gerondina.
Com efeito, a partir desse momento o direito de liberdade passou a se
integrar a esses textos constitucionais.
Porém, é preciso enfatizar que, apesar das perspectivas serem as melhores
possíveis, essas não chegaram a atingir seu ápice, pois tudo aquilo que fora
proposto pelo Estado Liberal não passara de projeção perdendo-se no tempo 10.
Daí as consequências danosas, a exemplo da revolução industrial revestida
do desemprego em massa, o que condicionou a que mulheres e crianças se
lançassem no mercado de trabalho a procura da sua subsistência. A falta de uma
seguridade social impunha ao trabalhador a miséria, quando acometido de doença
e/ou no momento em que os anos arcavam seu corpo em consequência da velhice.
Há ainda, que considerar o domínio da economia dos monopólios, “trusts” e cartéis,
o que tornava o rico mais rico e o pobre a condição de miserabilidade. Com a
encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII (1891) esse quadro passou a ser
repensado com o propósito de procurar o equilíbrio social 11.
Já o Estado Liberal, face ao comunismo russo, em contraposição ao facismo
e ao nazismo que, de certa forma, procuravam reagir contra a decadência liberal,
levou a formação do Estado Social Democrático, capaz de intervir na ordem
econômica. A partir do século XVIII o socialismo surgiu como reação ao liberalismo.

9
REZENDE, Maria José de,. A liberdade e a igualdade nas teorias da democracia nos séculos
XVIII e XIX. São Paulo: Revista Mediações, 1997, p. 25-33.
10
REZENDE, Maria José de,. Ibidem.
11
CHAUI, Marilena. Iniciação a Filosofia. São Paulo: Ática, 2013, p. 52.
16

Os pensadores Max e Engels deixaram a sua contribuição por meio da obra


“Manifesto Comunista” o que passou a dar um real significado ao socialismo. Outra
fonte de contribuição para a época foi a obra “O Capital” 12.
13
De acordo com Chaui após, instalou-se o facismo, cujo interesse era de
reformar as bases do Estado Moderno. O interesse do indivíduo foi sobreposto pelo
interesse do Estado. Consequentemente, aqueles que eram contrários a esta
ideologia estavam sujeitos às penalidades impostas pelo poder de mando e
desmando. O discurso opressor do facismo na Itália, sob o mando do nazismo,
alojou-se na Alemanha. Por certo, ambos se propunham a combater o liberalismo
democrático decadente e de reagir contra a infiltração comunista. Sem dúvida o
poder pelo poder passou a predominar até as ultimas consequências. Para tanto,
Adolph Hitler assumiu um regime ditatorial, ao ponto de todos os demais partidos se
dissolverem sob a sua ordem. Muitas questões de ordem racista serviram de suporte
para seu desvario, a procura de uma raça superior ariana, o que veio a propiciar a
destruição dos valores do indivíduo 14.
O totalitarismo da direita se inseriu na Europa após a Primeira Guerra
Mundial, chegando à América Latina. Com base nos interesses voltados para a
população, no seu todo, integraram aos estados novos, o estado turco, o estado
15
polonês, o estado português, o estado novo brasileiro e o estado argentino . Claro

que com características próprias, que segundo Tomazi 16 como as de:

a) Concentração de toda a autoridade nas mãos de um chefe supremo; b)


Restrições às liberdades públicas e regime de censura; c) Prevalecimento
do interesse coletivo sobre o individual; d) Partido único; e) Dirigismo
econômico; f) Estatismo, nacionalismo ou racismo, como objetivo moral do
Estado.

17
Conforme Odete Medauar o Estado do século XIX sob o ponto de vista
interno não pressupõe a imagem do soberano sob o domínio do monarca, mas sim:

Apresenta-se, do ponto de vista interno, como soberano: dele partem e nele


se depositam com exclusividade todas as faculdades e prerrogativas de
domínio, exercidas não mais por vontade do monarca, mas em nome do
12
CHAUI, Marilena. Iniciação a Filosofia. São Paulo: Ática, 2013, p. 56.
13
CHAUI, Marilena. Ibidem, p. 57.
14
CHAUI, Marilena. Ibidem.
15
TOMAZI, Nelson Dacio. Iniciação ao estudo de Filosofia. São Paulo: LTD, 1993, p. 85
16
TOMAZI, Nelson Dacio. Ibidem.
17
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo, RT, 2012, p. 216.
17

povo ou da nação. Existe, assim, unidade e centralização do poder ao


mesmo tempo em que o comando político se despersonifica; o poder
pessoal é substituído pelo poder estatal.

Daí o Estado se consagrar pela garantia assegurada ao indivíduo de direitos,


de liberdade, igualdade política e jurídica. Enfim, tudo o que possa assegurar a
garantia dos direitos individuais aliado ao desenvolvimento científico, econômico e
técnico do Estado. Por outro lado, em contraposição aos benefícios, se inseriram
malefícios, a exemplo da revolução industrial que trouxe consigo a exploração do
trabalho. É interessante frisar que no final do século XIX, esses acontecimentos,
gradativamente, foram dando lugar a um outro comportamento do Estado, que
passou a editar leis de proteção social com garantias individuais, sem deixar de
estabelecer limites para assegurar a segurança coletiva 18.
19
Medauar leciona que no século XX precisamente na segunda metade
surgiram transformações que propiciaram condições de um sistema político, formado
por partidos estabilizados por sua própria ideologia. Os partidos socialistas
passaram a contribuir para a formação de sindicatos que de alguma forma passaram
a pressionar o Estado em busca de reinvindicações que efetivassem normas no
texto constitucional. Sob a perspectiva do bem-estar, com as qualificações de estado
social democrata, estado assistencial ou várias outras, o que havia era a
preocupação com a ordem pública na medida que visava a proteção do indivíduo.
Não obstante, a preocupação do Estado com o bem-estar, esse não deixou
de ser alvo de críticas tanto de Garcia Pelejo, quanto de Gianini e outros, segundo
Odete Medauar 20.
O Estado do século XXI se apresentava com as características de Estado
negociador. No entanto, apesar do papel cooperativo, esse não deixou de sofrer os
efeitos resultantes da mudança do século XX.
Para tanto há a considerar a globalização que trouxe consigo também
consequências que segundo Bobbio 21 são da ordem de:

A as forças econômicas internacionais, que passava a influenciar nas


decisões internas; b) A influência do Banco Mundial e do FMI nas políticas
em desenvolvimento; c) Mercosul, não sendo INDA UM REGIME DE

18
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo, RT, 2012, p. 220.
19
MEDAUAR, Odete. Ibidem, p. 222.
20
MEDAUAR, Odete. Ibidem, p. 245.
21
BOBBIO, Norbeto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo:
Paz e Terra, 2007, p. 124.
18

GESTÃO comunitária; d) Internalização do direito de regra, a harmonização


de conceitos e soluções. Em alguns âmbitos isto vem acolhido com agrado,
como é o caso dos Direitos Humanos e do meio ambiente, mas sob outros
aspectos, não se deseja a internacionalização e se parte para a defesa da
nacionalização; e) A ascensão crescente do mercado se torna o dado
fundamental na tomada de decisões dos governantes; f) O estado do bem-
estar está sendo massacrado pela engrenagem da maquina econômica; g)
“déficit” de democracia, caráter cada vez menos transparentes da adoção
de politicas econômicas, monetárias, cambiais, fiscais, comerciais.

22
Há ainda a considerar segundo Odete o neoliberalismo, associado à
globalização que sob a influência do banco Mundial e do FMI, estendeu-se para a\
Europa e países em desenvolvimento. A chamada privatização reduz o espaço do
Estado na sociedade, quando então se visualiza a:

Venda de estatais, quebra de monopólios políticos, forte utilização das


concessões e permissões de serviços públicos, aumento das parcerias,
suavização das formas de intervenção estatal na economia, incentivo à auto
regulação, estimulo á maior atuação dos particulares na área social (grande
desenvolvimento do chamado Terceiro Setor).

Nesta perspectiva, é possível estabelecer a extensão da natureza do estado


de direito que tem sob si a dinâmica da aproximação da dicotomia publico/privado.

1.2 DICOTOMIA DO PÚBLICO E DO PRIVADO

No absolutismo a pessoa do monarca passa a dar lugar ao poder político do


Estado, estabelecendo-se assim o diferencial entre o público e o privado. De acordo
com essa concepção o bem público é de todos, portanto não pertence a alguém em
particular, consequentemente, deve ser acessível a todos, em contraposição ao
privado 23.
Segundo Norberto Bobbio24 os termos público e privado fazem parte do
pensamento político e social do Ocidente. Do seu ponto de vista, sob o enfoque da
linguagem comum, o interesse público é determinado imediatamente em contraste e
em relação com o interesse privado e vice-versa. Há, portanto, uma reciprocidade
entre ambos, pois a esfera de um vai até onde se inicia a esfera do outro. Por

22
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo, RT, 2012, p. 220.
23
CHAUI, Marilena. Iniciação a Filosofia. São Paulo: Ática, 2013, p. 97..
24
BOBBIO, Norbeto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo:
Paz e Terra, 2007, p. 248.
19

consequência, a partir do momento em que aumenta a esfera de um deles, por certo


diminui a esfera do outro.
Na dicotomia do público e privado existe um significado valorativo, pois no
momento em que é atribuído um significado valorativo positivo a um, o outro passa a
adquirir significado negativo, e vice-versa.
25
De acordo com Odete Medauar , o Estado passou a agir de forma
intervencionista no setor social e econômico o que propiciou o chamado processo de
publicização do privado, a Economia passou a receber influência da política, assim
como o Estado passou a ser pressionado pelos grupos privados, grandes
organizações e associações. Também passaram a “colaborar na gestão de
atividades de interesse geral, a solucionar problemas mediante acordos e
negociações, gerando a chamada privatização do público”. 26
De modo geral, observa-se que o processo de privatização do público e de
publicização do privado se inter-relaciona com os interesses privados, num contexto
de compatibilização, sem que deixem de estar em consonância com o direito
positivado.

1.3 DIREITO POSITIVADO

De acordo com Bobbio27 a expressão “direito positivado” é encontrada


somente nos textos latinos medievais. A trajetória histórica do positivismo, depara-se
com duas características que foram fundamentadas no período de transição da
Idade Moderna para a Idade Contemporânea, conhecida como Modernidade. Uma
era o racionalismo que postulava a primazia da razão. Assim, só se aceitava como
válido aquilo que estava estritamente ligado á categoria do fundamento lógico. Era o
chamado Cartesianismo, visão metódica cartesiano-matemática do processo de
construção do conhecimento. Nessa fase, século XVIII, surgiu o grupo de
iluministas, nas figuras de Montesquieu, Kant, entre outros. Eles se atinham à ideia

25
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo, RT, 2012, p. 253.
26
BOBBIO, Norbeto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo:
Paz e Terra, 2007, p. 102.
27
BOBBIO, Norbeto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo:
Paz e Terra, 2007, p. 98.
20

da razão natural e da razão ética, aplicadas a todas as situações. Kant foi o grande
marco da racionalidade nessa questão.
A seguir, um outro grupo se inseriu na história. Ocorreu o surgimento o
empirismo, que tinha como significado a experiência. Nessa linha de conduta, a
racionalidade deu lugar à teoria voluntarista quando se passou a acreditar não mais
na função da razão, mas sim da vontade. Desse modo, foi possível se estabelecer o
racionalismo como norteador do direito natural, que acreditava na razão universal,
enquanto o voluntarismo acreditava na vontade, gerando o direito positivo 28.
Bobbio29 estabeleceu que o direito positivo tem interpretação restritiva, pois,
de acordo com ele não pode se utilizar de questões de ordem filosófica para compor
a sentença. Por conseguinte, ele advém do direito posto pelo poder do Estado
determinado por normas abstratas reguladoras codificadas e/ou, ainda, leis
esparsas. Assim, a partir do direito positivado é possível estabelecer a dimensão do
direito público e privado.

2. DAS ELEMENTARES DO INFANTICÍDIO – RAZÃO DE SUA TIPIFICAÇÃO


AUTONÔMA
28
CHAUI, Marilena. Iniciação a Filosofia. São Paulo: Ática, 2013, p. 105..
29
BOBBIO, Norbeto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo:
Paz e Terra, 2007, p. 95.
21

Há dois critérios, que tentam fundamentar o porquê do infanticídio ser


tratado como delito autônomo ao homicídio “delictum exceptum”: critério psicológico
e critério fisiopsicológico.
Segundo Irene Batista Maukad30 o critério psicológico fundamenta-se no
motivo da honra para erigir à figura autônoma do delito de infanticídio. Por esse
critério, a mulher mata o próprio filho para preservar sua honra (honoris causa). Já o
critério fisiopsicológico não se atém ao motivo do crime, mas apenas a influência do
estado puerperal, desequilíbrio fisiopsíquico provocado pelo puerpério. Esse critério
acredita que a influência desse estado puerperal possa provocar na parturiente
perturbação de tal monta capaz de interferir na autodeterminação da mãe que acaba
por cometer o assassínio de sua própria prole.
Atualmente, o Código Penal adota o critério fisiopsicológico como
fundamento para incriminação autônoma do infanticídio. Isso nem sempre foi dessa
maneira e está longe de haver uma opinião unânime entre os doutrinadores e será
isso que será abordado neste momento.

2.1 MOTIVO DE HONRA

Em um primeiro momento não se busca criticar este ou aquele critério, mas


apresentar seus argumentos, e só depois rebatê-los.
O infanticídio já foi tratado diferentemente no decorrer dos anos.
Primeiramente, não era considerado crime, seja porque os pais tinham o direito de
vida e morte sobre seus filhos, seja porque tal direito era de titularidade do Estado,
como ocorria na cidade-estado grega de Esparta. Da impunibilidade absoluta, o
infanticídio foi erigido a crime hediondo, passível das mais severas penas.
Equiparado ao “parricidium” o infanticídio era punido com a pena capital. Já no
século XVII, as ideias iluministas influenciaram os filósofos do direito natural como
Beccaria e Feuerbach, que, em uma visível reação em favor da mulher infanticida,

30
MAUKAD, Irene Batista. Op. cit., p.100.
22

propugnavam pela adoção de penas mais leves à mulher que matasse seu próprio
filho para ocultar desonra própria.
As ideias dos filósofos do direito natural ecoaram por todo o mundo e foram
responsáveis pela supressão da pena capital, primeiramente na Áustria (1803), e
posteriormente na Baviera, Alemanha (1813).
A partir desse momento histórico, mormente em virtude das ideias de
Beccaria, os ordenamentos jurídicos passaram a tipificar o infanticídio como um
homicídio privilegiado quando praticado por motivo de honra pela mãe ou por algum
parente próximo.
Diante dos inúmeros conceitos de honra, surgiu no conceito de Francesco
Antolisei31, apud Gláucio Vasconcelos Ribeiro, o norte para se tratar dessa matéria.
Segundo esse doutrinador, honra é:

[...] o complexo de condições ou conjunto de dotes morais (honestidade e a


lealdade), intelectuais (inteligência e cultura) e físicos (sanidade mental e
força física) que concorrem para determinar o valor social que cada
indivíduo possui perante si e diante dos indivíduos que o circundam.

Como se observa, a honra pode ser analisada sob dois aspectos: a honra
objetiva e a honra subjetiva. De acordo Vicente de Paula Maggio 32 a honra objetiva é
caracterizada pelo sentimento que o grupo social tem sobre seus atributos físicos,
morais e intelectuais. Resume-se no que os outros pensam a seu respeito. Já a sua
autoestima, amor próprio e o que você pensa de seus próprios atributos físicos,
morais e intelectuais é denominado honra subjetiva.
De acordo com o autor o conceito de honra traz consigo uma ideia de
patrimônio moral, determinado pela sua própria autoestima e pela consideração
social que cada indivíduo possui perante a sociedade. Nesse sentido, a honra pode
versar sobre os mais variados aspectos, honra religiosa, patriótica, familiar,
profissional, esportiva, sexual, entre outros.
Quando os defensores da corrente psicológica propugnam para que o
conceito de honra seja erigido como o fundamento para a incriminação autônoma do
infanticídio e consequente diminuição da pena em relação ao homicídio, fazem isso
com base exclusivamente na honra sexual, que nas palavras de Vicente de Paula

31
ANTOLISEI, Francesco – apud RIBEIRO Gláucio Vasconcelos. Op. cit., p.85.
32
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p.53.
23

Rodrigues33 consiste na opinião que a generalidade da população professa acerca


dos requisitos que qualificam uma pessoa como moralmente incensurável, sob o
aspecto sexual.
Também defensor da corrente psicológica Tommaso Pedio34 fundamenta o
privilégio também na honra sob o aspecto sexual, pois segundo este autor, a
vontade de matar a criança durante ou logo após o parto é decorrente da intenção
de se evitar que a gravidez ilegítima chegue ao conhecimento das pessoas que
consideram sua honra sexual incensurável:
Na lição de Flamínio Fávero35, este crime é de feição especial, devido que:

[...] liga-se em regra, a uma falta sexual consequente à sedução, ao


adultério, ao estupro ou ao incesto. É, pois, o epílogo de uma gravidez
ilícita, com o parto quase sempre clandestino, não assistido. Há assim, em
relação à mulher, uma desonra a ocultar e uma emoção violenta que age,
criando um estado especial no espirito de uma infeliz que não soube ou não
pôde resistir.

Francesco Carrara36 defende a conduta infanticida, argumentando que o


sujeito ativo age para salvaguardar sua reputação perante a sociedade,
compreendendo-se que tudo faça para manter íntegra sua consideração popular,
mesmo quando seja preciso eliminar a vida de um nascente ou de um recém-
nascido, pois, o nascimento é a prova veemente da gravidez ilegítima, e, portanto,
de sua desonra.
Alguns doutrinadores como Tommaso Pedio37, Gleispach38, apud Nelson
Hungria, Olávo Oliveira39, Ivair Nogueira Itagiba40, Ricardo Andreucci41, vem
defendendo que há um real conflito de interesse fundamentando a concessão do
benefício para o infanticídio. De um lado está a vida do nascente ou do recém-
nascido e do outro a honra do sujeito ativo.

33
RODRIGUES, Vicente de Paula. Op. cit., p.61.
34
PEDIO, Tommaso apud. MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p.26
35
FÁVERO, Flamínio. Medicina legal. 12ª ed., Belo Horizonte: Vila Rica, 1991, p. 765.
36
CARRARA, Francesco. Programa do curso de direito criminal: parte geral. Volume 1.Trad.
Ricardo Rodrigues Gama. São Paulo: LZN, 2002, p. 78.
37
PEDIO, Tommaso apud. MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Loc. cit..
38
GLEISPACH, W. apud HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 70.
39
OLIVEIRA, Olávo. O delito de matar. Ceará: Imprensa Universitária do Ceará, 1959, p. 48.
40
ITAGIBA, Ivair Nogueira. Homicídio, exclusão de crime e isenção de pena. Rio de Janeiro:
IBGE, 1958, p. 102.
41
ANDREUCCI, Ricardo. Manual de direito penal. 10ª edição. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 73.
24

Para Gleispach, apud Nelson Hungria, o infanticida age no mais amplo sentido
de necessidade. Os autores Olávo Oliveira e Ivair Nogueira Itagiba propugnam pela
existência de uma lei da necessidade que atenuaria a pena imposta ao infanticida.
Ricardo Andreucci defende existir no infanticídio um verdadeiro estado de
necessidade entre dois bens jurídicos, quais sejam: a honra do agente e a vida do
nascente ou recém-nascido, prevalecendo a honra sexual do sujeito ativo.
Concluindo, a causa clássica do tratamento benevolente dado ao infanticida,
apoiou-se no critério psicológico, no motivo de honra; sendo esta exclusivamente
sexual, caracterizada pela incensurabilidade moral sob o aspecto sexual. Assim, o
critério psicológico relaciona o conceito de honra com a gravidez ilegítima,
procurando resguardar a moral sob o aspecto exclusivamente sexual.
Destarte, não tem direito a esse privilégio qualquer outro motivo, por
exemplo, a mãe que mata seu filho durante o parto ou logo após, porque a criança
possui um “defeito” que prejudicará sua sobrevivência. Outrossim, não será
beneficiada pela diminuição de pena em relação ao homicídio a mulher que, durante
o parto ou logo após, mata seu próprio filho porque, apesar de ter concebido a
criança legitimamente durante o casamento, seu marido a abandonou à própria sorte
pouco tempo antes dela dar à luz, sem condições de criar a criança.
Não eram acolhidas também pelo benefício legal as mulheres com sua
honra já deflorada, como as prostitutas.
O critério psicológico foi duramente criticado ao longo dos anos, mas o que
realmente fundamentou sua substituição pelo critério fisiopsicológico foi a injustiça
que se praticava no infanticídio da “honoris causa”, pois esse critério restringia o
benefício da diminuição da pena às mulheres que tinham engravidado
ilegitimamente, em detrimento das outras mulheres que, por exemplo eram
abandonadas pelos esposos pouco antes do nascimento da criança, sem qualquer
condição financeira de criar seu filho.

2.2 ESTADO PUERPERAL

O Código Penal de 1940, seguindo orientação do Código Penal suíço de


1916, abandonou o critério psicológico e trouxe a lume o critério fisiopsicológico
25

como determinante para a incriminação autônoma do infanticídio. Como ensina


Nelson Hungria42 o novo critério relegou em segundo plano o motivo de honra,
atendo-se primordialmente à perturbação fisiopsicológica por qual passa a mulher
em decorrência do parto.
Assim, o infanticídio é “delitum exceptum”, quando a mãe mata o próprio
filho durante o parto, ou logo após este, sob a influência do estado puerperal.
Sem olvidar o momento da ocorrência do crime, durante o parto ou logo
após, e as especiais condições dos sujeitos do delito, que também são elementares
do delito no estado puerperal, é a circunstância de caráter personalíssimo
responsável pela tipificação autônoma do infanticídio.
Estado puerperal é um estado de perturbação fisiopsicológica acomete
algumas mulheres fatigadas pela dor e extenuação do parto, levando-as a ferir o
próprio filho. Tal situação anormal ocorre durante o puerpério e é confundido por
muitos autores com o próprio momento de sua ocorrência, o que não é correto. Para
desmistificar tal ideia, “ab initio” convém salientar que estado puerperal não é
sinônimo de puerpério43.
Inúmeros são os autores que conceituam o puerpério. Não obstante há
muita divergência no que se refere à sua duração e à sua definição.
Quanto à sua duração, há quem diga que o início do puerpério se dá com a
gravidez, outros, com o parto, ou ainda com o início da involução do útero. A mesma
discussão se faz presente quando se tenta delimitar o fim do puerpério. Uns dizem
que esse período vai até a primeira menstruação pós-parto, outros acondicionam
esse período à completa involução do útero materno. São inúmeros os autores e
suas teses, razão pela qual se faz imperioso apresentar alguns dos conceitos mais
aceitos pela doutrina.
Almeida Júnior & Costa Júnior.44 lecionam que puerpério vem de
“puerparere”, que significa parir criança. É o período que vai do deslocamento e
expulsão da placenta à volta do organismo materno às condições pré-gravídicas.
O puerpério tem início após a expulsão do feto e da placenta (...) e se
estende até a volta do organismo materno às condições pré-gravídicas é a lição de

42
HUNGRIA, Nelson. Comentário ao Código penal. Rio de janeiro: Revista Forense: 1998, p. 71.
43
HUNGRIA, Nelson. Loc. cit.
44
ALMEIDA Júnior, Alberto e COSTA Júnior, Jonas Betti. de Oliveira. Lições de Medicina Legal.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p.362.
26

Hélio Gomes45. Para este autor, trata-se, por conseguinte, de um quadro fisiológico
comum a todas as mulheres que dão a luz, com começo, meio e fim determinado.
Os autores, frequentemente, utilizam o estado puerperal como sinônimo de
puerpério, gerando uma confusão conceitual muito grande. Pois, puerpério, segundo
Hélio Gomes46. é o período compreendido entre a dequitação (expulsão do feto e da
placenta) e a completa involução dos órgãos maternos, principalmente, os órgãos
genitais, às condições anteriores à gravidez. Ocorre geralmente em seis a oito
semanas, sendo comum a todas as mulheres que dão a luz. Já o estado puerperal,
não pode ser confundido com esse período. Posteriormente, será discutido a
existência ou ficção para a medicina desse estado fisiopsicológico, mas de início
pode-se traze a luz os ensinamentos de Gláucio Vasconcelos Ribeiro 47 que diz que
estado puerperal é:

[...] uma forma fugaz e transitória de alienação mental, é um estado psíquico


patológico que, durante o parto, leva a gestante à prática de conduta furiosa
e incontroláveis, mas, após o puerpério, a saúde mental reaparece

Os autores normalmente conceituam como sinônimos puerpérios e estado


puerperal e diferenciam esses da expressão legal “influência do estado puerperal”.
Influência é definida pelo dicionário Aurélio 48 como ação que uma pessoa ou
coisa exerce sobre outra. Nesse sentido, influência do estado puerperal, nada mais
é do que a ação que esse estado exerce em uma mulher mentalmente sã, fazendo-a
matar seu próprio filho.
Assim, não se pode dizer que influência do estado puerperal difere do
próprio estado puerperal, como pretende alguns juristas, como por exemplo, fez
Delton Croce49 em sua obra ao afirmar que “a influência do estado puerperal não
pode ser confundida pelos doutos aplicadores e julgadores da lei com o conceito
obstétrico de estado puerperal”.
Nessa concepção Croce apoiado por toda sua riqueza de conhecimento,
assevera que a influência do estado puerperal não pode ser confundida com o
período iniciado com a expulsão do feto e da placenta, que perdura até a completa

45
GOMES, Hélio. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004, p. 499.
46
GOMES, Hélio. Ibidem, p. 453.
47
RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Op. cit., p. 71.
48
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 251.
49
CROCE, Delton, Manual de medicina legal. São Paulo: Saraiva: 1998, p. 471.
27

involução dos órgãos genitais da mãe. Período esse, comum a todas as parturientes
e algumas vezes responsável por profundas alterações na psique da mulher.
Alterações essas, provocadas pelo fenômeno obstétrico e pelas alterações
hormonais, que para algumas mulheres pode ser maiores e outras não. Esse
fenômeno obstétrico é extenuante para a mãe que fica muito abalada pelo
sangramento, dor, esgotamento muscular e aflição. Ademais, as alterações nas
taxas de gonadotrofinas, estrógenos e progesterona são responsáveis pela
modificação do humor das mulheres que acabam de dar a luz50.
Assim, o estado puerperal e outros surtos e psicoses tem no puerpério uma
situação propícia para seu aparecimento.
Após essa breve diferenciação entre estado puerperal e puerpério, mister se
faz uma conceituação de estado puerperal. Há um grande número de autores que
discorrem sobre o assunto. Nada mais humilde e cauteloso para um aprendiz que
citar grandes mestres e seus conceitos para depois firmar um entendimento mais
aprofundado sobre a matéria.
Sobre o tema assim afirmou Almeida Júnior & Costa Júnior 51 que estado
puerperal:

[...] é a perturbação psíquica em que a mulher, mentalmente sã, mas


abalada pela dor física do fenômeno obstétrico, fatigada, enervada,
sacudida pela emoção, vem a sofrer um colapso do senso moral, uma
liberação de instintos maldosos, chegando por isso a matar o próprio filho.

Para corroborar, vale destacar a lição de Bonnet 52 que afirma que estado
puerperal nada mais é que:

[...] um transtorno mental transitório incompleto, por ser de curta


duração e porque não chega a constituir um estado de alienação
mental. É apenas um estado crepuscular, um estado de obnubilação
das funções psíquicas.

Constata-se que o estado puerperal constitui-se como conceitua Odon Ramos


Maranhão53 em uma situação especial, “sui generis”, pois não é uma alienação, nem
uma semialienação, porém, do mesmo modo não é uma situação normal. Não se
50
CROCE, Delton. Ibidem, p. 302.
51
ALMEIDA Júnior, Alberto e COSTA Júnior, Jonas Betti de Oliveira. Op. cit., p. 365.
52
BONNET, Emílio Frederico Pablo. Medicina Legal, 3ª edição. Buenos Aires: López Libreros, 1980,
p. 72.
53
MARANHÃO, Odon Ramos. Curso Básico de Medicina Legal. São Paulo: Malheiros, 2004, p.
203.
28

confunde estado puerperal com as psicoses puerperais. Personalidades anormais,


psicopáticas, podem apresentar semialienação.
O trauma do parto precipita as manifestações anormais, já pré-
condicionadas pela constituição mórbida, histérica, perversa, débil. Aqui se trata de
semi-imputabilidade, situação diversa do estado puerperal54.
Em síntese, estado puerperal nada mais é que alteração momentânea,
porém, violenta, na psique da parturiente. Alteração essa que culmina com a
supressão da vontade e de atuar conforme essa vontade da mãe. O estado
confusional é tão intenso e repentino que a mãe acaba ferindo o próprio filho,
nascente ou recém-nascido.
A ação de matar uma pessoa desconhecida ou um inimigo que tenha
alguma desavença é considerada homicídio, e essa conduta tem um desvalor de
resultado aguçado, já que ofende o bem jurídico mais importante, a vida. Matar uma
criança durante o parto ou logo após, portanto, sem qualquer condição de se
defender, através de meios cruéis, como o estrangulamento, dever-se-ia ser uma
conduta abominada muito mais do que primeira ação aqui narrada, já que possui
maiores desvalores de ação e de resultado. Entretanto, pode haver, na segunda
conduta, a influência do estado puerperal, ocorrendo a diminuição da pena
cominada ao infanticídio.
Assim sendo, mister se faz que a obnubilação de consciência da mãe
provocada pelos fenômenos obstétricos, pelas variações hormonais e pelas
angústias psicológicas seja demonstrada através de perícias. Ao revés do que
muitos autores defendem, e até há jurisprudência, que o estado puerperal pode ser
presumido.
Quando a maioria dos autores defende que o estado puerperal é uma
decorrência lógica do parto, sempre ocorrendo, portanto, em mulheres que dão a
luz, eles nada mais fazem que, simplificar uma coisa que não passível de o ser.
Pois, há a dificuldade de se constatar o estado puerperal, em virtude da parturiente
normalmente ser periciada muito tempo depois do ocorrido. Diante disso, autores
propugnam pelo reconhecimento presumido do estado puerperal, o que não
convence.

54
MARANHÃO, Odon Ramos. Ibidem, p. 205.
29

Trata-se o estado puerperal de uma circunstância elementar do tipo do artigo


123 do Código Penal responsável pela tipificação autônoma desse delito. Sendo
assim, esta circunstância não pode ser subentendida.
Para que a imputabilidade da parturiente seja diminuída é fundamental que
se prove a existência do estado puerperal. E, mais do que isso, que ele produziu um
abalo psíquico na mulher, capaz de diminuir a sua capacidade de entendimento ou
de autoinibição, ou seja, que houve influência do estado puerperal.
De acordo com os ensinamentos de José Frederico Marques55:

Se não verificar que a mãe tirou a vida do filho nascente ou recém-nascido,


sob a influência do estado puerperal, a morte praticada se enquadrará na
figura típica de homicídio. E isso, mesmo que o crime tenha sido cometido
durante o parto. Nesse passo, não seguiu a lei pátria ao que dispõe outras
legislações penais, em que a eliminação da vida do nascente, durante o
parto, é suficiente para a qualificação do crime como infanticídio.

Encorpando a lista dos doutrinadores que entendem que não se presume o


estado puerperal, estão os grandes juristas Luiz Régis Prado 56 e Edgard Magalhães
Noronha57 que afirmam categoricamente ser necessário que a mãe pratique o crime
sob a influência do estado puerperal, caso contrário, incorrerá na pena do crime de
homicídio. O primeiro conceitua dizendo que é necessário, portanto, a relação de
causalidade entre o estado puerperal e o infanticídio, pois nem sempre ele produz
perturbação psíquica na mulher. O segundo autor, com o mesmo raciocínio dos
demais, afirma que o estado puerperal não é presumido, e deve ser constatado
pericialmente, sendo de suma importância para uma das questões mais conturbadas
e discutidas sobre infanticídio, que é a questão da coautoria no crime do artigo 123
do Código Penal.
Será que terceira pessoa que auxilia mãe, que está sob a influência do
estado puerperal, deve responder por infanticídio? Ou seria o caso de responder
como homicida, já que não estava a terceira pessoa sob a influência do estado
puerperal, condições esta indispensável para que a própria mãe possa ser
beneficiada pela pena menor do “delitum exceptum”.
Por fim, como o direito não é uma ciência exata, existe posicionamentos
doutrinários e jurisprudenciais em sentido contrário, porém a grande maioria dos

55
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. São Paulo: 1961, p. 142.
56
PRADO, Luiz Régis. Op. cit., p. 96.
57
MAGALHÃES, Edgard. Noronha. Op. cit., p. 58.
30

juristas e dos tribunais acata a tese de que a influência do estado puerperal não
pode ser presumida. Nesse sentido, cumpre transcrever:

Se não se verificar que a mãe tirou a vida do filho nascente ou recém-


nascido sob a influência do estado puerperal, a morte praticada se
enquadrará na figura típica do homicídio (RT 292-293)58.

Sobre o tema, assim afirmou Marcos de Almeida59:

[...] o estado puerperal é uma ficção jurídica – não existe tecnicamente para
a medicina legal. É um crime que depende de perícia para comprovar se a
mãe matou o próprio filho sob influência do estado puerperal. O estado
puerperal, criados pelos juristas, é um caso de responsabilidade atenuada,
tendo em vista o certo grau de perturbação que acomete a mulher ao ter
dado a luz recentemente. Para ele, contudo, o médico não reconhece este
estado puerperal. Do ponto de vista do médico, comprovados clinicamente,
são os males como surto psicótico, por exemplo, isto é, doenças
clinicamente diagnosticáveis, o que normalmente não acorre com o estado
puerperal.

Outro ponto controvertido do estado puerperal é sua compatibilidade com a


inimputabilidade e a semi-imputabilidade, descritas no artigo 26 e seu parágrafo
único do Código Penal.
Para se falar em compatibilidade, ou não, do artigo 26 com o infanticídio e
com o estado puerperal, mister se faz discorrer primeiramente sobre as psicoses
puerperais.
As psicoses puerperais têm esse nome erroneamente apenas por se
manifestarem durante o puerpério, que é um terreno propício para a exteriorização
de personalidades anormais, surtos e psicoses, já que há variações na psique da
parturiente decorrente de modificações químicas (alterações hormonais), físicas
(dores, sangramento e extenuação muscular) e psicológicas (aflição e angústia)60.
Com este entendimento podemos citar Hélio Gomes 61, que em sua obra
afirma que o surto difere das psicoses na medida em que aquele é caracterizado por
ser um breve momento de alienação total do agente, não possui causa conhecida,
enquanto que as psicoses são também caracterizadas pela alienação total do
agente, porém por um período mais prolongado que o curto e com causa conhecida
e geralmente é resultado de uma doença precedente da parturiente.
58
SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça, RCCR 758865 SC 1988.075886-5, Relator Aloysio
Gonçalves, 1994.
59
ALMEIDA, Marcos de.; MAUKAD, Irene Batista. Op. cit., p.152.
60
CROCE, Delton. Op. cit., p. 250.
61
GOMES, Hélio. Op. cit., p.499.
31

Se qualquer dessas psicoses puerperais acomete a puérpera, e ela, em


decorrência disso, fica totalmente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se conforme este entendimento e acaba por matar seu próprio filho, ela
estará livre de pena já que será totalmente inimputável.
Se a mulher já tem histórico de alguma outra doença, e em virtude o
puerpério ser plano propício para o desencadeamento de doenças mentais, ela ser
acometida, durante o parto ou logo após, por uma patologia que lhe retire
parcialmente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se
conforme esse entendimento, a parturiente responderá por homicídio com pena
atenuada em razão de sua semi-imputabilidade, pois:

[...] a pena pode ser diminuída de um a dois terços, se o agente, em virtude


de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto
ou retardado, não era ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com
este entendimento - Artigo 26, parágrafo único do Código Penal62.

O estado puerperal trata-se de uma perturbação transitória e incompleta do


querer e do agir conforme esse querer, de modo que essa obnubilação seja capaz
de provocar uma confusão tão grande na cabeça da parturiente, que enervada,
fatigada pelas dores do parto, libera impulsos maldosos contra o próprio fruto de sua
concepção.
Este argumento está, diretamente, ligado ao que Hélio Gomes63 leciona:

[...] as vítimas dessa “loucura” momentânea devem ser mulheres sem


história pregressa de doenças mentais (esquizofrenia, psicose maníaco-
depressiva) ou mesmo quaisquer desordem de cunho psíquico (neuroses,
personalidades psicopáticas), em suma, perfeitamente normais do ponto de
vista psiquiátrico, pois o contrário caracterizaria o homicídio, aplicando-se
então, conforme o caso, o artigo 26 do Código Penal e seu parágrafo único.

Assim, podem surgir diferentes situações em que a mãe mata o próprio filho
durante o parto ou logo após, que serão tratadas diferentemente pelo nosso
ordenamento jurídico.
Como o eminente Almeida Júnior & Costa Júnior64 defende:

62
BRASIL, Decreto-Lei Nº 28487 DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. Vade Mecum. 17
edição. Saraiva, 2014, p. 350.
63
GOMES, Hélio. Op. cit., p. 500.
64
ALMEIDA Júnior, Alberto e COSTA Júnior, Jonas Betti de Oliveira. Op. cit., p. 350.
32

[...] não se considera nem a alienação mental nem a semialienação já


amparados pelo artigo 26 e parágrafo único do Código Penal; por outro
lado, aí não se enquadra a frieza, a ausência de emoção e a crueldade que
tão bem caracteriza o homicídio. O estado puerperal refere-se aos casos em
que a mulher mentalmente sã, mas abalada pela dor física do fenômeno
obstétrico, fatigada [...] vem a sofrer um colapso do senso moral, uma
liberação de impulsos maldosos, chegando por isso a matar o próprio filho.
Seria, então, uma situação intermediária, até normal, da mulher que, sob o
trauma da parturição e dominada por elementos psicológicos peculiares, se
defronta com o produto talvez indesejado e temido de suas entranhas.
Quando se sabe da atitude efetiva ambivalente das mãos para com os filhos
(amor e hostilidade), e que no caso de certos recém-nascidos, além de
serem fracas as componentes amorosas, há, em desfavor deles a desonra
da mulher, miséria da família, transferência de rancor que o pai se fez
objeto, anomalia física etc., compreende-se melhor a relação criminosa da
mãe, e a ela se dá interpretação mais benévola do que a que se atribui ao
homicídio.

Assim, conclui-se que o estado puerperal é incompatível com o artigo 26 e


seu parágrafo único do Código Penal. Não há possibilidade, por exemplo, da agente
responder por infanticídio com pena atenuada em razão de semi-imputabilidade
determinada pelo artigo 26, parágrafo único do Código Penal. Ou, caso presente o
nexo causal entre o crime e a influência do estado puerperal, responderá por
infanticídio, ou responderá por homicídio, com pena atenuada em razão da semi-
imputabilidade.
33

3. INFANTICÍDIO: TIPO OBJETIVO E TIPO SUBJETIVO NA ATUALIDADE

3.1 CONCEITO LEGAL

Esse delito trata-se na verdade de um homicídio privilegiado, que foi erigido


a tipo autônomo em virtude de algumas particularidades, a saber: sujeito passivo e
ativo do delito, momento consumativo do delito e a influência do estado puerperal 65.
Urge salientar, entretanto, que de acordo com Delton Croce 66 o infanticídio
nem sempre foi tratado dessa forma, notadamente no que tange o estado puerperal.
É fundamento clássico da imputação autônoma do infanticídio o motivo de honra.
Porém, com a promulgação do Código Penal de 1940 o critério psicológico, que
privilegia o motivo de honra, foi substituído pelo critério fisiopsicológico, que
fundamenta a tipificação autônoma do infanticídio na influência do estado puerperal.
Para os penalistas, porém, a influência do estado puerperal só tem
relevância para a incriminação autônoma do infanticídio quando acomete a
parturiente durante ou logo após o parto, e em virtude desta parcial obnubilação do
se autodeterminar, a mãe mata o próprio filho.
Destarte, infanticídio é definido no artigo 123 do Código Penal como sendo a
ação da mãe que, acometida pelo estado puerperal, mata seu próprio filho, durante
o parto ou logo após.

3.2 OBJETIVIDADE JURÍDICA

O princípio da fragmentariedade dita que, somente os bens jurídicos de


elevadíssimo valor podem ser objeto de tutela penal. O infanticídio, como é um crime
tipificado em nosso código penal, tutela um bem jurídico de grande valor. Mais que
isso, o infanticídio protege o bem jurídico mais importante em nossa sociedade, que
é a vida.

65
GOMES, Hélio. Op. cit., p. 347.
66
CROCE, Delton. Op. cit., p. 271.
34

Daí surge a questão: por que se tutelar um mesmo bem jurídico com
diversas normas penais, já que a vida é tutelada por outros tipos penais,
notadamente o homicídio e o aborto?
A reposta surge no sentido de que o bem jurídico tutelado é o mesmo,
porém, cada tipo penal tem uma particularidade que os diferencia e torna
indispensável a incriminação dessas diversas formas para que o bem “vida” não
fique sem proteção.
Durante grande espaço de tempo, as legislações tutelavam apenas vida do
recém-nascido ou neonato, ou seja, protegiam apenas a vida autônoma extrauterina.
Assim, o ordenamento jurídico tutelava três momentos essenciais da vida
humana. Com o tipo de aborto a vida intrauterina do feto, depende da mãe; o
infanticídio tutelava a vida extrauterina do recém-nascido; vida humana, considerada
após a fase de infante, era tutelada pelo homicídio.
Mister lecionar que há duas formas de vida autônoma: a vida intrauterina,
também denominada vida intrauterina apnéica, que se inicia com a ruptura da
membrana amniótica, a popular “bolsa”, momento em que o feto deixa essa sua
condição para se tornar neonato; e a vida extrauterina, que se inicia com o
movimento pulmonar respiratório67.
A partir da intelecção do parágrafo acima se pode dizer que havia uma
lacuna legal nas normas penais, pois não se tutelavam a vida do nascente. Assim, o
momento que se iniciava com a ruptura da membrana amniótica e perdurava
durante todo o período do parto não era tutelado, e quem quer que fosse que
matasse tal ser não cometeria crime algum, pois o fato era atípico.
Diante dessa lacuna, alguns doutrinadores sugeriram a criação de um novo
tipo legal, o fetícidio, que tutelaria a vida do nascente, figura esta surgida na Itália
com o Código Rocco.
Porém, diante dos avanços da medicina legal, resolveu-se equiparar o
recém-nascido ao neonato. Dessa forma, o atual artigo 123 do Código Penal pátrio
tutela a vida tanto do nascente, como do recém-nascido, pois o elemento normativo
temporal do tipo é inequívoco ao afirmar que comete crime de infanticídio a mãe
que, sob influência do estado puerperal, mata o próprio filho durante o parto ou logo
após68.

67
MAUKAD, Irene Batista. Op. cit., p. 115.
68
MAUKAD, Irene Batista. Loc. cit.
35

Por fim, frequentemente são coincidente o sujeito passivo e o objeto jurídico


dos tipos penais. No caso de infanticídio, a regra não sofre exceção, uma vez que o
sujeito passivo desse delito é o mesmo que o seu objeto jurídico. Assim, é sujeito
passivo do crime de infanticídio não só o infante ou recém-nascido, mas também o
neonato ou nascente. Essa é uma constatação que será mais abordada quando da
análise dos sujeitos do delito.

3.3 TIPO OBJETIVO

O delito de infanticídio possui o mesmo verbo, núcleo do tipo de homicídio:


matar.
A diferença para o delito de homicídio reside nos sujeitos do delito, no
momento consumativo do delito e principalmente no estado de perturbação
transitório e incompleto, que acomete algumas parturientes durante o puerpério.
José Frederico Marques69 bem esclarece isso, quando diferencia o delito de
infanticídio com o homicídio:

A norma do artigo 123 do Código Penal, se apresenta como lex espciallis


em relação à do artigo 121, que é preciso geral. Os traços específicos,
dessa forma particular de homicídio estão: a) na qualidade do sujeito ativo e
do sujeito passivo na ação delituosa; b) na influência biopsíquica do estado
puerperal; c) na circunstância de tempo contida no tipo (durante o parto ou
logo após). Por conter referência a um estado biopsíquico (sob influência do
estado puerperal), a figura típica do artigo 123 do Código penal é anormal.
Por outra parte, trazendo pena bem mais benigna em relação ao crime de
morte, contém o citado texto forma delituosa privilegiada, visto que o núcleo
do tipo é idêntico do artigo121; mas, por situar-se em preceito destacado,
esse delictum exceptum se constitui em figura autônoma.

Por ser um crime de ação livre, ele pode ser cometido por qualquer meio
comissivo ou omissivo de execução. Hélio Gomes70 aponta as causas criminais mais
frequentes de morte do nascente e do recém-nascido. São elas: fraturas do crânio,
resultantes de golpes ou da projeção da cabeça contra uma parede ou assoalho;
Sufocação, podendo ocorrer por diversos processos, tais como: obturar o nariz e a
boca com as mãos, travesseiros ou almofadas; comprimir o tórax com o peso do

69
MARQUES, José Frederico. Op. cit., p. 128.
70
GOMES, Hélio. Op. cit., p.114/115.
36

próprio corpo; confinar o recém-nascido com caixas ou baús, e mais raramente, o


enterramento vivo do recém-nascido; Estrangulamento, pode ser feito também com
as mãos causando também a sufocação, ou com um laço feito com a utilização do
próprio cordão umbilical; Feridas, causadas geralmente por instrumentos cortantes,
visando a mutilação e despedaçamentos, para facilitar a ocultação de despojos;
Queimaduras, geralmente são acidentais, porém, no infanticídio é mais comum com
o emprego de fogo para fazer desaparecer o cadáver, embora a utilização de ácido
sulfúrico seja capaz fazer desaparecer um corpo mesmo adulto; Envenenamento, é
uma forma excepcional, porém, é admitida a possibilidade do derramamento de
substancias dentro da boca, através de esponjas embebidas em veneno; Falta de
cuidado para manter a vida, caracteriza a modalidade do infanticídio por omissão, ou
seja, pela falta de ligadura do cordão umbilical, a privação de alimentos bem como
deixar mucosidades na boca do neonato71.
Além de ser um crime de ação livre, o infanticídio é um crime próprio, pois só
pode ser cometido pela própria mãe contra o nascente ou contra o neonato72.
Heleno Cláudio Fragoso73 relata complementa que a mãe deve estar com
sua consciência e autodeterminação afetadas pela influência do estado puerperal. É
indispensável, portanto, o nexo causal entre o estado puerperal e o crime. Mais que
isso, o crime deve ser cometido, sob a influência do estado puerperal, durante o
parto ou logo após.
Esse elemento normativo de caráter temporal presente no tipo do artigo 123
delimita o tempo em que deve ocorrer o crime. Não importa para o infanticídio que a
mãe, abalada psicologicamente, cometa o crime muito depois do parto, ou antes,
deste. Para que se caracterize o infanticídio, a mãe deve estar acometida pelo
estado puerperal e praticar os atos executórios que atentem contra a vida do
desprotegido durante o parto ou logo após. A delimitação do momento do crime
depende do início do parto.
A tentativa é plenamente possível já que é um crime material, em que se
descreve a conduta e seu resultado, exigindo-se o resultado para a consumação.
Há, pois, um “inter criminis” e quaisquer circunstâncias alheias à vontade do agente,

71
GOMES, Hélio. Op. cit., p.125.
72
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 35.
73
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Loc. cit.
37

que impeçam a consumação do crime, são responsáveis pela imputação do delito


sob a forma tentada74.
Esta é apenas uma análise perfunctória do delito que será destrinchado nos
capítulos sequentes.

3.4 TIPO SUBJETIVO

No nosso ordenamento jurídico existem os tipos penais dolosos e os tipos


penais culposos. Os tipos penais em sua maioria são dolosos, é a regra. É o que
dispõe o parágrafo único do artigo 18 do Código Penal 75: “Salvo os casos expressos
em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o
pratica dolosamente”.
Sendo assim, urge fazer uma análise pormenorizada do que vem a ser dolo
ou culpa, sabendo que essa culpa que se fala é a culpa “stricto sensu”, já que a
culpa “latu sensu” engloba também o dolo.
Dolo é a vontade dirigida à obtenção de um fim determinado. Como o direito
penal baliza à condição de crime, passíveis, de uma sanção; e essas condutas são
tipos penais, que possuem elementos objetivos (normativos e descritivos) e
subjetivos, pode-se dizer que dolo é a vontade de realizar essas condutas descritas
nos tipos penais76.
Enfim, dolo é a representação e a vontade do agente em realizar a conduta
descrita no tipo penal.
De acordo com o ilustre Nelson Hungria77 dolo divide-se em direto e
eventual. Direto é aquele em que o agente representa a concorrência do resultado e
efetivamente quer que ocorra tal evento. Dolo eventual é aquele em que o agente
representa a ocorrência do evento criminoso, sendo que lhe é indiferente a
ocorrência ou não desse resultado.
O dolo homicida difere-se do dolo do crime de infanticídio, pois no caso do
crime do artigo 123 a vontade do agente é impulsionada por uma influência anímica

74
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Loc. cit.
75
BRASIL, Decreto-Lei Nº 28487 DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. Op. cit., p. 350.
76
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 28.
77
HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 85.
38

(proveniente da alma ou do psíquico). É o que nos ensina Vicente de Paula


Rodrigues Maggio78.
Em sua concepção, essa influência anímica difere-se quando se adota o
critério psicológico ou o critério fisiopsicológico. Pelo primeiro, a influência anímica
surge da necessidade do agente ocultar sua desonra de ordem sexual. Para os
defensores do critério fisiopsicológico, essa influência anímica é representada pela
perturbação mental sofrida pela mãe durante o puerpério79.
O dolo difere-se da influência anímica, pois enquanto este é elemento
subjetivo do tipo, a influência anímica consiste na característica psicológica
determinante do justo ou do injusto. A culpa, nos dizeres do eminente Giusepe
Maggiore80:

[...] é a conduta humana voluntária (ação ou omissão) que produz resultado


antijurídico, não querido, mas previsível e, excepcionalmente previsto, que
podia, com a devida atenção, ser evitado.

Nesse sentido, a culpa é a prática de uma conduta sem o devido dever de


cuidado, que gerou um resultado tipificado pela lei penal como crime, não desejado
nem previsto pelo agente, mas previsível objetiva e subjetivamente.
Como se vê já da conceituação de culpa, a teoria que mais acertadamente
fundamenta culpa é a teoria da previsibilidade.
Parafraseando Vicente de Paula Rodrigues Maggio 81 a culpa, como elemento
do tipo penal, refere-se à inobservância do dever de cuidado objetivo, e, o dever de
cuidado objetivo fundamenta-se no homem médio, que é aquele comum, com
discernimento e prudência normais.
O atuar em sociedade exige, dos componentes desse aglomerado, atitudes
condizentes com o ambiente em que se vive, para que a conduta desastrada,
imprudente ou negligente de alguém não venha a ferir bens jurídicos relevantes de
outrem. Por isso, as pessoas devem praticar todos os seus atos com a cautela
necessária para evitar tais danos. O cuidado objetivo, portanto, é aquele que teria
um homem prudente e razoável no lugar do autor.

78
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p. 131.
79
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Loc. cit.
80
MAGGIORE, Giusepe, apud HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 87.
81
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p. 140.
39

Para se aferir o cuidado exigível de um homem comum deve-se ater a


previsibilidade objetiva, que nos dizeres de Vicente de Paula Rodrigues Maggio
consiste82:

[...] em se exigir a previsibilidade necessária objetiva quando o resultado


produzido era previsível para um homem comum, nas circunstâncias em
que o sujeito a realizou a conduta. Assim, o cuidado necessário deve ser
objetivamente previsível. É típica a conduta que deixou de observar o
cuidado necessário objetivamente previsível

Na hipótese de o resultado ocorrido não ser objetivamente previsível, ou


seja, se o resultado não era previsível para o homem médio nas circunstâncias em
que o agente realizou a conduta, tal conduta é atípica. Não há tipo culposo se o
evento não era previsível.
Pela teoria neoclássica do delito, a tipicidade guarda grade relação com a
antijuridicidade, na medida em que a tipicidade indica a antijuridicidade “ratio
cognoscendi”. Em regra, uma conduta típica também o é antijurídica. Então, uma
conduta em que o agente não atuou com o devido cuidado objetivo, é, pois, em
regra, também antijurídica. Só não será uma conduta contrária ao direito se estiver
presente algumas das causas de excludentes (legitima defesa, o estado de
necessidade, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito) 83.
O agente que deixa de observar a diligência necessária do homem médio
para o convívio social sem estar amparado por nenhuma causa excludente de
antijuridicidade, e, em razão dessa conduta, advém um resultado danoso para o
bem jurídico penalmente relevante, pratica um fato típico e antijurídico (tipo de
injusto), restando apenas análise de sua culpabilidade, para que, sobre ele incida a
ira do direito penal.
Quanto à análise da culpabilidade, deve-se ater à previsibilidade subjetiva no
tipo culposo.
Na previsibilidade subjetiva, também se segue os ensinamentos do mestre
Vicente de Paula Rodrigues Maggio84, é “questionada a possibilidade de o agente,
segundo suas aptidões pessoais e na medida do seu poder individual, prever o
resultado”.

82
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p. 135.
83
MAGGIO, loc. cit.
84
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p. 137.
40

Ao revés da previsibilidade objetiva, em que se perquire qual seria a conduta


do homem com diligência e prudência normais para atuar naquelas circunstâncias,
na previsibilidade subjetiva, atém-se às aptidões pessoais do agente que
efetivamente realizou a conduta, para se estimar qual o grau de sua reprovabilidade,
indicando, assim, sua culpabilidade85.
Em suma, a previsibilidade, como se pode observar, é a ausência da culpa.
Ou seja, uma conduta imprevisível para o homem médio, é atípica. De outro modo,
se for previsível, é típica. Se o agente apesar de previsível, não previu a sua
ocorrência, tal conduta é culposa (culpa inconsciente). Todavia, se o agente previu a
ocorrência do resultado, a conduta pode constituir-se em culpa consciente ou dolo
eventual, dependendo se o agente assumiu ou não a ocorrência do resultado.
Explicando: a culpa consciente é aquele em que o agente previu a
ocorrência do resultado, mas em virtude de uma especial habilidade sua, ele refutou
totalmente a ocorrência do evento danoso. Tem-se como exemplo, o atirador de
facas, que faz isso todos os dias e nunca erra o alvo. Ele prevê que pode acertar a
mulher que fica parada à sua frente, mas refuta totalmente a ocorrência do evento
danoso. Trata-se da culpa consciente.
Nos dizeres do mestre Fernando Capez86 no dolo eventual o agente prevê a
ocorrência do resultado, como na culpa consciente, mas quanto à ocorrência do
evento é irrelevante que ocorra ou não o resultado. Para o agente não importa que,
em razão de sua conduta, ocorra um evento danoso, ele assume o risco da
produção do resultado. Tem o exemplo clássico do motorista que dirige
perigosamente em uma rua em alta velocidade e atropela um transeunte após
perder o controle de seu carro.
Após a análise mais detalhada do que consiste o tipo culposo e doloso,
convém observar a culpa “latu sensu” no crime do artigo 123 do Código Penal.
O ilustre Gláucio Vasconcelos Ribeiro87 assevera que é unânime em relação
aos doutrinadores, a impossibilidade de se punir o infanticídio sob a modalidade
culposa. A intelecção do parágrafo único do artigo 18 é clara em afirmar que só
serão punidos a título de culpa os crimes, quando expressamente determinar o

85
JESUS, Damásio Evangelista. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 264.
86
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 257.
87
RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Op. cit., p. 115.
41

Código Penal, o que não é o caso do infanticídio. Assim sendo, o infanticídio só será
punível a título de dolo resultado.
Surge então a questão: qual será a punição para a mulher que, sob a
influência do estado puerperal, deixa de observar o dever de cuidado objetivo, e
mata seu próprio filho, durante o parto ou logo após?
A solução para esse caso é, de acordo com o autor, incriminar a mãe nas
sanções do artigo 121, §3º do Código Penal. Respondendo, assim, por homicídio
culposo, com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.88
Alguns autores como Vicente de Paula Rodrigues Maggio 89 defendem que
deveria ser modificado o artigo 123 do Código Penal, incriminando também o
infanticídio culposo, prescrevendo uma pena mais branda em relação ao infanticídio
do “caput” do artigo 123, propugnando pela compatibilidade da culpa com o estado
puerperal. A outra corrente que se pode dizer majoritária, defende que a mãe deve
responder mesmo por homicídio culposo, pois o estado puerperal não se
compatibiliza juridicamente com a culpa “stricto sensu”90.
Pode-se inferir, portanto, que o infanticídio só é punível em sua modalidade
dolosa, quando a mãe quis matar o seu próprio filho, ou assumiu a possibilidade de
ocorrência do resultado danoso. Se a mãe dá causa a morte do filho por
inobservância do dever de cuidado objetivo, reponde por homicídio culposo,
independente se estava ou não sob a influência do estado puerperal.

3.5 SUJEITOS DO DELITO

3.5.1 Sujeito Ativo

Há crimes que podem ser cometidos por qualquer pessoa, são os


denominados crimes comuns, que não exigem qualquer característica especial dos
sujeitos para a sua configuração. Em contrapartida, há crimes que exigem especial

88
RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Loc. cit.
89
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p. 99.
90
RIBEIRO, Gláucio Vasconcelos. Op. cit., p. 115.
42

característica do sujeito ativo para sua configuração: são os crimes próprios. Os


delitos de mão própria, todavia, são espécies de crimes em que podem ser
cometidos pelos próprios sujeitos em pessoa91.
O crime de infanticídio é um crime próprio e de mão própria porque o tipo
legal exige uma pessoa característica do sujeito ativo: a mãe, parturiente, sob a
influência do estado puerperal (critério fisiopsicológico) – e só pode ser acometido
pela própria mãe. Não admite concurso sob a modalidade da coautoria. Esse tema
será mais aprofundado quando da discussão sobre o concurso de pessoas no
infanticídio92.
No que tange o tema sujeito ativo do infanticídio, o direito comparado
evidencia três correntes normativas. A primeira é formada pelas legislações em que
apenas mãe pode ser sujeito ativo do infanticídio, não admitindo privilégio quando a
conduta for praticada por outra pessoa. É o caso das legislações do Brasil, Bolívia,
Guatemala, Honduras, Peru e Portugal93.
Nas palavras de Eugênio Raul Zaffaroni 94 o segundo grupo é formado pelas
legislações que restringiam o benefício às pessoas que possuem intima ligação com
a vítima, desde que taxativamente descritas pelo tipo penal. São exemplos: o Chile,
onde podem ser sujeito ativo do delito, não só a mãe, mas também o pai e
ascendente.

Artigo 394 do Código Penal Chileno – Cometen infanticídio el padre, la


madre e los demás ascendientes o ilegítimos que dentro de 48 horas
después del parto matam al hijo o descendiente i seram penados com
presídio mayor em sus grados mínimo a médio.

Por fim, há um terceiro grupo de legislações em que podem ser sujeito ativo
do delito de infanticídio qualquer pessoa que dê causa à morte do pobre indefeso95.
No tema referente ao sujeito ativo do delito de infanticídio, não há grandes
dificuldades, em princípio, pois é um crime que em sua tipificação já delimita que,
somente, a mãe pode ser sujeito ativo desse delito. Porém, questão intrigante surge
quando terceira pessoa auxilia, instiga, ou realiza juntamente com a mãe os atos

91
CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 167.
92
MAUKAD, Irene Batista. Op. cit., p. 145.
93
ESTRANGEIRA, legislações. Disponível em <http://juareztavares.com/legislação.html> Acessado
em: 23 jul. 2015.
94
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Derecho Penal: parte general. Buenos Aires: Editar, 2002. p. 128.
95
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Loc. cit.
43

executórios que culminam com a morte da criança. Essa terceira pessoa responde
por infanticídio ou por homicídio?
Surge relevância a questão em virtude da teoria monista adotada pelo
Código Penal quanto ao concurso de pessoas. Pelo artigo 29 do Código Penal,
todos que concorrem para o crime incidem nas penas a estes cominadas96.
Porém, a circunstância que determina a diminuição da pena em nosso
Código Penal é a influência do estado puerperal. Circunstância essa de caráter
personalíssimo que só pode atingir a própria mãe. Diante dessa controvérsia, qual
tese adotar, da comunicabilidade ou da incomunicabilidade das circunstâncias?
É isso que será discutido quando tratar-se do concurso de pessoas no
infanticídio.

3.5.2 Sujeito Passivo

O sujeito passivo do infanticídio confunde-se com o objeto material do delito,


pois é o ponto de incidência da conduta criminosa.
Nos ensinamentos de Odon Ramos Maranhão97 é sujeito passivo,
atualmente, do infanticídio, o nascente e o neonato ou recém-nascido. Nascente é o
estado do ser humano durante o parto. De outro modo, adquire a condição de
recém-nascido ou neonato do ser humano que já nasceu, que já foi expelido,
juntamente com os anexos do ventre materno.
Assim, atualmente o nosso ordenamento jurídico tutela a vida não só do ser
recém-nascido, mas também daquele que, apesar de ainda não ter nascido já possui
vida biológica, mesmo que apnéica98.
Entretanto, Odon Ramos Maranhão99afirma que nem sempre foi assim.
Antigamente as legislações tutelavam apenas a vida do recém-nascido e não se
tutelava a vida do nascente durante o parto. Isso é decorrente do que entendia a
medicina forense que considerava vivo quem respirasse. Dada sua grande
notoriedade, todos ordenamentos jurídicos seguiam seus ensinamentos, de forma
96
BRASIL, Decreto-Lei Nº 28487 DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. Op. cit., p. 351.
97
MARANHÃO, Odon Ramos. Op. cit., p. 199.
98
MARANHÃO, Odon Ramos. Loc. cit.
99
MARANHÃO, Odon Ramos. Op. cit., p. 202.
44

que criava uma grande lacuna legal. Nesse sentido, a vida do feto era tutelada pelo
aborto; a vida do recém-nascido tutelada pelo infanticídio. Porém, a vida do
nascente não era tutelada. Assim, não poderia ser sancionado quem matasse a
criança durante o parto, pois a conduta era atípica.
A evolução da medicina legal trouxe outros conceitos e ensinamentos,
desmistificando o brocardo de que viver é respirar, e se o ser humano não respirou,
ele não viveu.
Atualmente, o ser nascente é equiparado ao recém-nascido, pois ele já
adquire vida biológica no instante do início do parto, ou seja, com a ruptura da
membrana amniótica. O infanticídio exige que o ser esteja vivo, afinal não pode ser
incriminado alguém que mate outrem já morto100.
A prova de vida faz-se diferentemente tanto nos casos de vida intrauterina e
vida extrauterina. No caso de nascente, a prova de vida intrauterina faz-se através
do tumor de parto ou bossa serosanguinea. O nascente, apesar de ainda não ter
respirado, possui vida biológica, e essa vida já é demonstrada por outros elementos
que não a respiração. A vida intrauterina é demonstrada principalmente pela
circulação sanguínea e pelos batimentos cardíacos101. Para Oswaldo Pataro102 o
exame batizado de tumor de parto ou bossa serosanguinea consiste em observar se
há pequenas hemorragias no corpo do sujeito passivo.

As compressões sofridas pela porção do organismo fetal que primeiro


alcança as aberturas genitais da parturiente provocam o edema local, que
constitui o tumor de parto. Geralmente se situa na cabeça, que chega a
assumir aspecto assimétrico. Essa saliência se deve ao de haver circulação
no organismo fetal. No feto morto antes do nascimento não há tumor de
parto

Pode-se concluir que, se há esses hematomas é sinal de que houve circulação


sanguínea, e, portanto, é prova de vida do nascente.
Salutar a informação de que é irrelevante a vitalidade do feto. Não se perquire
se o feto teria ou não condições de sobreviver fora do ventre materno, mas apenas
se ele estava vivo. Como observa com propriedade Edgard Magalhães Noronha103:

100
GOMES, Hélio. Op. cit., p. 275.
101
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p. 97.
102
PATARO, Oswaldo. Medicina legal e prática forense. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 126.
103
NORONHA, Edgard Magalhães. Op. cit., p. 58.
45

[...] prescinde de vitalidade o delito, ou seja, capacidade de viver fora do


seio materno, adaptação às condições regulares de vida exterior.
Consequentemente um recém-nato inviável é sujeito passivo do crime.

Hélio Gomes104 explica que a prova de vida extrauterina, nos casos em que
a morte é dada ao recém-nascido ou neonato, é feita através das docimasias,
respiratórias e não respiratórias. Entre as respiratórias, observam-se as seguintes:
docimasia diafragmática; visual; docimasia tátil; docimasia óptica de Icard; docimasia
histológica; docimasia auricular; e, docimasia hidrostática ou pulmonar Com efeito,
todas as docimasia respiratórias buscam provar que houve respiração, e, para tal
feito, utilizam diversos meios, por isso há essa gama de docimasias.
Além da docimasia respiratória, há também as docimasias não respiratórias,
em que se procura provar a existência de vida através de outras atividades fetais,
independente da prova de respiração. Adquirem relevância tais exames quando não
há possibilidade de se provar a vida através da respiração, seja por qualquer motivo
que pode levar a erro diagnóstico nas docimasias respiratórias, a saber: quando há
insuflação de ar no recém-nascido, aparentemente morto, para chamá-lo à vida;
quando há putrefação ou congelamento do pulmão105.
Urge asseverar, conforme os ensinamentos de Vicente de Paula Rodrigues
Maggio106 que a vida extrauterina se distingue da vida intrauterina em três pontos: a)
cessação da circulação fetoplacentária; b) substituição da respiração placentária
pela pulmonar; e, c) substituição da alimentação via placentária, pela alimentação
via gastrintestinal.

3.6. CONCURSO DE PESSOAS NO INFANTICÍDIO

Talvez o tema mais controvertido entre todos desse crime seja quanto ao
concurso de pessoas.
A pergunta que gera inúmeras dificuldades é a seguinte: quem concorre com
a mãe para a prática do infanticídio responde por esse crime ou pelo homicídio? A
elementar do estado puerperal comunica-se ao coautor ou não?
104
GOMES, Hélio. Op. cit., p. 278.
105
GOMES, Hélio. Loc. cit.
106
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p. 100.
46

Para responder essas perguntas será sistematizado o estudo da seguinte


maneira: primeiro analisar-se-á as teorias a respeito da autoria, coautoria e
participação; depois as teorias sobre a natureza jurídica do concurso de pessoas;
assim como serão analisadas as posições dos grandes doutrinadores sobre o
concurso de pessoas no infanticídio; e por fim, tentar-se-á responder
satisfatoriamente essas questões.

3.7. TEORIAS SOBRE A AUTORIA

3.7.1. Teoria Restritiva

Nem sempre o crime é cometido por uma pessoa apenas. Seja para garantir
a impunidade, a execução e até mesmo para assegurar o interesse de várias
pessoas em seu cometimento, às vezes o fato criminoso é realizado por várias
pessoas que assentem suas condutas. Nesse sentido, coautoria, codelinquência ou
concurso de pessoas ocorre quando duas ou mais pessoas concorrem para o
cometimento do mesmo crime. a autoria é tratada diferentemente, dependendo da
teoria adotada107.
Pela teoria restritiva, autor é somente aquele que realizou a conduta típica.
Nos dizeres de Fernando Capez108 “é apenas aquele que realiza a conduta principal
descrita no tipo”. Destarte, autor é aquele que mata, que subtrai, oculta cadáver,
constrange, enfim é a pessoa que pratica a conduta descrita como verbo núcleo do
tipo.
De acordo com o autor, partícipe, para a teoria restritiva é aquele que
concorre de qualquer forma para o crime, porém, sem realizar a conduta típica. É
quem induz, instiga ou auxilia o cometimento do crime. Assim, é partícipe para esta
teoria o mentor intelectual do crime. É neste ponto que surgem críticas a essa teoria.

107
JESUS, Damásio Evangelista. Op. cit., p. 300.
108
CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 288.
47

São deste posicionamento de Aníbal Bruno 109, Heleno Cláudio Fragoso110,


José Frederico Marques111, Damásio de Jesus112.

3.7.2. Teoria Extensiva

Essa teoria alarga muito o conceito de autor e suprime completamente o de


partícipe, haja vista que não faz qualquer diferenciação entre este e aquele. Para a
teoria extensiva, autor é todo aquele que concorre de qualquer modo para o crime,
independente se tenha realizado ou não a conduta descrita como núcleo do tipo
penal113.
Não é adotada pela nossa legislação atual.

3.7.3. Teoria do Domínio do Fato

Para essa teoria é irrelevante que o autor tenha realizado materialmente a


conduta descrita como núcleo do tipo penal. O que é importante é que “o autor
detenha o controle final do fato, dominando toda a situação delituosa, com plenos
poderes para decidir sobre sua prática, interrupção e circunstância” 114.
Para Capez115 o autor é quem tem o controle ou domínio do fato, desde o
início da execução até a produção do resultado. Dessa forma, o autor intelectual e o
mandante não são apenas partícipes do crime, mas coautores, pois detém o
domínio do fato. Da mesma forma não deixa de ser autor quem utiliza um
inimputável para o cometimento do crime.
Na verdade, essa teoria não exclui a teoria restritiva. É um complemento
daquela. Nosso ordenamento jurídico adota a teoria restritiva com a

109
BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p.142.
110
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 53.
111
MARQUES, José Frederico. Op. cit., p. 157.
112
JESUS, Damásio Evangelista. Op. cit., p. 128.
113
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 67.
114
CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 289.
115
CAPEZ, Fernando. Loc. Cit.
48

complementação da teoria do domínio de fato, sendo essa também a opinião de


Damásio de Jesus116 e Fernando Capez117.

3.8. TEORIA: NATUREZA JURÍDICA DO CONCURSO DE PESSOAS

3.8.1. Teoria Unitária

Também denominada de teoria monista, é a teoria adotada, em regra, pelo


nosso ordenamento, contido no artigo 29 do Código Penal. De forma que todos que
concorrem para a prática criminosa cometem o mesmo delito, não havendo distinção
entre enquadramento típico do autor e do partícipe118.
O artigo 29 do nosso estatuto repressor é inequívoco ao afirmar que “quem,
de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na
119
medida de sua culpabilidade” . Assim, todas as pessoas que assentiram para o
cometimento da infração devem ser responsabilizadas pelo crime.
É o caso, por exemplo, do motorista de roubo de banco, que, apesar de não
realizar a conduta típica se subtrair, concorre para o crime, de modo que sem ele a
consumação do crime seria dificultada. Destarte, o motorista também responde pelo
roubo, apesar de não ter subtraído nada de ninguém.

3.8.2. Teoria Dualística

Para essa teoria, há dois delitos, um perpetrado pelo autor, e outro pelo
partícipe. Não é adotada pelo nosso Código.

116
JESUS, Damásio Evangelista. Op. cit., p. 135.
117
CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 290.
118
HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 59.
119
BRASIL, Decreto-Lei Nº 28487 DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. Op. cit., p. 351.
49

3.8.3. Teoria Pluralística

Nesta teoria um dos partícipes responde por um delito. Nos dizeres de


Damásio de Jesus120:

[...] a cada participante corresponde uma conduta, um elemento psicológico


próprio, um resultado próprio, devendo-se, pois, concluir que cada um
responde por um delito próprio. Há pluralidades de agentes e pluralidades
de delitos.

Tal teoria também não é, pelo menos em regra, adotada pelo Código Penal
Brasileiro.
Vicente de Paula Rodrigues Maggio121 assevera que não é regra porque há
casos em que se adota essa teoria. São casos dispostos expressamente no texto
legal. São as chamadas exceções pluralistas ou desvio subjetivo de conduta, tema
de grande importância para a análise do tema concurso de pessoas no infanticídio.
Nesse sentido, o Código Penal adotou como regra a teoria monista, pela
qual todas as pessoas que assentem para a prática de determinada conduta
realizam o mesmo crime. Assim, partícipes e autores são equiparados e cometem o
mesmo crime. Há casos, entretanto, em que o legislador resolveu por aplicar a teoria
pluralista122.
São exemplos em que o autor e partícipe da mesma conduta respondem por
crimes diferentes. O §2º do artigo 29 do Código Penal 123 determina que “se algum
dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena
deste (...)”.
É o caso do motorista do assalto que consentiu apenas com o roubo, e que
não sabia que um de seus companheiros estava armado, sendo que este, ao
adentrar no estabelecimento da vítima, retirou-lhe a vida. O motorista que não
consentiu com essa conduta anteriormente, nem assumiu a ocorrência desse
resultado, não pode ser responsabilizado por latrocínio, mas apenas por roubo.

120
JESUS, Damásio Evangelista. Op. cit., p. 412.
121
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p. 134.
122
HUNGRIA, Nelson. Op. cit. p. 70.
123
BRASIL, Decreto-Lei Nº 28487 DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. Op. cit., p. 351.
50

O Código Penal124 também traz outras hipóteses em que há exceção


pluralista. É exemplo, o aborto provocado por terceiro (artigo 126 do Código Penal) e
o aborto com o consentimento da gestante (artigo 124 do Código Penal).
A conduta típica é a mesma: provocar aborto na gestante com seu
consentimento, mas o legislador achou, por bem, imputar a cada participante do
crime um tipo diferente. Assim, tanto a mulher quanto terceiro têm suas condutas
voltadas para o mesmo fim, a saber, provocar o aborto. Porém, em vez de
responderem pelo mesmo crime, respondem por crimes diferentes. Trata-se de uma
exceção pluralista à teoria monista ou unitária.
Da mesma forma, são os outros exemplos dessa exceção os crimes de
bigamia (artigo 235, caput e §1º do Código Penal), comunicação ativa (artigo 333 do
Código Penal), corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal), falso testemunho
(artigo 342 do Código Penal) e corrupção de testemunha (343 do Código Penal)125.
O infanticídio também constitui uma exceção pluralista à teoria unitária, de
maneira que, quem concorre com a mãe para a prática desse delito comete
homicídio, e não infanticídio. Esse, porém, é um tema que será abordado em tópico
subsequente.

124
BRASIL, Decreto-Lei Nº 28487 DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. Ibidem., p. 358.
125
HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 92.
51

4. COAUTORIA NO INFANTICÍDIO SOB A ÓTICA DA COMUNICABILIDADE OU


INCOMUNICABILIDADE DA ELEMENTAR ESTADO PUERPERAL

Historicamente, pode-se perceber que graças às discussões acaloradas


entre os mestres Nelson Hungria e Magalhães Noronha, a coautoria no infanticídio
sempre foi discutida com base na incomunicabilidade da elementar estado
puerperal.
Uma das correntes encabeçadas por Nelson Hungria126, da qual também
eram partidários os doutrinadores Heleno Cláudio Fragoso 127 e Galdino Siqueira128
consideravam a mãe a única pessoa capaz de praticar o infanticídio, pois julgavam o
estado puerperal como uma circunstância personalíssima, incomunicável aos
coautores.
A outra corrente da qual faziam parte Magalhães Noronha129, Ester de
Figueiredo Ferraz130, Basileu Garcia131, José Frederico Marques132, Euclides Custódio
da Silveira133, e Damásio de Jesus 134
apoiados nos artigos 29 e 30 do Código Penal,
defendiam que o estado puerperal era uma elementar do crime de infanticídio e, por
isso, comunicável aos seus coautores.
Se uma mulher grávida, agindo sob a influência do estado puerperal, mata o
próprio filho, durante o parto ou logo após, comete o crime de infanticídio. A
discussão sobre a codelinquência adquire relevância quando o crime é praticado
não só pela mãe, mas esta é auxiliada, instigada ou induzida por terceira pessoa.
Essa pessoa responderia por infanticídio ou seria partícipe de homicídio?
Em razão desse problema surgiu a discussão doutrinária acerca
comunicabilidade e da incomunicabilidade do estado puerperal entre os coautores.

126
HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 131.
127
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 74.
128
SIQUEIRA, Galdino Direito penal brasileiro: parte especial. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos
Santos, 1924, p. 51.
129
NORONHA, Edgard Magalhães. Op. cit., p. 93.
130
FERRAZ, Ester de Figueiredo. Os delitos qualificados pelo resultado no regime do Código
penal de 1940. São Paulo: Imprensa, 1948, p. 63.
131
GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 7 edição. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 2008, p.
93.
132
MARQUES, José Frederico. Op. cit., p. 184.
133
SILVEIRA, Euclides Custódio da., Direito penal, crimes contra a pessoa. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1973. p. 153.
134
JESUS, Damásio Evangelista..Op. cit., p. 286.
52

Defendendo a incomunicabilidade Nélson Hungria 135, em sua obra, ensina


que:

Não diz com o infanticídio a regra do artigo 25 (atual 29). Trata-se de um


crime personalíssimo. A condição sob a influência do estado puerperal é
incomunicável. Não tem aplicação, aqui, a norma do artigo 26 (atual 30),
sobre as circunstâncias de caráter pessoal, quando elementares do crime.
As causas que diminuem ou excluem a responsabilidade não podem, na
linguagem técnico-penal, ser chamadas circunstâncias, pois estas só dizem
com maior ou menor grau de criminosidade do fato, ou seja, com a maior ou
menor intensidade do elemento subjetivo ou gravidade objetiva do crime. O
partícipe (instigador, auxiliar ou coexecutor material) do infanticídio
responderá por infanticídio. A quebra da regra geral sobre a unidade de
crime no concurso delinquentium é, na espécie, justificada pela necessidade
de evitar-se o contrassenso, que orçaria pelo irrisório de imputar-se a
outrem que não a parturiente um crime somente reconhecível quando
praticado sob a influência do estado puerperal.

Heleno Cláudio Fragoso136 também adere a essa teoria da incomunicabilidade


do estado puerperal. Para ele:

[...] o infanticídio constitui homicídio privilegiado porque a ação de matar o


próprio filho é praticada pela mãe sob a influência do estado puerperal.
Surgem em consequência de tal elemento, problemas difíceis relativamente
à participação e à coautoria. Trata-se de saber se os que eventualmente
participam da ação praticam o crime de infanticídio ou homicídio.
Entendemos que deve ser adotada a lição de Hungria, fundada no direito
suíço segundo o qual, o concurso de agentes é inadmissível. O privilégio se
funda numa diminuição da impunidade, que não é possível estender aos
partícipes. Na hipótese de coautoria, parece-nos evidente que o crime será
de homicídio.

A outra corrente doutrinária defende que o coautor se comunica a


circunstância pessoal do estado puerperal graças ao que dispõe o artigo 30 do
Código Penal, que diz que as circunstâncias de caráter pessoal são incomunicáveis,
salvo quando elementares do crime.
Segundo essa corrente, encabeçada por José Frederico Marques 137 o
Código Penal adotou a teoria unitária ou monista no que tange ao concurso de
pessoas, sendo que qualquer pessoa que concorre para a prática do delito incide
nas penas a esse cominadas. Sendo assim, o partícipe e o coautor da conduta da
mãe que mata o próprio filho responde por infanticídio também, pois, apesar de não

135
HUNGRIA, Nelson. Comentário ao Código penal. Vol. V. Rio de janeiro: Revista Forense: 1958.
p. 266.
136
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 79.
137
MARQUES, José Frederico. Op. cit., p. 185.
53

estar, o terceiro sob a influência do estado puerperal, tal elementar é a ele


comunicada pelo que dispõe o artigo 30 do estatuto repressivo.
Nos dizeres de José Frederico Marques138:

[...] o infanticídio é um crime próprio, pois somente o pode cometer a mãe


em relação ao filho recém-nascido. Outras pessoas, no entanto, podem
figurar como coautores; e, como não se trata de delito privilegiado, mas
autônomo, comunicam-se as circunstâncias subjetivas que integram o tipo,
aos coautores, muito embora pense de modo contrário o insigne Nélson
Hungria. Mas, é preciso que o coautor tenha , como é óbvia, a participação
exclusivamente acessória. Se for ele o autor da morte, isto é, a pessoa que
executa o núcleo do tipo, então sua conduta, matando o nascente ou recém-
nascido, será enquadrada no artigo 121 do Código penal.

No mesmo sentido a orientação de Magalhães Noronha139:

[...] o terceiro que auxilia a parturiente sob a influência do estado puerperal,


a matar o próprio filho, é coautor de infanticídio ou homicida? Trata-se de
questão controvertida. Logo, Gomes e, entre nós, Hungria, opinam pelo
homicídio. Diz o último que se trata de um crime personalíssimo; que a
condição do estado puerperal é incomunicável, e que o artigo 26 (atual 30)
não tem aplicação, pois as causas que diminuem ou excluem a
responsabilidade não são na linguagem técnico-penal circunstâncias. Não
há dúvida alguma de que o estado puerperal é circunstância, isto é, estado,
condição, particularidade, e que, sendo elementar do delito, comunica-se ex
vi do artigo 26 (atual 30) aos co partícipes. Só mediante texto expresso, tal
regra poderia ser derrogada. Acresce que opinião contrária quebra a
unidade do delito e entra em flagrante choque com a teoria monista ou
unitária – artigo 25 (atual 29). A não comunicação ao corréu, só seria
compreensível, se o infanticídio fosse mero caso de atenuação do homicídio
e não, um tipo autônomo inteiramente à parte, completamente autônomo em
nossa lei.

Assim, pode-se concluir que a discussão doutrinária acerca da coautoria no


crime de infanticídio foi baseada na discussão acerca comunicabilidade ou
incomunicabilidade da elementar estado puerperal aos coautores, sustentando os
defensores da incomunicabilidade que na verdade o estado puerperal não era
propriamente uma circunstância, muito menos uma elementar, senão uma causa de
diminuição de pena, dado seu caráter personalíssimo.
Importante ressaltar que, para outra corrente, chamam de injusta a regra que
possibilita ao coautor responder pelo crime de infanticídio, tendo sua pena mitigada
em relação a quem realiza um homicídio.
Para exemplificar a flagrante injustiça que se faz, imaginem a seguinte
hipótese: a mãe que, sem conseguir provar a influência do estado puerperal, matar o
138
MARQUES, José Frederico. Op. cit., p. 187.
139
NORONHA, Edgard Magalhães. Op. cit., p. 52 e 53.
54

próprio filho, logo após o parto, responderá por homicídio. Porém se, em outra
situação fática, o enfermeiro, que é coautor da conduta de outra mãe, que, sob a
prova de influência do estado puerperal retirar a vida do próprio filho, responderá por
infanticídio. Essa é também a opinião de Basileu Garcia140, que diz que:

[...] esse absurdo provém de sensível falha de técnica legislativa, porquanto


não deveria ser erigida a elemento de determinada figura delituosa, como o
infanticídio, uma causa de diminuição de responsabilidade, qual seja, a
influencia do estado puerperal, tornando-se obrigatória a sua
comunicabilidade, por força do que dispõe o artigo 26 (atual 29 do Código
Penal).

Diante disso, percebe-se que a maioria dos autores, mesmo os que adotam
a tese da comunicabilidade do estado puerperal entre os coautores, consideram
injusta a possibilidade da pessoa que auxilia, instiga, induz e também a que realiza
conjuntamente a conduta com a mãe infanticida, responder pelo crime privilegiado.
Pode ser observado isso nos projetos de lei atualmente apresentados no
Congresso Nacional, bem como no anteprojeto da parte especial do Código Penal
de 1983.
O anteprojeto da parte especial do Código Penal foi elaborado em 1983 por
Everaldo da Cunha Luna, Jair Leonardo Lopes, José Bonifácio Diniz de Andrada,
Manoel Pedro Pimentel, Miguel Reale Junior, René Ariel Dotti, Ricardo Antunes
Andreucci, Eduardo Augusto Muylaert, com a colaboração de José Frederico
Marques e sob a coordenação de Luiz Vicente Cernicchiao. Por esse anteprojeto, o
partícipe do infanticídio sofreria as sanções cominadas ao crime de homicídio141.
Heleno Cláudio Fragoso142 explica que o artigo 123 desse anteprojeto
determinava:

Artigo 123: Matar o próprio filho, durante ou logo após o parto, sob a
influência perturbatória deste ou para ocultar a desonra própria.
Pena – reclusão, de dois a seis anos.
Parágrafo único – quem concorre para o crime incide nas penas do artigo
121 e parágrafos.

Observa-se, portanto, uma tendência doutrinária em considerar injusta a


possibilidade de terceiro que mata um nascente ou recém-nascido, que não a

140
GARCIA, Basileu. Op., cit., p. 115.
141
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 136.
142
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Loc. cit.
55

própria mãe sob a influência do estado puerperal, ser considerado coautor de


infanticídio.
Tendo como apoio toda essa discussão doutrinária precedente pode-se,
agora, expor a opinião acerca do concurso de pessoas no infanticídio.

4.1 CONCURSO DE PESSOAS NO DELITUM EXCEPTUM

A discussão tradicional sobre a possibilidade ou não do coautor responder


também por infanticídio baseou-se na comunicabilidade ou não da elementar estado
puerperal.
Entende-se que tal discussão já foi pacificada, mesmo porque o mais
expressivo defensor da incomunicabilidade, Nélson Hungria143 conhecido pela
firmeza de suas opiniões, na última publicação de sua obra “Comentários ao Código
Penal”, reconheceu que estava errado. Fundamentou a mudança de sua opinião no
Código Penal suíço. Segundo brilhante explanação, ele não se ateve à diferença
primordial entre o Código daquele país e o nosso. Na Suíça, não há a ressalva que
há no nosso artigo 30, pela qual nosso estatuto repressor comunica as
circunstâncias de caráter pessoal quando elementares do crime, sendo assim, este
brilhante autor se redimiu e reconheceu a comunicabilidade da elementar estado
puerperal.
No entanto, entende-se que a lei poderia ter sido mais clara no que tange ao
infanticídio, dizendo expressamente sob qual crime responderia o partícipe da
conduta da mãe. Há, na verdade, alguns projetos no Congresso Nacional neste
sentido.
O Projeto de Lei nº 3750/2004144, de autoria do Coronel Alves (PL) prevê
uma pena intermediária para o partícipe do infanticídio. O Projeto de Lei –
3750/2004 determina que:

143
HUNGRIA, Nelson. Comentário ao Código penal. Vol. IX. Rio de janeiro: Revista Forense: 1998.
p. 159.
144
BRASIL. In: Site da Camara. Projeto de Lei nº 3750/2004. Disponível em:
http://camara.gov.br/sileg/integras. Acesso em 14/07/2015.
56

Art. 2º O art. 122 do Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940,


Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação:
Infanticídio
“Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho,
durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
§ 1º Na mesma pena do caput incorre a mulher que ao invés de matar,
auxilia, induz ou instiga alguém a matar.
§ 2º O terceiro que induz, instiga ou auxilia a mulher a matar, pena de 8
(oito) a 15 (quinze) anos.”

O projeto de Lei de autoria de José Divino (Projeto de Lei – 1262/2003 145),


seguindo orientação do código penal argentino, revoga o artigo 123 do Código Penal
e equipara a conduta da mãe, que, sob a influência do estado puerperal, mata o
próprio filho, durante ou logo após o parto, ao homicídio. Entendo que essa não é a
orientação mais acertada. Não podemos fechar os olhos para a influência
perturbadora decorrente do parto que acomete algumas mulheres. Apesar da
dificuldade de sua comprovação, não podemos deixar de admitir a existência do
estado puerperal.
Por fim, o Projeto de Lei que parece mais acertado é o que se coaduna com
o anteprojeto da parte especial do Código penal de 1983, que não chegou a entrar
em vigência. É o projeto de Lei de autoria de Alberto Fraga (Projeto de Lei
3398/2004146)que adiciona um paragrafo ao tipo do artigo 12, equiparando a conduta
do partícipe do infanticídio à conduta do homicídio.
De acordo com o Projeto de Lei - 3398/2004, ao artigo 123 seria
acrescentado um parágrafo único que passaria a vigorar com a seguinte descrição:

Artigo 123 [...]


Parágrafo único: Quem, de qualquer modo, colabora, contribui, instiga,
induz ou auxilia a pratica do crime previsto no caput, responderá pelo crime
do artigo 121.

Esses são os projetos de Lei atualmente presentes no Congresso Nacional.


Apesar de não ser tranquila a questão da coautoria no crime de infanticídio,
entende-se que qualquer pessoa, exceto a mãe, sob a influência do estado
puerperal, que mata nascente ou recém-nascido deve responder por homicídio.
Pelas razões que se segue.

145
BRASIL, Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Projeto de Lei nº 1262/2003. Disponível
em: http://al.sp.gov.br. Acesso em 27/10/2016.
146
BRASIL, Camara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3398/2004. Disponível em:
http://camara.leg.br. Acesso em 27/10/2016.
57

Não há mais dúvida acerca da comunicabilidade ou incomunicabilidade da


elementar estado puerperal. Sendo assim, é pacífico, pelo menos para a maioria da
doutrina, de que o estado puerperal é elementar do crime de infanticídio e, em tese,
se comunica ao coautor, gerando flagrante injustiça.
Ocorre que, a questão da coautoria nesse crime, radica-se em outra
discussão que não a comunicabilidade ou não do estado puerperal, mas sim na tese
de que esse crime é uma exceção pluralística à teoria unitária adotada pelo nosso
Código Penal.
Nosso Código Penal147 em seu artigo 29 consagrou a teoria monista ou
unitária, pela qual todas as pessoas que assentirem à conduta do executor do crime
praticarão esse mesmo crime.
Porém, tal teoria é mitigada quando expressamente o Código Penal faz suas
exceções, as denominadas exceções pluralísticas, quando duas ou mais pessoas
realizam conjuntamente uma conduta, mas respondem por crimes diferentes148.
O crime de aborto é propriamente uma exceção pluralística, pois considera a
conduta do terceiro que pratica aborto na gestante com o consentimento desta e a
conduta da gestante, que autoriza que terceiro pratique aborto nela, crimes
diferentes. Assim, a gestante responde por um crime e o terceiro reponde por outro,
numa expressa exceção à teoria unitária.
Também, Nelson Hungria149 nos traz como e exemplo de exceção
pluralística no Código Penal os crimes de corrupção ativa e corrupção passiva.
Sendo que, quando terceira pessoa oferece ao funcionário público vantagem
indevida para que este pratique, omita ou retarde ato de oficio, e o funcionário
público aceita tal vantagem, essas duas pessoas respondem por crimes diferentes.
O funcionário público responde por corrupção passiva e a terceira pessoa por
corrupção ativa.
São outros exemplos dessa exceção os crimes de facilitação de contrabando
e o crime de contrabando ou descaminho. E, a meu ver, o crime de homicídio e
infanticídio.
A conduta da mãe, que, sob a influência do estado puerperal, mata o próprio
filho, durante ou logo após o parto, subsume-se ao delito do artigo 123 do Código

147
BRASIL, Decreto-Lei Nº 28487 DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal. . Op. cit., p. 351.
148
HUNGRIA, Nelson. Op. cit., p. 305.
149
HUNGRIA, Nelson. Loc. cit.
58

Penal. Ao revés, a conduta de terceiro que auxilia na execução do crime desta


mesma mãe, subsume-se à conduta do artigo 121 do Código Penal.
Assim, se terceira pessoa, juntamente com a mãe, realiza os atos
executórios do delito, no sentido de dar cabo à vida do nascente ou recém-nascido,
tal conduta será considerada homicídio, enquanto a conduta da mãe será de
infanticídio, pois esses crimes caracterizam uma das exceções pluralistas à teoria
unitária do Código Penal. Isso me parece claro, pois do contrário restaria um
contrassenso insuperável em admitir que terceiro, que não a mãe sob a influência do
estado puerperal, pudesse responder por infanticídio.
Conclui-se, portanto, que quem de qualquer modo concorrer com a mãe
para a prática do infanticídio, incide nas penas do artigo 121 do Código Penal.

4.2 LEMENTO NORMATIVO TEMPORAL DO TIPO

A circunstância de tempo previsto no infanticídio – durante o parto ou logo


após – é elemento normativo do tipo de infanticídio.
A ação física de matar o nascente ou recém-nascido deve ser cometida, não
somente sob a influência do estado puerperal, mas também durante o parto ou logo
após este. Deste modo, a influência do estado puerperal é de suma importância para
determinar se o crime cometido é mesmo de infanticídio ou homicídio, mas o estado
puerperal esta acompanhado do elemento normativo temporal do tipo, determinando
o período em que pode influenciar essa alteração psicológica para constituir
infanticídio. É irrelevante para caracterização do infanticídio que a mulher antes do
parto, sob a influência do estado puerperal, mate seu próprio filho (ainda feto), pois
consistirá em aborto e não em infanticídio. Essa é a opinião de Roberto Lyra150:

O que ninguém nega, o que todos reconhecem e proclamam, sem sombra


de dúvidas, é que, durante o parto ou logo após, há estado puerperal. Não
importa se começa antes ou vai além, o fato é que, infalivelmente, com
maior ou menor intensidade, ocorre durante o parto ou logo após, isto é, no
período mencionado pelo Código podemos ter ou não a indispensável
relação com o crime.

150
LYRA, Roberto. Noções de direito criminal: parte especial. Rio de Janeiro: Ed. Nacional de
Direito, 1944, p. 92.
59

O fato é que, se o crime for cometido antes do parto, ocorre aborto; se


cometido algum tempo depois do parto, homicídio; só é infanticídio quando a ação
física ocorre durante o parto, ou em momento imediatamente subsequente a este.
Assim, percebe-se que para determinar o momento em que a ação física
deve ocorrer devemos determinar o que é o parto e quando ocorre.
Para Delton Croce151, parto é “o conjunto de fenômenos mecânicos,
fisiológico e psicológico expulsivos do feto a termo ou viável, e de seus anexos, do
álveo materno para o exterior”.
Croce152 ainda acrescenta que “parto a termo é aquele que completou o
período de vida intrauterina normal, o que se processou entre 38ª e a 42ª semanas.
Prematuro é o que se processou entre a 21ª e a 28ª semanas”.
Para o ilustre Hélio Gomes153 “parto tem início para a obstetrícia com o início
das contrações, enquanto para a medicina legal, o parto tem início com a ruptura da
membrana amniótica”. Tal discussão é infindável e parece-se mais acertada a
segunda opinião, que determina como momento da ruptura da membrana amniótica,
pois nada mais natural que um processo expulsivo tenha início com a ruptura da
chamada “bolsa d’água”.
Após a fase de expulsão do feto, vem a do livramento ou dequitação, em
que a placenta é deslocada e expulsa do ventre materno iniciando a fase do
puerpério154.
Destarte, a morte do filho antes da ruptura da membrana amniótica
caracteriza aborto, não infanticídio. Portanto, o termo inicial do parto é a ruptura da
membrana amniótica, consequentemente, é o início do período em que à mãe é
dado o privilégio de responder com a pena mais branda caso mate seu próprio filho,
desde que esteja sob a influência do estado puerperal.
O termo legal durante o parto é delimitado inicialmente pela ruptura da
membrana amniótica e vai até a fase de livramento ou dequitação, onde a placenta é
expulsa155;

151
CROCE, Delton. Op. cit., p. 427.
152
CROCE, Delton. Loc. cit.
153
GOMES, Hélio. Op. cit., p. 369.
154
CROCE, Delton. Op. cit., p. 438.
155
CROCE, Delton. Op. cit., p. 439.
60

Cabe agora perquirir no que consiste o termo logo após o parto. Esse termo
dá ideia de imediatividade. É o posicionamento de Heleno Cláudio Fragoso 156 que
“esta expressão significa logo em seguida, imediatamente após, prontamente, sem
intervalo”. Porém, para Fernando Capez157. A opinião mais aceitada entre os juristas
é um pouco mais complacente. Em sua maioria defendem a expressão – logo após
– se mantém enquanto perdurar a influência do estado puerperal:

A melhor orientação é aquela que leva em consideração a duração do


estado puerperal, exigindo-se uma análise concreta de cada caso. Assim, o
delito de infanticídio deve ser cometido enquanto perdurar o estado
puerperal, não importando validar o número de horas ou dias após o
nascimento, e se aquele não mais subsistir, não poderemos mais falar em
infanticídio, mas é delito de homicídio.

Edgard Magalhães Noronha158 é dessa opinião:

Nascida a criatura, pode ainda o delito ocorrer, desde que se dê logo depois
do parto. Esse outro período acha-se delimitado pela influência do estado
puerperal, isto é, aquele estado de angústia, perturbações e etc., que
justificam o delictum exceptum. A lei não fixou prazo, como outrora alguns
Códigos faziam, de modo que abranja o variável período do choque
puerperal. É essencial que a parturiente não haja entrado ainda na fase d e
bonança, em que predomina o instinto materno.

Pelo exposto o que se faz imprescindível é que a mãe não tenha entrado
ainda na fase da bonança e quietação, em que ela já trocou, deu banho,
amamentou, enfim, no momento em que já predomina o instinto materno. Se a mãe
matar o próprio filho durante este período cometerá homicídio e não infanticídio.
Esta também é a intelecção da lei por parte do notável Nélson Hungria 159, que
diz que:

[...] o que se faz essencial, porém, do ponto de vista jurídico-penal é que a


parturiente não tenha entrado ainda na fase de bonança e quietação, isto é,
no período em que se afirma, predominante e exclusivista, o instinto
maternal. Trata-se de uma circunstância de fato a ser averiguada pelos
peritos médicos e mediante prova indireta.

Conclui-se, que a elementar de caráter fisiopsicológica (estado puerperal) e


o elemento normativo temporal (durante o parto ou logo após) devem ser analisados

156
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 110.
157
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. Vol. 2 e 3. São Paulo: Saraiva, 2004.p.
96.
158
NORONHA, Edgard Magalhães, Op. cit., p. 49.
159
HUNGRIA, Nélson. Op. cit., p. 226.
61

conjuntamente. A elementar “logo após o parto” só alcançará seu verdadeiro sentido


se subordinada à elementar do estado puerperal.
A delimitação do momento da ação física é de suma importância para
determinar quando se consuma o crime, mas essa é uma questão que será
abordada em item subsequente.

4.3 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA

O crime consuma-se com a morte do recém-nascido ou do nascente dada


pela própria mãe.
A necropsia do feto é indispensável para saber se o feto era nascente ou se
já era infante ou recém-nascido. Na pericia do infanticídio ainda se perquiri a causa
jurídica da morte, o estado psíquico da mulher e o diagnóstico do parto pregresso. É
a orientação de Vicente de Paula Rodrigues Maggio160.
A pericia do infanticídio é uma das mais complicadas, pois além de ter que
determinar a influência do estado puerperal, que por si só já constitui uma grande
dificuldade, tem que se determinar também o momento da ação delituosa, para
determinar se essa ação constitui em um infanticídio, aborto ou homicídio. Destarte,
o momento consumativo é um grande diferenciador dessas espécies de delito.
Se a conduta ocorreu antes do parto, trata-se de um aborto; se, durante o
parto ou logo após, infanticídio; e por fim, se ocorreu algum tempo após o parto,
após a fase da bonança ou quietação na qual não mais se evidencia a influência do
estado puerperal, trata-se de um delito de homicídio161.
Assim, é importante para a caracterização do infanticídio que a conduta
tenha ocorrido no interregno compreendido entre o rompimento da membrana
amniótica e antes da fase de quietação ou bonança em que predomine o instinto
materno.
Ademais, para que não se caracterize um delito impossível, a criança
nascente ou recém-nascida, deve estar viva. Antigamente, prova de vida era feita

160
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Op. cit., p. 126.
161
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Ibidem., p. 129.
62

através da prova de respiração, pois predominava o brocardo desenvolvido por


162
Gasper e Galero, que dizia: “viver é respirar, não respirar é não ter vivido” .
Com a evolução da medicina legal, tal brocardo foi deixado de lado.
Atualmente, constitui-se sujeito passivo do infanticídio o feto nascente e o infante
recém-nascido. A vida própria inicia-se antes da respiração, basta, a vida biológica
para que o sujeito seja considerado passível de sofrer infanticídio.
Para caracterizar a vida biológica, nos dizeres de Nélson Hungria163:

[...] basta averiguar, remontando-se ao momento anterior da expulsão, a


presença de vida biológica, isto é, a existência do mínimo de atividade
funcional de que o feto já dispõe antes de vir à luz, e da qual é o mais
evidente atestado a circulação sanguínea.

Portanto, há duas formas de vida própria, a vida intrauterina, apnéica, pela


qual o feto deixa esta condição para se tornar um nascente ou neonato, que não
respirou ainda, mas já possui vida própria, haja vista a ruptura da membrana
amniótica; e, a vida extrauterinal que se inicia com o movimento pulmonar
respiratório, em que o neonato já é um recém-nascido ou infante.
A prova de vida do nascente ou neonato, que foi morto dentro do ventre pela
própria mãe, é feita através de exame denominado tumor de parto, que consiste em
um edema que surge na parte do corpo do neonato que primeiro toma contato com a
abertura genital da parturiente164. Concluindo, se a conduta da mãe recai sobre o
feto, ainda ligado à mãe, que não possui vida própria, essa conduta caracteriza-se
em um aborto; se a ação delituosa é realizada após o início da vida intrauterina
apnéica ou durante a vida extrauterina, formas de vida própria, esta conduta
subsume-se ao delito do artigo 123 do Código Penal. Consuma-se o crime, então,
com a morte do neonato ou do recém-nascido.
Nesse sentido, como afirma Nélson Hungria 165 crime material que é, pois
descreve um resultado material (morte) e exige sua realização para que se
consume, admite tentativa. Assim, se iniciada a conduta, e a mãe não consegue
consumar seu ato por circunstâncias alheias à sua vontade, o crime é punido sob a
modalidade tentada.

162
MAGGIO, Vicente de Paula Rodrigues. Loc., cit.
163
HUNGRIA, Nélson. Op. cit., p. 230.
164
CROCE, Delton. Op. cit., p. 502.
165
HUNGRIA, Nélson. Op. cit., p. 235.
63

O crime tentado é punido como o crime consumado, porém com redução de


um a dois terços da pena (artigo 14, II, parágrafo único do Código Penal). A redução
da pena será maior ou menor, sempre dentro do limite determinado pela lei,
dependendo da gravidade da tentativa. Ou seja, quanto mais o crime se aproximar
de sua consumação menor será a redução da pena166.

4.4 QUALIFICAÇÃO DOUTRINÁRIA

O crime de infanticídio é um crime próprio e de mão própria, material,


plurissubsistente, comissivo e omissivo impróprio, instantâneo, de dano e doloso167.
É próprio porque só pode ser cometido por uma pessoas em especifico, a
mãe, parturiente, puérpera, que sob a influência do estado puerperal, retira a vida do
próprio filho durante o parto ou logo após. Porém, é também crime de mão própria
porque só pode ser cometido pela própria mãe.
Como o infanticídio descreve um resultado naturalístico, e exige a
consecução desse resultado para que o crime se consuma, trata-se de um crime
material.
É plurissubsistente já que o processo executivo do crime de infanticídio é
formado por diversos atos. Por ser um crime de ação livre, ele poder ser cometido
por qualquer meio comissivo ou omissivo de execução. Não exige qualquer ação
vinculada para sua consumação. O crime é instantâneo, pois se consuma
instantaneamente com a morte do nascente ou recém-nascido.
O infanticídio é também um delito de lesão ou dano, pois exige uma efetiva
ofensa ao bem jurídico tutelado. Por fim, como foi exaustivamente apontado quando
da análise do elemento subjetivo do delito de infanticídio, esse crime só é punível a
título de dolo, ou seja, não há infanticídio culposo.

4.5 PENA E AÇÃO PENAL

166
HUNGRIA, Nélson. Loc. cit.
167
HUNGRIA, Nélson. Ibidem, p. 183.
64

De acordo com os artigos 5º, XXXVIII da Constituição Federal 168 e 74, §1º do
Código de Processo Penal169, o infanticídio consumado ou tentado, é crime de ação
penal pública incondicionada de competência do Tribunal do Júri.
No caso de crime consumado, é competente o juízo do local onde se
consumou o crime, onde ocorreu a morte do nascente ou recém-nascido. Já na
tentativa, é competente o juízo de onde se realizou a última atividade do agente
tendente à consecução morte do sujeito passivo.
A pena em abstrato cominada ao delito é de detenção de dois a seis anos 170.
A ação penal, sendo pública incondicionada, exige da autoridade policial imediata
instauração de inquérito, quando esta tiver conhecimento do fato, independente de
qualquer provocação, devendo agir de oficio.

168
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasilia, DF. Senado, 1988 {s.n.]
1988. p. 24.
169
BRASIL, Decreto-Lei Nº 3689 de 03 de Outubro de 1941. Código Processo Penal, Vade Mecum.
17 edição. Saraiva, 2014, p. 403.
170
BRASIL, Decreto-Lei Nº 28487 de 7 de Dezembro de 1940. Código Penal. Op. cit., p. 358.
65

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve por escopo estudar a questão da coautoria no


delito de infanticídio e, para tanto, realizou um estudo sistemático de todo o delito
esculpido pelo artigo 123 do nosso estatuto repressivo.
Percebeu-se que o infanticídio tem inúmeros pontos controvertidos como a
honoris causa, a influência do estado puerperal e a ausência da modalidade
culposa. Pontos que foram debatidos no corpo deste estudo, porém, talvez, o ponto
mais controvertido e objeto deste estudo, é a questão da codelinquência no crime do
artigo 123 do Código Penal.
Essa questão foi tradicionalmente discutida levando-se em consideração a
comunicabilidade e incomunicabilidade do estado puerperal. Enquanto Nélson
Hungria, Heleno Cláudio Fragoso, Aníbal Bruno e Galdino Siqueira propugnavam
pela incomunicabilidade do estado puerperal ao coautor, outros autores como
Magalhães Noronha, José Frederico Marques, Euclides Custódio da Silveira, Esther
Figueiredo Ferraz utilizando-se como argumento os artigos 29 e 30 do Código Penal,
defendiam a comunicabilidade do estado puerperal aos coautores desse delito.
Verificou-se que a questão foi pacificada na medida em que os principais
defensores da teoria da incomunicabilidade já admitiram que o estado puerperal é
sim elementar do infanticídio e, de acordo com o artigo 30 do Código Penal, deve se
comunicar aos codelinquentes.
Destarte, a questão como está disposta à primeira vista, gera uma flagrante
iniquidade porque a terceira pessoa que mata ou auxilia a mãe a matar um ser
indefeso, totalmente aquém de qualquer possibilidade de resistência, seria
responsabilizada por um crime com pena muito menor da que verdadeiramente ele
merece.
O infanticídio foi ao longo dos tempos sendo punido diferentemente.
Primeiramente, nem punido era; depois foi punido com penas severíssimas,
culminando com a pena de morte; por fim, contemporaneamente, o infanticídio, em
uma nítida reação em favor da mãe infanticida, é apenado mais beneficamente em
66

relação ao homicídio por concorrerem causas que tomam a conduta da mãe menos
gravosa que a conduta de um homicida comum. Essas causas variam, de um país
para outro. Uns adotam o critério puramente psicológico de honra sexual, outros,
como o Brasil, adotam o critério fisiopsicológico, refletido na expressão influência do
estado puerperal.
Analisando especificamente o caso do nosso ordenamento jurídico, a
infanticida é tratada mais beneficamente pela nossa lei penal tendo por base a
conduta do homicida comum, pois ela sofre durante o parto e logo a após a
influência perturbadora e transitória do estado puerperal, resultante das dores, do
sangramento, das alterações hormonais e das alterações psicológicas decorrentes
do parto, que causam na parturiente uma obnubilação de sua consciência
culminando com a liberação de instintos maldosos que matam a criança indefesa.
O terceiro que auxilia a mãe, ou mesmo que executa a conduta descrita no
tipo penal, não pode, sob pena de afrontar todo nosso ordenamento jurídico,
responder por infanticídio.
O coautor do infanticídio nada mais é do que homicida. Quem mata alguém,
comete homicídio. O enfermeiro, o médico, o pai da parturiente, ou qualquer outra
pessoa que auxilia a mãe a matar seu próprio filho, não é mãe, tampouco está sob a
influência do estado puerperal e não pode, portanto, cometer infanticídio.
Poderia alguns argumentar que essa questão já está pacificada, que o
estado puerperal é elementar do crime de infanticídio e, por isso, deve se comunicar
ao coautor.
Primeiramente, é obvio que, para sepultar toda essa discussão seria
necessário que nossa legislação penal fosse mais clara quanto ao infanticídio. Duas
poderiam ser as alterações: ou se revogaria o delito de infanticídio e se colocaria a
conduta do artigo 123 como espécie de homicídio privilegiado, em que o estado
puerperal passaria a elementar para circunstância de caráter pessoa, incomunicável,
portanto; ou, somar-se-ia um parágrafo ao delito de infanticídio dizendo que o
coautor deste delito responderia por homicídio.
Porém, o nosso ordenamento jurídico atual, apesar de não ser inequívoco,
não comete a injustiça de se privilegiar um homicida com pena de infanticídio.
Apesar de não ter sido notada pela maioria doutrinária, o crime do artigo 123
constitui-se de uma exceção pluralística à teoria unitária ou monista do concurso de
pessoas.
67

O nosso Código Penal, em seu artigo 29, consagrou a teoria monista, pela
qual, quem de qualquer modo concorre para o crime, incide nas penas a este
cominadas. Exemplificando, quando duas pessoas imbuídas pelo mesmo desejo,
concorrem para a mesma consequência, juridicamente relevante para o direito
penal, elas devem responder pelo mesmo crime. Essa é a teoria genérica de nosso
Código Penal.
Ocorre que, apesar de ser uma teoria aplicável a toda a legislação penal, ela
também sofre restrições, haja vista os crimes de corrupção ativa e corrupção
passiva (artigos 333 e 317 respectivamente, do Código Penal), aborto provocado por
terceiro com o consentimento da gestante e aborto com o consentimento da
gestante (artigos 126 e 124 respectivamente, do Código Penal), e facilitação de
contrabando e contrabando (artigos 318 e 334 respectivamente, do Código Penal).
Nesse sentido, pode-se concluir que o infanticídio também é uma exceção
pluralística à teoria unitária, sendo que, a mãe que, sob a influência do estado
puerperal, mata seu próprio filho, durante ou logo após o parto, sempre responde
por infanticídio; enquanto aquele que de qualquer modo concorre para a conduta da
mãe, responde por homicídio.
Assim, pode-se aferir que o infanticídio é um crime próprio e de mão própria.
Próprio porque exige de seus sujeitos uma especial condição, qual seja, a de
parentesco entre mãe e filho. Não obstante, é também crime de mão própria , pois só
pode ser cometido pela própria mãe, não admite concurso de pessoas.
68

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BOBBIO, Norbeto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo:
Paz e Terra, 2007.

CHAUI, Marilena. Iniciação a Filosofia. São Paulo: Ática, 2013.

REZENDE, Maria José de,. A liberdade e a igualdade nas teorias da democracia nos séculos
XVIII e XIX. São Paulo: Revista Mediações, 1997.

TOMAZI, Nelson Dacio. Iniciação ao estudo de Filosofia. São Paulo: LTD, 1993.

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