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REGINA HELENA ALVES CODESSEIRA

O LIDE NA NOTÍCIA JORNALÍSTICA IMPRESSA


E SUAS ESTRATÉGIAS INTERACIONAIS

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


São Paulo – 2005
REGINA HELENA ALVES CODESSEIRA

O lide na notícia jornalística impressa


e suas estratégias interacionais

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Língua Portuguesa sob a
orientação da Prof.a Dra. Ana Rosa Ferreira Dias.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


São Paulo – 2005
BANCA EXAMINADORA

______________________________________

______________________________________

______________________________________
DEDICATÓRIA

A Maria Elisa Alves Codesseira por ter


sido ao longo de minha vida e deste
mestrado minha mãe, meu pai, minha
melhor amiga, minha confidente e minha
maior incentivadora.
AGRADECIMENTOS

À CAPES pelo incentivo financeiro para elaboração deste trabalho.

A Antonio Pires Codesseira, meu querido pai, que ao longo de minha vida me
auxiliou financeiramente em todos os momentos necessários.

À Cristina H. Alves Codesseira, minha irmã, que sempre me incentiva e torce pelo
meu sucesso e pela minha felicidade.

À Prof.a Ana Rosa Ferreira Dias, sábia e paciente orientadora, que com todo seu
conhecimento, meiguice e amizade, tão bem me orientou, tornando possível, desta
forma, a realização do presente trabalho.

À Banca Examinadora, composta pela Prof.a Dra.Vera Lúcia Meira Magalhães e


pelo Prof. Dr. Dino Preti, pela atenção e fundamentais sugestões que tanto me
auxiliaram na elaboração deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Dino Preti, querido professor e exemplar docente, por todo o carinho,
apoio, incentivo cultural e contribuição para mais essa etapa de minha formação.

Às queridas amigas que fiz nesta Pós-Graduação: Lúcia, Daniela, Luciana, Letícia,
por tornar o trabalho menos árduo e mais alegre, pelo incentivo, companheirismo e
generosidade.
“– Estou na pista de um segredo industrial que me
permitirá fabricar, sem um fiapo de algodão, um papel tão
sólido quanto o papel da Holanda, a cinqüenta por cento
abaixo do preço do custo atual da pasta de algodão.
– É uma fortuna! – exclamou Petit Claud.
– Uma grande fortuna, meu amigo, porque será preciso,
dentro de dez anos, dez vezes mais papel do que é
consumido agora. O jornalismo será a loucura de nosso
tempo!”
(BALZAC, Honoré de. Ilusões perdidas. p. 428)
RESUMO

Este trabalho tem por objetivo identificar e categorizar as estratégias


interacionais presentes na construção dos lides das notícias jornalísticas impressas
produzidos por dois jornais paulistas de grande circulação: O Estado de S.Paulo e
o Jornal da Tarde.

Ao abordarmos os lides produzidos por esses jornais, procuramos expor que


existe uma interação distanciada no momento de produção e leitura de um texto,
uma vez que leitor e autor exercem funções específicas durante esse processo. O
autor tem a função de construir seu texto, selecionando as estratégias adequadas
para que seu objetivo seja atingido. O leitor, por sua vez, deve procurar
compreender, construir uma significação para aquilo que lê, estabelecendo, assim,
um diálogo com o autor mediado pelo texto.

Para tanto, buscamos respaldo teórico no dialogismo interacional proposto


por Mikhail Bakhtin, nas idéias acerca da função de um leitor, formuladas por Eco
e Maingueneau, e discutimos a questão do envolvimento entre os interlocutores.

Sob essa perspectiva teórica, tivemos embasamento para analisar a


organização estrutural do lide que não segue a formulação tradicional estruturada
no princípio da relevância e, então, levantar as estratégias interacionais presentes
nesses lides que visam a construir o envolvimento do leitor com a notícia
jornalística.

Por meio da análise da amostra, chegamos a basicamente dois recursos que


podem ser utilizados pelo jornalista para interagir e seduzir o seu leitor: ou mexer
com o imaginário dele, construindo lenta e detalhadamente uma cena em sua
mente, ou dirigir-se diretamente a ele, criando, assim, uma idéia de que os
interlocutores mantêm uma conversação face a face.

PALAVRAS-CHAVE: Notícia jornalística, tipos de lide, estratégias interacionais,


envolvimento.
ABSTRACT

This paper has the objective to identify and to classify the interactional
strategies present in the construction of the news’ leads produced by two
newspapers of great circulation from São Paulo: O Estado de S.Paulo e o Jornal
da Tarde.

To approach the leads produced by those newspapers, we said that an


distanced interaction exists in the moment of production and reading of a text,
once reader and author make specific functions during that process. The author has
the function of building his text, selecting the appropriate strategies to reach his
objective. The reader should try to understand, to build a significance for that
reads, establishing, like this, a dialogue with the author mediated by the text.

We are unchored in the interactional dialogism proposed by Mikhail


Bakhtin, in the ideas that he concerning about the reader's function, formulated by
Eco and Maingueneau, and we discussed the subject of the involvement between
the speakers.

Under that theoretical perspective, we had support to analyze the structural


organization of the lead that does not follow the traditional formulation, and, then,
to lift the interactional strategies present in those leads that seek to build the
reader's involvement with the journalistic news.

Through the analysis of the sample, we arrived basically two resources that
can be used by the journalist to interact and to seduce his/her reader: or to move
with the imaginary of him, building slow and in full detail a scene in his/her mind,
or to drive directly him, creating, like this, an idea that the speakers maintain a
conversation face to face.

KEYWORDS: Journalistic news, leads, interactional strategies, involvement.


SUMÁRIO

Introdução .............................................................................................................. 01

I. Caracterização da amostra de análise


1.1. Considerações gerais ...................................................................................... 06
1.2. Os cadernos e os leitores de O Estado de S.Paulo ......................................... 08
1.3. Os cadernos e os leitores do Jornal da Tarde ................................................ 09
1.4. Algumas considerações sobre a amostra de análise ....................................... 11

II. Manuais de redação e os lides jornalísticos


2.1. Considerações gerais ...................................................................................... 13
2.2. Os manuais de redação da Folha de S.Paulo ................................................. 15
2.3. Os manuais de redação de O Estado de S.Paulo ............................................ 18
2.4. A criatividade do jornalista e os manuais ....................................................... 20
2.5. O lide nos manuais de redação ....................................................................... 21
2.6. Os lides e os teóricos do jornalismo impresso ............................................... 31

III. Leitor, interação, dialogismo e envolvimento


3.1. Considerações gerais ...................................................................................... 45
3.2. Autor e leitor: uma estreita relação ................................................................ 46
3.3. Os diferentes tipos de leitores ........................................................................ 51
3.4. A noção de interação ..................................................................................... 55
3.5. Interação verbal e dialogismo em Bakhtin ..................................................... 58
3.6. A interatividade de Marcuschi ....................................................................... 68
3.7. Envolvimento: uma estreita relação com a fala e com a escrita ..................... 73

IV. O lide e suas estratégias interacionais


4.1. Considerações gerais ...................................................................................... 83
4.2. Tipos de estratégias interacionais presentes nos lides .................................... 86
4.2.1. A imaginação do leitor como estratégia interacional .................................. 88
4.2.1.1. Lide literário: o uso da intriga como estratégia interacional .................... 89
4.2.1.2. Lide particularizante: o uso de casos particulares como estratégia
interacional ............................................................................................................ 97
4.2.1.3. Lide descritivo: o uso da descrição como estratégia interacional .......... 101
4.2.2. A conversa com o leitor como estratégia interacional .............................. 106
4.2.2.1. Lide opinativo: opinião do jornalista como estratégia interacional ........ 107
4.2.2.2. Lide interrogativo: o uso da interrogativa como estratégia interacional..111
4.2.2.3. Lide com interlocutor determinado: o uso do leitor apostrofado como
estratégia interacional .......................................................................................... 116

Considerações finais ............................................................................................ 122

Referências bibliográficas ................................................................................... 125

Anexos
1

INTRODUÇÃO

O jornal pode ser definido como um veículo impresso de comunicação, que


possui uma tiragem e uma periodicidade regulares, e que está organizado em
cadernos cujas folhas são soltas.

Porém, ele é muito mais do que isso. O jornal é um veículo de comunicação,


que juntamente com o rádio e a televisão, goza de grande prestígio em nossa
sociedade. Ele é um produto que espera ser consumido por pessoas que desejam
manter-se um pouco mais informadas. Trata-se, também, de um veículo produtor
de notícias e é, portanto, o material de estudo da presente dissertação.

O desejo de estudar o texto jornalístico surgiu de uma antiga paixão pela


mídia impressa. Essa “paixão” está relacionada à maneira como o jornalista
habilmente transforma uma informação em notícia.

Além desse motivo, há, também, uma relevância social para se estudar a
notícia jornalística, que está fundamentada na importância do jornal, pois como
afirmam Bell e Garrett (1998: 2), “o jornal é o mais prestigioso dos gêneros da
mídia diária, e sua função é central no exercício do poder nas sociedades
modernas.”

O presente trabalho tece reflexões acerca das notícias jornalísticas impressas


publicadas por dois jornais paulistas de grande circulação: O Estado de S.Paulo e o
Jornal da Tarde, ambos pertencentes à mesma empresa, mas destinados a um
2

público-alvo diferente.

Ao analisarmos esses jornais, tivemos por objetivo identificar e categorizar


as estratégias interacionais presentes na construção de um envolvimento do leitor
com a notícia jornalística impressa por meio de um lide caracterizado como não
tradicional.

O lide tradicional surge por uma necessidade de padronização da notícia


jornalística. Nessa tentativa de padronização, a organização da notícia jornalística
passou a ser norteada segundo o princípio da relevância, ou seja, a informação
principal, a mais importante é destacada no momento em que o jornalista produz
seu texto. Esse destaque, no texto, é dado, transformando o fato principal em
manchete e desenvolvendo-o no lide.

Se a notícia jornalística é, então, estruturada seguindo o princípio da


relevância, não se importando com a seqüenciação cronológica dos fatos, ela
possui outras regras de ordenação denominadas por van Dijk (2000: 123) de
esquemas rígidos. Esses esquemas são a superestrutura do texto jornalístico e esta
possui “uma natureza fixa, convencional (e deste modo, culturalmente variável)
para cada tipo de texto”, como veremos no segundo capítulo.

O que nos propusemos a trabalhar é justamente a ruptura com essa


superestrutura da notícia jornalística que se preocupa com o fato e a introdução de
um lide com características que, ou despertam a imaginação de seu leitor, ou
apresentam traços conversacionais, cujo objetivo é o de interagir com esse leitor,
de envolvê-lo, de chamá-lo a partilhar algo que a princípio poderia não ser
conhecido por ele.

Sendo assim, analisamos seis diferentes tipos de lides que têm como
preocupação inicial não o fato ocorrido, mas sim, o seu enunciatário, ou seja, o seu
leitor. Por esse motivo, esse lide não apresentará uma síntese da informação mais
3

importante do fato, porém, conterá estratégias interacionais que atendam a esse


objetivo de seduzir, de prender a atenção de seu leitor.

Esses lides, embora presentes em manuais de jornalismo, ainda são


utilizados com moderação. Uma das explicações para que isso ocorra é o fato de o
jornalista atender a uma padronização apresentada pelos manuais de redação dos
jornais e a sua excessiva carga de atividades, que obriga esse jornalista a seguir tal
padronização como um recurso para agilizar seu trabalho.

Todavia, afirma Castro (2002: 77):

o modelo da prática jornalística que conhecemos hoje, pelo menos


o praticado em vários jornais diários do país está agonizante. Essa
mesma imprensa, inclusive, já começa a constatar a agonia e o
padecimento desse modelo. É que hoje uma hibridação narrativa
começa a emergir nas redações. Ante a dinâmica da informação,
pergunta-se: o que tem o jornal a dizer no dia seguinte? Ou ele
adapta-se ou cairá no efeito papagaio, a repetir o já dito.

A adaptação do jornalismo passa a ocorrer a partir do surgimento da


televisão e do telejornal, dando origem a uma nova corrente no jornalismo
chamado de New Journalism (Novo Jornalismo). A par disso, Dines (2001:89)
ressalta:

recentemente, nos meios intelectuais norte-americanos, fabricou-


se uma nova escola: o “Novo Jornalismo”, tendo como expoentes
máximos o repórter Tom Wolfe, Norman Mailer, conhecido
escritor e panfletário, e Jimmy Breslin, repórter do New York
Herald Tribune. O novo jornalismo preconizado é um velho estilo
de escrever, adaptado ao que produzem aqueles intelectuais e seus
companheiros, entre a crônica, a reportagem e o depoimento. Não
é uma nova concepção para o jornal, nem uma nova linha de
trabalho ou atitude profissional.

No novo jornalismo, a idéia primordialmente defendida é a de que o texto


jornalístico deve acima de tudo seduzir o leitor, não podendo mais tratar
superficialmente do fato, uma vez que o rádio, a televisão e a própria internet já
fizeram isso anteriormente. O jornal deve, então, tratar do fato por inteiro,
4

apresentar todos os seus desdobramentos e todas as suas circunstâncias.

Alguns dos lides analisados no presente trabalho, como o lide descritivo e o


lide ficcional, fazem parte dessa corrente do novo jornalismo. Entretanto, o que
vale ressaltar é que sejam esses lides, e conseqüentemente essas notícias, parte do
novo jornalismo ou não, o que verdadeiramente importa é que eles, diferentemente
do lide tradicional, privilegiam o envolvimento com o leitor e não com o fato.

Para chegarmos a tal conclusão, fizemos uma primeira pesquisa com


diversos jornais impressos paulistas: O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo,
Jornal da Tarde e Agora. Após esse primeiro contato, selecionamos a amostra de
análise e iniciamos nosso estudo.

O presente trabalho principia por uma apresentação do material pesquisado,


ou seja, tratamos da amostra de análise, caracterizamos o jornal O Estado de
S.Paulo e o Jornal da Tarde e, finalmente, levantamos as características do
público-leitor de cada um deles.

No segundo capítulo, abordamos especificamente os manuais de redação


dos jornais de prestígio e de grande circulação na cidade de São Paulo: O Estado
de S.Paulo e Folha de S.Paulo. Apresentamos um histórico desses manuais e as
idéias acerca do lide presentes neles. Após tal caracterização, tratamos dos
diferentes tipos de lide desses referidos manuais de jornalismo.

O capítulo seguinte contém as informações que balizarão a análise dos lides.


Sendo assim, discutimos primeiramente a relação existente entre autor e leitor e os
diferentes tipos de leitores, fundamentados nos preceitos teóricos formulados por
Eco (1986) e Maingueneau (2001, 1998, 1996).

Em seguida, definimos o termo interação, discorremos sobre os


pressupostos teóricos postulados por Bakhtin (2003, 2002) acerca da noção de
5

interação e de dialogismo e apresentamos as idéias de Marcuschi (1999) sobre a


interatividade. Verificamos, então, por meio de tais idéias, que todo texto, seja ele
escrito ou oral, pretende dialogar e interagir com um determinado interlocutor,
envolvendo-o naquilo que está sendo escrito ou falado.

Isso posto, podemos afirmar que o envolvimento surge como conseqüência


dessa relação dialógica interacional existente entre os interlocutores de um texto
oral ou escrito e que ele pode concretizar-se de três diferentes maneiras, ou seja, há
um envolvimento com o enunciatário, com o tema ou consigo mesmo.

No quarto e último capítulo, fizemos a análise da amostra selecionada e


caracterizada em seis diferentes lides: o lide ficcional, o descritivo, o
particularizante, o opinativo, o interrogativo e o com interlocutor determinado.

O que todos esses lides possuem em comum é justamente o fato de


privilegiarem o envolvimento com o enunciatário ao invés do tema. Nessa busca
pelo envolvimento, parte deles procura mexer com a imaginação de seu leitor,
criando uma imagem de determinada cena em sua mente, e uma outra parte
procura envolvê-lo por meio da simulação de uma conversa face a face.

Diante dessas considerações, asseguramos que o presente trabalho tem


como amostra de análise o lide produzido pela imprensa paulista e que pautamos
essa análise principalmente em estudos de Bakhtin (2003, 2002) acerca dos
conceitos de interação e dialogismo. Nosso objetivo com tal análise, portanto, é o
de identificar e categorizar as estratégias interacionais presentes na construção de
um envolvimento do leitor com a notícia jornalística impressa por meio de um lide
caracterizado como não tradicional.
6

I. CARACTERIZAÇÃO DA AMOSTRA DE ANÁLISE

1.1. Considerações gerais

O jornal é um meio de comunicação que trabalha com o hoje. Aliás, só o


hoje importa. Sua palavra de ordem é o agora. O ontem já faz parte do passado,
tornou-se coisa velha, e o amanhã ainda não existe. Ele é vivo, pois trata da vida.
Por esses e muitos outros motivos, que não precisam ser neste momento elencados,
é que o material de pesquisa do presente trabalho é justamente o jornal.

Procurávamos, em um primeiro momento, notícias em qualquer um dos


principais jornais paulistas O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, Jornal da
Tarde e Agora que não seguissem a convenção de um lide tradicional, aquele
criado nas escolas norte-americanas e que propõe sua organização a partir da
síntese do acontecimento mais importante do fato noticiado.

Identificamos a presença de tais notícias não convencionais, sendo que


alguns desses lides diferenciavam-se bastante da idéia que tínhamos sobre o
assunto. A ocorrência freqüente desses lides chamou-nos a atenção, principalmente
em cadernos que tratam dos esportes, da cidade ou de assuntos culturais.

Fomos ler os manuais de redação atuais desses principais jornais para saber
o que eles falavam sobre o lide e pudemos descobrir que o manual da Folha, de
uma maneira menos autoritária, afirma ter o lide a função de sintetizar a notícia,
mas que para isso não existe um modelo, embora dê alguns exemplos. Por sua vez,
7

o manual de O Estado pareceu ser mais categórico e imperativo quanto à produção


do lide, como mostraremos no próximo capítulo. Por causa dessa menor
flexibilidade na produção dos lides proposta pelo manual do Grupo Estado,
optamos por analisar as notícias produzidas por uma única empresa em seus dois
jornais existentes: O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde.

O jornal O Estado de S.Paulo é o mais antigo da cidade de São Paulo que


ainda está em circulação. Ele foi fundado por dezesseis pessoas dentre elas Manoel
Ferraz de Campos Salles e Américo Brasiliense, que tinham por objetivo criar um
diário republicano com o propósito de lutar contra a monarquia e a escravidão.
Surgiu, então, A Província de São Paulo durante a realização de uma Convenção
Republicana em Itu.

Ao longo dos cento e vinte e nove anos de existência de O Estado de


S.Paulo, novas empresas e produtos foram criados. Essa diversificação tem início
em 1958 com a inauguração da Rádio Eldorado. Em 1966 é lançado o Jornal da
Tarde, um jornal cuja proposta era a de dar um acompanhamento especial aos
problemas urbanos da cidade de São Paulo.

A partir de 1968, tanto O Estado de S.Paulo quanto o Jornal da Tarde


passam a ser censurados por possuírem uma posição contrária ao regime militar.
Foram várias as dificuldades enfrentadas pelo grupo Estado até 1975, quando a
censura é, então, retirada. Como forma de protesto, os dois jornais do grupo
publicavam no lugar dos textos censurados, poemas de Camões (em O Estado de
S.Paulo) e receitas culinárias (no Jornal da Tarde).

Em agosto de 1981, ambos os jornais ganham em última instância uma ação


movida contra a União pelas perdas sofridas pela empresa com a apreensão de
duas edições em maio de 1973, quando ambos foram proibidos de noticiar a
renúncia do ministro da agricultura do governo Médici, Cisne Lima.
8

1.2. Os cadernos e os leitores de O Estado de S.Paulo

O Estado de S.Paulo, segundo pesquisa do próprio jornal e disponibilizada


para o presente trabalho1, possuía no ano de 2003 na grande São Paulo 1.557.000
leitores, sendo que 52% do sexo masculino e 48% do feminino. Desse total, em
média, 26% dos leitores pertencem à classe A, 48% à classe B e 26% às CDE.

Ele é de circulação diária e conta com vinte e um diferentes cadernos que


circulam em diferentes dias: “Primeiro caderno”, “Auto e acessórios”, “Caderno
2”, “Casa e família”, “Cidades”, “Classificados”, “Construção”, “Economia e
negócios”, “Empregos”, “Esportes”, “Estadão regiões”, “Estadinho”, “Guia
Caderno 2”, “Imóveis”, “Informática”, “Negócios e oportunidades”, “Painel de
negócios”, “Suplemento agrícola”, “Suplemento feminino”, “Telejornal” e
“Viagem”.

Dentre esses cadernos, os que possuem circulação diária, ou seja, fazem


parte do jornal de segunda-feira a domingo, é o “Primeiro caderno”, que está
subdividido em “Espaço aberto”, página dedicada aos artigos assinados, “Notas e
informações”, página dedicada aos Editoriais e à opinião do leitor, “Nacional”,
“Geral” e “Internacional”, que têm, com exceção do “Espaço aberto”, que consta
na página A2 e “Notas e informações”, na página A3, a ordem alterada em sua
construção. Durante a Segunda Guerra do Golfo, por exemplo, alguns dias, a parte
“Internacional” compunha um outro caderno. Além do “Primeiro caderno”, o
“Caderno 2”, “Cidades”, “Economia e negócios”, “Esportes” são os outros
cadernos que também circulam de segunda-feira a domingo. Os demais circulam
em dias diferentes e, em sua maioria, possuem periodicidade semanal.

Quanto à faixa etária dos leitores do jornal, de modo geral, 4% têm entre 10
e 14 anos; 10% entre 15 e 19 anos; 29% entre 20 e 29 anos; 21% entre 30 e 39
__________
1. A pesquisa do Grupo Estado foi disponibilizada para o presente trabalho pela funcionária responsável pelo setor
de marketing da empresa.
9

anos; 16% entre 40 e 49 anos e 20 % entre 50 a 69 anos.

1.3. Os cadernos e os leitores do Jornal da Tarde

Comparativamente o Jornal da Tarde possui uma quantidade bem menor de


leitores. Eram 468.000 em 2003, segundo dados do próprio Grupo Estado, dos
quais 61% são do sexo masculino e 39% do feminino. Desse total, de maneira
geral, 39% dos leitores pertencem à classe A, 20 % à B e 43% às CDE.

Ele é também de circulação diária e possui onze cadernos: “Primeiro


Caderno”, “Caderno tv”, “Classificados”, “Construção e serviços”, “Empregos
JT”, “Esportes”, “Informática”, “Jornal do barco”, “Jornal do carro”, “SP
Variedades” e “Turismo”. Alguns desses cadernos têm circulação diária, outros
circulam em determinados dias da semana ou até mesmo apenas uma vez ao mês,
como é o caso do “Jornal do barco” que circula somente na última sexta-feira de
cada mês.

Os cadernos cuja circulação é diária são: “Primeiro caderno”, “Esportes” e


“SP Variedades”. O “Primeiro caderno”, assim como em O Estado de S.Paulo está
subdividido em seções: “Artigos”, “Editoriais”, “Política”, “Polícia”, “Cidade”,
“Economia”, “Mundo”. Esporadicamente, o jornal publica outras duas seções
intituladas “Consumo” e “Especial”. Dentre essas seções, não existe um número
determinado de páginas nem uma seqüência definida para elas.

Quanto à faixa etária dos leitores deste jornal, de maneira geral, 2% têm
entre 10 e 14 anos; 8% entre 15 e 19; 25% entre 20 e 29 anos; 24% entre 30 e 39
anos; 19% entre 40 e 49 anos e 22% entre 50 e 69 anos.

O principal diferencial entre o Jornal da Tarde e os demais jornais está no


fato de ele ter adquirido popularidade com um de seus cadernos semanais, o
“Jornal do carro”, que circula às quartas-feiras, dia em que as vendas atingem a
10

marca de 86.564 exemplares, enquanto a média nos demais dias gira em torno dos
60.000. Neste dia, o jornal que, no ano passado custava R$ 1,30, passa a custar R$
1,50. O Estado de S.Paulo, por sua vez, investe nos “Classificados” de domingo,
que o torna bem mais volumoso neste dia. Por esse motivo, tornou-se também
conhecido na grande São Paulo pelo nome de Estadão.

Comparando a linguagem de cada um dos jornais, a principal diferença


reside nas manchetes. O Estado de S.Paulo possui uma linguagem mais formal, faz
uso de um léxico mais culto, que privilegia em grande parte de suas notícias, o
próprio fato. Em contrapartida, o Jornal da Tarde tem uma linguagem envolvente,
mais informal, permitindo-se, assim, metáforas mais populares, que parece desejar
a todo momento, seja em que caderno for, manter uma interação maior com seus
leitores, como ocorre nos casos:

PALLOCCI DÁ ÊNFASE AO SOCIAL COM NOVO DISCURSO


(O Estado de S.Paulo. 21 abr. 2003. p. A4)

PALLOCCI REFORÇA TIME SOCIAL DO PLANALTO


(Jornal da Tarde. 21 abr. 2003. p. A4)

No que se refere ao conteúdo das notícias, ele é praticamente o mesmo e, de


maneira geral, quando os assuntos coincidem, escritos sem grandes alterações
quanto à linguagem. O único diferencial está no fato de as notícias serem
retextualizadas e, por esse motivo, parecem ser sintetizadas no Jornal da Tarde.

A exceção, entretanto, ocorre no caderno “Esportes". Nele, tanto em um


quanto no outro jornal, manchete e notícia possuem um vocabulário mais informal
e conteúdo mais opinativo:

SÃO PAULO JOGA MAL, MAS VENCE A 1a


(O Estado de S.Paulo. 18 abr. 2003. p. E1)

3 A 1. MAS O SÃO PAULO NÃO CONVENCE.


(Jornal da Tarde. 18 abr. 2003. p. B1)
11

Dirigidos predominantemente a classes sociais diferentes – CDE no caso do


Jornal da Tarde e B no caso de O Estado de S.Paulo – evidentemente que a
diagramação e o conteúdo dos jornais são também diferentes, pois refletem os
leitores com os quais interagem. No primeiro, de maneira geral, suas manchetes
são bastante destacadas, o conteúdo das notícias é menor e os casos de violência
são bem mais presentes, haja vista existir uma seção intitulada “Polícia”. Já no
segundo, as letras das manchetes são menores, o conteúdo das notícias maior e há
uma quantidade também maior de notícias internacionais.

1.4. Algumas considerações sobre a amostra de análise

Para atingir os objetivos desse trabalho, recolhemos aleatoriamente quarenta


dias corridos de Jornal da Tarde e O Estado de S.Paulo, ou seja, selecionamos os
lides publicados do dia 20 de março a 30 de abril de 2003.

Não optamos especificamente por um determinado caderno. Nosso único


critério foi que os lides produzidos fossem diferentes da grande maioria presente
nos jornais, os lides tradicionais.

Feita tal seleção, passamos a agrupá-los por categorias e a analisar os


recursos encontrados em cada um deles. Priorizamos identificar as estratégias
utilizadas para estabelecer uma interação e um envolvimento com o leitor e, então,
chegamos a seis diferentes formulações de lide: o iniciado por uma pergunta; o que
se dirige explicitamente ao leitor; o que dá para o leitor a opinião do próprio
jornalista; o que descreve minuciosamente determinada cena; o que produz
suspense por meio de uma narrativa cronológica e detalhada e, finalmente, o que se
utiliza de casos particulares de pessoas anônimas para noticiar algo.

Nesses quarenta dias de pesquisa e recolha de material, chegamos a


quarenta e nove diferentes lides distribuídos nessas seis formulações. Por não
termos uma intenção quantitativa, analisamos dezenove lides por considerarmos
12

que os demais sejam variações de assuntos sobre uma idêntica estruturação. Isso
posto, podemos afirmar que aqueles que apresentaram alguma diferença em uma
dessas formulações foram abordados.

Vale ressaltar ainda que, por meio da observação no momento da recolha da


amostra, não constatamos que determinados lides pertençam a um caderno
específico de um dos jornais. Esse critério, portanto, não é uma variável
considerada como relevante, justamente pelo fato de tais formulações surgirem
indistintamente pelos cadernos.
13

II. MANUAIS DE REDAÇÃO E OS LIDES JORNALÍSTICOS

2.1. Considerações gerais

A função dos manuais de redação dos jornais é, de maneira geral, a de


uniformizar, de padronizar o estilo e a edição do jornal. Esses manuais funcionam
como um material de consulta tanto para jornalistas quanto para qualquer pessoa,
uma vez que eles podem ser adquiridos em qualquer livraria e possuem, além de
normas destinadas especificamente à redação do jornal, regras gramaticais
simplificadas e diversas informações sobre diferentes áreas.

Como veremos ao longo do capítulo, os manuais de redação surgiram por


uma necessidade de se simplificar a notícia, de agilizar a informação e, assim,
atrair um número maior de leitores que não dispunham de muito tempo para a
leitura do jornal. Com a proposta de uniformização da notícia vieram, também, os
conceitos de pirâmide invertida1, de lide2, de utilização de um vocabulário simples
e claro, e de paragrafação curta.

Essas noções passam a fazer parte daquilo que van Dijk (2000) chama de
regra jornalística implícita de organização, ou seja, a pirâmide invertida e o lide
são mecanismos que estruturam o texto noticioso e que seguem o princípio da
__________

1. Pirâmide invertida é “uma técnica de redação jornalística pela qual as informações mais importantes são dadas
no início do texto e as demais, em hierarquização decrescente, vêm em seguida, de modo que as mais dispensáveis
fiquem no final”. (Manual da redação da Folha de S.Paulo, 2001: 93)

2. Lide representa a “abertura da notícia. Primeiro parágrafo da notícia em jornalismo impresso. Relato do fato
mais importante de uma notícia”. (Lage, 2001: 72)
14

relevância:

o texto de jornal mostrou que a ordem semântica não é


primariamente determinada por uma estrutura condicional de
fatos, mas, ao contrário, pela coerência funcional baseada na
relevância: a informação importante vem em primeiro lugar e os
detalhes, tais como as causas, os componentes ou as
conseqüências são mencionados por último. (Dijk, 2000: 123)

O lide é, assim como a pirâmide invertida, um elemento oriundo do


jornalismo norte-americano, e que surge, basicamente, por uma necessidade de
estruturar a notícia, e de lhe dar um caráter mais objetivo, visto que é responsável
por ir direto ao ponto principal, eliminando, assim, a subjetividade do tradicional e
ultrapassado nariz-de-cera3.

O Novo Manual da Redação da Folha de S.Paulo (1992) define lide como


uma palavra aportuguesada do inglês “lead”, que significa conduzir, liderar. Ele é
a abertura da notícia e, portanto, o responsável por conduzir, por introduzir o leitor
naquilo que será noticiado e por despertar seu interesse para que haja uma
continuidade de leitura da notícia. Assim, o lide “é sempre o maior cuidado do
jornalista. Em qualquer espécie de reportagem, o redator procura dar o que tem de
melhor nas primeiras linhas” (Bond, 1959: 160). Na verdade, segundo Amaral
(1987: 68),

da forma como é redigido o lead depende o êxito da matéria, pois,


mesmo que o leitor não queira ou não tenha tempo para continuar
a leitura do texto, já ficou interado do que se trata com a descrição
inicial. Um pouco mais de interesse poderá levá-lo ao corpo da
matéria.

Possendoro (2002) ressalta que escrever um lide, denominado por ele de


abertura, tornou-se, desde o final do século passado e início deste, uma obsessão
para os jornalistas, pois eles têm sua capacidade de bem escrever avaliada pela boa
construção ou não dessa abertura. É justamente pelo fato de possuir um importante
__________
3. Nariz-de-cera é “um parágrafo introdutório que retarda a entrada no assunto específico do texto”. (Manual da
Redação da Folha de S.Paulo, 2001: 86)
15

papel na construção da notícia jornalística, que o lide constitui o nosso material de


estudo.

Trataremos, neste segundo capítulo, da organização de diferentes edições


dos manuais dos dois jornais paulistas de grande circulação e aceitação no estado
de São Paulo (Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo) com o objetivo de
levantarmos a relevância dada a esses manuais pelas empresas, a preocupação dos
jornais para que estes sejam atuais, e, por isso, a quantidade de reformulações
pelas quais eles passam para que possam ser seguidos. Em seguida, estaremos
abordando a questão da criatividade do jornalista diante de tantas uniformizações
propostas pelos manuais para que tenhamos maiores subsídios para tratar
especificamente do lide.

Por fim, verificaremos como os manuais de redação da Folha de S.Paulo e


de O Estado de S.Paulo bem como suas diferentes edições abordam o assunto para,
posteriormente, levantarmos as diferenças e os problemas apresentados por alguns
teóricos acerca da categorização do lide presentes nos manuais de jornalismo.

2.2. Os manuais de redação da Folha de S.Paulo

Em 1921, ano de sua fundação, a Folha de S.Paulo foi nomeada


inicialmente Folha da Noite, criada com o objetivo de ocupar o espaço deixado por
jornalistas que haviam saído da edição vespertina de O Estado de S.Paulo, após
sua extinção.

Com o sucesso da Folha da Noite, foi criada a Folha da Manhã.


Posteriormente, em 1949, foi fundada a Folha da Tarde e, no ano de 1960, os três
jornais passam a ser um só, mas com três edições no mesmo dia. Dois anos depois,
essas três edições passam a ser duas. Neste mesmo ano, em 1962, a Folha é
vendida para Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho que criam, em
1978, o Conselho Editorial e passam a se preocupar mais com sua própria
16

organização.

Motivados por essa preocupação, segundo Caprino (2001: 66), vários


documentos de circulação interna começam a aparecer com o objetivo de exigir
um maior profissionalismo por parte dos jornalistas e, em maio de 1984, Otavio
Frias Filho assume o cargo de diretor da redação e, em agosto, apresenta o Manual
Geral da Redação.

Esse primeiro manual possui apenas noventa e uma páginas e está


organizado em verbetes dispostos em ordem alfabética que misturam orientações
gramaticais com termos jornalísticos, dando ao manual um caráter de
desorganização. Caprino (op. cit.: 49), citando Lins da Silva, professor livre-
docente da Universidade de São Paulo e ex-diretor da redação do jornal Folha de
S.Paulo, observou que

o manual de 1984 foi mal aceito pela redação e muito criticado no


meio jornalístico porque estava inserido em um processo que, a
seu ver, ‘bateu de frente com muitas lendas do jornalismo’.
Apesar de ter preocupação com a melhoria do texto jornalístico, o
manual estava inserido no chamado Projeto Folha. Fazia parte de
uma concepção de jornalismo que pretendia profissionalizar a
redação, traçando normas e metas a serem cumpridas, não só
relativas à qualidade de texto, mas também em relação à
concepção editorial do jornal como mercadoria, orientado às
demandas de seu público.

Para ele, esse manual de 1984 segue exatamente o modelo norte-americano


de jornalismo e não propõe nada de novo.

Após tantas críticas, é publicada, em 1987, uma segunda edição desse


manual com duzentas e quatorze páginas. O Manual Geral da Redação de 1987
está organizado em sete capítulos, com os verbetes dispostos, também, em ordem
alfabética: “Política Editorial”, “Estrutura da Folha”, “Padronização de estilo”,
“Procedimentos profissionais”, “Normas gramaticais”, “Convenções gráficas”,
“Vocabulário jornalístico”, além dos anexos, com indicações sobre estrangeirismo,
horário mundial, tabelas de pesos e medidas etc, e de um índice remissivo.
17

Uma terceira reformulação do manual da Folha de S.Paulo sai em 1992 e é


nomeado de Novo Manual da Redação. Este novo manual está dividido em quatro
partes: “Projeto Folha”, “Produção”, “Texto”, “Edição” e, também há os anexos,
com dados sobre distâncias, medidas etc, uma bibliografia e um índice remissivo.
De acordo com sua própria introdução, o Novo Manual da Redação possui normas
e recomendações que têm a função de orientar o trabalho do jornalista da Folha de
S.Paulo e é bastante diferente dos anteriores por possuir normas mais flexíveis:

Ainda que incorpore muito do manual de 1984 e de sua versão


ampliada e revista de 1987, o ‘Novo Manual’ difere
substancialmente do anterior. (...) Até pela característica
militante, o texto de 84 era draconiano e impositivo. A versão de
87 abrandou esse aspecto, enriqueceu conceitos, corrigiu falhas e
acrescentou verbetes. Resultou num texto mais abrangente, com
214 páginas. (Novo Manual da Redação, 1996: 7-8)

A quarta, e até agora última, publicação do manual saiu no ano de 2001 com
o nome de Manual da Redação. Este manual está organizado em quatro capítulos:
“Projeto Folha”, “Procedimentos”, “Padronização e estilo” e “Folha”, além de um
“anexo gramatical” e de um “anexo geral”, com informações amplas sobre o
legislativo, o militar, o religioso, o matemático e estatístico, dentre outros. Esse
manual também define os manuais de 1984 e de 1987 como sendo impositivos,
denominando, por sua vez, o atual de orientador do trabalho jornalístico:

O novo manual também traduz uma flexibilização progressiva das


normas presentes nas edições de 1984 e 1987, mais impositivas.
Ele consubstancia os princípios da última versão do projeto
editorial da Folha – divulgada em 1997 e aqui reproduzida – e
procura orientar a aplicação desse projeto na prática cotidiana dos
jornalistas. (Manual da Redação, 2001: 7)

Podemos afirmar que, com todas as informações adicionais presentes nos


anexos, o Manual da Redação tornou-se uma espécie de almanaque útil e possível
de ser consultado não apenas por jornalistas, mas também por pessoas leigas ou
pouco interessadas na padronização do texto jornalístico:

Esta edição procurou também atender ao interesse dos leitores


18

que utilizam o manual como fonte de consulta. Assim, ela traz


uma série de anexos (gramatical, jurídico, médico e outros) cujo
objetivo é oferecer ao público uma obra de referência – concisa,
porém abrangente – e ao mesmo tempo dar subsídios à atividade
jornalística, sem ter, evidentemente, a pretensão de substituir a
consulta a especialistas. (Manual da Redação, 2001: 7)

2.3. Os manuais de redação de O Estado de S.Paulo

O jornal A Província de S.Paulo foi fundado no ano de 1875, ainda no


período monárquico e escravocrata, e só passou a se chamar O Estado de S.Paulo
no ano de 1890. Durante grande parte de sua existência pertenceu à família
Mesquita, que é até hoje proprietária do jornal.

Um dos momentos mais difíceis da história de O Estado de S.Paulo ocorreu


entre os anos de 1940 a 1945, período em que a redação do jornal passou a ser
subordinada ao DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) e, assim, ocupada
pela polícia militar.

Quanto à idéia de produzir um primeiro manual de redação, esta só surgiu


no ano de 1986:
Em 1986, em uma conversa com o então diretor de redação do
jornal, Miguel Jorge, Eduardo Martins chamou a atenção para a
qualidade do texto do jornal, precária, no seu entendimento.
Depois de dois ou três meses, (...) Miguel Jorge pediu a Eduardo
Martins que reservasse por volta de dois meses para o projeto,
antes de assumir a chefia de redação. No pedido, as orientações
eram as seguintes: que se fizesse um manual de redação com as
normas de uso de negritos, maiúsculas etc, porque, segundo os
diretores do jornal, em cada lugar saia de um jeito. (...) O
segundo pedido foi que um trecho do manual fosse dedicado aos
grandes capítulos de gramática, concordância, uso de pronomes e
outros, além de uma relação de umas 200 ou 300 palavras que
pudessem suscitar dúvidas de ortografia. (Caprino, 2001: 54)

Eduardo Martins trabalhou, então, durante quatro anos no projeto de


elaboração de um manual de redação, que foi lançado, na Bienal do Livro de São
Paulo em agosto de 1990 com o nome de Manual de Redação e Estilo de O Estado
de S.Paulo. Essa primeira edição possui trezentas e cinqüenta páginas divididas em
19

três capítulos, além dos apêndices de medidas: “O texto e a edição no jornal”,


“Normas internas e de estilo” e “Escreva certo”.

No ano de 1992, o manual teve sua capa alterada de cinza-prateada para


branca, todavia possui exatamente o mesmo conteúdo.

Em 1997, esse manual de redação foi totalmente reformulado e passou das


primeiras trezentas e cinqüenta páginas para quatrocentas. Houve, também, a
substituição de alguns capítulos, que totalizaram cinco: “Normas internas e de
estilo”, “O uso da crase”, “Os cem erros mais comuns”, “Guia de pronúncia” e
“Escreva certo”, além de um anexo de pesos e medidas.

Resta-nos, ainda, responder a uma questão: se o jornal foi fundado em 1875


e seu primeiro manual de redação só foi publicado no ano de 1986, podemos
afirmar que O Estado de S.Paulo aderiu muito tardiamente a esta questão de
padronização do texto jornalístico, que teve início na década de 1920?

Até a década de 1920, não havia uma grande preocupação em uniformizar o


texto jornalístico. Esta necessidade só apareceu realmente quando o Brasil
começou a ter um maior contato com a cultura norte-americana, e só se efetivou na
década de 1950 com o Diário Carioca, que além de teorizar, propondo o uso do
lide e da pirâmide invertida para produção de suas notícias, instituiu na redação do
jornal o copy desk, cuja função era a de ler, reformular e dar um caráter uniforme
aos textos produzidos.

Consideramos oportuno ressaltar que, desde a década de 1950 até a


publicação do seu primeiro manual, O Estado de S.Paulo fazia uso de fichas que
estavam organizadas em pequenas caixas para conseguir uma padronização de seus
textos. A par disso, Erbolato (2002: 124-5) esclarece que

em O Estado de S.Paulo predominou, durante muito tempo, a


‘caixinha’, que foi precursora dos Manuais. Determinadas regras,
20

que vinham sendo transmitidas pela tradição oral, foram


colocadas em fichário, com a aprovação, ao que se diz, de Júlio
de Mesquita Filho e do jornalista Leo Vaz, redator-chefe e depois
diretor do jornal. Nas mesas de todos os secretários e
subsecretários da redação havia uma pequena caixa de madeira
em que se colecionavam as fichas. Assim, a qualquer dúvida que
surgisse entre repórteres, noticiaristas e redatores, a primeira
consulta deveria ser feita à famosa ‘caixinha’.

Além dessa caixinha de madeira, motivados pela crescente preocupação


com a uniformização da notícia, com a padronização de um estilo jornalístico,
muitos pequenos manuais, de quatro ou cinco páginas, foram produzidos
internamente, contendo assuntos específicos como a utilização do negrito, das
maiúsculas, das minúsculas etc, até a publicação do primeiro manual em 1990.

2.4. A criatividade do jornalista e os manuais

Um dos principais questionamentos acerca do estilo jornalístico refere-se à


possibilidade de elaboração de um texto de qualidade diante de tantas
normatizações impostas pelos manuais de redação dos jornais.

Parece-nos ser inegável que, somada à tentativa de uniformização da notícia


jornalística por meio do estabelecimento de normas de redação que são, como
vimos anteriormente, ora apontadas como mais rígidas ora como mais flexíveis,
há, também, um empenho por parte dos manuais em elevar o nível do relato
jornalístico, legislando, então, sobre temas lingüísticos. Segundo Dias (1996: 48),

os Manuais têm a pretensão de encaminhar os redatores dos


jornais (mas também seus leitores) para a idéia de um estilo uno,
equilibrado, ‘correto’, que daria ao jornal a que se liga uma
teórica e utópica unidade lingüística, com a vantagem de
colaborar com a educação, divulgando a língua padrão que
serviria também para o ensino.

Podemos nomear essa padronização e essa unidade lingüística de utópica,


pois, como veremos posteriormente, a padronização existe em grande parte dos
casos, mas ela não é integral como parecem pretender os manuais, principalmente
em se tratando de lide, assunto desta dissertação. Embora os manuais se intitulem
21

cada vez mais flexíveis, veremos que essa flexibilização não existiu nem no início
nem na versão mais atual dos manuais.

Encontramos em Caprino (2001: 45) as funções e os objetivos dos manuais,


que podem ser sintetizados em sete itens:

a) Compilar e transmitir normas e padrões do estilo jornalístico,


voltado principalmente para jovens jornalistas;
b) Padronizar normas de estilo do veículo específico;
c) Orientar o comportamento e atitudes de jornalistas de um
veículo;
d) Transmitir e divulgar a ideologia da empresa jornalística (ou
política editorial) para jornalistas e leitores;
e) Divulgar o nome do jornal junto ao grande público, servindo de
instrumento de marketing;
f) Estreitar sua relação com o leitor, estabelecendo uma espécie
de contrato, pelo qual poderá ser cobrado;
g) Substituir parcialmente as gramáticas, principalmente na
função de consulta de dúvidas.

Caprino (op. cit.: 79) apresenta a opinião de vários jornalistas que atestam
ser os manuais de redação um elemento uniformizador, mas que pretendem
unicamente dar ao jornal uma característica e não tolher a criatividade do
jornalista:

Falar que são camisas-de-força, que tolhem a criatividade dos


redatores é dar-lhes importância demasiada. Funcionam, sim,
como padronizadores de estilos particulares e orientam, até
mesmo fora do ambiente da redação, a produção textual”.

Para ela, o grande problema da padronização da notícia jornalística não está


nos manuais, mas sim nos jornalistas, que, devido a uma carga excessiva de
trabalho, optam por escrever padronizadamente, seguindo um manual, para
facilitar e agilizar o trabalho, sem necessitar, assim, ser criativo.

2.5. O lide nos manuais de redação

Os manuais de redação de jornais têm por objetivo, como abordamos


22

anteriormente, normatizar, uniformizar o estilo e a edição do jornal. Funcionam


como cartilhas do bem escrever:

Este manual contém as normas e recomendações que norteiam o


trabalho dos jornalistas da Folha. (Manual da Redação da
Folha de S.Paulo, 2001: 7)

De qualquer forma, o objetivo deste trabalho continua o mesmo:


expor, de modo ordenado e sistemático, as normas editoriais e de
estilo adotadas pelo Estado. (Martins Filho, 1997: 9)

Com efeito, o lide é uma das partes constituintes da notícia jornalística e é


justamente aquela que abre, que introduz o texto noticioso. Dessa forma, a
preocupação com sua elaboração é clara e evidente na literatura que trata sobre a
estrutura do texto jornalístico e, como não poderia deixar de ser, também nos
manuais de redação dos jornais.

O Manual Geral da Redação (1984) está organizado em verbetes dispostos


em ordem alfabética, e mostra-se bastante impositivo quanto à elaboração do lide
ao utilizar locuções verbais como “deve começar”, “são admitidos”, “deve conter”,
“deve ser observado”, “não deve exceder”:

Na Folha todo texto noticioso deve começar com um ‘lead’. São


admitidos dois tipos de ‘lead’:
a) Quando se trata de noticiário factual, o ‘lead’ deve conter o que
há de mais importante na notícia, resumindo-a em
aproximadamente 5 linhas. O procedimento para redigi-lo é
responder as clássicas perguntas – o que, quem, quando, onde,
como e por que – dispondo as respostas em ordem decrescente de
importância. Às vezes, o mais importante é quem, às vezes é onde
etc. Esse critério de importância decrescente deve ser observado
não apenas no ‘lead’ como ao longo de todo o texto, de forma que
as informações menos importantes apareçam sempre no final. Isto
facilita cortes que por razão de espaço são freqüentemente
necessários. Recomenda-se redigir o ‘lead’ na ordem direta.
Raramente se justifica o uso do verbo no início da frase. O ‘lead’
pode conter mais de uma frase, mas não deve exceder um
parágrafo.
b) Quando se trata de noticiário não-factual (histórias humanas,
sides etc), o ‘lead’ não precisa resumir o texto, mas deve destacar
aspectos dele que, não sendo necessariamente os mais
23

importantes, conduzem à leitura. (Manual Geral da


Redação, 1984: 55)

A nova edição reformulada desse manual, denominado Manual Geral da


Redação (1987), organizado, como vimos, diferentemente da versão anterior
sobretudo pelo fato de estar dividido em capítulos, trata do verbete lide em dois
momentos distintos: no capítulo que discute a “Padronização de estilo” e no que
apresenta o “Vocabulário jornalístico”.

Em “Padronização de estilo”, o lide é apresentado com seis regras para sua


melhor construção. Quatro delas estão presentes na primeira versão do manual
(conter as informações essenciais; ter apenas cinco linhas; obedecer à ordem direta
de uma oração; não iniciar o lide com verbo ou advérbio), e apenas duas foram
acrescentadas, priorizando, ambas, o leitor:

b) seja tão completo que o leitor possa se sentir informado sobre o


assunto apenas com a sua leitura; (...)
f) não utilize, sem explicar, nomes, palavras ou expressões pouco
familiares para a média dos leitores. (Manual Geral da
Redação, 1987: 86)

Já, em “Vocabulário jornalístico”, o verbete lide é colocado, sinteticamente,


como um estrangeirismo; é definido pelo Manual e é apontada sua tipologia
(noticioso e não-factual). A partir do Manual de 1987, esse verbete deixa de ser
grafado como se escreve no inglês, lead, e passa a ser lide.

Nesta versão, procurou-se dar um caráter mais ameno às regras de


elaboração do lide, utilizando-se, inclusive, o verbo recomendar, que substitui o
dever da edição anterior. No entanto, a topicalização iniciada por um verbo parece
manter o caráter autoritário, impositivo e unilateral dessa elaboração.

O Novo Manual da Redação da Folha de S.Paulo (1992), assim como as


versões anteriores, reserva um verbete específico para detalhar o lide. Esse verbete
aparece em três capítulos diferentes do manual, ou seja, no “Produção”, no
24

“Texto” e, em seguida, no “Edição”. Nesses três momentos, o lide é definido e


caracterizado exatamente da mesma forma e, essa forma se assemelha à edição
anterior. Na verdade, o verbo deixa de ser o ameno recomendar, para voltar a ser o
impositivo dever da edição de 1984, além da presença da topicalização com verbos
no infinitivo, que possuem uma característica de obrigatoriedade.

Primeiramente, o Novo Manual designa uma função pragmática e específica


para o lide, que é a de introduzir o assunto a ser tratado pela notícia e a de prender
a atenção do leitor, procurando garantir a leitura do restante do texto.

Em seguida, ele define dois tipos de lide: o noticioso e o não-factual. O lide


noticioso deve responder a seis questões principais de um fato: o quê?, quem?,
quando?, como?, onde?, por quê?, e seguir alguns procedimentos técnicos que
determinam o que se deve fazer e o que se deve evitar no momento de elaboração
de um lide. A respeito do que se deve fazer, o Novo Manual da Redação (1992:
37) propõe:

a) Sintetizar a notícia de modo tão eficaz que o leitor se sinta


informado só com a leitura do primeiro parágrafo do texto;
b) Ser tão conciso quanto possível. Procure não ultrapassar cinco
linhas de 70 toques (lauda) ou de 80 toques (terminal de
computador da Folha);
c) Ser redigido de preferência na ordem direta.

Em relação ao que se deve evitar, o Manual propõe que não se esconda o


fato principal em meio a informações como ambientação, horário, idade, e nem
que se inicie um lide com advérbio, gerúndio ou uma declaração entre aspas.

Possendoro (2002) discorda de Caprino (2001) ao enfatizar que esse


procedimento teórico aprisiona o jornalista em uma espécie de ‘camisa de força’
repressora e dogmática, que transforma o lide, em grande parte das vezes, na única
opção possível. Segundo ele (op. cit: 34), “ganha-se na mecânica, perde-se na
criação”.
25

Quanto à outra tipologia de lide, o não-factual, o Manual parece ser um


tanto vago, pois além de não apresentar uma fórmula, ainda afirma serem
necessários outros recursos para atrair a atenção do leitor, que não são
especificados.

Entretanto, como afirma Possendoro (2002: 34),

a técnica jornalística são todos os procedimentos – que de tempos


em tempos se renovam, devido às inovações e mudanças
tecnológicas, sociais e políticas – que constituem o processo de
produção do veículo jornalístico.

É exatamente uma técnica jornalística renovada que pudemos encontrar no


Manual da Redação da Folha de S.Paulo (2001). Esta nova edição também
reserva um verbete específico para tratar do lide que aparece uma única vez, no
capítulo “Procedimentos” e que se configura menos dogmática do que as edições
anteriores.

Tanto na edição anterior, quanto na atual (2001), há uma descrição da


função do lide dentro da estrutura da notícia, que é a de introduzir o leitor na
notícia e a de despertar seu interesse pelo fato noticiado, já nas linhas iniciais.
Diante disso, verificamos que os objetivos da presença do lide no texto jornalístico
continuam a ser os mesmos.

A maior mudança reside na estruturação do lide. Nas edições anteriores


pudemos observar um detalhamento imperativo e excessivo do lide, ou seja, uma
tentativa de padronização do primeiro parágrafo da notícia jornalística. Entretanto,
nesta nova edição, o tom da explanação é mais brando, parece haver um
aconselhamento daquilo que é possível ser feito em um lide, porém sua
mecanização, de que Possendoro (op. cit.) trata, não aparece.

No Manual da Redação da Folha de S.Paulo não há a distinção entre lide


noticioso e não-factual, tipologias apresentadas na versão anterior, pois este afirma
26

não haver uma fórmula para elaboração de um lide, uma vez que uma construção
de primeiro parágrafo formulada a partir de um modelo pode causar um
desinteresse no leitor e este não continuar a leitura da notícia:

Imprescindível à valorização da reportagem e útil à dinâmica da


leitura – por ser uma síntese da notícia e da reportagem –, não
existe, no entanto, um modelo para a redação do texto do lide.
Nem pode ele ser realizado de maneira automática, com escrita
burocrática. Se assim for feito, mesmo que contenha o núcleo da
reportagem, poderá gerar desinteresse instantâneo ou provocar no
leitor a impressão de irrelevância da notícia. (Manual da
Redação da Folha de S.Paulo, 2001: 28-9)

Há um aconselhamento para que a automatização do lide não seja feita. Nas


edições anteriores falava-se em “o lide deve” e “o lide não deve”, usa-se o verbo
no infinitivo ou modo imperativo. Na edição de 2001 do Manual, fala-se em “se
assim for feito”, “eles tendem a impor” e passa-se a priorizar o “interesse do
leitor”:

Se os fatos são urgentes e fortes, eles tendem a impor ao lide um


estilo mais direto e descritivo, respondendo às questões principais
em torno do acontecimento (o quê, quem, quando, como, onde,
por quê, não necessariamente nessa ordem). (op. cit.: 29)

Embora não se trate mais de lide noticioso, as questões principais que


devem ser respondidas logo de início, ainda estão presentes. Isto significa que os
lides continuam muito presos a formulações tradicionais e rígidas, como
trataremos mais adiante, e que, portanto, as mais inovadoras, cujo objetivo é o de
interagir com o leitor e convidá-lo a continuar a leitura da notícia, são colocadas à
parte da arte do bem escrever dos jornalistas, pois eles têm sua capacidade de bem
escrever avaliada pela boa construção ou não do lide:

O texto do lide dependerá sobretudo da própria argúcia do


jornalista para descobrir, no conjunto de sua apuração, aquilo que
é o ponto mais forte, atual e de mais amplo interesse em relação à
realidade que está vivendo. (Manual da Redação da Folha
de S.Paulo, 2001: 29)
27

Há, também, um verbete específico para detalhar o lide no Manual de


Redação e Estilo de O Estado de S.Paulo (1997), assim como em sua versão
anterior, que data de 1990. Entretanto, a padronização da notícia jornalística neste
manual aparece muito antes dos verbetes, pois há no primeiro capítulo de ambas as
edições, o título “Instruções gerais”, cuja função é a de normatizar os textos
publicados no jornal.

Essas “Instruções gerais”, também em ambas as versões, são formadas por


quarenta e nove regras, que abordam como deve ser elaborada a estrutura da
notícia (frases e períodos), o que pode ou não estar presente enquanto escolha
vocabular, e mais doze exemplos de bons textos noticiosos publicados nas
primeiras páginas de O Estado de S.Paulo.

Ao tratar da estrutura da notícia e o lide constituir parte integrante dessa


estrutura, quatro tópicos são utilizados na tentativa de padronizá-lo:

25 – Nas matérias informativas, o primeiro parágrafo deve


fornecer a maior parte das respostas às seis perguntas básicas: o
que, quem, quando, onde, como e por quê. As que não puderem
ser esclarecidas nesse primeiro parágrafo deverão figurar, no
máximo, no segundo, para que, dessa rápida leitura, já se possa
ter uma idéia sumária do que aconteceu.
26 – Não inicie matéria com declaração entre aspas e só o faça
se esta estiver importância muito grande (o que é a exceção e não
a norma).
27 – Procure dispor as informações em ordem decrescente de
importância (princípio da pirâmide invertida), para que, no caso
de qualquer necessidade de corte no texto, os últimos parágrafos
possam ser suprimidos, de preferência.
28 – Encadeie o lead de maneira suave e harmoniosa com os
parágrafos seguintes e faça o mesmo com estes entre si. Nada pior
do que um texto em que os parágrafos se sucedem uns aos outros
como compartimentos estanques, sem nenhuma fluência: ele não
apenas se torna difícil de acompanhar, como faz a atenção do
leitor se dispersar no meio da notícia. (Martins Filho, 1997:
17-8)

Optamos por fazer esta longa citação para que se pudesse observar que as
regras deste manual são imperativas. Utilizam-se verbos no modo imperativo para
que não se tenha dúvida sobre o caráter rígido e obrigatório da construção do lide.
28

Aliás, a única mudança existente nessas quatro regras, entre o manual de 1990 e o
de 1997, é a de torná-las mais rígidas, uma vez que na primeira versão falava-se
em “evite iniciar matéria por declaração entre aspas” (Martins Filho, 1990: 18) e
é substituída na segunda por “não inicie matéria com declaração entre aspas” (op.
cit., 1997: 18), ou seja, a partir de 1990, a declaração entre aspas no lide poderia
ser feita, porém não com freqüência e, sim, raramente. Entretanto, a partir de 1997,
tal declaração passa a ser totalmente proibida.

Essas regras também ordenam a construção de um lide que responda às seis


perguntas básicas. Vimos anteriormente que esta também era a regra no Manual da
Folha de S.Paulo de 1985, 1987 e 1992, mas que se tornou mais flexível na edição
de 2001, representando uma tendência no caso dos fatos mais urgentes e fortes.
Como veremos mais adiante, Hohenberg (1962) considera tal elaboração
tradicional e ultrapassada, pois houve nos últimos anos uma mudança na função do
jornal impresso para a sociedade.

Conforme explicitamos anteriormente, as regras de construção do lide no


Manual de Redação e Estilo de O Estado de S.Paulo (1990/1997) são imperativas.
É importante ressaltar que quase todo o manual faz uso da forma imperativa do
verbo.

Quanto ao verbete lide do mesmo Manual, situado na parte das “Instruções


específicas”, há, primeiramente sua definição, afirmando ser este o responsável
pela abertura da matéria e que, portanto, deve fornecer ao leitor uma síntese
completa do fato principal, respondendo sempre às seis questões primordiais do
jornalismo (o quê?, quem?, quando?, onde?, como? e por quê?). Há, em seguida,
no Manual (1990: 42- 6), uma vasta exemplificação de lides bem e, também, mal
construídos, focando um problema qualquer de elaboração, como o da
objetividade, das repercussões e suítes4, da falta de informação, das aberturas de
__________
4. Suíte é originário do francês suite, isto é, “série, seqüência. Em jornalismo, designa a reportagem que explora
os desdobramentos de um fato que foi notícia na edição anterior”. (Novo Manual da Redação da Folha de S.Paulo,
1996: 44)
29

matérias “humanas’, das interpretações, das intercalações, das aberturas não-


noticiosas, do óbvio ou lugar-comum e de criatividade.

Problemas como falta de objetividade, de informação, de criatividade e lides


construídos a partir do óbvio ou do lugar-comum são assuntos já bastante
discutidos pela literatura jornalística, uma vez que ao elaborar a notícia, o
jornalista deve procurar construir textos claros, precisos, diretos, objetivos e
concisos. Seguindo esses cinco princípios, dificilmente um desses problemas
acima citados apareça.

Faremos um estudo mais detido sobre as aberturas de matérias “humanas”,


as interpretações e as aberturas não-noticiosas, por ser a função interacional o foco
dessa dissertação.

Possendoro (2002: 19) distingue o lide da notícia do lide da reportagem,


sendo o segundo, assunto discutido em sua dissertação. Ele considera que o jornal
redige seus lides de maneira padronizada, ou seja, seguindo sempre o princípio da
relevância, da pirâmide invertida, cujo objetivo é o de garantir uma qualidade
mínima necessária à notícia, pois coloca sempre no lide o fato mais importante e
segue essa ordem de importância até o final da notícia, não obedecendo, portanto,
a uma seqüenciação cronológica do fato:

Nos jornais diários, sobretudo na produção das notícias, o


problema de se redigir a abertura ideal é resolvido, digamos, de
forma automática, na medida em que o repórter escreve de
imediato o lide – a novidade ou a informação mais importante.

Para Possendoro (op. cit.: 41), as aberturas de matérias “humanas”, as


interpretações e as aberturas não-noticiosas são lides praticados em reportagens
impressas, pois os dois primeiros são subitens do lide não-noticioso:

O Estado destaca outros tipos de lides, como os lides ‘humanos’,


‘interpretados’ e ‘não-noticiosos’. Estes, assemelham-se às
aberturas praticadas nas reportagens impressas. São os lides
chamados de não-factuais, para os quais não é primordial o
30

aspecto noticioso da informação.

Podemos considerar o lide não-noticioso como parte integrante de uma


reportagem, pois como o próprio Manual de Redação e Estilo de O Estado de
S.Paulo (1997: 157) preconiza,

é preciso sempre levar ao leitor o ponto central da informação de


maneira atraente e de forma que ele perceba que não está diante
de uma notícia propriamente dita.

Por sua vez, o lide interpretado pode aparecer tanto em uma reportagem
quanto em uma notícia. Utilizaremos o exemplo dado pelo próprio Manual para
justificar tal opinião:

A mais significativa vitória de um lobby articulado na atual


Constituinte não foi de empresas especializadas e organizadas
para esse fim ou financiados pelas poderosas multinacionais. Foi
a do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar
(Diap), que conseguiu a inclusão, no projeto da Comissão de
Sistematização de 38 reivindicações de 9 confederações de
trabalhadores, 9 federações de funcionários públicos de nível
nacional, 3 centrais sindicais e mais de 300 sindicatos. (op. cit.:
157)

No lide acima, além do grau interpretativo, “a mais significativa vitória”,


existe, também, um grau noticioso: o fato de o Diap ter conseguido a inclusão de
38 reivindicações no projeto de votação da Constituinte. Logo, se há um fato
noticioso, há uma notícia.

Quanto ao lide “humano”, não há uma definição presente no Manual de


Redação e Estilo (Martins Filho, 1997: 156), mas apenas dois exemplos com uma
observação anterior, afirmando que ele é uma das aberturas mais difíceis de ser
redigida por exigir do jornalista criatividade e atenção para que o texto não se
aproxime do pieguismo.

Entretanto, como veremos adiante, este tipo de lide é bastante estudado por
31

jornalistas como Hohenberg (1962) e Erbolato (2002). Eles o concebem como um


outro tipo de lide possível na notícia, cuja função é a de despertar o interesse por
parte do leitor.

Para finalizar tal análise do Manual de Redação e Estilo de O Estado de


S.Paulo, julgamos pertinente apontar uma das raríssimas diferenciações presentes
entre as edições de 1990 e 1997. Esta distinção está relacionada ao tamanho do
lide, ou seja, na primeira versão, há a exigência de que o primeiro parágrafo tenha
de quatro a sete linhas. Todavia, na versão de 1997, esse número cai para quatro ou
cinco no máximo. Eis mais um exemplo de que o processo de produção da notícia
sofre constantes modificações e de que é cada vez maior a exigência por
objetividade e concisão no texto jornalístico:

Graficamente, recomenda-se que o lead tenha de quatro a sete


linhas da lauda padrão do Estado. (op. cit., 1990: 42)

Graficamente, recomenda-se que o lead tenha no máximo 4 a 5


linhas de setenta toques. (op. cit., 1997: 154)

2.6. Os lides e os teóricos do jornalismo impresso

Tradicionalmente, a organização da notícia jornalística está norteada pelo


princípio da relevância, ou seja, a informação principal, a mais importante é
destacada no momento em que o jornalista produz seu texto. Esse destaque é dado,
transformando o fato principal em manchete e desenvolvendo-o no lide.

Se a notícia jornalística é, então, estruturada seguindo o princípio da


relevância, não se importando com a seqüenciação cronológica dos fatos, ela
possui outras regras de ordenação denominadas por van Dijk (2000: 123) de
esquemas rígidos. Esses esquemas são a superestrutura do texto jornalístico e esta
possui “uma natureza fixa, convencional (e deste modo, culturalmente variável)
para cada tipo de texto”.
32

A superestrutura da notícia jornalística possui alguns princípios ordenadores


que podem seguir a seqüência proposta ou serem opcionais. Algumas estruturas
mais fixas, como a do sumário (manchete e lide), vêm sempre em primeiro lugar.
Há, entretanto, outras estruturas que podem trocar de posição ou até mesmo não
serem utilizadas.

Esses princípios ordenadores dos fatos que serão noticiados estão ordenados
em sumário (manchete e lide), background, evento principal, conseqüências e
comentário.

A manchete e o lide funcionam como um sumário da notícia jornalística e


apontam as informações mais importantes do texto. O lide corresponde ao primeiro
parágrafo de uma notícia jornalística impressa e é, como define o Manual de
Redação da Folha de S.Paulo (2001: 28-9), “imprescindível à valorização da
reportagem e útil à dinâmica da leitura contemporânea – por ser uma síntese da
notícia e da reportagem”.

O background, como define van Dijk (2000: 146), tem a função de dar uma
informação que não é parte do evento principal ocorrido, porém fornece “o
contexto social, político ou histórico geral ou as condições desses eventos”.

O evento principal costuma aparecer na notícia jornalística logo após o


sumário (manchete e lide). Como claramente o próprio nome sugere, ele representa
o evento central, o fato atual ou presente do background, isto é, a notícia
propriamente dita. Por ser o fato central da notícia jornalística, ele pode aparecer
após o lide, mas é uma categoria que pode, também, reaparecer no decorrer da
exposição dos fatos.

Já a categoria das conseqüências é o resultado dos eventos. Ela é


responsável pela organização de todos os eventos que foram causados pelo evento
principal.
33

A última categoria, o comentário, aparece freqüentemente no final da


notícia jornalística. Ele é, todavia, opcional e pode, por isso, não constar na
superestrutura da notícia jornalística. Esta categoria possui as conclusões, as
expectativas, as especulações ou alguma outra informação que o jornalista queira
dar ao seu texto.

Essa superestrutura preconizada por van Dijk (2000) é importante por


garantir uma compreensão acerca da notícia, pois esta é estruturada de maneira a
dar ao leitor a capacidade de recuperar em poucas palavras aquilo que num
contexto mais amplo foi noticiado.

A esse respeito, o próprio van Dijk (op.cit.: 151) alerta para o fato de que,

um tratamento puramente formal, estruturalista, dos esquemas da


notícia tem suas limitações. Ele nos permite especificar estruturas
noticiosas fixas, canônicas, mas dificilmente as muitas variações e
as estratégias dependentes do contexto.

Hohenberg (1962), jornalista que exerceu forte influência na renovação do


jornalismo brasileiro, também concorda que há inúmeras variações ao se produzir
uma notícia. Ele afirma que o número de notícias é tão grande quanto o de
jornalistas.

Quanto ao lide, Hohenberg (op. cit.) apresenta uma visão mais ampla do que
van Dijk (op. cit.), pois para aquele, além de ser o sumário de uma notícia
jornalística, o lide representa a abertura da notícia sendo, portanto, o responsável
por conduzir, por introduzir o leitor naquilo que será noticiado e por despertar seu
interesse, por envolvê-lo para que haja uma continuidade da leitura.

Para Hohenberg (op. cit.) há um progresso neste tipo de concepção, uma vez
que anteriormente o único objetivo do jornalista, ao escrever o lide de uma notícia,
era o de economizar o tempo e o esforço do leitor, destacando, assim, a informação
34

principal logo no início, como um modo de o leitor ler as primeiras linhas ou


parágrafos e poder desistir de ler o restante por já ter apreendido o geral da notícia.

Todavia, havendo atualmente, como pudemos verificar nos manuais de


jornalismo paulistas (Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo), não apenas o
objetivo de noticiar, mas também, o de interessar o leitor, o lide deve conter
informação, prazer, instrução e curiosidade:

Essa orientação marca o início da modificação de velhos hábitos


na redação das notícias, hábitos que desprezavam os princípios
básicos de atrair e conservar a atenção do leitor. (Hohenberg,
1962: 97)

O lide, na década de 1930, era uma longa frase inicial e invariável da


notícia, que tinha por tradição comprimir nele todo o principal sentido da história.
Para que todo esse principal sentido estivesse presente no lide, ele deveria
responder àquilo que Hohenberg (op. cit.) nomeia por cinco chaves, isto é, quem?,
quando?, onde?, o quê?, por quê?, além de um como?. Por esse motivo, o lide era
constituído por sessenta ou setenta palavras, algumas vezes por mais de cem, que
freqüentemente dificultavam o entendimento do leitor por possuir frases iniciais
muito extensas.

Esse lide extenso era elaborado pelos jornalistas como um mecanismo de


autodefesa, pois, sendo a notícia sintetizada em uma primeira frase, ninguém
poderia questionar a omissão de um ou de outro detalhe:

Quando o jornal rival aparecia com uma manchete explorando


ângulo diferente, o redator podia apontar confortavelmente para o
seu lead atroz e dizer para os colegas: ‘Bem, esse detalhe estava
também no meu lead. Poderia ter-lhe dado destaque, também não
fosse a estúpida revisão’. (op. cit.: 97)

Hohenberg (op. cit.), entretanto, afirma que os lides atuais dificilmente


excedem vinte ou vinte e cinco palavras, podendo ter algumas vezes ainda menos,
e focalizam apenas uma das cinco chaves, ou seja, se o o quê é, por exemplo, o
35

elemento mais importante da notícia para o jornalista, ele será o ângulo


desenvolvido no lide:

Não se trata aqui meramente de uma questão de contagem de


palavras: afinal de contas, uma frase curta pode confundir tanto
como uma longa. O costume dos redatores modernos, é insistir,
quando possível, em uma idéia por frase do lead, e no resto da
matéria, se possível. (op. cit.: 97)

Essa é, também, a organização de lide proposta por Amaral (1987). Para ele,
o lide é a parte principal da notícia por ser o responsável pelo desenvolvimento do
interesse do leitor e, deve, portanto, responder ao que ele nomeia por elementos
essenciais da informação (quem, onde, quando, como, por quê e o quê), mas não
necessariamente todos de uma única vez. Sendo assim, propõe cinco maneiras
diferentes de elaboração de lide para valorizar cada um desses elementos: o lide de
valorização do quem, o de valorização do quando, o de valorização do onde, o de
valorização do como e o de valorização do por quê 5.

1. Valorização do quem
“A prefeita Marta Suplicy (PT) passou por maus bocados ontem, em visita
à Subprefeitura de Cidade Tiradentes (extremo da zona leste). Ela virou alvo de
bolinhas de papel, um caderno e até duas pedras, que foram arremessadas por
motoristas e cobradores de ônibus que perderam o emprego porque suas viações
foram descredenciadas pela administração” (JT: 30/04/2003, grifo nosso).

2. Valorização do quando6
Ontem, a prefeita Marta Suplicy (PT) passou por maus bocados em visita à
Subprefeitura de Cidade Tiradentes (extremo da zona leste). Ela virou alvo de
bolinhas de papel, um caderno e até duas pedras, que foram arremessadas por
__________
5. Amaral segue, em linhas gerais, o trabalho de José Marques de Melo, Valorização do ângulo principal no lead,
publicado pelo Departamento de Jornalismo da Escola de Comunicações Culturais da USP.

6. Os textos dos itens 2 a 5 sofreram processo de retextualização para que fiquem claras as elaborações de lides
propostas por Amaral (1987) .
36

motoristas e cobradores de ônibus que perderam o emprego porque suas viações


foram descredenciadas pela administração.

3. Valorização do onde
Em visita à Subprefeitura de Cidade Tiradentes (extremo da zona
leste), a prefeita Marta Suplicy (PT) passou ontem por maus bocados. Ela virou
alvo de bolinhas de papel, um caderno e até duas pedras, que foram arremessadas
por motoristas e cobradores de ônibus que perderam o emprego porque suas
viações foram descredenciadas pela administração.

4. Valorização do como
Com bolinhas de papel, um caderno e até duas pedras arremessadas por
motoristas e cobradores de ônibus que perderam o emprego porque suas viações
foram descredenciadas pela administração, a prefeita Marta Suplicy (PT) virou
alvo ontem, em visita à Subprefeitura de Cidade Tiradentes (extremo da zona
leste).

5. Valorização do por quê


Por estarem desempregados pelo fato de suas viações terem sido
descredenciadas pela administração, a prefeita Marta Suplicy (PT) passou por
maus bocados ontem, em visita à Subprefeitura de Cidade Tiradentes (extremo da
zona leste). Ela virou alvo de bolinhas de papel, um caderno e até duas pedras, que
foram arremessadas por motoristas e cobradores de ônibus.

Amaral (1987), entretanto, não trata do lide de valorização do o quê. Ele


apresenta, primeiramente, a construção de um lide tradicional e, em seguida,
aborda os cinco diferentes modos de valorização dos elementos essenciais do lide,
assim como fizemos anteriormente. Optamos por deixar no final o lide tradicional
pela semelhança existente entre o exemplo dado por ele desse tipo de lide e o lide
de valorização do quem:

1. Lead tradicional (fórmula ultradireta – 3Q-CO-PQ)


37

O marginal Zequinha matou, ontem, na esquina da Rua


Augusta com Paulista, o comerciário João de Deus, com 38
facadas no corpo.
João foi assassinado ao lado de sua namorada, quando tentava
reagir ao assalto de Zequinha, que queria roubar-lhe a carteira,
onde existiam NCr$ 60,00.
2. Valorização do quem
O Bandido da Luz Vermelha matou, com 28 facadas, ontem, na
esquina da Rua Augusta com Paulista, o comerciário João de
Deus quando este reagiu ao assalto de que era vítima. (Amaral,
1987: 67)

Ao abordar a mesma questão de valorização de um elemento na elaboração


do lide, Erbolato (2002:72) parece perceber tal semelhança, pois não faz menção
ao lide tradicional; inicia logo com um exemplo, cuja função é a de valorizar o
sujeito. Em seguida, reorganiza o lide citado para que ora valorize o quando, ora o
onde e assim por diante. Embora anuncie, esse autor (op. cit.) também não redige
um exemplo que valorize o o quê.

Vale ressaltar, ainda, que todos os lides apresentados por Amaral (1987) são
construídos segundo o princípio da pirâmide invertida, ou seja, não importa qual
aspecto está sendo valorizado, mas é o fato principal que está encabeçando a
notícia. Temos, então, diferentes versões para um mesmo lide tradicional.

Hohenberg (1962) afirma ser a pirâmide invertida a mais antiga e mais útil
das estruturas da notícia. Ela surgiu a partir da invenção do telégrafo por uma
necessidade de transmitir a notícia em primeira mão, rápida e corretamente.

Já, há alguns anos, jornalistas têm argumentado não haver mais a


necessidade de comprimir a notícia nas primeiras frases, uma vez que este recurso
fora utilizado em uma época em que o jornal impresso era o grande responsável
pelos “furos” de notícia. Com o aparecimento da televisão e do rádio, essa função
foi delegada a eles.

Sendo assim, a elaboração do lide teve de ser repensada para que se


passasse a construir lides, como expõe Hohenberg (op. cit.), mais movimentados,
38

que não apenas informassem o leitor sobre algo, mas sim, atraíssem-no,
seduzissem-no e encantassem-no.

Esse lide mais movimentado proposto por Hohenberg não surge em


substituição ao lide tradicional; é apenas uma maneira diferente de elaboração do
lide e, conseqüentemente da notícia a fim de que não se caia em uma estruturação
fixa que seja desinteressante ao leitor.

Hohenberg (1962) apresenta seis tipos de lides, considerados por ele como
eficazes. O primeiro é o nomeado de lead 7 direto. Este é constituído por uma ou
mais frases, um ou mais parágrafos e devem traçar a ação, o local e o significado
da notícia. Representa um meio eficaz de resumir a notícia para um leitor
apressado. Utilizaremos em todos os tipos de lides apresentados a seguir um
exemplo dado pelo próprio autor:

BUDAPESTE, HUNGRIA, out., 26 – O que começara nesta


cidade, na terça-feira, como uma manifestação, e tornou-se, na
mesma noite, uma revolta, transformou-se ontem em guerra,
ainda travada violentamente no dia de hoje. Trata-se de uma
guerra desfechada por tropas soviéticas e elementos da Polícia
Política húngara contra a massa popular da Hungria.
- New York Times (op. cit.: 221)

No lead pessoal, o jornalista dirige-se diretamente ao leitor ou chamando-o


para participar, assunto desta dissertação, ou fazendo-lhe uma pergunta. Embora
jornalistas tradicionais não simpatizem com lides iniciados por perguntas ou por
citação, eles têm aparecido freqüentemente nos jornais:

WASHINGTON – Conhece o leitor aquele tipo decorativo de


moça que se senta na entrada do edifício de administração de
todas as grandes empresas do país?
A Junta Nacional de Relações Trabalhistas (NLRB) acaba de
por ponto final em um trabalhoso processo judicial, de ano e meio
de duração, para determinar se essa ‘boneca’ é guarda de fábrica
ou recepcionista.
Solução: Ela é recepcionista e não deve ser incluída,
__________
7. Embora estejamos utilizando a palavra aportuguesada lide, manteremos para tratar da tipologia apresentada por
Hohenberg a maneira usada por ele.
39

juntamente com os guardas de fábricas, em negociações coletivas


sobre salários.
- Chicago Daily News (Hohenberg, 1962: 223)

O lead de contraste é, para Hohenberg (op. cit.), uma das maneiras mais
comuns para se iniciar uma notícia, que é, como o próprio nome já diz, a inclusão
de um contraste no lide:

Harvey Lavan (Van) Cliburn Jr., de Kilgore, Texas, regressou


ontem à pátria, procedente da União Soviética, trazendo uma
bagagem de 17 malas. Elas testemunhavam o seu êxito como
pianista em Moscou. Quando partiu daqui, levou apenas três.
(op. cit.: 224)

O quarto tipo de lide apresentado pelo jornalista americano é o retardado.


Ele procura explorar uma situação banal para lhe dar um certo destaque e tem por
objetivo fazer com que o leitor leia vários parágrafos até que descubra o que
realmente aconteceu:

A cerimônia do casamento era igual a dezenas de outras que o


pároco do tribunal, Reverendo Della Saxon, realizara na pequena
capela, localizada no saguão da corte. Mas as circunstâncias eram
diferentes.
A noiva tinha 78 anos.
O noivo, 89.
O padrinho, 75.
De qualquer maneira, foi um belo casamento para a Sra. Julia
Mãe Barnhart, da Av. Stull, 207, e John Adam Marton, de Eaton,
O”. (op. cit.: 224)

O lead episódico, cujo objetivo é atrair o leitor para um fato que poderia não
interessá-lo, tem sua origem nas revistas. O jornal utiliza-se dessa prática, também
com o mesmo objetivo e inicia suas notícias com pequenas histórias:

CHICAGO – A Sra. Joyce K., uma vovó de 69 anos, natural


de Boston, teve a sua vesicular biliar removida por um experiente
cirurgião no seu estado natal, há alguns meses. A operação
salvou-lhe a vida.
Dado o seu passado de doente cardíaca, o uso de anestésicos
teria sido perigoso. Por esse motivo, a Sra. K. Foi hipnotizada
pouco antes de ser levada à sala de operações.
A Sra. K. foi um dos muitos casos clínicos discutidos no fim
da última semana, na primeira sessão anual da Sociedade
40

Americana de Hipnose Clínica. (Hohenberg, 1962: 225)

O último lide apresentado por Hohenberg (op. cit.) é o humorístico,


caracterizado por ele com um início de notícia de difícil construção e que deve
contar acima de tudo com a habilidade de um bom jornalista:

Um atlético mas pacato carteiro desviou-se ontem à noite,


pouco depois das seis horas de seu roteiro habitual, para
mergulhar por uma estação do metrô e entregar uma encomenda
especial – um ‘gancho’ que lançou ao chão, desacordado, um
assaltante em fuga.
- New York Daily News (op. cit.: 226)

Julgamos ser pertinente toda essa explanação sobre a tipologia do lide


apresentada por Hohenberg (op. cit.), porque os demais autores pesquisados, ou
dão enfoque a variações do lide tradicional, ou utilizam uma diferente
nomenclatura para categorizar os mesmos lides já expostos por ele.

Lage (1982) aborda basicamente o lide tradicional, nomeado por ele de


clássico. Ele trata desse tipo de lide de forma bastante teórica e estrutural,
recorrendo às locuções verbais e nominais para explicá-lo. Ao apresentar uma
nomenclatura classificatória para os diferentes tipos de lide, ele se apóia em
Erbolato (2002).

Erbolato (op. cit.) afirma existirem para a notícia tantos tipos de lide quanto
a imaginação do jornalista permitir. Ele apresenta de forma sucinta doze tipos: o
simples (trata de um único fato principal); o composto (refere-se a vários fatos
importantes); o integral, (responde às seis perguntas – quem?, o quê?, quando?,
onde?, por quê? e como?); o de suspense ou dramático (pretende emocionar o
leitor); o lead-flash (introduz de forma resumida uma notícia); o resumo (igual ao
lide composto); o citação (transcreve a fala de outrem); o contraste (trata de fatos
diferentes e opostos); o chavão (cita um slogan ou dito popular); o documentário
(faz uso de um fato histórico); o direto (trata diretamente do fato principal) e o
pessoal (dirige-se ao leitor).
41

A maioria dos tipos de lide apresentados por Erbolato (2002) é


“estruturalmente redutíveis ao modelo do lead clássico” (Lage, 1982: 75). Apenas
o lead chavão, o citação, o pessoal, e o suspense ou dramático, cujo objetivo é o
de emocionar o leitor, estão estruturalmente organizados de maneira diferente.

Ressaltamos que estes quatro últimos tipos de lide são estruturalmente


diferentes dos demais, pois os oito primeiros continuam muito mais voltados para
o fato e para a melhor maneira de organizá-lo. Em contrapartida, os restantes
parecem mais próximos do leitor, procurando envolvê-lo na notícia pelo lado mais
emocional. O lide pessoal, por exemplo, “fala” diretamente ao leitor, pretende
“trazê-lo” para aquilo que está sendo noticiado.

Bond (1959: 163) classifica esse lide nomeado por Erbolato (op. cit.) e por
Hohenberg (1962) de pessoal, de lide de apelo direto:

[Este lide] utiliza o interesse da participação dos leitores numa


carta particular. É endereçada diretamente ao leitor e tem o efeito
de dar ao leitor a impressão de colaborar no que se segue.

Além desse lide de apelo direto, Bond (op. cit.) faz referência a outros sete
tipos: o condensado, que se assemelha ao lead-flash de Erbolato (op. cit.); o
circunstancial, utilizado quando a história possui um lado humano; o entre aspas,
que corresponde ao lide citação de Erbolato; o descritivo, que ilustra inicialmente
o ocorrido; o ativador de interesse, assemelha-se ao lide suspense ou dramático de
Erbolato; o numerado, que se utiliza de meios gráfico-visuais como os números
para se estruturar e o original, que representa uma criação nova de lide proposta
pelo jornalista.

Medina (1978: 141) também aborda esse lide numerado, nomeando-o de


lide esquemático e pautando sua elaboração em um desejo do jornalista de
produzir um impacto no leitor:

Três informações importantes sobre a guerra do Vietnã:


42

1. Os Estados Unidos não permitirão em hipótese alguma a


derrota militar do Vietnã do Sul;
2. Para isso, porém, não recorreram nem às armas nucleares,
nem ao envio de mais tropas;
3. No entanto, os Estados Unidos não estão dispostos a
assegurar indefinidamente a sobrevivência do regime de
Saigon.

Medina (1978), assim como Hohenberg (1962), discute a função de um lide


tradicional e a eficácia de se elaborar uma notícia segundo o princípio da pirâmide
invertida nos dias atuais. Ela relaciona as outras possibilidades de construção de
um lide a um desejo de consumo. Para ela, o jornal é um produto que precisa ser
vendido e, por isso, o lead-sumário, que corresponde ao lide tradicional, torna-se
insuficiente para atingir tal objetivo.

Sendo assim, Medina (op. cit.) distingue os lides de notícias jornalísticas em


duas amplas categorias: a do lead-sumário, considerada por ela insuficiente
atualmente para adquirir todas as aberturas de notícias, e a do lead-apelo, que,
assim como considera Erbolato (2002), possui tantas possibilidades de elaboração
quanto a imaginação do jornalista permitir. Ela trata sucintamente de oito tipos
distintos para o lead-apelo, dentre eles o lead-esquemático, cuja apresentação já
fizemos anteriormente.

O primeiro apresentado por Medina (op.cit.: 140) é o lead-impacto, que


corresponde a uma frase direta que leva o leitor a um dado importante da
informação, mas não necessariamente preciso, como no exemplo dado: “O corte
ontem foi só da energia elétrica que serve aos elevadores e às bombas de água”.

O lead-envolvente corresponde ao lide pessoal nomeado por Hohenberg


(op. cit.) e Erbolato (op. cit.) e, como já dissemos, é elaborado pelo jornalista com
o objetivo de estabelecer uma proximidade afetiva com o leitor. O contrário dessa
proximidade é estabelecido pelo lead-indireto, pois ele insere o leitor na notícia
por meio das circunstâncias totalmente acessórias, que podem ser uma
ambientação ou uma metáfora.
43

O lead-citação, também é explicado por Erbolato (2002), e consiste em o


jornalista iniciar sua notícia com uma declaração de alguém.

Uma outra forma de lide proposta por Medina (1978: 141) é o lead-literary
que se vale de recursos ficcionais e inicia a notícia de maneira literária. Podemos
relacioná-lo ao lide episódico proposto por Hohenberg (1962):

O homem barbado, com o rosto cansado, apareceu na porta do


Boeing 707, segurando suas pequenas malas....

O lead-contraste, também proposto por Hohenberg (op. cit.) e Erbolato (op.


cit.), procura opor, como já expusemos, fatos contrários e, ao mesmo tempo,
complementares no início da notícia, que para Medina têm o objetivo de apelar,
pois o leitor dará continuidade à leitura para buscar as respostas de tal contradição.

E, por fim, Medina (op. cit.) trata do lead-interrogativo, que é elaborado


pelo jornalista com uma interrogação, cuja finalidade é a de despertar a curiosidade
em seu leitor e também de o levar a procurar respostas no restante do texto.

Ao abordarem os diferentes tipos de lide, observamos que os estudiosos do


assunto, de uma maneira geral, apresentaram diferentes designações para uma
mesma construção, evidenciando, assim, haver tantas possibilidades de elaboração
de um primeiro parágrafo para uma notícia jornalística quanto a imaginação do
jornalista permitir e ser este um assunto merecedor de muitos estudos.

Julgamos ser ainda necessário ressaltar que nossa pesquisa não pretende
invalidar a função e a utilidade de um lide tradicional. O que pretendemos apontar,
neste capítulo, é que o lide de uma notícia jornalística, ao contrário do que expõe
Possendoro (2002), não precisa e não deve seguir uma estrutura fechada e pronta.
Não precisa, por haver outras maneiras de se construir lides bem mais atraentes ao
leitor, e não deve para que a leitura do jornal não se torne algo pesaroso e
monótono.
44

Com o intuito de melhor investigar a amostra do presente trabalho, fazemos


o seguinte questionamento: se os estudiosos afirmam exaustivamente que o lide
tradicional é uma construção insuficiente, que perdeu sua função após o
surgimento do rádio e da televisão, por que é ainda tão utilizado nos jornais
impressos paulistas?

Para Hohenberg (1962), os jornalistas deixam-se contagiar pela tradição de


que um lide deve ser completo, “oficial” e não interessante e, por esse motivo,
constroem lides ainda padronizados. É o desejo de ser oficial ao lidar com algo
oficial:
O redator (...) sobrecarrega seus leads com fontes oficiais, títulos
oficiais, jargão oficial – até mesmo com citações oficiais – e
depois se espanta porque eles são considerados longos,
desajeitados e monótonos. (op. cit.: 213)

As observações de Hohenberg (op. cit.) nos possibilitaram constatar que a


presença de lides tradicionais nos jornais paulistas, particularmente em notícias
sobre política e economia, deve-se à necessidade de haver uma estrutura oficial
para uma notícia igualmente oficial. Já, em notícias que tratam, por exemplo, do
cotidiano da cidade ou dos esportes, a quantidade de lides oficiais é menor.
45

III. LEITOR, INTERAÇÃO, DIALOGISMO E ENVOLVIMENTO

3.1. Considerações gerais

Como assinalamos no capítulo anterior, os manuais de redação surgiram


decorrentes de uma tentativa e de uma necessidade de padronização da notícia
jornalística. Juntamente com esses manuais, apareceram, também, as noções de
pirâmide invertida e de lide. Mas por que tal padronização? O que motivou os
jornais a essa reestruturação, exposta no capítulo anterior?

O leitor parece ser o motivador dessas alterações, pois é ele, como afirma
Norberto (s.d.:21-2), o elemento central, a figura primordial de um jornal:

Do ponto de vista do veículo, o leitor é o objetivo máximo, a


conquista suprema. (...) O jornalismo, sendo uma indústria como
qualquer outra, deve, para poder sobreviver, apoiar-se também em
bases comerciais práticas. Os leitores, os ouvintes, os
telespectadores e os fãs de cinema são que mantêm os jornais
(sic), as emissoras de rádio e de televisão e os cinemas – dando-
lhes a preferência pelo que de melhor oferecem, incluindo os
produtos comerciais neles anunciados.

A mesma opinião de Norberto é compartilhada por Brait (1991: 86).


Segundo a autora, todo o jornal, desde sua diagramação até sua organização em
cadernos, tem por objetivo facilitar o uso e a localização das notícias, das
reportagens ou dos artigos, estabelecendo, assim, uma relação com seu leitor:

O leitor do jornal, ator que no mesmo indivíduo se diferencia do


leitor do livro, é uma instância de recepção minuciosamente
avaliada pela instância de produção. As estratégias para instaurá-
46

lo iniciam-se na própria configuração física do jornal: um objeto


descartável (isomórfico ao seu conteúdo, diriam alguns...), de
fácil manuseio, nem colado e nem grampeado, apenas dobrado
para ser manuseado à vontade, mas, ao mesmo tempo, organizado
em cadernos temáticos que facilitam a localização dos assuntos. A
diagramação, o tamanho das letras, a variabilidade de assuntos, e
de tratamento a eles conferido, dão ao leitor a liberdade de
transitar (livremente) pelas páginas, saltando o que não lhe agrada
e detendo-se no que mais lhe atrai a atenção. O objetivo, que
nesse sentido parece inteiramente atingido, é o estabelecimento de
uma relação não polêmica com o leitor que, nessa dimensão, é um
consumidor e, como tal, deve ser seduzido à primeira vista.

É, pois, objetivo do jornal relacionar-se com seu leitor e seduzi-lo a fim de


tornar este relacionamento existente entre eles algo indispensável e duradouro. Se
há entre jornal-leitor o desejo de se relacionar, há o desejo de interagir. A interação
representa, então, uma forma de relacionamento, uma vez que possui a intenção de
se comunicar com o outro.

Vários podem ser os mecanismos interacionais, presentes em um jornal,


cujo objetivo final é o de envolver o leitor: a formatação da primeira página, a
organização e estruturação do jornal, a diagramação etc. Todavia, o assunto desta
dissertação é o lide e seus mecanismos interacionais para produção de um
envolvimento. Sendo assim, abordaremos neste capítulo primeiramente, o leitor,
elemento primordial para que se estabeleça uma interação, pois, como afirma
Marcuschi (1999: 140), sempre que se escreve, escreve-se para alguém. Em
seguida, discutiremos um dos termos fundamentais da análise do discurso que é a
interação, e sua relação com o dialogismo de Bakhtin (2003, 2002). Para finalizar,
trataremos do envolvimento, objetivo final da interação, como sucintamente
expusemos anteriormente.

3.2. Autor e leitor: uma estreita relação

O leitor possui um papel primordial tanto na produção quanto na


interpretação de um texto, pois é graças a ele que a situação de comunicação se
estabelece:
47

Um texto postula o próprio destinatário como condição


indispensável não só da própria capacidade concreta de
comunicação, mas também da própria potencialidade
significativa. (Eco, 1986: 37)

Eco (op. cit.) afirma que todo autor, no momento de produção de um texto,
seqüência lingüística escrita ou oral produzida em uma situação de comunicação
determinada, prevê um leitor específico, denominado por ele de leitor-modelo.
Esse leitor deve ser capaz de atualizar e de interpretar esse texto elaborado:

Por isso, [os autores] fixam com perspicácia sociológica e com


brilhante mediedade estatística o seu Leitor-Modelo: dirigir-se-ão,
sucessivamente, a crianças, a melomaníacos, a médicos, a
homossexuais, a surfistas, a empregadas domésticas da pequena
burguesia, a aficcionados de roupas inglesas, a pescadores
submarinos. Conforme dizem os publicitários, a escolherão para
si um target (e um “alvo” pouco ajuda, pois espera ser atingido).
Farão com que todo termo, que toda maneira de dizer, que toda
referência enciclopédica, seja aquilo que previsivelmente o seu
leitor pode entender. (op.cit.: 41)

Conforme ressalta Eco (op. cit.: 39), o autor empírico, ou seja, o produtor da
enunciação textual, o sujeito concreto, deve ser capaz de hipotetizar esse leitor-
modelo com a finalidade de adequar seu texto a esse leitor e, assim, possibilitar a
reconstrução e a compreensão desse texto. Essa hipótese de leitor-modelo
representa, portanto, uma estratégia textual por parte do autor.

Sendo assim, autor e leitor-modelo não constituem dois pólos distintos e


distantes de uma enunciação1, mas sim fazem parte de um mesmo princípio
denominado por Grice (1982) de princípio de cooperação. Como aponta Eco (op.
cit.), obedecendo a este princípio, tanto o autor empírico quanto o leitor empírico,
ambos sujeitos concretos, dedicar-se-ão no sentido de não bloquear, de não fechar
essa comunicação textual.

Para que esse princípio de cooperação se estabeleça, faz-se necessário,


__________
1. Concebemos enunciação nesta dissertação como um “evento único e jamais repetido de produção de um
enunciado”. (Koch, 1998: 13)
48

diferentemente de uma comunicação face a face, que o autor empírico determine


esse leitor-modelo, aquele que é capaz de “decodificar” a mensagem textual.

Em uma comunicação face a face, como apontam Eco (1986) e Kleiman


(1997), tanto o lingüístico quanto o extralingüístico auxiliam na reconstrução e na
interpretação de um texto:

Na comunicação face a face intervêm infinitas formas de reforço


extralingüístico (gestual, ostensivo e assim por diante) e infinitos
procedimentos de redundância e feedback, um em apoio do outro.
Sinal de que nunca existe mera comunicação lingüística, mas
atividade semiótica em sentido lato, onde mais sistemas de signos
se completam reciprocamente. (Eco, op. cit.: 39)

Na interação face a face elementos do contexto ajudam a


compreensão: gestos, os objetos ao redor, bem como o
conhecimento mútuo dos interlocutores são todos elementos nos
quais se apóia a compreensão. (Kleiman, op. cit.: 66)

No entanto, em um texto escrito, há de se prever um leitor-modelo, que é,


segundo Eco (op. cit.), uma estratégia textual, assim como também outros
mecanismos que possibilitem a esse leitor compreender e interpretar esse texto.
Esses mecanismos são, principalmente, a utilização de um mesmo código, um
conhecimento enciclopédico compatível ao texto e um respeito aos gêneros
discursivos2, para que, desta forma, esse leitor-modelo possa cooperar e não seja
surpreendido por algo totalmente desconhecido e novo para ele:

Os meios são muitos: a escolha de uma língua (que exclui


obviamente quem não a fala), a escolha de um tipo de
enciclopédia (se começo um texto com |como está claramente
explicitado na primeira Crítica...|, já reduzi, e bastante
corporativamente, a imagem do meu Leitor-Modelo), a escolha de
um dado patrimônio lexical e estilístico... Posso fornecer sinais de
gênero que relacionam a audiência: |Queridas crianças, era uma
vez um país distante...|; posso restringir o campo geográfico:
Amigos, romanos, concidadãos!|. Muitos textos tornam evidente o
seu Leitor-Modelo, pressupondo apertis verbis (perdoem-me o
__________
2. Concebemos gênero discursivo ou de discurso nesta dissertação como um tipo relativamente estável de
enunciado que possui um conteúdo temático, um estilo e uma construção composicional determinados pela
“especificidade de um determinado campo de comunicação” . (Bakhtin, 2003: 262)
49

oxímoro) uma específica competência enciclopédica. (Eco,


1986: 40)

Maingueneau (2001), assim como Eco (op. cit.), também aponta o princípio
de cooperação postulado por Grice (1982) como um dos primeiros elementos
necessários para que haja uma comunicação, ou seja, ele afirma que o leitor deve
supor que o autor ao produzir um texto respeita certas regras como, por exemplo,
comunicar algo sério, verdadeiro, de interesse do leitor, de forma clara e sem
ambigüidade3. Podemos verificar que ao postular tais regras, o elemento
primordial da enunciação continua a ser o leitor, pois o respeito a essas regras
demonstra, primeiramente, a elaboração de um leitor-modelo por parte desse autor
empírico e, em seguida, uma preocupação com a compreensão e a interpretação
desse leitor.

Isso posto, podemos afirmar que Maingueneau dá a mesma importância ao


leitor no momento de elaboração de um texto que Eco (op. cit.). O teórico francês
(1996: 31) considera que o destinatário de um texto desempenha um papel decisivo
tanto na produção quanto na interpretação de um enunciado. Maingueneau (op.
cit.) assinala, ainda, que diferentemente da comunicação face a face, o texto escrito
é mais frágil pelo fato de o destinatário não partilhar a mesma situação temporal e
espacial do enunciador. Todavia, esse fato não torna o destinatário do texto oral
mais privilegiado do que o do texto escrito. Ele afirma que um texto escrito só terá
sentido no momento em que for lido, compreendido e interpretado por um leitor,
denominado por este autor (op. cit.: 32) co-enunciador, destacando, então, o seu
papel primordial no processo de leitura:

não é possível continuar a proporcionar uma função secundária à


posição de leitura; o termo “co-enunciação” adquire aqui toda a
sua força. Num sentido, é o co-enunciador que enuncia a partir
das indicações cuja rede total constitui o texto da obra. Por mais
que uma narrativa ofereça como a representação de uma história

__________
3. Grice nomeia cada uma dessas regras: máximas de qualidade, máximas de quantidade, máximas de relação e
máximas de modo. Todavia consideramos ser suficiente para esta dissertação apenas assinalarmos que na relação entre
autor e leitor, o primeiro respeita certas regras para que possa, assim, atingir o segundo.
50

independente, anterior, a história que conta só surge através de


sua decifração por um leitor.

Maingueneau (2001) assegura que para se produzir e se interpretar um texto


de maneira adequada, deve haver, além do princípio de cooperação entre autor e
leitor, três fundamentais competências: uma competência lingüística, uma
competência genérica e uma competência enciclopédica.

Possuir competência lingüística significa que autor e leitor precisam ter


conhecimento e domínio de uma mesma língua, uma vez que seja este princípio
básico para que haja comunicação.

Por sua vez, possuir uma competência genérica quer dizer que o autor deve
adequar seu texto a certos gêneros de discurso, que são, segundo o próprio
Maingueneau (op. cit.: 61), “tipos de discurso4 associados a vastos setores de
atividade social”, e o leitor-modelo, instituído por esse autor, precisa ser capaz ao
menos de distinguir diferentes gêneros a fim de que este consiga compreender e
interpretar o texto lido.

O teórico francês (op. cit.) assinala que ao se comunicar, seja de forma


escrita, seja de forma oral, os indivíduos sempre obedecem a um certo gênero de
discurso e não utilizam, então, o discurso como tal. Por esse motivo, é necessário
que eles conheçam tais gêneros, pois desta forma podem se adequar a eles:

De fato, “o” discurso jamais se apresenta como tal, mas sempre


na forma de um gênero de discurso particular: um boletim de
meteorologia, uma ata de reunião, um brinde etc. (...) Mesmo não
dominando certos gêneros, somos geralmente capazes de
identificá-los e de ter um comportamento adequado em relação a
eles. (Maingueneau, op.cit: 43-4)

__________

4. Adotamos, nesta dissertação, a distinção entre texto e discurso proposta por Maingueneau (1998). Para ele, texto
possui uma forte estruturação e o destaque é dado à sua unidade, “que faz dele uma totalidade e não uma simples
seqüência de frases” (op. cit.: 142). Entretanto, o discurso “é concebido como a associação de um texto a seu contexto”
(op. cit.: 45).
51

A terceira competência apontada por Maingueneau para que haja uma


comunicação, ou entre falantes, ou entre autores e leitores, é a competência
enciclopédica, ou seja, é necessário que haja por parte desses indivíduos
participantes de um ato de comunicação um considerável conhecimento sobre o
mundo:

É a nossa competência enciclopédica que nos diz, por exemplo,


que uma sala de espera existe para que as pessoas esperem sua
vez; que a proibição de fumar se aplica ao tabaco; que os cigarros,
charutos, cachimbo, queimam tabaco e soltam fumaça e que a
fumaça é geralmente considerada pelos médicos como prejudicial
à saúde; que nos lugares fechados a fumaça fica estagnada e pode
ser inalada pelos não-fumantes; que existem regulamentos nas
repartições, autoridades encarregadas de aplicar sanções etc.
(Maingueneau, 2001: 42)

Esse autor (op. cit.) aponta ainda que, dentre essas três competências, uma
não se sobrepõe à outra e que elas não obedecem especificamente a uma seqüência
ordenada. As três são igualmente importantes e interagem para que o autor produza
seu texto de forma que o seu leitor-modelo possa compreendê-lo e interpretá-lo.

3.3. Os diferentes tipos de leitores

Eco (1986), conforme apontamos anteriormente, distingue dois tipos de


leitores: um leitor empírico e um leitor-modelo. O primeiro é o sujeito concreto, ou
seja, o indivíduo que lerá e procurará compreender e interpretar aquilo que leu. Por
sua vez, o leitor-modelo representa uma hipótese do autor, uma estratégia textual
criada por ele para que seu texto possa ser compreendido e interpretado
adequadamente.

Assim, leitor-modelo, o princípio de cooperação e as três competências


comunicativas constituem as estratégias textuais necessárias para que o texto seja
plenamente apreendido. Vale enfatizamos, porém, que por detrás de um leitor-
modelo, estratégia textual, há um verdadeiro leitor, que é o leitor empírico.
52

Maingueneau (2001:47) utiliza a mesma concepção de leitor criada por Eco


(1986):

Como a fala é uma atividade fundamentalmente cooperativa, o


autor de um texto é obrigado a prever constantemente o tipo de
competência de que dispõe seu destinatário para decifrá-lo.
Quando se trata de um texto impresso para um grande número de
leitores, o destinatário, antes de ser um público empírico, ou seja,
o conjunto de indivíduos que lerão efetivamente o texto, é apenas
uma espécie de imagem à qual o sujeito que escreve deve atribuir
algumas aptidões. A justa medida de competência lingüística e de
competência enciclopédica que se espera do leitor vai, então,
variar de acordo com os textos.

Em outra obra de Maingueneau (1996), encontramos uma caracterização


mais profunda de leitor, na qual ele afirma que a noção que se tem desse termo não
é estável, pois leitor possui usos muito diversificados, uma vez que ora se refira a
um público concreto, ora a uma estratégia textual:

Provavelmente o mais incômodo está em o termo “leitor” ser


suscetível de usos muito variados, oscilando entre o histórico e o
cognitivo. O leitor é ora o público efetivo de um texto, ora o
suporte de estratégias de decifração. Os dois aspectos
interpenetram-se, mas não tentam captar a mesma coisa. São
pontos de vista diferentes sobre a posição de leitura. (op. cit.: 34)

O leitor empírico de Eco (op. cit.) é denominado por Maingueneau (op. cit.)
de público, que é concebido e diferenciado em duas categorias: o público genérico
e o público atestado.

O público genérico possui uma característica social específica e está


relacionado ao gênero de discurso através do qual o texto se constrói. Sendo assim,
podemos pensar, por exemplo, em que um texto jornalístico tem um público
genérico constituído de leitores de jornal, que certamente possuem, neste tipo de
leitura, expectativas diferentes das de um leitor de uma obra literária, embora o
indivíduo possa ser o mesmo.

O público atestado, por sua vez, não possui uma ligação com o gênero de
53

discurso, mas sim, com a diversidade espacial e temporal. O público atual de uma
notícia jornalística publicada em um jornal paulista de grande circulação, por
exemplo, não enxerga e lê o jornal da mesma forma que o público no início do
século XX. As expectativas e concepções atuais, também, são outras.

Tanto o público genérico quanto o público atestado são denominações


dadas por Maingueneau (1996) para caracterizar o público efetivo de um texto, ou
seja, os indivíduos concretos.

Ao tratar, por sua vez, do leitor-modelo, o teórico francês (op. cit.) utiliza as
denominações leitor invocado ou apostrofado e leitor instituído ou cooperativo.

O leitor invocado ou apostrofado é assim nomeado pelo fato de o autor de


um texto dirigir-se explicitamente a esse leitor. Ele claramente representa uma
estratégia textual, pois o autor parece fazer questão de “conversar” diretamente
com o leitor-modelo instituído por ele:

Pode-se falar de leitor invocado para a instância à qual o texto se


dirige explicitamente como a seu destinatário. Podem ser os
happy few que o final de O vermelho e o negro designa como seus
leitores privilegiados; podem ser igualmente os leitores
apostrofados no decorrer do texto: “Vede, leitor, que estou no
caminho certo e que só caberia a mim fazer-vos aguardar, um
ano, dois anos, três anos, pela narrativa dos amores de Jacques...”
(Jacques, o fatalista). (Maingueneau, op. cit.: 34 -5)

O leitor instituído ou cooperativo, entretanto, não é explicitado no texto,


como ocorre com o leitor invocado. Ele representa aquele leitor esperado pelo
autor, ou seja, seu texto é produzido com o objetivo de atingir a esse leitor. Como
assinalamos anteriormente, esse leitor instituído é também uma estratégia textual
implícita formulada por um autor empírico, assim também como são as três
competências comunicativas e o princípio de cooperação:

O leitor instituído: será a instância que a própria enunciação do


texto implica, já que o último pertence a este ou àquele gênero, ou
mais amplamente, se desdobra nestes ou naqueles registros. Na
54

medida em que os gêneros são realidades historicamente situadas,


estamos aqui na articulação dos procedimentos e do social. O
romance precioso do século XVIII, por exemplo, não institui o
mesmo tipo de leitor que o romance naturalista. Existem tipos de
romances que supõem um leitor detetive que perscrute o texto
ininterruptamente e volte sobre seus passos à procura de indícios;
outros constroem suspenses que aspiram o leitor para o desenlace;
outros, ainda, instituem um leitor cheio de boa vontade para
aprender, etc. (Maingueneau, 1996: 35)

A partir dos exemplos dados por Maingueneau (op. cit.), podemos


erroneamente supor que público genérico e leitor instituído sejam basicamente a
mesma coisa. Todavia, a diferença existente entre eles está no fato de o primeiro
referir-se coletivamente a um grupo de indivíduos empíricos, ou seja, concretos, e
que lerão textos pertencentes a um determinado gênero de discurso. Já o segundo é
considerado estratégia textual e, por esse motivo, embora diferentes textos possam
pertencer a um mesmo gênero, tendo, assim, um público genérico semelhante, eles
utilizam diferentes estratégias textuais, procurando atingir, então, a diferentes
leitores instituídos. Como esclarece Maingueneau (op. cit.: 36),

público genérico e leitor instituído são instâncias diferentes. A


partir do mesmo receptor genérico, pode-se lidar com leitores
instituídos muito variados: Balzac e Stendhal têm mais ou menos
o mesmo público genérico, mas não instituem manifestamente o
mesmo leitor através de sua enunciação.

Maingueneau (op. cit.: 37) aponta ainda que esse leitor instituído precisa
ser cooperativo para que, então, o texto possa ser compreendido e interpretado, ou
seja, ele deve ser capaz de construir o universo ficcional a partir das indicações
fornecidas pelo autor.

É justamente pelo fato de o teórico francês assinalar que o leitor instituído


precisa mostrar-se cooperativo, que optamos por aproximar os dois termos,
denominando-o, então, de leitor instituído ou cooperativo. É no momento de
discutir a função desse leitor cooperativo, que Maingueneau (op. cit.: 37-8)
aproxima sua tipologia de leitor à teoria formulada por Eco (1986), também sobre
o leitor, e afirma que seu leitor cooperativo é o leitor-modelo de Eco:
55

U. Eco chama esse leitor cooperativo de “Leitor Modelo” e


define-o como “um conjunto de condições de sucesso ou de êxito
estabelecidas textualmente, que devem ser satisfeitas para que um
texto seja plenamente atualizado em seu conteúdo potencial”. É a
representação que a decifração do texto implica.

3.4. A noção de interação

O termo interação parece estar sempre relacionado à conversação, ao oral.


Maingueneau (1998: 84) salienta que a interação deveria ser diferenciada da
interação verbal pelo fato de que nem toda comunicação entre dois indivíduos
precisa ser necessariamente verbal. Entretanto, ele acrescenta que,

em geral, em análise do discurso interação se entende como


interação verbal entre dois participantes, dois interactantes. Para
que haja verdadeiramente interação, e não apenas acareação de
indivíduos que falam, várias condições devem ser reunidas: os
locutores devem aceitar um mínimo de normas comuns, engajar-
se na troca, assegurar conjuntamente sua gestão, produzindo
sinais que permitem mantê-la, sincronizando seus turnos de fala,
seus gestos etc.

Preti (2002: 45) concebe o termo interação “sob o ponto de vista da


reciprocidade do comportamento das pessoas, quando em presença uma das
outras”. Ele propõe, em seguida, dois tipos de interação:

De uma maneira geral, pode-se partir desde uma simples co-


presença em que dois indivíduos se cruzam na rua e que, mesmo
sem se conhecerem, se observam, guardam distância e desviam-se
para não se chocarem, o que já demonstra uma ação conjunta e
socialmente planejada, até a interação com um único foco de
atenção visual e cognitiva, como a conversação, em que os
falantes por um momento se concentram um no outro e se ligam,
não só pelos conhecimentos que partilham, mas também por
outros fatores socioculturais, expressos na maneira como
produzem o seu discurso e conduzem o diálogo. Pode-se
denominar a primeira, isto é, a interação pela simples co-
presença, de não focalizada; e, a segunda, em que se inclui a
conversação face a face, de focalizada.

Todavia, considerando o termo interação como uma realidade fundamental


da linguagem, idéia esta defendida por Bakhtin no conjunto de suas obras,
56

podemos afirmar que este termo não é uma característica exclusiva da


conversação.

Segundo Marcuschi (1999), há anos, muitos autores postulavam que a


escrita era uma linguagem do distanciamento, pois entre os interlocutores não
havia proximidade física e, sendo assim, o autor preocupava-se com a idéia a ser
desenvolvida e não com o interlocutor. No lado oposto a esse distanciamento está a
fala, considerada como a linguagem da proximidade.

Parece-nos claro, entretanto, que não podemos considerar tal idéia


totalmente infundada, uma vez que no texto escrito não há verdadeiramente uma
relação direta com o seu leitor, ou seja, ele não tem, ou não assume a palavra da
mesma forma que ocorre na interação face a face.

Contudo, a interação pode ser analisada sob um outro prisma que não seja
simplesmente uma relação estabelecida em uma conversação. Essa outra forma é a
de considerá-la como uma atividade presente em todo e qualquer uso da
linguagem, uma vez que ninguém escreve ou fala algo sem que imagine um leitor
ou um ouvinte.

É a propósito disso que estamos tratando até agora. Tanto Maingueneau


(2001; 1996) quanto Eco (1986) ao estudarem o papel do leitor na produção do
texto escrito afirmam que ele é de fundamental importância no momento de
produção de um texto, pois este não é algo independente; ele só adquire
significação no momento em que é lido, compreendido e interpretado por esse
leitor. Sendo assim, o autor escreve seu texto, procurando atingir esse objetivo.

Portanto, embora haja uma distância espaço-temporal entre autor e leitor,


aquele procura a adesão deste construindo seu texto a partir de algumas estratégias
textuais. A primeira delas é, como apontamos anteriormente, definir um leitor-
57

modelo, pois como assinala Eco (1986: 37), “todo texto quer que alguém o ajude a
funcionar”.

Diante dessas considerações, podemos sintetizar que, ao contrário do que


alguns autores postulavam, como observa Marcuschi (1999), o autor de um texto
escrito preocupa-se acima de tudo com o seu interlocutor e, depois, com a idéia a
ser desenvolvida.

A conversação não é, pois, a única forma de interação. A atividade de


leitura também pode ser considerada, a partir do que estamos expondo, uma
interação entre leitor e autor:

E começaremos definindo a atividade de leitura como uma


interação a distância entre leitor e autor via texto. A ação do leitor
já foi caracterizada: o leitor constrói, e não apenas recebe, um
significado global para o texto; ele procura pistas formais,
antecipa essas pistas, formula e reformula hipóteses, aceita ou
rejeita conclusões. Contudo, não há reciprocidade com a ação do
autor, que busca, essencialmente, a adesão do leitor, apresentando
para isso, da melhor maneira possível, os melhores argumentos, a
evidência mais convincente da forma mais clara possível,
organizando e deixando no texto pistas formais a fim de facilitar a
consecução de seu objetivo. (Kleiman, 1997: 65)

Se há uma preocupação por parte do autor em produzir um texto de forma


clara para que o leitor possa, assim, compreendê-lo, e se o leitor procura
compreender e construir uma interpretação para o texto lido, isso significa que, por
meio de um texto, autor e leitor dialogam, interagem. De acordo com Brait (2001:
194), podemos conceber a interação como sendo

um componente do processo de comunicação, de significação, de


construção de sentido e que faz parte de todo ato de linguagem. É
um fenômeno sociocultural, com características lingüísticas e
discursivas passíveis de serem observadas, descritas, analisadas e
interpretadas.

Essa definição de interação é muito mais ampla pelo fato de englobar todo e
qualquer ato de linguagem seja ele oral ou escrito. Esta concepção está
58

fundamentada no princípio dialógico desenvolvido por Bakhtin (2003; 2002) que


constitui o eixo central de suas obras.

3.5. Interação verbal e dialogismo em Bakhtin

Tanto a interação verbal quanto o dialogismo representam uma postura de


estudo, uma postura de reflexão sobre a linguagem e sobre a concepção de locutor
e interlocutor.

Koch (2002:14) aponta três diferentes posições possíveis de serem adotadas


em relação a esse locutor, que é nomeado por ela de sujeito e concebido como “um
ego que constrói uma representação mental e deseja que esta seja ‘captada’ pelo
interlocutor da maneira como foi mentalizada”.

Na primeira posição, o locutor é considerado o total responsável pelo


sentido de um enunciado, pois é ele quem detém a palavra e quem controla seus
pensamentos. Sendo assim, esse locutor é o elemento central de uma enunciação, o
dono de sua vontade, de suas palavras e é capaz de controlar o meio em que está
inserido:

Uma característica importante desta concepção é que se acentua o


predomínio da consciência individual do uso da linguagem. O
correlato político desta concepção seria a ideologia liberal,
segundo a qual os sujeitos é que fazem a história. (Koch, op.
cit.: 14)

A segunda concepção de locutor é denominada por Koch (op. cit.) de


“assujeitamento”. Nesta outra posição, o locutor é visto como um elemento social
que sofre os efeitos do meio em que está inserido. Por esse motivo, ele não é
considerado o dono do seu próprio enunciado, mas é apenas um mero reprodutor
de uma ideologia:

Quem fala, na verdade, é um sujeito anônimo, social, em relação


ao qual o indivíduo que, em dado momento, ocupa o papel de
59

locutor é dependente, repetidor. Ele tem apenas a ilusão de ser a


origem de seu enunciado, ilusão necessária, de que a ideologia
lança mão para fazê-lo pensar que é livre para fazer e dizer o que
deseja. Mas, na verdade, ele só diz e faz o que se exige que faça e
diga na posição em que se encontra. (Koch, 2002: 14)

Na terceira concepção, o locutor é considerado um elemento psicossocial e,


por esse motivo, é capaz tanto de produzir quanto de reproduzir o meio social em
que está inserido, ou seja, ele é capaz de interagir com o social, pois possui voz
ativa. O enunciado deixa de ter, então, como componente central, o locutor,
também não mais é resultado unicamente do meio em que faz parte, mas, sim,
torna-se um espaço de interação entre locutores e interlocutores, que juntos
construirão a compreensão do enunciado:

Á concepção de língua como lugar de interação corresponde a


noção de sujeito como entidade psicossocial, sublinhando-se o
caráter ativo dos sujeitos na produção mesma do social e da
interação e defendendo a posição de que os sujeitos (re)produzem
o social na medida em que participam ativamente da definição da
situação na qual se acham engajados, e que são atores na
atualização das imagens e das representações sem as quais a
comunicação não poderia existir. (op. cit.: 15)

Esta terceira é, pois, a concepção de Mikhail Bakhtin acerca da noção e da


função de locutores e de interlocutores em um enunciado. Tal noção vai ao
encontro daquilo que procuramos expor até o momento neste capítulo.

O que procuramos expor é basicamente que existe uma interação


distanciada no momento de produção e leitura de um texto, uma vez que leitor e
autor exercem funções específicas durante esse processo. O autor tem a função de
construir seu texto, selecionando as estratégias adequadas para que seu objetivo
seja atingido. O leitor, por sua vez, deve procurar compreender, construir uma
significação para aquilo que lê, estabelecendo, assim, um diálogo com o autor
mediado pelo texto:

Ler torna-se, então, uma atividade de co-enunciação, o diálogo


que o autor trava com o leitor possível, cujos movimentos ele
antecipa no processo de geração do texto e também como
60

atividade de atribuição de sentido ao texto promovido pelo leitor


no ato de leitura. (Brandão, 2001: 287)

Parece-nos ser, então, o ato de atribuir um sentido, a construção da


significação, ou seja, a compreensão5 do texto por meio da leitura, o momento em
que autor e leitor interagem, dialogam.

Bakhtin (2003) enfatiza que compreender é parte integrante de um processo


de comunicação. No momento em que um interlocutor compreende o significado
lingüístico de um discurso, ele imediatamente adota uma postura de resposta,
nomeada por ele de posição responsiva, isto é, o interlocutor pode concordar, pode
discordar ou até mesmo usar aquilo que ouviu ou leu.

Por esse motivo, essa compreensão por parte do interlocutor não é uma
atividade passiva, ou seja, ele deve ser capaz de refletir sobre o enunciado,
concordar, opor-se, comentar etc. O próprio locutor não espera uma atitude passiva
de seu interlocutor:

Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado


(lingüístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele
uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou
parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc;
essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo um
processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes
literalmente a partir da primeira palavra do falante. (Bakhtin,
op. cit.: 271)

Nesta obra de Bakhtin, ele parece afirmar que o ato de compreensão e de


estabelecimento de uma postura por parte do interlocutor ocorre exclusivamente na
fala. Todavia, podemos considerar esse processo presente tanto em um texto oral
quanto em um escrito, pelo fato de ele mesmo considerá-la de forma mais
abrangente:

__________
5. Sentido e significação assumem nesta dissertação uma relação de sinonímia. Ambos estão relacionados ao
processo de compreensão. Ducrot (1987:170) recusa-se a considerar a significação parte do sentido. Entretanto, afirma
não poder justificar o motivo da recusa.
61

Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em


relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto
correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em
processo de compreender, fazemos corresponder uma série de
palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e
substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão.
(Bakhtin, 2002: 131-2)

Neste momento, Bakhtin não trata unicamente da fala, mas da enunciação;


ele não utiliza o termo “posição responsiva”, mas sim, “uma réplica”. Isso posto,
podemos ressaltar que a compreensão para o pensador russo é um ato tanto
presente na fala quanto na escrita, pois como ele mesmo aponta logo em seguida,
“a compreensão é uma forma de diálogo” (op. cit.: 132) e o diálogo é algo
construído por meio da palavra. Para Bakhtin (2003), a palavra é o elemento
constitutivo da linguagem, e toda linguagem6 possui um diálogo, uma relação
dialógica.

O diálogo a que Bakhtin (2003) se refere não tem a mesma significação


dada pela retórica. Na retórica, ele está relacionado à produção de uma
conversação fictícia entre dois interlocutores. Essa concepção é bastante simples e
reducionista. Ao utilizar o termo diálogo, o pensador russo faz referência a uma
relação dialógica, sendo esta mais ampla e complexa:

O diálogo real (a conversa do cotidiano, a discussão científica, a


discussão política, etc). A relação entre as réplicas de tal diálogo é
o tipo mais externamente notório e simples de relações dialógicas.
Contudo, as relações dialógicas não coincidem, de maneira
nenhuma, com as relações entre as réplicas do diálogo real; são
bem mais amplas, diversificadas e complexas. (Bakhtin, op.
cit.: 331)

Consideramos ser essas relações dialógicas “amplas, diversificadas e


complexas” pelo fato de Bakhtin tratar do dialogismo de duas maneiras distintas:
na primeira, ele o relaciona à intertextualidade; na segunda, à compreensão e,

__________
6. Quanto à distinção entre língua e linguagem, Bakhtin considera a língua como sistema e, portanto, algo
determinado e fechado. A linguagem, por sua vez, é algo produzido por indivíduo ou um grupo de indivíduos e, por
isso, é passível de ser estudado e possui uma relação dialógica.
62

conseqüentemente à interação7.

O dialogismo intertextual é a relação que se estabelece entre dois


enunciados8 que possuem um contato semântico, formal ou de gênero entre si.
Segundo Bakhtin (2003), todo enunciado representa a criação de algo que não
existia. Esse enunciado novo, só passa a existir a partir de algo que já foi criado
anteriormente. É por esse motivo que dois ou mais enunciados, distantes tanto
espaço quanto temporalmente um do outro, mas confrontados e, possuindo ao
menos um ponto de convergência, estabelecem uma relação dialógica entre eles:

Qualquer resenha da história de alguma questão científica


(independente ou incluída no trabalho científico sobre uma
determinada questão) realiza confrontos dialógicos (entre
enunciados, opiniões, pontos de vista) entre enunciados de
cientistas que não sabiam nem podiam saber nada uns sobre os
outros. O aspecto comum da questão gera aqui relações
dialógicas. (Bakhtin, op. cit.: 331)

O dialogismo interacional, por sua vez, ocorre na relação que se estabelece


entre aquilo que um autor produz e a compreensão elaborada por um destinatário,
pois, como expusemos anteriormente, mas em outros termos, todo enunciado
pressupõe sempre um destinatário. Bakhtin (op. cit.: 301) afirma que um
enunciado possui direcionamento, uma vez que é endereçado a alguém:

O enunciado tem autor (e, respectivamente, expressão, do que já


falamos) e destinatário. Esse destinatário pode ser um
participante-interlocutor direto do diálogo cotidiano, pode ser
uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo
especial da comunicação cultural, pode ser um público mais ou
menos diferenciado, um povo, os contemporâneos, os
correligionários, os adversários e inimigos, o subordinado, o
chefe, um inferior, um superior, uma pessoa íntima, um estranho,
etc.;

__________
7. No presente trabalho, utilizaremos o conceito de dialogismo relacionado à interação. Entretanto, consideramos
pertinente a exploração de tal distinção dada a complexidade das formulações teóricas de Bakhtin.

8. Concebemos o termo enunciado como “a manifestação concreta de uma frase, em situações de interlocução.”
(Koch, 1998: 13) O termo enunciação já foi definido anteriormente. Precisamos assinalar, ainda, que, como pontua
Koch, ambas as definições fazem parte da teoria da enunciação, que tem como precursor M. Bakhtin.
63

Cabe, então, ao autor definir o destinatário e produzir seu enunciado


endereçado a ele, pois como postula o pensador russo, é esse destinatário quem
influenciará na composição e no estilo desse enunciado. Ao destinatário, por sua
vez, cabe a função de compreender tal enunciado. Por essa razão, podemos afirmar
que há neste tipo de relação um dialogismo interacional, pois o destinatário ao
procurar compreender o enunciado torna-se um novo participante dele.

Vale ressaltar ainda que, em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin


trata sucintamente do dialogismo intertextual e interacional. Em Estética da
criação verbal, porém, ele aprofunda tais conceitos, assegurando que o dialogismo
é um aspecto essencial para a interação verbal.

Ao sintetizar essa concepção de dialogismo interacional proposta por


Bakhtin, Barros (2001) levanta quatro aspectos:

a) o primeiro, como pontuamos anteriormente, faz menção em considerar a


interação como o princípio fundador da linguagem;

b) o segundo aspecto aponta que é a relação entre os interlocutores em um


enunciado que estabelecem um sentido para ele, pois esses interlocutores
“constroem-se na produção e na interpretação dos textos”(op. cit.: 31);

c) o terceiro considera que a relação entre os interlocutores não apenas dá


sentido ao enunciado como também “constrói os próprios sujeitos
produtores do texto” (op. cit.: 31);

d) o último aspecto concebe que “Bakhtin aponta dois tipos de sociabilidade: a


relação entre sujeitos (entre os interlocutores que interagem) e a dos sujeitos
com a sociedade” (op. cit.: 31).

Tais aspectos evidenciam a amplitude dessas relações dialógicas propostas


64

pelo pensador russo. Ampla, primeiramente, pelo fato de Bakhtin considerá-la sob
diferentes aspectos (intertextual e interacional) e, depois, principalmente pelo fato
de ser um elemento constitutivo da linguagem.

Em princípio, podemos considerar que todas as atividades, todas as relações


possuem uma relação dialógica, porém, Bakhtin (2003: 332) observa que entre as
unidades da língua tal relação não existe, pois o dialogismo se faz presente apenas
naquilo que possui sentido e deseja comunicar, ou seja, em um enunciado
qualquer:

Entre as unidades da língua, independentemente de como as


interpretamos e do nível da estrutura lingüística em que as
tomemos, não pode haver relações dialógicas (fonemas,
morfemas, lexemas, orações, etc.). O enunciado (enquanto
plenitude do discurso) não pode ser reconhecido como unidade do
nível último e superior ou andar da estrutura da língua (sobre a
sintaxe), uma vez que ele faz parte de um mundo de relações
inteiramente diversas (dialógicas), não confrontáveis com
relações lingüísticas de outros níveis.

Barros (1994: 2) define esse dialogismo interacional de Bakhtin como um


espaço em que o eu e o tu se relacionam. Ela pontua que esta relação não se dá da
forma como Benveniste a concebe, ou seja, correlacionando-a com a subjetividade,
em que esse eu parece ser o elemento central de toda compreensão do enunciado,
mas sim é a relação entre esses dois elementos no espaço de um enunciado.

O dialogismo, segundo Barros (op. cit.) tem como ponto de partida a


interação verbal e dessa concepção de interação decorrem duas das direções, que
serão, posteriormente, utilizadas pela Teoria da Enunciação9: a primeira é a
existência de uma enunciação não-subjetivista, e a segunda é a presença de
uma enunciação dialógica.

__________

9. Concebemos a Teoria da Enunciação como aquela que não se preocupa unicamente em descrever os enunciados
produzidos por um locutor, mas que acima de tudo preocupa-se com “as condições de produção (tempo, lugar, papéis
representados pelos interlocutores, imagens recíprocas, relações sociais, objetivos visados na interlocução)”, (Koch,
1998: 13-4) todos esses elementos constitutivos de um enunciado.
65

Nessa concepção não-subjetivista, o sujeito, o locutor deixa de ser o


elemento central de uma enunciação. O primordial passa a ser, então, a relação que
se estabelece entre um locutor e seu interlocutor (eu – tu) em um enunciado
qualquer, o sentido desse enunciado construído por ambos, e a motivação daquilo
que é postulado pelo locutor ser colocado de tal forma.

Bakhtin (2002) destina um capítulo específico para tratar da interação. Ele o


inicia, justamente distinguindo o subjetivismo individualista de sua própria
concepção sobre a linguagem, que é, como já assinalamos diversas vezes,
interacional.

O teórico trata do subjetivismo individualista, considerado por ele um


pensamento filosófico-lingüístico, sob dois focos: um literário e um ligado à
linguagem, à expressão. No literário, o pensador russo assinala que esse
subjetivismo individualista está relacionado ao Romantismo, pois foi este um
período de grande reação contra a palavra estrangeira e contra o poder cultural que
ela exerceu. Houve, neste período, uma intensa reflexão lingüística sobre a
atividade mental em língua materna dos indivíduos.

Sob o foco da linguagem, Bakhtin (op. cit.: 110-1) assinala que o


subjetivismo individualista, como o próprio nome já sugere, considera o enunciado
produzido por um locutor uma atividade monológica, ou seja, não prevê nem o
meio externo nem o interlocutor. Ademais, a expressão, a comunicação é tida
como um ato que surge no interior e, depois, se exterioriza, uma vez que o interior
é visto como o elemento principal e o exterior é apenas um receptáculo:

Em todo caso, todas as forças criadoras e organizadoras da


expressão estão no interior. O exterior constitui apenas o material
passivo do que está no interior. Basicamente, a expressão se
constrói no interior; sua exteriorização não é senão sua tradução.
(op.cit.: 111-2)

Bakhtin (op. cit.) caracteriza tal pensamento filosófico-lingüístico como


66

uma falsidade, pois para ele essa distinção entre interior e exterior proposta pelos
subjetivistas individualistas não existe, e toda formulação, para que se estabeleça
uma comunicação com um interlocutor, dá-se no plano exterior:

Conseqüentemente, é preciso eliminar de saída o princípio de uma


distinção qualitativa entre o conteúdo interior e a expressão
exterior. Além disso, o centro organizador e formador não se situa
no interior, mas no exterior. Não é a atividade mental que
organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que
organiza a atividade mental, que a modela e determina sua
orientação. (Bakhtin, 2002: 112)

O pensador russo postula, também, que toda a palavra dirige-se a um


interlocutor real ou a um representante de determinado grupo social, podendo,
então, alterar-se ou de acordo com o grupo social a que o interlocutor faz parte, ou
de acordo com hierarquia estabelecida entre ambos os interlocutores, ou, ainda, de
acordo com o grau de intimidade e envolvimento existente entre eles.

Ao destacar a importância da palavra10, não vista como elemento


gramatical, mas sim como instrumento de comunicação, Bakhtin (op. cit.) assegura
que esta é determinada tanto pelo locutor, indivíduo que a concebe, quanto pelo
interlocutor, que é o destinatário, o alvo de tal comunicação. Ela representa, então,
o produto da interação entre esse locutor e seu interlocutor:

Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é


determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo
fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o
produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve
de expressão a um em relação ao outro. (op.cit.: 113)

Desta forma, a palavra representa um limite fronteiriço entre os


interlocutores de um ato de comunicação, ou seja, ela é estabelecida a partir da
__________
10. O termo palavra nesta obra de Bakhtin pode ser compreendido como linguagem, utilizada em Estética da
criação verbal, cuja função é a de servir como instrumento para produção de um enunciado. Parece-nos difícil
determinar e definir muitos dos termos utilizados por Bakhtin pelo fato de ele mudar a utilização deles. Ora a língua,
por exemplo, não é possível de ser estudada de forma interacional (Estética da criação verbal) ora é utilizada como
sinônimo de linguagem (Marxismo e filosofia da linguagem). O mesmo parece ocorrer com os termos enunciado e
enunciação.
67

relação que esses interlocutores pretendem construir, uma vez que esta pode ser
alterada por eles de acordo com a hierarquia ou familiaridade existente, ou, ainda,
dependendo da proximidade ou envolvimento que se pretende estabelecer.

Além dessa relação existente, ou que se pretenda criar entre interlocutores,


Bakhtin (2002) destaca que a produção de um determinado enunciado também está
relacionada a uma situação social e postula que apenas o som produzido por um
animal pode proceder apenas do seu interior, como afirmam os subjetivistas
individualistas:

Só o grito inarticulado de um animal procede do interior, do


aparelho fisiológico do indivíduo isolado. É uma reação
fisiológica pura e não ideologicamente marcada. Pelo contrário, a
enunciação humana mais primitiva, ainda que realizada por um
organismo individual, é, do ponto de vista do seu conteúdo, de
sua significação, organizada fora do indivíduo pelas condições
extra-orgânicas do meio social. A enunciação enquanto tal é um
puro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala
determinado pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo
que constitui o conjunto das condições de vida de uma
determinada comunidade lingüística. (op. cit.: 121)

Bakhtin (op. cit.) assinala, ainda, que, embora pareça que trate do termo
interação apenas presente num ato de conversação, ele sempre se refere às duas
formas de comunicação, ou seja, a fala e a escrita, sendo esta última nomeada por
ele no momento de exemplificar de “ato de fala impresso”:

O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um


elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões
ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser
apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo,
comentado e criticado no quadro do discurso interior, sem contar
as reações impressas, institucionalizadas, que se encontram nas
diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas, que
exercem influência sobre os trabalhos posteriores, etc). (op.cit.:
123)

Dessa forma, a interação é um elemento presente tanto na fala quanto na


escrita e, embora Bakhtin muitas vezes utilize o termo fala, ele possui uma
conotação genérica, fazendo referência, então, a um enunciado escrito ou oral.
68

Ao final do capítulo que trata sobre interação, o pensador russo (2002: 124)
propõe uma ordem metodológica desenvolvida em três passos para que se estude a
língua:

1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as


condições concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados,
em ligação estreita com a interação de que constituem os
elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação
ideológica que se prestam a uma determinação pela interação
verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação
lingüística habitual.

3.6. A interatividade de Marcuschi

De acordo com Marcuschi (1999), o autor de um texto escrito, ou seja, um locutor,


preocupa-se primeiramente com o seu interlocutor e, depois, com a idéia a ser
desenvolvida.

Fundamentado nas idéias de Mikhail Bakhtin acerca da função interacional


e dialógica da linguagem, Marcuschi (op. cit.: 140) postula que

quando se escreve, escreve-se para alguém e este alguém (o


outro, o interlocutor) está presente no horizonte do escrevente.
Isto, em essência, equivale ao princípio do dialogismo como
fenômeno universal em todos os usos da língua, seja na fala ou na
escrita.

Ele faz uso dos pensamentos propostos pelo pensador russo, procurando
encontrar em um enunciado escrito aquilo que ele nomeia por traços de
interatividade, pois o autor, o locutor, denominado por ele de escrevente, deixa
alguns traços, algumas marcas que denunciarão o estabelecimento de uma relação
direta entre os interlocutores desse enunciado:

O interesse será identificar, na escrita, marcas ou indícios que


evidenciam atos de interatividade que sugerem uma relação
direta e intencional do autor com o suposto leitor, uma relação
clara entre um eu e um tu. (Marcuschi, 1999: 142)
69

Todavia, Marcuschi (op. cit.) adverte que procurar marcas de interatividade


em um texto escrito não representa uma tentativa de aproximar a fala da escrita,
tentando destacar, então, marcas da primeira presentes ou ausentes na segunda.
Fala e escrita são duas modalidades de uso da linguagem com características
específicas, porém não dicotômicas. Isto equivale a dizer que ambas as
modalidades podem variar aproximando-se ou distanciando-se mais uma da outra,
dependendo do gênero de discurso de que um enunciado fizer parte.

Procurar indícios de interatividade significa para esse autor (op. cit.: 143)
verificar o “movimento específico no processo de textualização em que a presença
do interlocutor está marcada na própria realização textual”.

Ele assinala, ainda, que nem todos os enunciados produzidos em diversos


gêneros de discurso, possuem marcas de interatividade na mesma proporção. Para
comprovar tal idéia, Marcuschi (op. cit.) faz uso de dois exemplos: uma carta
pessoal e uma notícia jornalística.

A carta pessoal é um enunciado que possui marcas de interatividade em


quantidade e claramente explicitadas, pois se trata de um gênero discursivo que
tem um interlocutor definido e íntimo, e por esse motivo, ela é endereçada
especificamente a ele.

Ao tratar de uma notícia jornalística, afirma que ela faz parte de um outro
gênero de discurso e é produzida para um público amplo e desconhecido, cuja
função é apenas a de informar, a de partilhar algo com seu interlocutor, que pode
não ser de seu conhecimento. Segundo Marcuschi (op. cit.), uma notícia
jornalística só estabelecerá uma relação direta com seu interlocutor, caso esta
busque um sensacionalismo:

Estes marcadores intertextuais ou discursivos diretos que


estabelecem relações imediatas com o leitor são comuns a alguns
poucos gêneros textuais. Não aparecem no noticiário jornalístico
(a menos que pretenda uma ruptura com o gênero e um efeito de
70

sentido especial, tal como ocorre com o Jornal Notícias Populares


que busca o sensacionalismo). (Marcuschi, 1999: 146-7)

Discutiremos, entretanto, mais profundamente tal idéia no próximo capítulo.


A notícia jornalística certamente possui uma estrutura organizacional, pois faz
parte de um gênero discursivo e, por esse motivo possui certas características que a
identificam enquanto tal, como, por exemplo, um lide, um primeiro parágrafo, cuja
função é a de sintetizar a informação mais importante da notícia. Todavia, nem
todas as vezes que essa estruturação de lide é rompida, busca-se um
sensacionalismo11. Algumas vezes, as notícias jornalísticas dirigem-se diretamente
ao seu leitor, assim como na carta pessoal, mesmo sendo este, um leitor-modelo,
apenas com o objetivo de envolvê-lo, de prendê-lo à notícia.

Marcuschi (op. cit.), após comentar o eixo central dos pressupostos teóricos
elaborados por Bakhtin, que são a interação e o dialogismo, como também situar
suas marcas de interatividade enquanto campo de análise, apresenta
sistematicamente cinco diferentes indícios de interatividade presentes em
enunciados de diferentes gêneros de discurso. Ele aponta, ainda, a existência de
outros índices, porém afirma que explorará apenas cinco deles.

O primeiro deles é denominado indícios de orientação diretiva para um


interlocutor determinado. Esse indício é caracterizado como aquele em que o
locutor se dirige explicitamente ao seu interlocutor em um enunciado. Sendo
assim, ou utiliza um pronome pessoal (você, tu, o senhor), ou um verbo no
imperativo, ou ainda uma pergunta direta.

O segundo tipo de marca de interatividade presente em um enunciado é


chamado de indícios de premonição face a leitores de definidos. Marcuschi (1999:
148) afirma ser esta uma forma de manifestação em que o locutor procura envolver
__________
11. Na presente dissertação defini-se sensacionalismo como a exploração de notícias que surpreendam o leitor por
meio de uma situação escandalosa para os padrões sociais.
71

seu interlocutor na construção de um argumento e assinala ainda que este indício é


bastante utilizado em teses, dissertações e trabalhos acadêmicos:

As formas de manifestação desses indícios são muitas e às vezes


elas constituem um encadeamento de elementos que constroem
um ciclo completo contendo: (a) proposta de uma tese (uma
espécie de declaração de intenções): “A tese a ser aqui defendida
é...”; (b) defesa ou explicação da proposição: “Os argumentos
desta tese são os seguintes...”; (c) antevisão de objeções
(reconhecimento de alternativas): “Certamente haveria objeções a
esta tese... duas delas seriam...”; (d) resposta às objeções
(justificação da escolha de uma determinada posição); “Embora
plausíveis, estas objeções podem ser rebatidas na medida em
que...”.

De suposição de partilhamento ou de convite ao partilhamento é o nome


que Marcuschi (op. cit.) dá ao terceiro tipo de marca de interatividade. Neste caso,
ao produzir um enunciado, o locutor prevê o interlocutor com o qual dialoga,
supondo que ele tenha, então, alguns conhecimentos específicos. Desta forma, seu
enunciado é elaborado tendo em vista tal suposição e, por esta razão, algumas
características, tais como, verbos na segunda pessoa do plural, verbos epistêmicos
ou advérbios também epistêmicos se fazem presentes:

Este é o caso de muitos artigos científicos em que os escreventes


agem na suposição de um leitor especializado. As marcas de
suposição de um tal partilhamento são, por exemplo, os verbos na
2a pessoa do plural ou então os verbos epistêmicos do tipo,
“sabemos”, “compreendemos”, “achamos”, “julgamos” etc e,
mais freqüentemente, os advérbios característicos de uma
modalização epistêmica que sugere o partilhamento de
pressupostos ou conhecimentos: “sabidamente...”,
“reconhecidamente...”, “é verdade que...”. (op. cit.: 150)

O autor aponta, ainda dentro desta mesma marca de interatividade, um outro


aspecto: o caso do interlocutor que não partilha totalmente os conhecimentos
necessários para que este possa entender o enunciado produzido pelo locutor.
Neste caso, o locutor procura explicitar o sentido do termo ou do trecho suposto:

Comum no caso de sugestão de necessidade de partilhamento são


as explicitações de sentidos de palavras. Este movimento faz crer
que os elementos explicitados não seriam do conhecimento do
72

interlocutor ou que eles tomam sentidos especiais na exposição de


tal modo que sua informação se torna importante. (op. cit.: 150)

O quarto tipo de marca de interatividade recebe o nome de indícios da fala


de um interlocutor com o qual se dialoga. Trata-se especificamente das citações
que são utilizadas em um enunciado por seu produtor. Marcuschi (1999: 153)
adverte que nem todas as citações possuem marcas de interatividade, mas apenas
aquelas que são utilizadas pelo próprio produtor do enunciado com a função de
endossar ou criticar a idéia produzida:

O movimento específico a que aqui me refiro é aquele que


aparece em abundância em textos acadêmicos. Ali é comum se
apresentar a opinião de alguém e então endossá-la ou criticá-la
com alguns argumentos que retomem o citado. O interlocutor não
está ali apenas como uma informação a mais, mas como um
parceiro do debate em andamento. São formas que sugerem a
emergência de um outro (não o autor) como enunciador no texto.

A citação utilizada é um exemplo explícito do que o autor postula sobre este


quarto tipo de marca de interatividade, ou seja, utilizamos sua própria fala para
endossar o que expusemos anteriormente.

O último tipo é chamado de indícios de oferta de orientação e seletividade e


caracterizado por Marcuschi (op. cit.: 153) como sendo uma designação não muito
clara. Este tipo possui marcas levantadas por ele tais como as notas de rodapé e os
dêiticos textuais:

Esses dêiticos fazem referência a algo dentro do texto, seja uma


porção do texto ou um conteúdo. Sua referenciação não é
pontualizada, ao contrário, por exemplo, das anáforas.

Ao final deste quinto tipo há uma vasta exemplificação desses dêiticos


presentes em diferentes gêneros de discurso, tais como, cartas (tal fato, por aí),
atas (outro assunto abordado, para tanto), textos jurídicos (no final, abaixo), e
artigos científicos (o que aí fica dito, este último).
73

Após apresentar, então, esses cinco casos de marcas de interatividade


presentes em um enunciado e assinalar a existência ainda de outros indícios,
Marcuschi (1999) afirma que tais indícios têm a função de mostrar que o locutor
produz seu texto supondo um envolvimento ou com o seu interlocutor, ou com o
tema, ou consigo mesmo ou ainda com práticas sociais específicas. Trataremos
deste assunto no próximo item.

3.7. Envolvimento: uma estreita relação com a fala e com a escrita

Duas diferentes acepções para o termo envolvimento são possíveis de serem


consideradas no presente trabalho. Uma primeira faz referência à relação existente
entre autor-leitor, produtor-destinatário ou, ainda, locutor-interlocutor, ou seja, à
interação distanciada que há, como concebe Mikhail Bakhtin, no momento de
produção e de leitura de um enunciado, uma vez que, como afirmamos
anteriormente, leitor e autor exercem funções específicas durante esse processo. O
autor, cuja função é a de construir seu enunciado, seleciona as estratégias
adequadas para que seu objetivo seja atingido. O leitor, por sua vez, deve procurar
compreender, construir uma significação para aquilo que lê, estabelecendo, assim,
um diálogo com o autor mediado pelo texto. Desta forma, o leitor, o interlocutor,
torna-se um novo participante desse enunciado.

Uma segunda acepção possível para o termo é a de considerá-lo sinônimo


de sedução, ou seja, o locutor produz seu enunciado, tendo em vista o objetivo de
romper com a expectativa de seu interlocutor e, desta forma, envolvê-lo, seduzi-lo
por aquilo que está sendo dito.

Apresentamos algumas teorias referentes à primeira acepção, que está


relacionada à interação. Daqui para frente, nós nos deteremos à segunda.

Tratar sobre o envolvimento não nos parece ser uma tarefa fácil pelo fato de
alguns teóricos divergirem sobre sua relação com o texto escrito. Alguns teóricos
74

acreditam ser possível um envolvimento tanto no texto falado quanto no escrito e


outros não.

Conforme pontuamos anteriormente, a relação fala e escrita foi sempre


objeto de discussões. Como postula Marcuschi (2001), há autores lingüistas como
Bernstein, Labov, Halliday, Ochs que consideram essa relação sob uma
perspectiva dicotômica, ou seja, a fala é o espaço do erro, do caos gramatical e,
também, menos complexa do que a escrita, que por sua vez, representa a norma e o
bom uso da língua:

A perspectiva da dicotomia estrita tem o inconveniente de


considerar a fala como o lugar do erro e do caos gramatical,
tornando a escrita como o lugar da norma e do bom uso da língua.
(op. cit.: 28)

Nesta perspectiva, como também assinalamos, a escrita é considerada como


a atividade comunicativa do distanciamento, pois entre os interlocutores não há
uma proximidade física e, sendo assim, o locutor preocupa-se com a idéia a ser
desenvolvida e não com o seu interlocutor. No lado oposto a esse distanciamento
está a fala, considerada como a linguagem da proximidade, do envolvimento entre
interlocutores.

Outros autores como Chafe, Tannen, Gumperz, Biber, Blanche/Benveniste,


Halliday/Hasan e, também Marcuschi, consideram a fala e a escrita dentro de uma
perspectiva não dicotômica, mas sim dialógica, caracterizada por Marcuschi
(2001) como sendo esta uma visão sociointeracionista, cuja principal
particularidade é a de considerar a linguagem como um fenômeno interativo e
dinâmico, consideração esta que, como discutimos anteriormente, tem Mikhail
Bakhtin como principal precursor.

Sob a ótica sociointeracionista, Marcuschi (op. cit. 33) afirma que tanto a
fala quanto a escrita possuem dialogicidade, usos estratégicos, funções
75

interacionais, envolvimento, negociação, situacionalidade, coerência e


dinamicidade.

Diante disso, podemos afirmar que, seguindo a linha teórica de nosso


trabalho, não há como considerarmos possível essa polaridade envolvimento/
distanciamento entre, respectivamente, a fala e a escrita, pois tanto a primeira
quanto a segunda possuem meios de tornar seu ouvinte ou seu leitor mais ou
menos envolvidos.

Como já assinalado, sempre que se escreve ou que se fala, escreve-se ou


fala-se para alguém, princípio básico da função dialógica e interacional da
linguagem. Se há, então, o desejo de interagir, há, também, o desejo de envolver,
pois este é o objetivo da interação.

Parece-nos oportuno lembrar que embora não consideremos essa polaridade


fala/escrita, e ambas possuam as mesmas características, como aponta Marcuschi
(2001), existem entre elas diferenças possíveis de serem apontadas enquanto
práticas sociais de produção de textos e, neste caso, essas diferenças situam-se
num continuum:

A hipótese que defendemos supõe que: as diferenças entre fala e


escrita se dão dentro do continuum tipológico das práticas
sociais de produção textual e não na relação dicotômica de dois
pólos opostos. Em conseqüência, temos a ver com correlações em
vários planos, surgindo daí um conjunto de variações e não uma
simples variação linear. (op. cit.: 37)

Com efeito, o conjunto de variações surge a partir dos diferentes gêneros de


discurso que tanto podem se distinguir quanto se correlacionar, pois possuem
diferenças na estrutura, no léxico, no grau de formalidade e também no grau de
envolvimento:

Com isto, descobrimos que, comparando uma carta pessoal em


estilo descontraído com uma narrativa oral espontânea, haverá
menos diferenças do que entre a narrativa oral e um texto
76

acadêmico escrito. Por outro lado, uma conferência universitária


preparada com cuidado terá maior semelhança com textos escritos
do que com uma conversação espontânea. (Marcuschi, 2001:
42)

Podemos afirmar, então, que todo locutor, produtor de um enunciado falado


ou escrito, objetiva envolver seu interlocutor. Entretanto, esse envolvimento não se
dará exatamente da mesma forma, podendo, então, ser de uma intensidade variada,
dependendo dos gêneros de discurso, do grau de intimidade existente entre locutor
e seu interlocutor, ou, ainda, da intenção do produtor do texto:

Esta relação [entre um eu e um tu] se manifesta como um tipo de


envolvimento interpessoal e pode apresentar-se de diferentes
formas, com intensidade variada nos diversos gêneros textuais.
(Marcuschi: 1999: 142)

Urbano (2002: 259) possui a mesma opinião ao afirmar que o envolvimento


faz parte da interação, podendo, contudo, ser mais intenso em alguns textos do que
em outros:

É da natureza da interação, seja no texto escrito seja no falado, o


envolvimento do enunciador com o enunciatário. Tal
envolvimento ocorre em variados graus: intensamente no texto
falado, parcamente no texto escrito, podendo-se falar, neste caso,
em “distanciamento”.

Embora utilize o termo distanciamento, assinala a existência de um


envolvimento tanto no texto escrito quanto no falado. O que ele postula, entretanto,
é que o envolvimento entre locutores e interlocutores varia em graus, dependendo
do gênero de discurso, podendo, então, como já pontuamos, ser maior em alguns
textos e mais reduzido em outros.

Urbano (2002: 259) apresenta três tipos de envolvimento: o envolvimento


com o enunciatário, o envolvimento com o tema e o envolvimento consigo mesmo:

Fica entendido que o envolvimento com o enunciatário é na


realidade, um envolvimento de duas mãos, embora de
77

intensidades diferentes: do enunciador com o enunciatário e deste


com aquele.
Por outro lado, é consensual que o enunciador está sujeito a mais
dois tipos de envolvimento: o envolvimento consigo mesmo (no
caso de monólogo, sobretudo lírico) e o envolvimento com o tema
textual.

Nesses três tipos de envolvimento, o que é capaz de diferenciá-los são as


marcas de interatividade identificadas por Marcuschi (1999). Ele próprio pontua tal
idéia ao afirmar que essas marcas revelam que o escrevente supõe um
envolvimento que pode se dar de quatro diferentes maneiras: ou com seu
interlocutor, ou com o seu tema, ou consigo mesmo ou ainda com práticas sociais
específicas.

O primeiro tipo de envolvimento destacado por Marcuschi (op. cit.) é


também apresentado por Urbano (2002) e trata da relação que se estabelece entre
interlocutores em maior ou menor intensidade em um enunciado oral ou escrito.
Marcuschi (op. cit.) exemplifica este tipo de envolvimento com seus indícios de
interatividade. Podemos considerar que em indícios de orientação direta para um
interlocutor determinado, em indícios da fala de um interlocutor com o qual se
dialoga, e em alguns casos de indícios de oferta de orientação e seletividade, o
locutor mantém um diálogo mais explícito com seu interlocutor e esta parece ser
sua principal preocupação.

No envolvimento com o seu tema, também apresentado por Urbano (op.


cit.), o locutor dialoga com seu interlocutor, apresentando e desenvolvendo o tema
de seu texto, sua principal preocupação. Os indícios de premonição face a leitores
definidos, os indícios de suposição de partilhamento ou de convite ao
partilhamento, assim como alguns casos de indícios de oferta de orientação e
seletividade justificam tal tipologia.

A terceira tipologia apresentada por Marcuschi (op. cit.) também é pontuada


por Urbano (op. cit.) e trata do envolvimento consigo mesmo. Este caso é
exemplificado por Marcuschi (op. cit.) com a expressão “meu interesse”, colocada
78

entre parênteses, e com alguns casos de indícios de oferta de orientação e


seletividade. Urbano (2002) também a explicita, colocando entre parênteses que a
presente tipologia aparece em monólogos, principalmente os líricos. Entretanto,
Marcuschi (1999) parece ir além disso e exemplificar por meio de termos presentes
nos enunciados.

O quarto tipo de envolvimento é apresentado apenas por Marcuschi (op.


cit.). Ele aponta que o locutor ao dialogar com seu interlocutor pode privilegiar
envolver-se com práticas sociais específicas, ou seja, com o instrumento utilizado
para atingir seu interlocutor, seu objetivo com tal enunciado. Como exemplo, cita
que para haver um contato pessoal, pode-se utilizar uma carta. A preocupação é,
portanto, com o instrumento, com o meio utilizado para se estabelecer o diálogo
com o interlocutor.

Idéia contrária ao explicitado por Marcuschi (op. cit.) e Urbano (op. cit.)
é apresentada por Rodrigues (2001) acerca da noção de envolvimento. Segundo
ela, o envolvimento é uma característica exclusiva da fala, pois é somente em uma
conversação face a face que tanto locutor quanto interlocutor compartilham um
mesmo momento, um mesmo espaço e, por esse motivo, podem juntos construir
um único enunciado.

A escrita, por sua vez, é considerada por Rodrigues (op. cit.) como o espaço
do distanciamento, pois representa um ato solitário por parte do autor. Para ela,
este não se preocupa com seu interlocutor e sim, apenas, com a elaboração de um
enunciado consistente:

Por isso [pelo fato de não ocuparem o mesmo espaço e tempo], o


escritor se mostra menos preocupado consigo mesmo, ou com
qualquer interação direta com seu eventual leitor. De fato, ele se
preocupa com o processo de elaboração de um texto consistente e
defensável segundo padrões que ele mesmo estabelece. (op. cit.:
30)
79

Rodrigues (2001), citando Chafe (1985), apresenta uma tipologia para o


envolvimento presente apenas na fala: o envolvimento dos interlocutores com o
assunto da conversa, o envolvimento do falante consigo mesmo e o envolvimento
do falante com o ouvinte. Após apresentá-las, ela as exemplifica com algumas
ocorrências presentes em um diálogo entre dois informantes do Projeto
NURC/SP12:
(16) L1 dizem né? – você vê – dentro da profissão do
vendedor (linha 231) (...) Em (16), a expressão você vê, e não
exclusivamente o pronome você, denota o envolvimento do
falante com o ouvinte: ele sugere a seu interlocutor que
acompanhe seu raciocínio a respeito da profissão de vendas.
(Rodrigues: op. cit.: 24)

Não nos deteremos em tais exemplos pelo fato deles já terem sido citados,
ao apontarmos as idéias desenvolvidas por Marcuschi (1999). Os exemplos dados
por Rodrigues (op. cit.) na fala se parecem com os de Marcuschi (op. cit.) na
escrita, como podemos observar na citação anterior.

Conforme assinalamos, Marcuschi e Urbano consideram o envolvimento


uma característica presente tanto na fala quanto na escrita. Para o primeiro, tal
dicotomia apresentada por Rodrigues (op. cit.), por exemplo, não existe pelo fato
de que todo locutor, seja ele de um texto falado ou escrito, pretende chamar a
atenção do seu interlocutor para aquilo que está sendo dito. O que ocorre são
modos diferentes para envolvê-lo e graus diversos de envolvimento. Para o
segundo, por sua vez, faz parte da natureza da fala e da escrita um envolvimento
entre locutor e interlocutor.

De fato, se todo enunciado é interacional, é dialógico, seu locutor prevê um


interlocutor e formas de envolvê-lo com aquilo que esta sendo apresentado. Essas
__________

12. O Projeto NURC é um projeto de estudo da norma lingüística urbana culta, “tem âmbito nacional, e gravações
foram realizadas em cinco capitais brasileiras: São Paulo (Projeto Nurc/SP), Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e
Salvador. Cada uma dessas cidades gravou aproximadamente 300 horas com falantes cultos (entendidos como tal os de
formação universitária completa); brasileiros; nascidos na capital em que as gravações foram realizadas; filhos de luso-
falantes; distribuídos em três faixas etárias (25-35, 36-55, 56 anos em diante); de sexo masculino ou feminino; que
deixaram seu testemunho oral da fala urbana e dos três tipos de inquéritos realizados: elocuções formais, diálogos e
entrevistas.” (Preti, 2001: 7)
80

formas são as que já apontamos: o locutor consigo mesmo, o locutor com seu
interlocutor, o locutor com o tema do enunciado.

Há, entretanto, um momento em que Rodrigues (2001) parece se contradizer


e concordar com Marcuschi (1999) e Urbano (2002). Ela afirma, como
assinalamos anteriormente, que um escritor não se preocupa com a questão do
envolvimento com seu interlocutor, pois produz seu enunciado sozinho e, por isso,
só se preocupa com a informação que está sendo passada. Podemos pensar que, se
o escritor se preocupa com a informação é pelo fato de desejar que ela faça sentido
para alguém e, por esse motivo, ele se preocupa em envolver seu interlocutor nem
que seja apenas com o que está sendo dito, ou seja, com o tema.

Após afirmar a ausência dessa preocupação por parte do locutor, Rodrigues


(op. cit.: 27), citando Chafe (1985), assinala que ele se preocupa em produzir algo
convincente para seu interlocutor:

Aliás, o escritor nem mesmo sabe quem, eventualmente, lerá seu


texto escrito, nem se pode afirmar que ele se preocupa com tal
problema; ele constrói sozinho seu texto. O isolamento do
escritor com relação ao leitor faz com que este leitor só possa
dispor de informações passadas no e pelo texto, já que não dispõe
de dados do contexto situacional. (...) Além disso, escritor e leitor
não alternam seus papéis no decorrer da elaboração do texto
escrito, sempre a cargo de um único sujeito, seu autor. Ele se
mostra sempre preocupado em produzir algo convincente
para diferentes leitores, em diferentes momentos em diferentes
lugares. (grifo nosso)

Consideramos, então, que embora autor e leitor não ocupem um tempo e um


espaço comum, é por meio do texto que eles interagem, que eles dialogam e que
eles se envolvem. Cada um tem uma função dentro desse processo justamente para
que haja essa interação e, conseqüentemente, um envolvimento.

Dias (1996: 54) trata também da questão do envolvimento, mas não


distinguindo tipologias, e sim, apresentando as diferentes manifestações no
momento em que há uma preocupação com o interlocutor. Ela apresenta primeiro
81

manifestações ocorridas na fala:

No discurso falado, o fator de envolvimento manifesta-se por


meio da ocorrência de alguns fenômenos, tais como os seguintes:
presença do discurso direto; uso de pormenores; emprego de
expressões que visam ao monitoramento do canal de comunicação
pelo falante; presença de marcas de primeira pessoa; ênfase maior
sobre agentes e ações do que sobre estados e objetos; ênfase sobre
pessoas e seus relacionamentos (individualizações, relações de
parentesco); concretismo e conotação.

Em seguida, citando Tannen (1980), que estabeleceu uma comparação entre


uma história na versão falada e na escrita, ela apresenta algumas manifestações do
envolvimento presentes na fala e que também aparecem na escrita:

Assim, na análise da ficção escrita, foi possível observar a prosa


integrada (construções complexas) da modalidade escrita e traços
típicos da língua falada como: inclusão de um maior número de
pormenores; discurso direto; avaliações externas (o contador sai
fora da história e faz comentários sobre os fatos); presença de
registros informais (misturados aos registros formais
característicos da escrita); uso de sons de efeito (aliteração –
processo espontâneo na língua falada e característico na ficção
literária); construções paralelas; descrições de ações etc. (Dias,
1996: 54)

Tais traços têm a função de minimizar a distância espaço-temporal,


realmente presente no texto escrito, existente entre locutor e seu interlocutor, ou
seja, entre autor e leitor. Com esses recursos, o locutor parece se aproximar,
envolver mais intensamente, enfim, seduzir o seu interlocutor.

Além desses traços, Dias (op. cit.) aponta mais um ligado especificamente à
notícia jornalística: o “tom” ficcional da notícia. Neste caso, ela assinala que o
locutor, que é um jornalista, expõe o fato, posicionando-se não como tal, ou seja,
ele não mantém uma linguagem objetiva, mas sim trata desse fato como um
“narrador-jornalista”, aproximando, então, seu texto a uma narrativa ficcional:

Esse “tom” ficcional presente na narração dos fatos acaba por


autorizar a interferência do narrador, eximindo-o de seu
compromisso com a objetividade. Nesse contexto de “licença”
82

criativa, é permitido ao “narrador-jornalista” dar maior


intensidade emocional ao relato e buscar uma relação de
proximidade e intimidade com o leitor. (Dias, 1996: 57)

Isso posto, podemos afirmar, como postula Marcuschi (1999), que o


envolvimento entre locutor e interlocutor está presente em todo e qualquer
enunciado. O que ocorre, é que ora o locutor parece mais envolvido com o tema,
ora consigo mesmo, ora com seu interlocutor, fazendo, então, com que esse
envolvimento se apresente de diferentes maneiras. Entretanto, nos três casos, o
foco principal de interação é o interlocutor, uma vez que o desejo principal de todo
locutor é se fazer compreender.

Havemos de destacar, ainda, que o envolvimento não se dá exatamente com


a mesma intensidade em todos os casos. É claro que em uma conversação face a
face, ele é mais intenso pelo fato de os interlocutores estarem em um mesmo
espaço e tempo. Todavia, o envolvimento também se faz presente na escrita, mas
sua intensidade é menor por causa, também, da questão espaço-temporal.

Neste último caso, para diminuir tal distância, procurar envolver o leitor,
seduzi-lo e prender a sua atenção, o locutor pode fazer uso de alguns mecanismos
auxiliadores tais como os elencados por Dias (1996) ao citar Tannen.

No capítulo seguinte analisaremos alguns lides e verificaremos os recursos


presentes neles como a narrativa ficcional, as descrições de ações, o uso maior de
pormenores, as avaliações externas, dentre outras, para, então apontarmos de que
forma esse envolvimento se dá.
83

IV. O LIDE E SUAS ESTRATÉGIAS INTERACIONAIS

4.1. Considerações gerais

Como apresentamos no capítulo anterior, todo e qualquer uso da linguagem,


seja este oral ou escrito, possui uma função interacional, uma vez que ninguém
escreve ou fala alguma coisa sem que imagine um leitor ou um ouvinte. Em um
texto falado, essa interação se dá de maneira muito mais dinâmica, pois locutor e
interlocutor ocupam o mesmo espaço e tempo. Em um texto escrito, por sua vez, a
interação entre autor e leitor ocorre de forma distanciada, ou seja, o autor produz
seu texto, vislumbrando um determinado tipo de leitor (leitor-modelo), já que entre
ambos existe um distanciamento espaço-temporal. A relação dialógica interacional
entre locutor e interlocutor de um texto escrito é mediada pelo próprio texto.

Se a interação é uma característica de todo e qualquer tipo de comunicação,


ela se faz presente também em um texto jornalístico. Como pontuamos
anteriormente, é objetivo do jornal interagir com seu leitor e seduzi-lo a fim de
tornar este relacionamento existente entre eles algo indispensável e duradouro. A
formatação da primeira página, a organização e estruturação de um jornal, a
diagramação podem ser consideradas mecanismos interacionais, uma vez que a
finalidade de tais recursos seja a de envolver o seu leitor:

Ao comprar o seu jornal, o leitor estabelece com ele um pacto de


interlocução, justamente com o objetivo de enriquecer sua opinião
e seu conhecimento dos fatos. Temer o leitor ou adular sua
opinião é, paradoxalmente, contrariá-lo na relação que ele
presume ter com o jornalismo. (Manual da Redação da
84

Folha de S.Paulo, 2001: 23)

O próprio Manual da Redação considera haver entre jornal e leitor uma


relação, ou mais especificamente, um “pacto de interlocução”, ou seja, um
dialogismo interacional. Segundo ele, uma notícia, por exemplo, se diferenciará
das demais caso não corresponda àquilo que é normalmente feito em um jornal,
que já se tornou um lugar-comum. Para que isso ocorra, o Manual sugere que se
surpreenda o leitor, despertando-lhe a dúvida, a curiosidade:

É importante atentar para o fato de que o diferencial é resultado


de uma atitude crítica. Ele é a maneira pela qual o jornal pode
surpreender e inquietar o leitor, bem como pôr em xeque idéias
feitas. A dúvida, a curiosidade e o entusiasmo são os melhores
antídotos à visão convencional dos acontecimentos. (op. cit.:
23)

Uma notícia jornalística, ou mais especificamente um lide, foge desse lugar-


comum no momento em que abandona a organização do lide tradicional,
apresentada no segundo capítulo, ou seja, o lide deixa de responder às seis
questões principais presentes em torno de um acontecimento: quem?, o quê?,
quando?, onde?, como?, por quê?, e a notícia não segue mais a estruturação da
pirâmide invertida.

Mesmo que os manuais de jornalismo, como os de Hohenberg (1962)


Medina (1978) e Erbolato (2002), por exemplo, apresentem diferentes tipologias
de lide, e também o Manual de Redação da Folha de S.Paulo, após diversas
revisões, aponte formulações de lide, que não seguem o modelo tradicional, estas,
devido à excessiva carga de trabalho do jornalista e à pressa por uma definição,
pelo fechamento da notícia, ainda predominam nos jornais:

A mãe do lugar comum é a pressa e os jornalistas têm pressa por


definição. Colocado em face do inédito o jornalismo recorre à
analogia para aprisioná-lo na idéia feita, para fixá-lo em clichês
de linguagem que permitam seu rápido esgarçamento. (Frias
Filho, 1984: 4)
85

Sendo, então, o lide tradicional utilizado de forma predominante nos


jornais, intuitiva ou concretamente, o leitor empírico de uma notícia conhece sua
estrutura e sabe que o primeiro parágrafo deve sintetizar, em tese, as principais
informações desenvolvidas ao longo da notícia1. Entretanto, o que acontece
quando tal expectativa é rompida, ou seja, o que acontece quando esse leitor
encontra um lide que não sintetiza a notícia? Ele provavelmente estranha a
alteração e sente a curiosidade em saber o que realmente aconteceu. Para obter tal
resposta, esse leitor empírico deve continuar a leitura dessa notícia.

Ao despertar a curiosidade ou o estranhamento em seu leitor, o jornalista


consegue envolvê-lo. No entanto, vale enfatizar que esse envolvimento leitor-
jornalista não se dá exatamente da mesma maneira, podendo, então, ser de uma
intensidade variada, dependendo dos gêneros de discurso, do grau de intimidade
existente entre locutor e interlocutor, ou, ainda, da intenção do produtor do texto.
Por esses motivos, há três diferentes maneiras de se estabelecer um envolvimento
entre autor e leitor ou enunciador e enunciatário: o envolvimento com o
enunciatário, com o tema ou consigo mesmo.

O envolvimento consigo mesmo é excessivamente subjetivista e particular,


não parecendo, por essa razão, possível de se fazer presente em uma notícia
jornalística, uma vez que tal tipologia aparece ou em monólogo, ou em termos ou
expressões de marca de primeira pessoa do singular, conforme apontam Marcuschi
(1999) e Urbano (2002).

O envolvimento com o tema ocorre, no caso da notícia jornalística, em


textos que privilegiam acima de tudo a própria notícia, ou seja, o próprio fato
narrado. Podemos considerar, então, tal tipo de envolvimento presente em notícias
que seguem a estruturação da pirâmide invertida e, conseqüentemente, possuem
um lide tradicional
__________
1. Vale ressaltar que conhecer a estrutura da notícia significa conhecer seu gênero de discurso, situação esta
fundamental para que haja comunicação, pois como afirma Marcuschi (2003: 22), “a comunicação verbal é possível por
algum gênero” pelo fato de ser ele o responsável pela ordenação das atividades comunicativas do dia-a-dia.
86

Por sua vez, no caso do envolvimento com o enunciatário, há por parte do


autor a intenção de diminuir a distância espaço-temporal existente entre os
interlocutores em um texto escrito, de criar uma intimidade com seu leitor, de
seduzi-lo. Neste caso de envolvimento, o primeiro parece dialogar, interagir
explicitamente com o segundo. Para que isso ocorra, os lides possuem
determinadas estratégias interacionais que procuram apontar um envolvimento
entre o jornalista e seu leitor.

No presente capítulo, analisaremos alguns lides produzidos nos jornais O


Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde para verificarmos os recursos interacionais
existentes em cada um deles para, em seguida, apontarmos de que maneira esse
envolvimento entre interlocutores (jornalista-leitor) se constitui.

4.2. Tipos de estratégias interacionais presentes nos lides

De acordo com a visão tradicional, o jornalista, ao produzir uma notícia,


preocupa-se com o fato em si. Se pensarmos na função do jornal impresso, em sua
organização, em sua diagramação e no próprio lide tradicional, atestaremos que o
jornal procura interagir com seu leitor, uma vez que todo texto é interacional,
buscando envolvê-lo com o tema, ou seja, com o fato noticiado.

No entanto, se pensarmos em que o jornal, desde a invenção do rádio, da


televisão e da própria internet, não trabalha mais com a novidade, mas sim, com
algo que possivelmente seu leitor já saiba, chegaremos à conclusão de que o
jornalista dispõe de duas alternativas: aprofundar o fato narrado, procurando
apresentar todas as suas circunstâncias, ou buscar um envolvimento direto com o
enunciatário:

O jornal de amanhã, fatalmente, terá de adiantar-se com algo mais


novo ou mais completo. No jornal farto de papel dos áureos
tempos, podíamos nos dar ao luxo de, simultaneamente, noticiar,
procurar a continuidade e interpretar os acontecimentos. Agora,
num jornal mais compacto, teremos de optar, deixando o
87

meramente factual para o rádio e a TV e reservando para o jornal


o desdobramento do fato por inteiro, com todas as suas
circunstâncias e já não mais apenas com as primárias. (Dines,
2001: 90)

Ao procurar estabelecer um envolvimento com o enunciatário, e não com o


tema ou consigo mesmo, o jornalista tem como principal objetivo o de seduzir, o
de despertar a curiosidade, o de “prender” seu leitor à notícia. Para atingir seu
objetivo, ele levanta a hipótese de um leitor-modelo e produz uma notícia
jornalística, procurando seduzi-lo pela novidade, pelo diferente, fazendo, dessa
maneira, com que esse leitor dedique um tempo maior para tal notícia.

Levantamos seis diferentes formas de produção de lides publicados pelo O


Estado de S.Paulo e pelo Jornal da Tarde que têm como objetivo estabelecer um
envolvimento direto com o leitor. Quatro desses lides são descritos pelos manuais
de jornalismo, mas não previstos nos de redação, uma vez que o objetivo desses
manuais seja justamente o de sistematizar a produção de uma notícia. Todavia,
esses lides que não seguem o modelo tradicional são encontrados com uma certa
abundância nos jornais observados. Mas por que será que mesmo não sendo
recomendados pelos manuais, esses lides aparecem nas notícias jornalísticas?

Duas funções podem ser dadas para tais lides a partir dessa constatação: a
primeira é a de chamar a atenção do leitor para uma notícia secundária produzida
em determinado caderno. A segunda é exatamente o contrário, ou seja, é a de
enfatizar, de dar um destaque ou enfoque diferente para um fato já bastante
explorado pelo rádio, pela televisão ou pela internet.

Esses seis lides que procuram um envolvimento direto com seu interlocutor
podem ser divididos em dois grandes grupos: no primeiro, o envolvimento se dá
por meio do trabalho com a imaginação do leitor, ou seja, o jornalista interage com
seu interlocutor, criando uma cena, uma situação em sua mente. Cabe a esse leitor,
como postula Bakhtin (2003), compreender tal cena, refletir sobre ela e concordar,
discordar ou comentar aquilo que leu. No segundo grupo, o envolvimento se dá por
88

meio da simulação de uma conversa, ou seja, o jornalista estabelece com seu leitor
uma relação nos moldes da conversação face a face. Neste caso, assim como no
grupo anterior, também cabe ao leitor concordar, discordar ou comentar aquilo que
leu.

4.2.1. A imaginação do leitor como estratégia interacional

Dravet (2002) aponta duas diferentes maneiras de se fazer jornalismo: a


primeira é utilizando aquilo que ela chama de modelo do jornalismo industrial; e a
segunda é apresentando a mensagem de forma emocional.

No primeiro caso, os fatos são narrados de maneira objetiva e clara, ou seja,


segue-se aquilo que é tão solicitado por alguns manuais de redação: a padronização
do fazer jornalístico concretizada lingüisticamente na construção da pirâmide
invertida, do lide tradicional:

Sim, porque informar com objetividade e clareza pretende ser o


papel do jornalismo. Dizem também que tem leitor querendo se
informar de maneira clara e objetiva. Essa é uma das evidências
citadas em todos os cursos de jornalismo, pela maioria dos
professores e dos livros didáticos. É lição que se repete e se
aprende, mecanicamente, nas universidades, e que se aplica, com
toda boa vontade, nas redações. (Dravet, 2002: 87)

No segundo caso, porém, esse fazer jornalístico está fundamentado em um


texto que transmita todo e qualquer tipo de emoção, como tristeza, medo, alegria,
pessimismo, causando, assim, impressões, interesses, reflexões, sentimentos:

Os jornalistas, como os escritores, precisam ouvir, ler e escrever,


compreender e interpretar, exercer sua sensibilidade, saber e
conhecer através dos escritos e ditos dos outros. Mas precisam
sobretudo dar nova vida ao leitor que está morrendo. (op. cit.:
90)

Neste segundo caso, o jornalista mexe com a imaginação do leitor, pois para
despertar a sensibilidade deste, o locutor deve fazer seu interlocutor ver ou sentir
aquilo que está sendo noticiado. A maior preocupação do jornalista passa a ser,
89

então, a de envolver seu leitor; e o fato ocorrido ocupa uma posição, em um


primeiro momento, não mais primordial, como no caso do envolvimento com o
fato, mas sim secundária diante de um lide que pretende seduzir e prender a
atenção de seu leitor.

Como afirma Dines (2001: 94), uma determinada situação ao ser imaginada,
ao ser construída na mente do leitor, possui uma retenção muito maior, pois a
dramaticidade está presente nesta recomposição da realidade narrada ou descrita:

Imaginação e imagem têm a mesma raiz. As figuras que o leitor


mentalmente produz com as sugestões contidas nas palavras vão compor seu
repertório de imagens, sua iconoteca, em outras palavras, sua imaginação. A
transposição de uma cena fotográfica para a mente poderá ser bem fixada pela
memória como um todo, mas a composição mental de uma imagem com os
elementos próprios é mais duradoura.

Sendo assim, o leitor, ao invés de apenas saber o que aconteceu por meio de
um lide tradicional, conseguirá compor uma imagem em sua mente e, desta forma,
sentir-se-á envolvido e preso pela situação narrada desde a primeira linha da
notícia.

Encontramos nos lides jornalísticos de O Estado de S.Paulo e do Jornal da


Tarde três diferentes maneiras de compor essa imagem na mente do leitor e seduzi-
lo por aquilo que está sendo dito. No primeiro caso, o do lide literário, o leitor é
capaz de imaginar a situação narrada e envolver-se por ela. Já no segundo, o do
lide particularizante, o leitor é convidado pelo locutor a se colocar no lugar do
outro e envolver-se por sua história. E por sua vez no último caso, o do lide
descritivo, o leitor é levado a imaginar uma determinada cena apresentada com
inúmeros detalhes.

4.2.1.1. Lide literário: o uso da intriga como estratégia interacional


90

Medina (1978) e Hohenberg (1962) apresentam, ao contrário do que é


proposto nos manuais de redação, essa tipologia de lide, que são, respectivamente,
o lead-literary ou o lead episódico, cuja função é atrair o leitor por meio de
pequenas histórias contadas lenta e linearmente pelo jornalista.

Como sabemos, a literatura diferencia-se de um texto informativo pelo fato


de o primeiro fazer parte do âmbito da ficção e o segundo do da realidade. O lide
literário é assim nomeado justamente por misturar real e ficcional, ou seja, embora
aborde um assunto ocorrido verdadeiramente em nossa sociedade, a forma de
apresentar o fato assume certos contornos ficcionais. Sato (2002: 31-2) parece ir
mais além do que considerar simplesmente certos lides ficcionais e afirma:

Apesar da vocação para o “real”, o relato jornalístico sempre tem


contornos ficcionais: ao causar a impressão de que o
acontecimento está se desenvolvendo no momento da leitura,
valoriza-se o instante em que se vive, criando a aparência do
acontecer em curso, isto é, uma ficção.

Mesmo que tal impressão seja criada em muitas notícias jornalísticas, como
veremos mais adiante em outros tipos de lides, neste caso, o jornalista situa o fato
ocorrido em um momento anterior ao narrado, anterior à relação dialógica
interacional existente entre locutor e interlocutor. Ele constrói uma seqüência
narrativa sustentada em uma intriga.

Bronckart (2003: 219-20), fundamentado em Labov e Waletzky, afirma que


para haver uma seqüência narrativa, além de a história seguir uma linha de
sucessividade, ela deve estar sustentada por um processo de intriga. Esse processo
consiste em organizar acontecimentos de modo que a história obedeça a um
protótipo padrão de cinco fases principais e de uma seqüência sucessiva
obrigatória:

• a fase de situação inicial, em que a cena apresentada pode ser considerada


equilibrada e tranqüila;
• a fase da complicação, na qual é introduzida uma perturbação e, desta forma,
91

uma tensão é criada;

• a fase das ações, que contém os acontecimentos desencadeados por essa ação
perturbadora;

• a fase da resolução, em que novos acontecimentos reduzem a tensão criada


pela fase anterior;

• a fase da situação final, na qual um novo estado de equilíbrio é instaurado pela


resolução da ação.

O lide a seguir, produzido pelo Jornal da Tarde, apresenta tal seqüência


exposta por Bronckart (op. cit):

Eram 9h40 de ontem quando um homem magro, com 1,65


metro de altura e cerca de 35 anos entrou no depósito da loja de
roupas Tubo D’Água, localizada na Rua Juruá, no Pari, centro de
São Paulo. Aos gritos, disse que era um assalto. Exigiu a pasta
preta do dono da loja e mandou a secretária Carla Patrícia Muñoz
Lopez, de 23 anos, ir para os fundos do depósito.
Em seguida, Carla ouviu um estampido. Uma bala atingiu a
cabeça do comerciante Cláudio Hanna Hiar, de 40 anos, que
morreu na hora. Ele era irmão do deputado estadual Alberto Hiar
(PSDB), conhecido como Turco Loco.
Sem levar a pasta, o criminoso fugiu. Na saída, encontrou o
motorista de Hiar, Benedito de Lima, de 48 anos, que estava
voltando de uma banca para onde havia ido comprar um jornal
para o patrão. “Entra e fica na moral”, disse o assassino, que saiu
logo em seguida. A polícia ainda não tem pistas do motivo do
crime. (Irmão do deputado Turco Loco é executado. JT2:
Polícia. 26 abr. 2003. p. A6)

A estratégia interacional criada neste lide pelo jornalista é a de subverter o


princípio da relevância, ou seja, ele não inicia seu texto tratando do fato em si, que
foi a morte do irmão do deputado Turco Loco, como anuncia o título da notícia. O
jornalista opta por criar um lide que aumente de forma crescente a expectativa de
seu leitor, que crie uma certa curiosidade em saber exatamente como se deram os
fatos e, desta forma, prenda o seu leitor-modelo por mais de um parágrafo.
__________
2. Daqui por diante, nas citações, tanto o jornal O Estado de S.Paulo quanto Jornal da Tarde serão abreviados,
utilizando suas iniciais OESP e JT, respectivamente.
92

Para que isso ocorra, ele primeiramente apresenta a situação inicial, que
trata da entrada de um homem magro em um depósito de uma loja de roupas:
“Eram 9h40 de ontem quando um homem magro, com 1,65 metro de altura e cerca
de 35 anos entrou no depósito da loja de roupas Tubo D’Água, localizada na Rua
Juruá, no Pari, centro de São Paulo”.

Essa situação inicial desencadeada uma complicação, que surge no


momento do anúncio do assalto: “Aos gritos, disse que era um assalto”.

Em seguida, surge a fase das ações: “Exigiu a pasta preta do dono da loja e
mandou a secretária Carla Patrícia Muñoz Lopez, de 23 anos, ir para os fundos do
depósito./ Em seguida, Carla ouviu um estampido. Uma bala atingiu a cabeça do
comerciante Cláudio Hanna Hiar, de 40 anos, que morreu na hora. Ele era irmão
do deputado estadual Alberto Hiar (PSDB), conhecido como Turco Loco./ Sem
levar a pasta, o criminoso fugiu. Na saída, encontrou o motorista de Hiar, Benedito
de Lima, de 48 anos, que estava voltando de uma banca para onde havia ido
comprar um jornal para o patrão. ‘Entra e fica na moral’, disse o assassino,”.

O momento de saída do assassino do depósito corresponde à fase da


resolução: “que saiu logo em seguida”.

E a última fase, a da situação final, trata da falta de pistas da polícia: “A


polícia ainda não tem pistas do motivo do crime”.

Esse jornalista se coloca como um narrador de terceira pessoa onipresente


que pôde acompanhar todos os fatos. Ele aponta a brutalidade, a irritação do
bandido e a intensifica ao destacar que “aos gritos” ele anunciou o assalto, e ao
selecionar os verbos exigir e mandar. Desta forma, o jornalista instaura uma certa
tensão em seu leitor-modelo, que certamente desejará saber como essa história de
assalto se desenrolou e o que aconteceu com o bandido.
93

E qual é a relação existente entre esse lide e a imaginação? O jornalista, no


caso do lide ficcional, constrói uma narrativa cronológica, lentamente vai
apresentando os fatos e permitindo que seu leitor-modelo formule a imagem desta
cena em sua mente. Desta forma, ele passa a se preocupar primordialmente com a
maneira de contá-lo e não com o fato em si, despertando, assim, em um leitor que
conheça a organização tradicional da notícia jornalística, o estranhamento, a
curiosidade e a vontade de continuar a leitura para saber de que forma essa história
acabará:

O princípio básico da precedência do mais importante pode ser


subvertido, em certo tipo de notícia, pela intenção de construir
uma narrativa de intensidade crescente, à semelhança de um
conto, geralmente muito breve, de três a cinco linhas. [...] Pode-
se assegurar que esse tipo de formulação, fundada na estrutura do
enunciado, escapa ao conceito básico de notícia, na medida em
que não é o fato em si que importa, mas a maneira de contá-lo,
geralmente sobre uma circunstância secundária, tal qual a
sugestão embutida no nome da personagem. (Lage, 2003: 5)

O jornalista mostra-se preocupado não com o fato em si, mas sim com a
transmissão de uma imagem que envolva seu leitor à notícia e desperte-lhe um
maior interesse por ela. Por esse motivo, a relação dialógica interacional, no dizer
de Mikhail Bakhtin, que se estabelece entre jornalista e leitor é justamente a de
procurar uma relação mais próxima e íntima entre eles, uma vez que o primeiro
não está simplesmente noticiando um fato, mas sim contando uma história para o
seu leitor, para seu interlocutor, procurando, desta forma, fazer com que esse leitor
imagine a cena e sinta a angústia por que Hiar e sua secretária passaram.

Bronckart (2003: 234) também trata da relação dialógica interacional


existente em uma seqüência narrativa ao afirmar que

o estatuto dialógico da seqüência narrativa é, contudo, evidente


(...) seja ternária, quinária ou ainda mais complexa, essa
seqüência caracteriza-se sempre pela intriga dos acontecimentos
e/ou das ações evocadas. Ela dispõe esses acontecimentos e/ou
ações, de modo a criar uma tensão, para depois resolvê-la,
contribuindo o suspense assim estabelecido para a manutenção da
atenção do destinatário.
94

O clima de angústia, de criação de suspense, de tensão faz-se presente em


outro lide ficcional:

Eram 10h30 de ontem. O encarregado administrativo da


Embaixada do Brasil, Awni al-Dayri, avaliava os prejuízos dos
dois saques de que a casa foi alvo nos últimos seis dias. De
repente, ouviu gritos do lado de fora. Seis saqueadores que
estavam roubando materiais de construção da Mesquita Rahman,
uma enorme obra inacabada deixada pelo governo de Saddam
Hussein, perceberam que a embaixada estava aberta e se
aproximaram para assaltá-la.
Al-Dayri sacou a pistola automática e começou a dar tiros para
o alto, assim como dois de seus guardas particulares, armados de
fuzis Kalashnikov. Rapazes que moram no bairro e cuidam da
segurança também se aproximaram, e os seis se afastaram, a pé.
“Como vamos continuar vivendo assim?”, pergunta Al-Dayri,
exausto. É a segunda vez, em cinco dias, que ele expulsa
saqueadores a tiros da embaixada brasileira, uma das únicas que
ainda não foram esvaziadas pelos ladrões. (L.S. Saqueadores
tentam de novo roubar a embaixada. OESP: Internacional.
16 abr. 2003. p. A20)

Assim como no lide ficcional anterior, a narração começa pelo horário em


que ocorreram os fatos, a cena vai sendo lentamente construída pelo jornalista, que
espera que seu leitor a imagine e desta forma sinta-se envolvido pelo fato e preso à
narrativa, e as cinco fases principais do processo de intriga também aparecem,
acrescidas, entretanto, da de avaliação.

Bronckart (2003: 221) esclarece que, além das cinco principais fases da
seqüência narrativa, outras duas podem ser acrescentadas: a fase de avaliação e a
de moral. Na primeira, o que ocorre é o acréscimo de um comentário relacionado
ao desenrolar da história e, na segunda, “se explicita a significação global atribuída
a história”.

No lide de O Estado de S.Paulo, a fase da situação inicial ocorre no


momento em que Awni al-Dayri avalia “os prejuízos dos dois saques de que a casa
[a embaixada do Brasil] foi alvo nos últimos seis dias”. A da complicação
instaura-se quando al-Dayri ouve gritos do lado de fora da embaixada. O uso do
95

termo de repente, assim como no lide anterior, serve como elemento intensificador
da expectativa, pois parece chamar a atenção do leitor para uma nova situação.

A fase seguinte, ou seja, a da ação inicia-se no momento em que o


encarregado administrativo saca sua pistola automática e começa a dar tiros para o
alto e a da resolução ocorre com o afastamento dos seis saqueadores. A fase da
situação final vem acrescida de uma avaliação, que aborda o número de vezes em
que tentaram saquear a embaixada.

Como postula Araújo (2002: 95), a notícia sendo transformada em uma


narrativa que gradativamente forneça as informações ao seu leitor e que seja rica
em detalhes, serve como um aperitivo a esse leitor que, por sua vez, sente-se
seduzido pelo enredo:

Sinto hoje, ao acompanhar a produção e a rotina jornalística, a


falta de algo que é muito caro à literatura. É também nesta figura
literária, vou chamar assim, onde justamente identifico o grande
elo que une estas duas áreas, o jornalismo e a literatura: a
narração. [...] Quando falo em narração, trato daquele conjunto de
informações e detalhes que, em geral, costumam estar ao redor da
notícia e que serve como aperitivo – nem por isso dispensável –
ao leitor antes de introduzi-lo ao que interessa e, observação
fundamental, que não tem nada a ver com o famoso e execrável
nariz de cera.

O leitor, como também no lide anterior, não aparece explicitamente


invocado no texto. Ele é, conforme postula Maingueneau (1996), um leitor
instituído, mas é claro que ele se faz presente, uma vez que, como já pontuamos,
todas as pessoas que escrevem, escrevem para alguém, para um leitor idealizado,
um leitor-modelo. E para que essa interação, esse envolvimento ocorra, faz-se
necessário haver um leitor que compreenda, que interprete, que imagine a cena
narrada.

O trabalho com a imaginação, que se constitui por meio da reconstrução de


uma realidade que mistura elementos ficcionais, como a exaustão de Awni e como
sua pergunta “como vamos continuar vivendo assim?”, que parece desejar apontar
96

o grau de desespero, medo e cansaço em que sua personagem protagonista se


encontra, serve como elemento que desperta a atenção, o interesse do leitor pelo
fato noticiado e cria uma certa proximidade, uma intimidade, uma cumplicidade
entre os interlocutores.

Aliás, vale ressaltar que, para Maingueneau (2001), o uso do discurso direto
pode representar ou uma exata reprodução das palavras do locutor, ou
simplesmente relatar algo que pode não ter sido dito exatamente dessa forma. Ele
destaca, ainda, que sendo verdadeiras ou falsas tais palavras, elas têm a função de
criar um efeito de autenticidade:

Mesmo quando o DD relata falas consideradas como realmente


proferidas, trata-se apenas de uma encenação visando criar um
efeito de autenticidade: eis as palavras exatas que foram ditas,
parece dizer o enunciador. O DD caracteriza-se com efeito pelo
fato de supostamente indicar as próprias palavras do enunciador
citado: diz-se que ele faz menção de tais palavras. (op. cit.: 141)

Em um outro lide ficcional, o jornalista, diferentemente dos anteriores,


institui um leitor-modelo, dirige-se diretamente a ele, ou seja, instaura o leitor
apostrofado de Maingueneau (1996) e desenvolve sua história narrando uma
situação “ocorrida” com seu próprio leitor:

O despertador toca e o canto digital de um galo anuncia que é


hora de você acordar. Em seguida, Silvio Santos – ele mesmo –
informa com a mesma voz que começa um programa do SBT:
“Bom dia, são sete horas.” Sonolento, você ignora a saudação e
volta a dormir. Quinze minutos depois, com medo de estar
atrasado, pega o relógio que está no criado mudo e aperta um
botão para ver as horas. Outra vez, Silvio avisa no mesmo tom:
“Bom dia, são sete horas e 15 minutos.” E você levanta sem dizer
nada. (BARION, Rafael. Silvio Santos vem aí. No relógio de
pulso. JT: Cidade. 27 abr. 2003. p. A18)

O jornalista também se coloca neste caso como um narrador onisciente, pois


ele sabe exatamente como sua personagem, no caso o próprio leitor, sente-se, ou
seja, “sonolento” e “com medo de estar atrasado”.
Entretanto, o processo de intriga deste lide apresenta apenas três fases,
possibilidade esta apresentada por Bronckart (2003: 222) ao afirmar que “as
97

seqüências narrativas efetivas podem, entretanto, comportar apenas um número


limitado de fases (situação inicial + complicação + resolução)”.

A fase da situação inicial no lide de Barion ocorre no momento em que o


despertador toca; a da complicação, tem início quando o próprio Sílvio Santos
informa o horário; e a da resolução, é instaurada no momento em que o leitor se
levanta da cama.

Ao contrário dos lides anteriores, que misturam elementos ficcionais a uma


situação real, especificamente neste lide, o jornalista, ao noticiar o lançamento de
um relógio do Silvio Santos, trabalha exclusivamente com elementos ficcionais, ou
seja, com uma narrativa de suposição.

Neste terceiro caso de lide ficcional, o jornalista também deseja construir a


imagem de uma determinada situação na mente de seu leitor, porém não com o
intuito de fazê-lo sentir, como nos casos anteriores, em que o suspense criava uma
expectativa, um medo do que estava por vir. Barion com sua notícia pretende criar
uma situação inusitada com seu próprio leitor e, desta forma, construir um
envolvimento com seu enunciatário muito mais próximo do que foi conseguido até
então nos outros lides.

4.2.1.2. Lide particularizante: o uso de casos particulares como estratégia


interacional

O lide particularizante3 desenvolve uma história breve sobre uma pessoa


anônima para, em seguida, tratar de um fato específico. Esse tipo de lide, embora
de forma mais sucinta, também procura um envolvimento com o enunciatário e
__________
3. O lide particularizante não aparece na literatura jornalística. Tal categoria foi atribuída por nós.

não com o tema, pois assim como no lide ficcional, o que ele privilegia é a
interação, é o envolvimento com seu leitor, e não o fato ocorrido:
98

O estudante Rodrigo Lins Assoer estava juntando todas suas


economias para equipar o seu Peugeot 206, que recebeu de
presente há cinco meses do pai. Queria comprar um som novo,
colocar insulfilme e – se ainda sobrasse dinheiro – trocar as
calotas do carro. Mas o calor dos últimos dias obrigou o garoto a
mudar os seus planos. “Em pleno outono, fui forçado a comprar
um ar-condicionado”, diz Rodrigo. “Não deu para agüentar esse
sol infernal. Prefiro ficar sem música no carro do que passar mal
de tanto calor. Qualquer coisa, eu mesmo canto para passar o
tempo”.
Até os meteorologistas estão assustados com o “verão” que
anda fazendo em São Paulo.
Há oito dias, não cai uma gota de chuva na capital. A previsão
para o mês de abril era de que chovesse 76 milímetros – só que
esse índice não alcançou nem os 50 milímetros. O único detalhe é
que, para variar, o tempo vai mudar totalmente neste feriado.
(Aproveite. Pode ser o último dia de calor. JT : Cidade.
30 abr. 2003. p. A7)

Esse lide à primeira vista parece ser um lide ficcional. No entanto, o que o
diferencia do lide anterior é que o jornalista não assume mais a função de um
narrador onisciente nem a história sobre essa pessoa anônima é o centro da notícia,
ou o que a gerou. Neste lide, por exemplo, o jornalista institui esse anônimo para
servir como pretexto para tratar das altas temperaturas em pleno outono, ou seja, a
história do estudante Rodrigo L. Assoer funciona como um elemento prefaciador
da notícia, uma vez que nos dois parágrafos subseqüentes, o jornalista esclareça o
fato em si. Neste caso, então, o lide é constituído por três parágrafos.

Utilizando esse recurso, o jornalista rompe com a expectativa de seu leitor,


uma vez que o título da notícia, primeira informação lida por ele, trata dos últimos
dias de calor na cidade de São Paulo, e a notícia é iniciada por um lide que relata a
história de um estudante e seu carro novo. Tal paradoxo cria um estranhamento no
leitor e este se sente atraído pela notícia na tentativa de conseguir relacionar essas
duas conflitantes informações.

Ao contrário do lide literário, que procura lentamente envolver seu leitor,


seja ele instituído ou apostrofado, por meio da dramaticidade e do aumento
crescente de sua expectativa, o lide particularizante procura despertar a
curiosidade do seu leitor pelo fato e “prendê-lo”, assim, à notícia jornalística:
99

Dona Chiquinha, encarregada da limpeza, está triste: em maio


Paula deixa o Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa do
Ibirapuera. “Quem vai embora não é a diretora. É uma amiga”,
diz, já com lágrimas nos olhos. A ex-jogadora da Seleção de
Basquete – e uma das melhores do mundo –, abraça dona
Chiquinha. Vai assumir um cargo importante para o País: será a
secretária nacional do Esporte de Alto Rendimento, a convite do
próprio Agnelo Queiroz, ministro do Esporte. E Paula deixa seu
Centro Olímpico, mudado para muito melhor – vivo, com mais de
mil alunos -, em boas mãos: de Ana Moser, ela também uma ex-
jogadora, da Seleção de Vôlei. (MIRÁS, Denise. E o
Ministério do Esporte ganhou Paula. JT: Esportes. 26
abr. 2003. p. B5)

Neste lide particularizante, o mesmo recurso do anterior é utilizado pela


jornalista, ou seja, o título e a notícia tratam da ida da jogadora Paula para o
Ministério do Esporte, porém o seu lide conta a tristeza de dona Chiquinha com a
saída da jogadora de basquete do comando do Centro Olímpico.

Novamente não há uma preocupação primeira com o fato ocorrido e, sim,


com o desejo de atrair o seu leitor. Prova disso, é que dona Chiquinha, elemento
central do lide, porém não da notícia, não possui uma caracterização mais
específica e objetiva, por exemplo. Ela não tem, neste caso, nome correto, nem
sobrenome, nem idade, nem tempo de serviço, mas apenas um apelido.

Por esse motivo, podemos afirmar que a jornalista preocupa-se


exclusivamente em construir para seu leitor uma imagem a respeito da jogadora
Paula. Imagem de uma pessoa competente – “E Paula deixa seu Centro Olímpico,
mudado para muito melhor” – , de sucesso – “e uma das melhores do mundo”–,
amiga e querida – “Quem vai embora não é a diretora. É uma amiga’, diz, já com
lágrimas nos olhos”.

Neste momento, como já assinalamos, a preocupação principal é a de


prender a atenção do leitor à notícia, por meio da construção de um lide totalmente
inusitado e curioso, e não com a notícia, com o fato em si. Por essa razão, a
preocupação da jornalista é em procurar um envolvimento com seu enunciatário e
não com o tema.
100

Entretanto, o lide particularizante nem sempre é construído fundamentado


apenas no estranhamento causado pela diferença existente entre o título e o lide da
notícia:
A psicóloga Cristiana Scala sentiu na pele ontem as dificuldades
que alguns munícipes estão encontrando para pagar a taxa do lixo.
Depois de várias tentativas para quitar a dívida, descobriu que o
código de barras do boleto não está ativo. “Apesar de não
concordar com a taxa, tentei pagá-la por três vezes e não
consegui. Achei um abuso.”
Tardiamente, a Secretaria Municipal de Finanças divulgou uma
nota ontem informando que as guias da taxa de lixo vencidas só
podem ser quitadas no Banco do Brasil. (Taxa do lixo: só um
banco recebe após vencimento. OESP: Cidades. 10 abr.
2003. p. C6)

Neste caso, por exemplo, o título tem como tema o pagamento da taxa do
lixo, e o lide trata da dificuldade encontrada por uma psicóloga para quitar sua
dívida. Não há, desta forma, como nos lides anteriores, um estranhamento gerado
por esse conflito entre título e lide. Entretanto, assim como no primeiro lide, o
jornalista opta por narrar o efeito, o resultado do problema para depois, então,
tratar do fato em si. Mas por que mesmo assim ele é considerado particularizante?
Por que não pode ser considerado um lide ficcional?

Como vimos, o lide ficcional pretende criar uma imagem na mente do leitor
que vai sendo construída paulatinamente pelo jornalista por meio do processo de
intriga. Tal lide coloca em um segundo plano o fato em si, o que realmente
ocorreu, para criar toda uma ambientação por meio de uma narração minuciosa
feita por um jornalista que assume a postura de um narrador onipresente ou
onisciente. Esse jornalista pretende, então, fazer seu leitor ver ou sentir o que
ocorreu.
Contudo, no lide particularizante, isso não acontece, ou seja, o jornalista ao
invés de tratar unicamente do ocorrido, particulariza o fato citando algo acontecido
com uma pessoa anônima. Essa estratégia aproxima o leitor do jornalista
justamente pelo fato de o segundo estar especificamente contando um problema
vivido por uma pessoa específica, que poderia ser o próprio leitor.
101

Neste caso, então, o jornalista quer fazer o seu leitor ver a confusão que a
cobrança da taxa de lixo está causando às pessoas. Portanto, assim como nos lides
anteriores, a estratégia interacional presente neste outro lide é a construção de uma
cena, de uma imagem para que um elo mais próximo entre leitor e jornalista se
estabeleça.

4.2.1.3. Lide descritivo: o uso da descrição como estratégia interacional

Essa tipologia de lide descritivo é apresentada por Bond (1959) e Medina


(1978). Entretanto, embora para os dois teóricos seja exatamente o mesmo tipo de
lide, eles lhe dão nomes diferentes: lide descritivo no caso do primeiro e lead-
indireto no caso de Medina.

Medina (op.cit.) comenta, como assinalamos no segundo capítulo, que no


lead-indireto, o nosso lide descritivo, o jornalista insere o seu leitor na notícia por
meio de circunstâncias totalmente acessórias, que tanto podem ser uma
ambientação quanto uma metáfora, e que, por esse motivo, não há, neste caso,
nenhuma proximidade afetiva.

Podemos considerar que, no caso do lide descritivo, não há esse desejo por
parte do jornalista de criar ou de simular, utilizando como uma das estratégias
interacionais o leitor apostrofado, uma proximidade afetiva com seu leitor. Há,
porém, o desejo de estabelecer uma proximidade com ele, de envolvê-lo, de atrai-
lo por aquilo que está sendo dito. Como estratégia interacional, ele institui um
leitor-modelo que conheça a estruturação da notícia, do lide tradicional, que ainda
é, como já dissemos, predominante no jornal, rompe com essa estruturação, cria
uma ambientação logo no início por meio de uma descrição minuciosa e atrai o seu
leitor para o restante da notícia ou parte dela:

Paul está de chinelos e ainda usa aqueles indefectíveis mullets


no cabelo. Ringo está de camisa jeans e George todo de branco,
com seu cavanhaque de estimação. Estão sentados no chão, em
cima de uma toalha xadrez de piquenique. Paul está com uma
102

perna e o chinelão em cima da toalha, todos cantando Baby What


You Want Me To Do. É junho de 1994 e os Beatles realizam um
sonho de décadas de velhos e novos fãs: estão juntos de novo (à
exceção de John, claro) e, o que é melhor, estão tocando, rindo e
se divertindo juntos.
Agora é pra valer. Chega hoje às lojas do mundo todo a caixa
The Beatles Anthology DVDs (EMI), contendo 11 horas de
imagens dos quatro fantásticos em 5 discos e mais 81 minutos de
material raro ou inédito – o que inclui aquela famosa sessão de
1994 que todo mundo pensava que era cascata. (MEDEIROS,
Jotabê. O dia dos sonhos de todo beatlemaníaco.
OESP: Caderno 2. 31 mar. 2003. p. D1)

Este lide está dividido em dois parágrafos: o primeiro cria uma cena e
descreve-a para o seu interlocutor. O segundo por sua vez, com características de
lide tradicional, situa para o leitor tal descrição feita anteriormente.

Iniciar uma notícia jornalística por uma descrição desperta uma certa
curiosidade pelo fato de o leitor não saber ao certo do que o jornalista está
tratando, uma vez que o título da notícia também não aponta diretamente para o
fato, o lançamento de uma coletânea de DVDs dos Beatles. Essa incerteza atrai,
seduz o leitor pela notícia, uma vez que ele vai desejar saber verdadeiramente do
que o jornalista está tratando. Por esse motivo, esse leitor dá continuidade a sua
leitura.

Todavia, não é apenas uma curiosidade que esse tipo de lide desperta no
leitor. Toda descrição tem a função de apresentar verbalmente um objeto, um ser,
uma coisa, uma paisagem ou até mesmo um sentimento. De acordo com Garcia
(2003: 247),

a descrição vai apresentando o objeto progressivamente, de


detalhe por detalhe, em ordem tal, que o leitor possa combinar
suas impressões isoladas para formar uma imagem unificada.

Assim, ao descrever, o locutor, no caso o jornalista, coloca em segundo


plano sua preocupação com o fato, ou seja, coloca de lado seu envolvimento com o
tema para criar uma situação tal que envolva o seu leitor, buscando, então, um
103

envolvimento com o enunciatário. Para isso, ele minuciosamente vai descrevendo


uma cena que instigue esse leitor, ou seja, lentamente ele apresenta as pessoas
presentes, aponta uma característica delas e insere-as em um contexto. O jornalista
descreve essa cena com tamanha riqueza de detalhes, justamente com o objetivo de
fazer com que seu leitor imagine em sua mente tal situação, tal ambientação. Ele
faz, então, exatamente aquilo que é postulado por Garcia (2003): vai
progressivamente descrevendo a cena e, assim, auxiliando seu leitor a construir
uma imagem total em sua mente.

O jornalista, portanto, interage com o seu leitor ajudando-o na construção de


uma imagem unificada e atraindo-o para que dê continuidade a sua leitura. Esse
jornalista deseja que seu leitor visualize mentalmente qual é o sonho de todo
beatlemaníaco, como anuncia no título: vê-los juntos novamente cantando e se
divertindo.

No segundo parágrafo da notícia, porém, esse sonho deixa de ser uma


simples cena construída pelo jornalista para se concretizar no lançamento de uma
coletânea de DVDs, que possui “81 minutos de material raro ou inédito” do grupo.

O mesmo recurso é utilizado em um outro lide produzido, porém, pelo


Jornal da Tarde:

O moço de calça muito justa, camisa semi-aberta, ostentando


um medalhão prateado e um grande broche escrito Raël anuncia:
“em três minutos sua santidade chegará e quem quiser deve
colocar o gravador na mesa agora.” Depois que ele entrar,
ninguém poderá chegar perto nem sair da sala, completa.
Os cerca de 60 jornalistas, muitos de agências internacionais, se
entreolham. Um deles, que terá de entrar ao vivo na rádio e
precisaria sair, tenta argumentar. Não tem jeito. A primeira
coletiva no Brasil de Claude Vorilhon, o Raël, fundador do
Movimento Raeliano que vem anunciando ter feito clones pelo
mundo, parece um espetáculo. (TÓFOLI, Daniela.
Raelianos falam, falam, mas não provam clonagem. JT:
Cidade. 25 mar. 2003. p. A8)
104

Neste lide, a jornalista lentamente descreve a cena para que seu leitor
consiga visualizar como se deu a coletiva do fundador do Movimento Raeliano.
Entretanto, ela não conta, como no lide anterior, com o conhecimento
enciclopédico de seu leitor. Aliás, ela cria um leitor-modelo que possa não
conhecer nem Claude Vorilhon nem seu movimento. Por esse motivo, a jornalista
faz uma pausa, esclarecendo primeiramente quem é aquele que o “moço de calça
muito justa, camisa semi-aberta” chama de “sua santidade” e, em seguida, explica
qual a relevância desse movimento para a sociedade.

A jornalista também utiliza dois parágrafos para situar seu leitor sobre o que
pretende relatar. A sensação que ela parece desejar despertar no leitor é a de
desconforto e estranheza absoluta, pois logo de início descreve um moço que
nomeia um outro homem de “santidade”. No segundo parágrafo, ela continua a
descrever a cena, mas resumidamente informa de quem está falando e o que esta
pessoa fez. O lide desenvolvido em dois parágrafos termina com uma opinião da
jornalista sobre a descrição da cena vista: “parece um espetáculo”.

Podemos sintetizar reafirmando que nos dois lides descritivos anteriores, o


que os jornalistas fazem é primeiramente causar uma certa curiosidade em seus
leitores e, em seguida, compartilhar aquilo que viram com esses leitores por meio
de descrições minuciosas e detalhadas que possibilitem a trabalho com a
imaginação na construção dessas cenas. Desta forma, o locutor consegue
minimizar a distância espaço-temporal existente entre os interlocutores e seduzir,
envolver seu leitor mais facilmente por aquilo que está sendo dito.

Conforme afirma Bearzoti Filho (1991:10), toda descrição tem por objetivo
fazer seu interlocutor ver ou sentir aquilo que foi descrito:

Todo aquele que descreve pretende ao menos uma de duas coisas.


Pode desejar transmitir uma idéia de como o objeto descrito é de
fato: seu formato, sua cor, seu funcionamento, etc.; mas pode,
também, ter como prioridade que seu leitor obtenha a mesma
impressão que ele, autor, sentiu ao se defrontar com o objeto. No
105

primeiro caso, dizemos que a função da descrição é fazer ver,


enquanto, no segundo, é fazer sentir.

No caso do primeiro lide descritivo, por exemplo, o jornalista apenas queria


que os leitores vissem, imaginassem, visualizassem a cena de um encontro dos
Beatles. No segundo, há a predominância do fazer ver, mas há, também, um desejo
de que seu interlocutor compartilhe da mesma opinião da jornalista e sinta a
estranheza da situação criada na entrevista coletiva dada por Claude Vorilhon. Há,
portanto, a presença, também, do fazer sentir, que se torna elemento central em um
outro lide:

Prédios em chamas, ruas invadidas por veículos que circulam


em qualquer direção, lojas, hotéis, casas, agências bancárias,
prédios governamentais – inclusive hospitais e museus –
saqueados por bandos de ladrões armados e moradores da cidade,
milícias urbanas controlando com fuzis e pistolas seus bairros. A
anarquia continuou tomando conta de Bagdá ontem, dois dias
depois da tomada da capital iraquiana pelas tropas dos EUA. Em
Washington, o porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, anunciou,
oficialmente, que os EUA consideram o regime de Saddam
Hussein deposto, e o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld,
disse que as forças americanas e britânicas “tomarão as medidas
necessárias para garantir a ordem e deter os saques nas cidades do
Iraque”. Disse também que as forças americanas estabeleceram a
proibição de se sair de Bagdá durante a noite, com o objetivo de
começar a pôr fim ao caos imperante na cidade. (Caos toma
conta de Bagdá sem governo. JT: Guerra do Golfo II.
12 abr. 2003. p. A12)

No lide acima não há uma única intenção de fazer ver; há também, e


predominantemente, a intenção de fazer o leitor sentir. Trata-se de uma descrição
compartilhada, ou seja, o autor minuciosamente vai fornecendo os detalhes da
“anarquia” que ele pretende descrever. Essa descrição lenta e minuciosa vai
criando uma expectativa no leitor, um clima de suspense, dando uma ilusão de
proximidade entre os interlocutores, já que autor e leitor parecem observar juntos a
mesma cena, e despertando paulatinamente esse fazer ver e esse fazer sentir. O que
o leitor, juntamente com o autor, vê e sente é a situação caótica em que se encontra
Bagdá, assim colocado no título pelo autor.
106

Ambos, autor e leitor, sentem e vêem, então, a total ausência de regras, de


limites e de respeito pelo próximo. A pausa feita pelo autor ao dizer “inclusive
hospitais e museus” exemplifica e destaca todas essas ausências nomeadas, uma
vez que a função dos hospitais seja a de prestar socorro para aqueles que mais
necessitam de ajuda, e a dos museus seja a de guardar a história e a memória de
uma nação.

Após tal descrição, o locutor passa a explicar exatamente o contexto da cena


construída e a fornecer as opiniões das pessoas responsáveis pela retirada do
ditador iraquiano Saddam Hussein.

4.2.2. A conversa com o leitor como estratégia interacional

Destacamos que o que há em comum entre os lides ficcional,


particularizante e descritivo é que cada um deles, utilizando estratégias diferentes,
tem por objetivo primordial despertar a curiosidade de seu leitor e fazê-lo imaginar
a cena narrada ou descrita. Essa estratégia interacional, como já afirmamos,
procura, então, criar um maior envolvimento com o enunciatário enquanto o
envolvimento com o tema é posto em um segundo plano.

Os lides a seguir, porém, não têm por objetivo único despertar a curiosidade
do leitor, mas sim, quando os produz, o jornalista procura envolver seu interlocutor
de uma maneira mais intensa por meio da utilização de estratégias que minimizem
a distância espaço-temporal existente entre eles e criem, por esse motivo, a ilusão
de que jornalista e seu leitor mantêm uma conversação face a face.

Como afirma Maingueneau (1998: 37), em uma conversação,

[os] participantes, que podem ser mais de dois, estão próximos no


tempo e no espaço e entretêm relações convivais. A conversação
apresenta-se como desprovida de finalidade instrumental; um
interrogatório ou um debate político não podem ser conversações:
107

“É a companhia que procuramos aí, não informações” (Jacques in


Cosnier et al., 1988:58).

Na tipologia de lide apresentada a seguir, veremos que aquilo que os


jornalistas fazem é justamente utilizar estratégias interacionais que procurem, em
um primeiro momento, tornar seus leitores participantes de uma conversa, ou seja,
o jornalista parece preocupar-se nesses lides em encontrar uma companhia para
que possa, assim, conversar, conforme destaca Maingueneau (op.cit.).

Encontramos nos lides jornalísticos de O Estado de S.Paulo e do Jornal da


Tarde três diferentes maneiras de simular essa conversa entre jornalista e seu
interlocutor. No primeiro caso, o do lide opinativo, o jornalista apresenta sua
opinião acerca de um fato qualquer. Já no segundo, o do lide interrogativo, o leitor
é questionado sobre um acontecimento. E por sua vez no último caso, o do lide
com interlocutor determinado, o leitor é imediatamente inserido na notícia por
meio de termos que se dirigem diretamente a ele.

4.2.2.1. Lide opinativo: opinião do jornalista como estratégia interacional

À primeira vista, o lide opinativo4, pelo próprio nome, causa um certo


estranhamento, pois como afirma Mosca (1994: 233) o jornalista é uma pessoa que
deve deixar sua emoção fora da notícia:

A possibilidade de comunicação “pessoal” com o leitor se vê


assim filtrada, realizando-se sob limites e condições controladas.
O distanciamento se dá na busca de criação de objetividade, em
nome da qual se vêem contidas as reações emocionais e afetivas.
Os jornalistas são indivíduos a quem se pede para deixar a
emoção em casa.

Após tais considerações, é possível indagarmos como uma notícia,


fundamentada nos princípios de objetividade e clareza, possui um lide em que o
jornalista explicitamente opina sobre um determinado assunto?
__________
4. O lide opinativo também não aparece na literatura jornalística. Tal categoria foi atribuída por nós.
108

Como premissa para tal questionamento, apresentamos o lide a seguir:

O pânico está instalado na capital chinesa. Ontem mais de 4 mil


pessoas foram colocadas em quarentena pelas autoridades de
Pequim, em conseqüência da epidemia de pneumonia atípica que
afeta, principalmente, o Sudeste Asiático. Segundo o governo
chinês, o isolamento ocorreu porque essas pessoas tiveram
contato íntimo com os doentes. (EFE e AP. Mais de 4 mil
pessoas são isoladas em Pequim. OESP: Geral. 26 abr.
2003. p. A16)

O jornalista, neste caso, antes de iniciar a construção de um lide tradicional,


emite sua opinião acerca da situação em Pequim: “O pânico está instalado na
capital chinesa”.

Desta forma, ele chama a atenção de seu leitor para o fato e estabelece um
vínculo maior entre eles, uma vez que, ao invés de se ocultar para privilegiar esse
fato, criando, assim, esse efeito de objetividade, o jornalista primeiramente
externaliza seu pensamento. Neste caso, sendo colocado logo no início do
parágrafo, essa opinião é o elemento central, a idéia mais importante do lide.

Um lide opinativo pode ser, também, mais explícito e dirigir-se de modo


mais direto ao leitor, como ocorre no lide seguinte:

É claro que o MRV/Minas pode virar o playoff decisivo da


Superliga Feminina de Vôlei – o BCN/Osasco tem 2 a 0 na série
melhor-de-cinco. O time mineiro fez a melhor campanha da fase
classificatória e tem jogadoras como Fofão, Érika e Elisângela,
que só deixaram a Seleção Brasileira (por desentendimentos com
o técnico Marco Aurélio Motta) após o bronze na Olimpíada de
Sydney, em 2000, ainda sob comando de Bernardinho. Mas o
título da temporada está bem mais perto do BCN, que, apesar da
tradição de investimento no esporte, busca uma conquista inédita.
A terceira partida será hoje, às 20h30, no Mineirinho, Belo
Horizonte (SportTV). (MRV acredita em reação diante do
BCN. OESP: Esportes. 24 abr. 2003. p. E4)

Este lide mantém com seu leitor uma interação bem mais explícita pelo fato
de utilizar a expressão “é claro”. Tal expressão dirige-se a um leitor-modelo
109

colocado no texto e nomeado por Maingueneau (1996) de leitor instituído. Ao se


colocar, ao exteriorizar sua opinião, o jornalista dá a impressão de que já conhece
os pensamentos de seu leitor e não concorda com eles. Por esse motivo, ele se
mostra incisivo ao tratar de uma reação da equipe MRV/Minas.

O uso dessa expressão “é claro” atrai o seu leitor para a notícia por expor
primeiramente a opinião do jornalista para, em seguida, apresentar o fato.
Havemos de ressaltar, entretanto, que o fato apresentado possui alguns
argumentos levantados por esse jornalista, tais como: MRV tem a melhor
campanha da fase classificatória e conta com ex-jogadoras da Seleção Brasileira de
Vôlei. A função desses argumentos é a de justificar a opinião apresentada logo no
início da notícia por ele.

Podemos enfatizar, então, que o jornalista, ao emitir e justificar sua opinião,


deseja aproximar-se de seu leitor, minimizando a distância espaço-temporal
existente entre eles, pois demonstra conhecer a opinião desse leitor e discordar
dela, dando a impressão, portanto, de que os interlocutores conversam sobre o
assunto.

No lide seguinte, além de expor sua opinião, o jornalista utiliza como


estratégia interacional para buscar um envolvimento com o enunciatário, uma das
três competências postuladas por Maingueneau (2001) e apresentada no capítulo
anterior - a competência enciclopédica:

Parece piada, mas a Portuguesa, vice-lanterna do “Torneio de


Morte” do Campeonato Paulista, está feliz por poder jogar contra
o Botafogo, hoje, às 20h30, como visitante. Soa, no mínimo
estranho, contudo a equipe está invicta atuando fora do Canindé –
quatro empates e uma vitória – e acredita que mantendo o
retrospecto, fugirá do rebaixamento. (Lusa, fora de casa,
tenta ‘respirar’ no ‘Torneio da Morte’. OESP:
Esportes. 19 mar. 2003. p. E3)
110

Mais uma vez o jornalista faz uma avaliação de uma determinada situação e
expõe sua opinião acerca de um fato noticiado. Neste caso, ele também se dirige a
um leitor instituído ou cooperativo, ou seja, a um leitor esperado, porém não
explicitado no lide.

O jornalista espera que esse leitor-modelo, para que possa compreender o


lide produzido, tenha um determinado conhecimento enciclopédico, ou seja, saiba
que o cidadão português, em nossa sociedade, muitas vezes tem sua inteligência
questionada por piadas criadas em diferentes contextos.

Além de saber disso, um outro conhecimento enciclopédico que ele espera


de seu leitor-modelo, é que ele também saiba que um time prefere jogar em seu
próprio estádio a ir para um outro qualquer. Contando com mais essa competência,
ele ironiza a situação do time da Portuguesa, penúltimo colocado no Campeonato
Paulista, estar feliz por poder jogar fora do seu próprio estádio, o Canindé.

Em um outro lide opinativo, o jornalista ultrapassa a exposição de uma


opinião acerca de um determinado assunto, para se colocar como um efusivo
torcedor do time do Corinthians:

Que tapetão, que nada! O Corinthians mostrou força e sagrou-se


campeão paulista pela 25a vez em sua história com mais uma
vitória sobre o São Paulo por 3 a 2 (mesmo placar da partida de
ida), ontem, no Morumbi. Diante de 71.736 torcedores, os
corintianos levaram para casa o terceiro título em um ano (foram
campeões do Rio-São Paulo e da Copa do Brasil em 2002, além
do vice-Brasileiro), com campanha invejável, e descartaram
qualquer tipo de briga nos tribunais. (VILARON, Wagner.
Corinthians, sem discussão. OESP: Esportes. 23 mar.
2003. p. E1)

Neste lide, a opinião do jornalista é externalizada antes mesmo do primeiro


parágrafo, ou seja, no próprio título da notícia. Esse “sem discussão” tanto se
refere ao fato de se tratar de uma vitória do Corinthians que não abre precedentes
para uma ação nos tribunais, como ele afirma no final do lide, quanto ao fato de ser
esta a terceira vitória do time em menos de um ano.
111

Assim como nos anteriores, neste lide, a opinião do jornalista é exposta logo
no início do parágrafo e com um ponto de exclamação para intensificar sua opinião
e também alegria. Entretanto, neste caso, essa opinião se prolonga um pouco mais
ao longo do lide. Vilaron afirma que o time corintiano teve “força”, fez uma
“campanha invejável” e mais uma vez venceu o time do São Paulo.

Essa opinião presente logo de início, “que tapetão, que nada!”, pretende
mostrar para seu leitor toda a alegria que o jornalista está sentindo. Ele, então,
além de externalizar sua opinião, tendo por objetivo aproximar-se de seu leitor e
manter um elo conversacional com ele, como nos lides anteriores, compartilha com
o leitor sua alegria pela vitória do Corinthians.

Havemos de ressaltar, ainda, que esse tipo de lide opinativo, como se pôde
perceber pelas análises, está presente em sua maioria no Caderno de Esportes tanto
de O Estado de S.Paulo quanto do Jornal da Tarde. Esse dado nos permite inferir
que ao tratar de um assunto considerado lazer ou hobby pela grande maioria das
pessoas, o jornalista não precisa produzir uma notícia tão objetiva, clara e
imparcial como nos demais assuntos. Dessa forma, ele parece manter uma
conversa com seu leitor, criando, então, um ambiente descontraído, um tom de
conversa informal entre homens, pois como pudemos levantar, a maioria dos
leitores do Caderno de Esportes de ambos os jornais (74% em O Estado de S.Paulo
e 78% no Jornal da Tarde) é composta por leitores do sexo masculino e o mesmo
ocorre com os jornalistas que escrevem para esse caderno.

4.2.2.2. Lide interrogativo: o uso da interrogativa como estratégia interacional

Medina (1978) e Hohenberg (1962) apresentam, ao contrário do que é


postulado nos manuais, essa tipologia de lide, e este é nomeado por eles de lead
interrogativo e lead pessoal respectivamente.

O lide interrogativo, assim como o opinativo, dirige-se diretamente a um


112

leitor. Por sua vez, como o próprio nome aponta, essa impressão de conversa entre
interlocutores se constrói também por meio de uma indagação:

Que tal comprar uma caneta Montblanc Czar Nicolai I por R$


1.738,80? Com ela você pode preencher um cheque ou assinar o
débito do cartão de crédito para levar um relógio Cartier Must
Colisée Vermeil por R$ 3 mil, marcando os segundos para
comprar, por R$5.775,00, um jogo de chá e café Villars, da
Christofle.
Pode parecer absurdo, mas na realidade, quem comprar esses
produtos por esses preços pagará a metade do que custam nas
lojas. Mais: poderá ser atendido hoje, no ato da compra, pela
primeira-dama paulista, Maria Lúcia Alckmin, que estará, a partir
das 12 horas, atrás dos balcões de grifes de luxo no Museu da
Casa Brasileira. (FRANCO, Carlos. Caríssimas
pechinchas de um bazar social. OESP: Cidades. 24 abr.
2003. p. C3)

São três as estratégias interacionais presentes neste lide que criam uma
proximidade espaço-temporal entre o jornalista e o seu leitor e que, por esse
motivo, simulam uma conversa face a face entre os interlocutores.

A primeira é a pergunta formulada logo no início pelo jornalista ao seu


leitor: “que tal comprar uma caneta Montblanc Czar Nicolai I por R$ 1.738,80?”.
O uso da expressão informal “que tal” para iniciar a pergunta vem reforçar o tom
de diálogo e de informalidade entre os interlocutores. Essa expressão tem o mesmo
significado de “o que você acha de” e faz com que essa pergunta deixe de ser uma
simples indagação e torne-se um convite dirigido explicitamente ao leitor.

A segunda é o estabelecimento de um leitor-modelo instaurado


explicitamente pelo jornalista e que é descrito por Maingueneau (1996) como
leitor invocado ou apostrofado. Após tal pergunta ou convite, o jornalista dirige-se
diretamente a esse leitor, utilizando o termo “você”, e aponta algumas outras
compras que o tal leitor invocado pode fazer com sua caneta. Fazendo uso desse
recurso, o jornalista consegue apontar alguns dos objetos que serão vendidos nesse
bazar.
113

A terceira estratégia está relacionada a uma das competências postuladas


também por Maingueneau (2001), a do conhecimento enciclopédico. O leitor-
modelo criado pelo jornalista deve saber que os preços dos produtos elencados são
bastante elevados para uma caneta, um relógio ou um jogo de chá e café. Partindo
desse pressuposto, Franco relaciona esses objetos e seus preços na construção de
seu parágrafo, dando a ele um tom descontraído e despertando, desta maneira, a
curiosidade do seu leitor. Para satisfazê-la, ele precisará ler o segundo parágrafo e
assim descobrirá do que o jornalista está falando e o que ele pretende: mostrar o
“absurdo” da situação.

Nesta primeira notícia, podemos considerar que o lide estende-se do


primeiro ao segundo parágrafo, pois naquele, o jornalista chama seu leitor para a
conversa e faz-lhe o convite, e no outro, ele satisfaz a curiosidade de seu
interlocutor, explicitando o que realmente acontece.

O tom informal e descontraído ainda prevalece neste segundo parágrafo,


pois o jornalista inicia-o, externalizando sua opinião acerca dos preços dos
produtos: “pode parecer absurdo”.

A partir de tais considerações, podemos assinalar que o tom de conversação


face a face ainda predomina, pelo fato de ele explicitar sua opinião e acreditar que
esta pode ser também a opinião de seu leitor. A utilização do verbo poder nos
autoriza a fazer tal inferência. Além disso, para relacionar as informações sobre o
bazar, esse jornalista usa o termo “mais”, cuja função é também a de informalizar a
informação e reafirmar o tom de conversação entre os interlocutores.

As mesmas estratégias interacionais, além é claro, do lide interrogativo, são


utilizadas em um outro lide publicado no jornal O Estado de S.Paulo:

Não sabe o que fazer com seu velho Pentium/133? Deixe que
um bebê o descubra. Esse é o pré-requisito de dois novos títulos
da série Winnie the Pooh, distribuídos pela Positivo Informática.
O primeiro, Winnie the Pooh – Primeiros Passos, é indicado para
114

crianças de 18 meses a três anos e busca desenvolver noções de


alfabetização.
Winnie the Pooh – Maternal, por sua vez, é indicado para
crianças de dois a quatro anos e traz atividades para ampliação de
vocabulário e exercício de coordenação motora e memorização.
Os dois são narrados em português e têm menus fáceis de ser
entendidos pelos pequenos. (R.N.S. Até bebês podem
brincar com novos títulos Disney. OESP: Informática.
31 mar. 2003. p. I14)

Esta notícia é destinada a um leitor específico: aquele que deseja conhecer


as novidades no campo da Informática. O jornalista dirige-se diretamente a ele,
utilizando também como estratégia interacional um leitor invocado ou
apostrofado, que pode ser explicitado por meio do verbo “não sabe”, já que
claramente o interlocutor dessa indagação é “você”, que é, no caso, o leitor.

Neste lide, porém, o jornalista não está fazendo um convite ao seu leitor,
mas sim está lhe fazendo uma pergunta a qual ele já parece saber a resposta, ou
seja, o leitor invocado do autor empírico, não sabe o que fazer com seu velho
computador. A sugestão apresentada por ele é a mais inusitada possível: deixar que
um bebê descubra.

Neste caso, assim como no lide anterior, o jornalista trabalha com o


conhecimento enciclopédico de seu leitor, que sabe perfeitamente que um
computador é demasiadamente complexo para que um bebê o utilize. O locutor
sugere que seu interlocutor deixe um bebê descobrir, a fim de que consiga
provocar um certo estranhamento por causa da situação apresentada como
sugestão. Este interlocutor, então, movido pela curiosidade e pela estranheza da
situação, sentir-se-á suficientemente seduzido para dar continuidade à leitura da
notícia.

Consideramos oportuno ressaltar que, como assinala Frias Filho (1984: 4), a
notícia desperta interesse no leitor quanto mais ela for improvável. O mesmo
ocorre com o lide, ou seja, à medida que ele é construído de forma a causar um
115

certo estranhamento, uma certa curiosidade, mais ele conseguirá prender seu leitor
à notícia:

Sabe-se que a notícia tem tanto maior interesse jornalístico,


quanto mais ela for improvável. Por quê? Porque é da sua
improbabilidade que vai resultar o apogeu da distância entre o
prosaísmo do leitor e a extravagância acintosa do fato.

Todavia, essa aproximação do jornalista com o leitor por meio da criação de


um leitor invocado ou apostrofado não ocorre em todos os casos de lides
interrogativos. Em alguns outros lides, a pergunta aproxima espaço-temporalmente
os interlocutores da notícia, criando assim, uma impressão de eles mantêm um
diálogo, mas o locutor, no caso o jornalista, não se dirige de forma tão explícita ao
seu interlocutor:

Poderá um Stock Car V-6 derrotar um cavalo da raça quarto-de-


milha, considerado um animal de velocidade excepcional? O
confronto entre a máquina criada pelo homem e o cavalo, pela
natureza, às vésperas do GP Brasil de Fórmula 1, ocorrerá hoje,
por volta das 19h30, no Hipódromo de Cidade Jardim. O potro
Portofino, de 3 anos, na direção de Maílson Praxedes, vai
enfrentar na distância de 100 m a supermáquina da equipe Medley
Genéricos, pilotado por Guto Negrão. (BARBOSA, Nelson.
Cidade Jardim vê duelo inédito: um potro contra um
Stock Car. OESP: Esportes. 5 abr. 2003. p. E4)

O jornalista instaura logo no início do seu lide uma situação de competição,


um clima de aposta. Ele formula uma pergunta diretiva para seu leitor-modelo: este
tem apenas de responder sim ou não, ou seja, apostar hipoteticamente no cavalo ou
no carro.

Após a indagação feita, as informações subseqüentes auxiliarão esse leitor a


fazer uma escolha mais racional. O jornalista cria, a partir dessa mistura de lide
interrogativo com lide tradicional, uma vez que após a pergunta, seu lide passa a
se estruturar a partir das questões quem?, o quê?, onde?, quando? e como?, um
ambiente de jóquei clube, ou seja, no jóquei, para poder apostar em um ou em
outro cavalo, o apostador precisa de algumas informações sobre o animal e o
116

jóquei.

O jornalista, então, fornece detalhadamente ao seu leitor todas essas


informações, ou seja, de um lado há um animal jovem –“de 3 anos”–, de
“velocidade excepcional” e do outro há uma “supermáquina” pilotada por um
piloto conhecido, a fim de que seu leitor possa, com mais segurança, responder a
sua pergunta ou fazer a sua aposta.

Como pudemos notar ao abordamos esses exemplos de lides interrogativos,


os jornalistas, a partir de tais formulações, pretendem envolver o leitor,
aproximando-o não do fato em si, mas sim de seu interlocutor, ou seja, por meio
das questões, cria-se uma situação de maior proximidade entre eles, dando, em
princípio, uma idéia de que ambos conversam sobre um determinado assunto, de
que a opinião do leitor é o elemento mais importante. Por esse motivo, o locutor
convida primeiramente o seu leitor, o seu interlocutor a refletir sobre determinado
assunto.

4.2.2.3. Lide com interlocutor determinado: o uso do leitor apostrofado como


estratégia interacional

Assim como no lide interrogativo, Medina (1978) e Hohenberg (1962)


também apresentam essa tipologia de lide, que é denominado por eles de lead
envolvente e lead pessoal, respectivamente.

O lide com interlocutor determinado é aquele que estabelece uma relação


imediata e direta com o seu leitor:

Para entender por que Rupert Murdoch está adquirindo o


controle da operadora de televisão por satélite DirecTV, pergunte
aos fãs dos times americanos de basquete Orlando Magic ou
Minnesota Timberwolves. A emissora de tevê a cabo Fox, de
Murdoch, detém os direitos de exibição de ambos os times.
Quando a Time Warner Cable se recusou a pagar o preço
determinado pela Fox, a empresa manteve os jogos fora do cabo
117

durante dez semanas da temporada. (KIRKPATRICK, David


D. Murdoch encarece esporte na TV. The New York
Times. In: OESP: Economia. 15 abr. 2003. p. B7)

Este lide é um evidente exemplo de texto que privilegia criar um


envolvimento com o enunciatário e não exclusivamente com o tema, minimizando,
então, também como nos outros dois tipos de lide, a distância espaço-temporal
existente entre os interlocutores, e criando a impressão de que ambos estão
conversando e muito próximos um do outro.

A impressão de conversa entre jornalista e leitor, neste caso, concretiza-se


pela utilização dos termos “para entender” e “pergunte”. Nesses dois verbos, o
jornalista pretende dirigir-se ao leitor, sugerindo-lhe um caminho para descobrir o
motivo pelo qual Murdoch está assumindo o controle da DirecTv.

Além desse indício, uma estratégia interacional utilizada pelo jornalista para
aproximar os interlocutores é a instauração de um leitor invocado ou apostrofado.
Embora esse locutor não utilize explicitamente o termo você ou o leitor, ele está
subentendido no momento em que afirma ou convida seu leitor para entender o
fato ocorrido.

No exemplo abaixo, a jornalista, explicitamente, ao contrário do outro lides,


dirige-se a um leitor:

Você não vai precisar mais acompanhar as enfadonhas ‘provas


do líder’, nem as festinhas ‘temáticas’, cheias de fantasias de
teatrinho escolar e alguns porres indigestos. Também não terá de
ouvir a baianinha Elane ‘cantando’ qual taquara rachada,
tampouco acompanhar as intermináveis sessões de malhação dos
desocupados enquanto engorda comendo pipoca e chocolate na
frente da tevê. Vença quem vencer o Big Brother na noite de hoje,
quem vai sair ganhando será o telespectador, já que ficar livre do
dia-a-dia daquele monte de anônimos que viram celebridades de
uma hora para outra não deixa de ser um alívio. Melhor: a
despedida de hoje é a última, e não haverá mais aqueles abraços
tão falsos quanto as torcidas. (BRESSER, Deborah. R$ 500
mil ao campeão e alforria para você. JT: Variedades.
01 abr. 2003. p. C6)
118

Nesta notícia, o leitor instituído ou apostrofado já é destacado logo no


título. Ao longo de seu lide, além de a jornalista dirigir-se diretamente ao leitor,
chamando-o por “você”, ela instaura um leitor-modelo que possua uma das
competências postuladas por Maingueneau (2001): o conhecimento enciclopédico.
Tendo esse conhecimento, Bresser passa a mostrar sua opinião acerca do Big
Brother e institui um leitor-modelo que compartilhe tais gostos e opiniões. Dessa
forma, tanto a jornalista quanto seu leitor ficarão livres das “enfadonhas ‘provas do
líder’”, das “festinhas ‘temáticas’”, das canções da “baianinha Elane” e das
“intermináveis sessões de malhação dos desocupados”.

Em um outro lide com interlocutor determinado, a jornalista, assim como


no anterior, trabalha com o conhecimento enciclopédico de seu leitor-modelo:

Imagine a cena: centenas de socialites vestindo modelitos


chiquérrimos, som de música ambiente, garçom e muito drink –
em uma casa que ocupa quase um quarteirão em pleno Jardim
América. Na porta, a maioria dos carros parados era de modelos
BMW e Audi.
Os presentes aguardavam o lançamento do perfume Sensi da
Armani. O evento tinha tudo para dar certo... quando começou um
som insuportável, no último volume, tocando funks da Egüinha
Pocotó, de MC Serginho e Lacraia, Bonde do Tigrão, e o pior:
uma gravação de choro de bebê.
O responsável pela ‘saia justa’ geral foi um vizinho. Enfurecido
com as baladas que, segundo moradores da região, acontecem
com freqüência na casa de número 324 da Rua Canadá, Jardim
América, zona sul, ele resolveu radicalizar. (HADDAD,
Camilla. Vizinho ‘terrorista’ acaba com festa chique.
JT: Cidade. 04 abr. 2003. p. A18)

Ao se dirigir ao leitor pedindo-lhe para imaginar a cena, além de criar a


impressão, como nos lides anteriores, de que os interlocutores mantêm uma
conversação face a face, a jornalista cria uma certa expectativa, pois seu leitor
desejará saber de que cena ela está falando e mais atentamente seguirá com sua
leitura.

Após instaurar, o leitor apostrofado, utilizando o verbo imaginar, a


jornalista passa, então, a descrever a cena em dois parágrafos. No primeiro, ela,
119

contando com o conhecimento enciclopédico de seu leitor, que conhece como é o


ambiente no Jardim América – tanto que se refere ao bairro utilizando a expressão
“em pleno Jardim América”, mostrando que ele não é um bairro simples e comum
da cidade de São Paulo – descreve uma festa destinada à classe alta da cidade,
fazendo referência às roupas dos convidados, aos seus carros e ao ambiente da
festa de maneira geral. Ainda instituindo um leitor-modelo que possua tal
conhecimento enciclopédico, a jornalista espera que ele consiga perceber diante
desses indícios que se trata de uma festa de alto nível.

No segundo parágrafo, a jornalista ainda descrever a cena e, portanto, o lide


continua a ser desenvolvido. Entretanto, nesse momento, ela passa a descrever um
outro fato que rompe com a harmonia desta cena, e anuncia este fato utilizando
reticências e um “quando”, que justamente têm a função de aumentar a
expectativa, de criar um suspense, de anunciar algo diferente: o funk e o choro de
um bebê. Novamente, a jornalista conta com o conhecimento enciclopédico de seu
leitor, uma vez que ela espera que esse leitor seja capaz de perceber que esses dois
elementos não combinam com uma festa no Jardim América para um público
pertencente à classe alta. A jornalista faz da curiosidade, um estranhamento.

Ainda no segundo parágrafo, Haddad, além de misturar elementos


descritivos a um lide com interlocutor determinado, emite sua opinião acerca do
ocorrido: primeiramente “o evento tinha tudo para dar certo” e logo em seguida,
além de se ouvir um som “insuportável” que tocava funks, o choro de bebê era “o
pior” que poderia ter acontecido nessa festa. Tais impressões a respeito do evento
servem para minimizar esse distanciamento entre os interlocutores e aumentar a
intimidade existente entre eles, intensificando assim, a noção de que ambos
mantêm um diálogo face a face.

Apenas no terceiro parágrafo, a jornalista passa a explicar exatamente o que


aconteceu. Ela já conseguiu a atenção do leitor, já criou a ambientação por meio
dos parágrafos descritivos e neste ela esclarece a situação, falando quem é o autor
120

do fato e por que tal situação ocorreu.

A utilização da descrição também é, como vimos anteriormente, um recurso


interacional recorrente no lide jornalístico, cujo objetivo é o mesmo dos lides
anteriores: envolver o leitor, o interlocutor, fazer-lhe criar uma imagem a respeito
do fato e despertar-lhe algum tipo de sensação.

Julgamos necessário, contudo, pontuar neste momento, que o que


procuramos mostrar até agora vai de encontro ao que Marcuschi (1999: 146-7)
postula. Segundo ele, a notícia jornalística tem como principal objetivo a
informação e, por esse motivo, a principal preocupação desse gênero de discurso é
com seu envolvimento com o tema. Ainda, de acordo com ele, elementos
interacionais que estabeleçam uma relação imediata com o seu leitor só são
comuns na notícia jornalística caso pretendam romper com esse gênero de discurso
e buscar o sensacionalismo.

Entretanto, nomeamos esse segundo tipo de lide interacional, o lide com


interlocutor determinado, justamente fazendo referência ao indícios de orientação
diretiva para um interlocutor determinado de Marcuschi (1999). Como
assinalamos, neste e nos outros dois tipos de lide anteriores, o locutor, no caso o
jornalista, produz seu texto tendo em mente um leitor-modelo, que já conhece
muitas das notícias publicadas pelo jornal, pois estas foram anteriormente dadas no
telejornal no rádio ou divulgadas pela internet, que são meios de comunicação
muito mais imediatistas. É com esse leitor-modelo que o jornalista pretende
interagir.

Desta forma, além de noticiar, ele tem o objetivo de fisgar a atenção de seu
interlocutor, e, por esse motivo, ou lhe desperta a curiosidade, construindo uma
imagem da cena em sua mente e desenvolvendo-lhe sensações agradáveis ou não,
ou dirige-se diretamente a esse leitor, procurando criar a impressão de que leitor e
jornalista mantêm uma conversação face a face.
121

A notícia jornalística, por uma questão de reduzido tempo para produção,


montagem e fechamento do jornal, freqüentemente faz uso da pirâmide invertida e
do lide tradicional por uma questão de praticidade e facilidade, pois, como
pontuamos no segundo capítulo, tal padronização agiliza o trabalho do jornalista.

Todavia, como defende, por exemplo, Hohenberg (1962), com o


aparecimento de outros meios de comunicação, atualmente o lide precisa ser mais
movimentado para que prenda a atenção do seu leitor, atraia-o, seduza-o, encante-
o. Uma das formas de dinamizar o lide é justamente a de instituir um leitor
apostrofado e criar para o leitor empírico a idéia de que mesmo distantes locutor e
interlocutor mantêm uma relação imediata. Por esse motivo, e não por uma questão
meramente sensacionalista, o jornalista dirige-se diretamente ao leitor também em
uma notícia jornalística. E, foi isso, portanto, que procuramos demonstrar até aqui.
122

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente trabalho, pretendemos demonstrar que não é


exclusivamente o fato a única preocupação do jornal. Este se importa também, e
primordialmente, com o seu leitor, que é o elemento motivador de toda a produção
de uma notícia jornalística.

Por esse motivo, os jornais são estruturados e diagramados a fim de que


facilitem e agilizem a leitura de seu interlocutor. Para conhecer melhor quem é o
interlocutor de um determinado jornal, e para que este possa atender às
expectativas de seu leitor, há uma pesquisa que levanta de maneira geral o perfil
desses leitores. Não podemos nos esquecer de que este meio de comunicação vive
da venda de notícias e que, por isso, precisa agradar ao seu público-leitor.

Deixemos de lado, entretanto, a questão meramente mercadológica do jornal


e pensemos sob o ponto de vista lingüístico. Todo texto tem por objetivo envolver
o seu leitor, pois é por meio dele que os interlocutores estabelecem uma relação
dialógica interacional. Isso posto, podemos assinalar que seja o objetivo principal o
fato, seja o enunciatário, a interação e o envolvimento são conseqüências naturais
de qualquer gênero de discurso. Portanto, este é o caso do jornal.

Apontamos que, embora possua formulações dogmáticas e até certo ponto


impositivas no momento de formulação de uma notícia, os manuais de jornalismo
preocupam-se em envolver o leitor, em prendê-lo a ela. Para tal, utilizam como
estratégia, ou a elaboração tradicional da notícia, cujo enfoque principal recai no
123

próprio fato, ou constroem primeiros parágrafos que se dirijam mais


explicitamente ao leitor e, por esse motivo, privilegiem a interação, o
envolvimento com esse leitor.

Nosso objetivo foi o de mostrar quais os mecanismos interacionais


presentes em um lide cuja finalidade principal é, em um primeiro momento, o
envolvimento com o interlocutor, ou seja, com o leitor. Ao apontarmos tais
mecanismos, delegamos ao fato um segundo plano, ao menos no início da notícia.

Escolhemos especificamente a formulação dos lides das notícias pelo fato


de serem eles, juntamente com a manchete, o elemento mais importante de uma
notícia jornalística, pois são eles que abrem os fatos, que os contextualizam para o
leitor, e que são os responsáveis diretos pela continuidade da leitura da notícia por
parte desse leitor.

O leitor, embora tenhamos dado ênfase ao modo de construção do lide por


parte do jornalista, é de fundamental importância, pelo fato de ser ele o alvo da
notícia e o elemento responsável por recuperar e dar um significado a tudo o que
está escrito.

Essa construção por parte do locutor, e reconstrução por parte do


interlocutor só se faz possível graças à força e ao poder de comunicação da
palavra. Ela é, na verdade, o elemento unificador que relaciona, que une, que faz
dois ou mais interlocutores interagirem.

Desejamos apontar, também, por meio das análises, que o jornalista, para
interagir com seu leitor, para seduzi-lo, pode utilizar basicamente dois recursos: ou
mexer com o imaginário dele, construindo lenta e detalhadamente uma cena em
sua mente, ou dirigir-se diretamente a ele, criando uma idéia de que os
interlocutores mantêm uma conversação face a face.
124

No primeiro caso, encontramos três diferentes categorizações para o lide


que estão fundamentadas na composição dessa imagem: o lide literário, em que o
leitor é capaz de imaginar a cena narrada e envolver-se por ela; o lide
particularizante, em que esse leitor é convidado pelo jornalista a se colocar no
lugar do outro e envolver-se por sua história; e o lide descritivo, em que o
interlocutor do jornalista é levado a imaginar uma determinada cena descrita com
inúmeros detalhes.

No segundo caso, encontramos outros três categorias de lide: o lide


opinativo, em que o jornalista apresenta explicitamente sua opinião acerca de um
fato qualquer; o lide interrogativo, em que o leitor é questionado pelo jornalista
sobre um determinado acontecimento; e o lide com interlocutor determinado, em
que o jornalista produz lides que insiram seu leitor na notícia por meio da
utilização de termos que se dirigem diretamente ao seu leitor.

Para chegarmos a essa idéia, adotamos como fundamentação teórica o


dialogismo interacional proposto por Mikhail Bakhtin, as idéias acerca da função
do leitor de Eco e Maingueneau e discutimos a questão do envolvimento entre os
interlocutores.

Sob essa perspectiva teórica, tivemos embasamento suficiente para analisar


a organização estrutural do lide que não segue a formulação tradicional e esta
análise nos permitiu, então, levantar as estratégias interacionais presentes nesses
lides que visam a construir o envolvimento do leitor na notícia jornalística
impressa.

Posto isso, esperamos ter fornecido uma maior percepção e compreensão


acerca do texto jornalístico impresso da imprensa paulista.
125

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