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Nao Me Podem Magoar - David Goggins
Nao Me Podem Magoar - David Goggins
LUA DE PAPEL
[Uma chancela do grupo Leya]
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
A VERDADE MAGOA
Wilmoth Irving era um novo começo. Até ele ter encontrado a minha mãe e
lhe ter pedido o número de telefone, eu só conhecera infelicidade e conflito.
Quando havia dinheiro, as nossas vidas eram definidas pelo trauma. Livres
do meu pai, vimo-nos submersos pela nossa própria disfunção de síndroma
de stresse pós-traumático e pobreza. Andava no quarto ano quando a minha
mãe conheceu o Wilmoth, um carpinteiro e empreiteiro bem-sucedido de
Indianápolis. Foi atraída pelo sorriso fácil e pelo estilo descontraído. Não
havia violência naquele homem. Permitia-nos respirar fundo. Junto dele,
sentíamos que contávamos com algum apoio, como se, finalmente, alguma
coisa de bom nos estivesse a acontecer.
A minha mãe ria quando estavam juntos. Era um sorriso luminoso e
genuíno. Até caminhava um pouco mais direita. Ele dava-lhe orgulho e
fazia-a sentir-se bonita outra vez. Quanto a mim, Wilmoth converteu-se no
mais próximo de uma figura paterna saudável que eu tive. Não me mimava.
Não me dizia que gostava de mim, nem nenhuma dessas merdas falsas e
sensíveis, mas estava presente. O basquetebol tinha-se tornado uma
obsessão pessoal desde a escola primária. Era o centro da relação com o
meu melhor amigo, Johnny Nichols, e Wilmoth sabia jogar. Ele e eu
estávamos sempre a bater bolas. Ele ensinou-me movimentos, melhorou a
minha disciplina a defender e ajudou-me a desenvolver o salto e
lançamento. Celebrávamos juntos os aniversários e os feriados e, no verão
antes do meu oitavo ano, ele pôs um joelho no chão e pediu à minha mãe
que formalizassem a relação.
Com Wilmoth
Ainda não tínhamos feito a mudança permanente para Indianápolis e ele
tinha passado o dia de Natal connosco em casa dos meus avós, em Brazil.
No dia seguinte, Wilmoth tinha um jogo de basquetebol do seu campeonato
amador e convidou-me para substituir um dos seus companheiros. Eu fiquei
tão entusiasmado que preparei a mala com dois dias de antecipação, mas,
nessa manhã, ele disse-me que afinal não podia ir.
“Desta vez, vais ter de ficar aqui, Pequeno David”, disse-me. Baixei a
cabeça e dei um suspiro. Ele percebeu que eu ficara perturbado e procurou
tranquilizar-me: “A tua mamã vai ter comigo daqui a uns dias, e então
poderemos jogar.”
Fiz que sim com a cabeça, contrariado, mas tinha sido educado a não me
meter nos assuntos dos adultos e sabia que não me era devida uma
explicação ou um jogo de substituição. No alpendre, a minha mãe e eu
vimo-lo afastar-se, em marcha atrás, pelo caminho de acesso, sorrir e fazer
aquele aceno único de despedida com a mão, tão caraterístico dele. Depois,
arrancou.
Foi a última vez que o vimos vivo.
Nessa noite, fez o tal jogo do seu campeonato, como planeado, e depois
regressou sozinho à “casa com os leões brancos”. Ao dar a morada a
amigos, familiares ou distribuidores, era assim que descrevia a sua casa com
estilo de rancho, em que o acesso era enquadrado por duas esculturas de
leões em pedra assentes em pilares. Passou entre os leões e estacionou na
garagem, que tinha acesso direto à casa, inconsciente do perigo que se
aproximava pelas costas. Nunca baixou a porta da garagem.
Há horas que o seguiam, à espreita de uma oportunidade, e quando ele
saiu do carro emergiram das sombras e dispararam à queima-roupa. Foi
atingido cinco vezes no peito. Ao cair no chão da garagem, um assassino
aproximou-se e deu-lhe um último tiro mesmo entre os olhos.
O pai de Wilmoth vivia a uns quarteirões e, na manhã seguinte, ao passar
pelos leões brancos, reparou que a porta da garagem estava aberta e teve o
pressentimento de que havia qualquer coisa errada. Subiu o caminho de
acesso e entrou na garagem, onde desatou aos soluços sobre o corpo do
filho.
Wilmoth tinha apenas 43 anos.
Eu ainda estava em casa da minha avó quando a mãe de Wilmoth
telefonou, momentos mais tarde. A minha avó desligou e chamou-me para o
seu lado, para me dar a notícia. Pensei na minha mãe. Wilmoth fora o seu
salvador. Ela tinha estado a sair da sua concha, a abrir-se, pronta para
acreditar em coisas boas. O que é que isto lhe iria fazer? Não podia Deus
dar-lhe um maldito descanso? A raiva começou a subir aos poucos, mas
depressa tomou conta de mim. Libertei-me da minha avó e dei um soco no
frigorífico, deixando-lhe uma marca.
Conduzimos até nossa casa para ver a minha mãe, que já estava
desesperada por não ter notícias de Wilmoth. Quando chegámos, tinha
acabado de telefonar para casa dele, e ficou desconcertada quando um
detetive a atendeu, mas não estava à espera daquilo que tínhamos para lhe
contar. Nem podia. Vimos a sua confusão enquanto a minha avó se dirigia a
ela, lhe tirava o telefone das mãos e a fazia sentar-se.
Ao princípio, não acreditou em nós. Wilmoth gostava de pregar partidas
e esta era precisamente o género de brincadeira retorcida que ele podia
muito bem engendrar. Mas depois lembrou-se que, dois meses antes,
alguém tinha disparado sobre ele. Ele dissera-lhe, nessa ocasião, que os
tipos não andavam atrás dele e que as balas eram para outra pessoa. Como
só o tinham atingido de raspão, a minha mãe decidiu esquecer o caso. Até
àquele momento, nunca suspeitou que Wilmoth tivesse uma espécie de vida
secreta nas ruas da qual ela nada sabia. A polícia nunca descobriu realmente
por que motivo ele foi baleado e morto. Especulou-se sobre o envolvimento
num negócio obscuro ou que era um caso de drogas que correu mal. A
minha mãe ainda estava em negação ao fazer a mala, mas incluiu um
vestido para o funeral.
Quando chegámos, havia fita amarela da polícia à volta da casa, como se
fosse um presente de Natal errado. Aquilo não era brincadeira nenhuma. A
minha mãe estacionou, passou por baixo da fita e eu segui atrás dela pela
porta da frente. Lembro-me de espreitar para a esquerda para olhar de
relance o local onde Wilmoth tinha sido morto. Ainda havia uma poça de
sangue frio no chão da garagem. Eu era um miúdo de 14 anos a deambular
pelo local de um crime, mas ninguém, nem a minha mãe, nem a família de
Wilmoth, nem a polícia, parecia incomodado por eu andar por ali, a
absorver as vibrações negativas do homicídio do meu quase padrasto.
Por muito estapafúrdio que pareça, a polícia autorizou a minha mãe a
passar essa noite em casa de Wilmoth. Não ficou sozinha, mas com o
cunhado, armado com duas pistolas para o caso de os assassinos
regressarem. Eu acabei por ficar em casa da irmã de Wilmoth, a alguns
quilómetros, no quarto dos fundos; era escura e assustadora e deixaram-me
toda a noite sozinho. A casa tinha um desses móveis de televisão analógica
com 13 canais pré-programados e comandados por um botão. Só três é que
não tinham estática e eu deixei a televisão ligada num canal de notícias
locais. Passavam a mesma gravação a cada meia hora: uma imagem de mim
e da minha mãe a passar por debaixo da fita amarela da polícia, e o corpo de
Wilmoth a ser levado numa maca para uma ambulância, com um lençol a
cobri-lo.
Era uma cena de filme de terror. Eu ali sentado, sozinho, a ver a mesma
coisa vezes sem conta. A minha mente era um disco riscado que ia
deslizando para a escuridão. O nosso passado fora sombrio e, agora, o nosso
futuro de céu azul também tinha ido para o galheiro. Não ia haver alívio
nenhum, seria apenas a minha realidade lixada de sempre a tapar toda a luz.
Cada vez que via aquelas imagens, o meu medo crescia até encher a sala –
mas não conseguia deixar de olhar.
Uns dias depois do funeral de Wilmoth, e logo a seguir ao dia de Ano
Novo, entrei num autocarro da escola em Brazil, no Indiana. Ainda estava
de luto e com a cabeça em tumulto, porque a minha mãe e eu ainda não
decidíramos se ficávamos em Brazil ou se nos mudávamos para
Indianápolis, como planeado. Estávamos num limbo e ela continuava em
estado de choque. Ainda não tinha chorado a morte de Wilmoth. Em vez
disso, esvaziou-se outra vez de emoções. Era como se a dor que tinha
sentido ao longo da vida regressasse à superfície sob a forma de uma ferida
aberta na qual ela desaparecia – e não havia maneira de a alcançar nesse
vazio. Entretanto, a escola estava a começar, por isso eu segui a corrente,
procurando agarrar-me a qualquer farrapo de normalidade que
vislumbrasse.
Mas era difícil. Na maior parte dos dias, ia de autocarro para a escola, e
no primeiro dia do novo período não consegui afastar uma memória que
guardara do ano anterior. Nessa manhã, sentei-me num banco por cima do
pneu traseiro esquerdo, a olhar pela janela, como era costume. Chegámos à
escola e o autocarro encostou ao passeio, mas era preciso esperar que os
veículos à nossa frente avançassem antes de podermos descer. Entretanto,
um automóvel parou ao nosso lado e um miúdo encantador e muito
entusiasmado correu na direção do nosso autocarro com um prato de
bolachas. O condutor não o viu. O autocarro avançou.
Vi o olhar aterrorizado no rosto da mãe segundos antes de um jorro de
sangue salpicar, de repente, a minha janela. A mãe deu um grito de horror.
Ela já não estava ali connosco. Parecia e soava como um animal feroz e
ferido, arrancando literalmente punhados do seu cabelo. Em breve,
ouviram-se sirenes à distância, cada vez mais próximas. O rapazinho tinha
cerca de seis anos. As bolachas eram um presente para o condutor.
Deram-nos ordem para sair do autocarro e, enquanto caminhava ao lado
da tragédia, por alguma razão – chamem-lhe curiosidade humana, chamem-
lhe atração magnética do sombrio pelo sombrio –, espreitei por debaixo do
veículo e vi-o. Tinha a cabeça quase tão plana como uma folha de papel, o
cérebro e o sangue misturavam-se sob a carroceria como óleo derramado.
Essa imagem não me tinha vindo à cabeça uma única vez durante quase
um ano inteiro, mas a morte de Wilmoth despertou-a – e agora, não
conseguia pensar noutra coisa. Tinha passado o limite. Não havia nada que
me importasse. Tinha visto o suficiente para saber que o mundo estava
cheio de tragédia humana e que ela continuaria a acumular-se, aos montões,
até me engolir.
Deixei de ser capaz de dormir na cama. A minha mãe também.
Adormecia no seu cadeirão, em frente da televisão aos berros ou com um
livro nas mãos. Durante um tempo, ainda procurei enroscar-me na cama à
noite, mas acabava por acordar sempre no chão em posição fetal. Desisti e
comecei a dormir ao nível do solo. Talvez por saber que, se encontrasse
conforto no fundo, não poderia cair mais.
Éramos duas pessoas com uma necessidade extrema de um novo começo
e pensámos que ele ia acontecer; por isso, mesmo sem Wilmoth, fizemos a
mudança para Indianápolis. A minha mãe inscreveu-me nos exames de
admissão à escola secundária Cathedral, um colégio privado no centro da
cidade. Como sempre, fiz batota – e fui um cabrãozinho demasiado esperto.
Quando o correio trouxe a carta de admissão e o horário das aulas, no verão
antes do primeiro ano, propunham-me uma lista completa de aulas para
alunos avançados!
Fui abrindo o meu caminho, a fazer batota e a copiar, e consegui entrar
na equipa de basquetebol dos caloiros, que era uma das melhores do seu
nível em todo o estado. Tínhamos vários futuros jogadores universitários e
eu comecei como base. Isso representou um grande estímulo para a minha
confiança, mas não podia desenvolvê-lo porque sabia que era uma fraude
académica. Além disso, o colégio era demasiado caro, por isso a minha mãe
tirou-me do Cathedral ao fim de um ano.
Comecei o segundo ano na secundária North Central, um liceu público
com quatro mil alunos, num bairro maioritariamente negro. No primeiro
dia, apareci vestido como se fosse um rapazinho branco mimado de um
colégio privado. As minhas calças de ganga estavam definitivamente
demasiado apertadas e levava a camisa de colarinho por dentro das calças,
presas com um cinto entrançado. Só não me expulsaram do edifício a fazer
troça de mim porque eu sabia jogar basquete.
Todo este meu segundo ano do liceu andou à volta de ser popular. Mudei
completamente a maneira de vestir, era cada vez mais influenciado pela
cultura do hip hop, e dava-me com rapazes que giravam na órbita de
gangues e delinquentes marginais – o que queria dizer que nem sempre ia à
escola. Um dia, a minha mãe chegou a casa a meio do dia e encontrou-me
sentado à mesa da casa de jantar com aquilo que, na descrição dela, eram
“dez rufias”. Não estava enganada. Ao fim de umas semanas, fez as malas e
voltámos a Brazil, Indiana.
Inscrevi-me na secundária Northview, na semana das provas de
basquetebol, e lembro-me de aparecer à hora de almoço, quando o refeitório
estava cheio. Havia 1200 alunos inscritos em Northview (só cinco eram
negros) e, da última vez que me tinham visto, eu parecia-me muito com
eles. Mas já não.
Apareci com calças cinco tamanhos acima do meu e muito descaídas.
Também vestia um blusão extra largo dos Chicago Bulls e tinha um boné
posto ao contrário e de lado. Em poucos segundos, todos os olhares estavam
postos em mim. Professores, estudantes e pessoal administrativo
observavam-me como se eu pertencesse a uma espécie exótica. Eu era o
primeiro miúdo negro com aspeto de rufião que muitos deles tinham visto
de perto. A minha simples presença tinha feito parar a música. Eu era a
agulha a arrastar pelo vinil, a rasgar todo um novo ritmo, e, como o próprio
hip hop, todos repararam, mas nem todos gostaram. Quanto a mim,
pavoneei-me pelo cenário como se não desse a mínima importância.
Mas era mentira. Eu mostrava todo o género de atitudes arrogantes e
fizera uma entrada completamente descarada, mas, nesse regresso, sentia-
me imensamente inseguro. Buffalo tinha sido como viver num inferno
calcinante. Os meus primeiros anos em Brazil foram uma incubadora
perfeita para o stresse pós-traumático e, antes de me ir embora, recebera
uma dose dupla de trauma por morte. A mudança para Indianápolis fora
uma oportunidade para escapar à tristeza e deixar tudo para trás. As aulas
não eram fáceis para mim, mas tinha feito amigos e desenvolvido um estilo
novo. Agora, ao regressar, parecia suficientemente diferente por fora para
perpetuar essa ilusão de que tinha mudado. Mas, para conseguires mudar,
tens primeiro de trabalhar as tuas merdas. Enfrentá-las e ser honesto. E eu
não tinha feito nada desse trabalho. Continuava a ser um miúdo parvo sem
nada de sólido em que se apoiar – e as provas de basquetebol deram cabo do
resto da confiança que me restava.
No ginásio, obrigaram-me a vestir o equipamento da escola em vez da
minha roupa de exercício mais genérica. Nesse tempo, o estilo estava a
tornar-se largueirão e uns tamanhos acima – e Chris Webber e Jalen Rose
dos Fab Five haveriam de torná-lo famoso, na Universidade de Michigan.
Em Brazil, os treinadores não estavam ao corrente desse estilo. Puseram-me
a jogar basquetebol nuns calções brancos justos que mais pareciam roupa
interior; apertavam-me os tomates, estrangulavam-me as coxas e
assentavam-me mal em todos os sentidos. Vi-me aprisionado no estado de
sonho favorito dos treinadores; uma espécie de bolha temporal de Larry
Bird. O que fazia todo o sentido, porque Larry, a Lenda, era basicamente
um santo padroeiro em Brazil e em todo o Indiana. Na verdade, a filha dele
andava na nossa escola. Éramos amigos. Mas isso não queria dizer que eu
quisesse vestir-me como ele!
Depois, havia o meu comportamento. Em Indianápolis, os treinadores
deixavam-nos dizer asneiras em campo. Se eu fizesse um bom gesto técnico
ou um grande lançamento mesmo na cara de alguém, dizia-lhe qualquer
coisa sobre a mamã ou a namorada. Em Indianápolis, eu tinha apurado bem
as merdas que dizia em campo. E tornei-me muito bom nisso. Era o
Draymond Green da minha escola – e isso fazia parte da cultura de
basquetebol da cidade. Ao regressar à vida rural, senti muito a falta disso.
Quando as provas começaram, eu dominava muito a bola, e se isso irritava
outros miúdos e os fazia ficar mal, eu não deixava de lhes fazer notar isso –
nem aos treinadores. A minha atitude envergonhava os treinadores (que
aparentemente ignoravam que o seu herói, Larry, a Lenda, também foi um
dos grandes de todos os tempos a dizer merda em campo). Não demorou
muito até me tirarem a bola das mãos e me colocarem em posições
avançadas, onde eu nunca jogara. Não me sentia à vontade tão perto do
cesto e o meu jogo mostrava-o. Isso fez-me calar a boca. Entretanto, o
Johnny dominava a cena.
A única coisa boa que me aconteceu nessa semana foi recuperar a minha
amizade com Johnny Nichols. Tínhamos mantido o contacto quando eu
estava longe e as nossas maratonas de duelos um-contra-um estavam de
volta e em grande. Ele era baixinho, mas foi sempre bom jogador – e era
sempre um dos melhores nas provas. Encestava, passava a quem estava
desmarcado e corria pelo campo todo. Não foi surpresa nenhuma ele ser
selecionado para a equipa da escola, mas ficámos os dois em choque por eu
não ter conseguido mais do que ir parar à segunda equipa, e por pouco.
Fiquei devastado. E não foi por causa das provas de basquetebol. Para
mim, esse resultado foi outro sintoma de uma coisa que eu andava a sentir.
Brazil parecia estar igual, era eu que sentia as coisas diferentes. A escola
primária tinha sido complicada em termos académicos, mas embora
fôssemos uma das poucas famílias negras da comunidade, nunca notei ou
senti um racismo palpável. Agora, em adolescente, sentia-o em todo o lado,
e não era por me ter tornado hipersensível. O racismo descarado tinha
estado sempre presente.
Não muito depois de termos regressado a Brazil, o meu primo Damien e
eu fomos a uma festa que era já longe da cidade. Ultrapassámos em muito a
hora limite que nos tinham fixado para regressar. Na verdade, estivemos
acordados toda a noite e, ao nascer do dia, telefonámos à nossa avó para nos
ir buscar e dar boleia para casa.
“Desculpem?…”, disse ela. “Vocês desobedeceram-me, por isso o
melhor que têm a fazer é porem-se a andar.”
Percebemos a mensagem.
Ela vivia a uns 16 quilómetros, por um longo caminho rural, mas lá
fomos caminhando, a dizer piadas e divertidos. Damien vivia em
Indianápolis e vestíamos os dois jeans muito largos e blusões Starter vários
tamanhos acima, que não eram propriamente a norma nas estradas rurais de
Brazil. Ao fim de umas horas, tínhamos percorrido uns 11 quilómetros
quando apareceu na estrada uma camioneta de caixa aberta a vir na nossa
direção. Desviámo-nos para a berma para a deixar passar, ela abrandou e
vimos dois adolescentes na cabine e um terceiro de pé na caixa. O que ia no
lugar de passageiro apontou para nós e gritou pela janela aberta.
“Niggers!”
Não reagimos de maneira exagerada. Baixámos a cabeça e continuámos
a caminhar ao mesmo ritmo, até que escutámos o chaço a parar no alcatrão,
com os travões a guinchar e levantando uma nuvem de pó. Foi então que me
virei e vi sair o tipo que vinha no lugar do passageiro, um campónio com
muito mau aspeto. Empunhava uma pistola. Apontou-a à minha cabeça
enquanto se dirigia para nós, ameaçando-me.
“De que porra de sítio é que vocês são e porque é que vieram a esta porra
desta cidade?!”
Damien continuou estrada fora, enquanto eu olhei fixamente nos olhos o
tipo com a pistola, em silêncio. Ele chegou a menos de um metro de mim.
Uma ameaça de violência não é muito mais real do que isto. Senti arrepios,
mas recusei-me a fugir ou a acobardar-me. Ao fim de uns segundos, ele
regressou à carrinha e foram-se embora a toda a velocidade.
Não foi a primeira vez que ouvi aquela palavra. Não muito tempo antes,
estava eu num Pizza Hut com o Johhny e com duas raparigas, incluindo
uma ruiva de que eu gostava, chamada Pam. Ela também gostava de mim,
mas nunca fizemos nada quanto a isso. Éramos dois jovens inocentes que
desfrutavam da companhia um do outro, mas, um dia, o pai dela foi buscá-
la e apanhou-nos juntos; a Pam viu-o e ficou branca como cal.
Ele irrompeu pelo restaurante cheio e caminhou decidido para a nossa
mesa, com todos a olharem. Nunca se dirigiu a mim. Só olhou a filha nos
olhos e disse-lhe: “Nunca mais te quero ver com este preto.”
Ela apressou-se a sair, atrás do pai, vermelha de vergonha, enquanto eu
fiquei sentado, paralisado, a olhar para o chão. Tinha sido o momento mais
humilhante da minha vida. Doeu-me muito mais do que o incidente da
pistola por ser em público – e por a palavra ter sido cuspida por um adulto.
Eu não percebia nem como nem porquê podia ele estar tão cheio de ódio, e,
se ele sentia dessa maneira, quantas mais pessoas em Brazil não
partilhavam essa opinião sempre que me viam andar pela rua? Não é o
género de enigma que se queira resolver.
***
Se não me virem, não me chamarão nada. Foi assim que funcionei
durante o meu segundo ano na secundária, em Brazil, Indiana. Escondia-me
nas últimas filas das salas de aulas, deslizava pela cadeira e procurava
sempre passar despercebido, fosse qual fosse a disciplina. Nesse ano, era
obrigatório aprender uma língua estrangeira, o que para mim era estranho.
Não por não reconhecer que isso era importante, mas porque eu mal sabia
ler inglês, quanto mais compreender espanhol. Ao fim de uns oito anos
completos a fazer batota, a minha ignorância tinha cristalizado. Ia passando
de ano, como era esperado de mim, mas não tinha aprendido nada de nada.
Era um daqueles miúdos que pensa que está a enganar o sistema e, na
verdade, esteve todo o tempo a enganar-se a si mesmo.
Uma manhã, mais ou menos a meio do ano escolar, entrei na aula de
espanhol e peguei no manual que estava numa estante. Passar sem estudar
implicava toda uma técnica, Não tinha de prestar atenção, mas tinha de
fingir que sim, por isso afundei-me na cadeira, abri o livro e olhei fixamente
para a professora.
Quando abri o livro, toda a sala ficou em silêncio. Pelo menos para mim.
Os lábios da professora continuavam a mexer-se, mas eu não ouvia nada,
porque a minha atenção se concentrava em absoluto na mensagem deixada
para mim – e só para mim.
Cada aluno tinha o seu manual próprio nessa disciplina e o meu nome
estava escrito no canto superior direito da capa. Por isso era fácil saber que
era o meu. Debaixo da mensagem, alguém tinha feito um desenho de mim
numa forca. Era rudimentar, como naquele jogo que costumávamos fazer
em crianças. Por baixo, estavam as palavras.
“Niger, vamos matar-te!”
Tinham escrito mal a palavra, mas eu nem fazia ideia. Eu mal conseguia
soletrar – e talvez tivessem querido sublinhar isso. Passei os olhos pela aula,
enquanto a minha fúria crescia como um furacão, até eu sentir literalmente
os ouvidos a zumbir. Eu não devia estar aqui, pensei. Não devia ter voltado
para Brazil!
Fiz uma lista de todos os incidentes por que já tinha passado e pensei que
não seria capaz de aguentar muito mais. A professora ainda estava a falar
quando me levantei sem avisar. Chamou-me pelo nome, mas eu não ouvia
nada. Saí da aula de livro na mão e corri para o gabinete do diretor. Estava
tão furioso que nem parei na receção. Entrei de rompante e atirei a prova
para cima da secretária dele.
“Estou farto desta merda”, disse.
Kirk Freeman era o diretor e ainda hoje se recorda de ter erguido os
olhos da secretária e de ter visto lágrimas nos meus olhos. Não era mistério
nenhum o porquê de toda esta merda estar a acontecer em Brazil. O sul do
Indiana foi sempre um viveiro de racistas e ele sabia isso muito bem.
Quatro anos depois, em 1995, o Ku Klux Klan faria uma marcha pela rua
principal de Brazil, no dia da Independência, todos encapuzados e vestidos
a rigor. O KKK era ativo em Center Point, uma localidade que ficava a não
mais de 15 minutos, e havia miúdos de lá que frequentavam a nossa escola.
Alguns sentavam-se atrás de mim na aula de História e diziam piadas
racistas, dirigidas a mim, dia após dia. Eu não estava à espera que fosse
aberta uma investigação para descobrir quem tinha escrito aquilo. Acima de
tudo, naquele momento, eu procurava um pouco de compaixão; vi no olhar
do diretor Frank que ele se sentia mal por causa do que eu estava a passar,
mas que não sabia o que fazer. Não sabia como havia de me ajudar.
Examinou o desenho e a mensagem durante um bom bocado, depois
levantou os olhos e fitou-me, pronto a consolar-me com as suas palavras de
sabedoria.
“David, isto é ignorância pura”, disse. “Nem sequer sabem escrever
nigger.”
Tinham-me ameaçado de morte e ele não era capaz de mais do que isto?!
Nunca esquecerei a solidão que senti ao sair do gabinete dele. Era
assustador pensar que havia tanto ódio à solta pelos corredores e que
alguém, que eu nem sabia quem era, queria ver-me morto por causa da cor
da minha pele. Uma pergunta continuava às voltas na minha cabeça: quem é
que raio me odeia desta maneira? Não fazia ideia de quem era o meu
inimigo. Seria um dos campónios da minha aula de História ou era alguém
que eu considerava meu amigo, mas que, na verdade, não gostava de mim
nem um bocadinho? Uma coisa era olhar para o cano de uma pistola no
meio de uma estrada, ou lidar com um pai racista. Pelo menos essa merda
era honesta. Mas não saber quem é que, na minha escola, pensava dessa
maneira era totalmente diferente e eu não era capaz de tirar isso da cabeça.
Embora tivesse muitos amigos, todos eles brancos, não conseguia deixar de
ver o racismo escondido e gravado nas paredes com tinta invisível, o que
tornava extremamente difícil carregar o fardo de ser o único.
Manifestação do KKK, j62
em Center Point, em 1995 – Center Point fica a 15
minutos da minha casa, em Brazil
Quase todas, ou todas, as minorias nos Estados Unidos, juntamente com
as mulheres e as pessoas gay, conhecem bem esse vírus da solidão. Como é
entrar em salas onde és o único do teu tipo. A maioria dos homens brancos
não faz ideia de como pode ser difícil. Desejo que soubessem. Porque
saberiam então como é esgotante. Como, em certos dias, a única coisa que
se quer fazer é ficar em casa, estendido na cama, porque sair a público
implica estar completamente exposto, vulnerável a um mundo que está
sempre a avaliar-te e a julgar-te. Pelo menos a sensação é essa. A verdade é
que não se pode ter uma certeza absoluta de quando é que isto está a
acontecer num dado momento. Mas sente-se com frequência que é assim, o
que é só por si uma espécie de tortura mental. Em Brazil, onde quer que
fosse, eu era o único. À mesa no refeitório, com Johnny e o nosso grupo.
Em todas as aulas. Até no maldito ginásio de basquetebol.
No fim desse ano letivo, fiz 16 anos e o meu avô comprou-me um Chevy
Citation usado, de cor castanho cocó. Logo numa das primeiras manhãs em
que o conduzi para a escola, alguém pintou com spray a palavra nigger na
porta do lado do condutor. Desta vez, escreveram sem erro – e o diretor
Freeman ficou de novo sem palavras. A fúria que fervilhava em mim, nesse
dia, era indescritível, mas não irradiava para o exterior. Destroçava-me a
partir de dentro, porque ainda não tinha aprendido o que fazer com todas
essas emoções ou como as canalizar.
Devia andar à luta com todos? Já fora suspenso três vezes por me
envolver em zaragatas, e andava numa fase em que estava quase insensível
a tudo. Em vez de ir por aí, fechei-me em mim e caí no poço do
nacionalismo negro. Malcolm X tornou-se o meu profeta preferido. Todos
os malditos dias, ao chegar a casa vindo da escola, via um vídeo de um dos
seus primeiros discursos. Procurava encontrar conforto em algum lado e a
forma como ele analisava a história e transformava em raiva o desespero
dos negros era um alimento para mim, embora não percebesse a maior parte
das suas filosofias políticas e económicas. Aquilo com que eu me
relacionava era com a sua raiva para com um sistema feito por e para
brancos, porque eu vivia no meio de uma névoa de ódio, aprisionado na
minha própria fúria e ignorância estéreis. Mas eu não era o tipo certo para a
Nação do Islão. Para essa merda era preciso ter disciplina – e eu não tinha
nada disso.
Em vez disso, no meu terceiro ano, fiz tudo o que podia para chatear.
Tornei-me o estereotipo perfeito do que os racistas brancos detestavam e
temiam. Usava sempre as calças abaixo do rabo. Liguei de forma
rudimentar a aparelhagem do carro a colunas de som que ocuparam toda a
mala do meu Citation. As janelas tremiam quando eu passava pela rua
principal de Brazil, com Gin and Juice, de Snoop, no volume máximo.
Forrei o volante com três tapetes de pelo comprido e pendurei no retrovisor
um par de dados de peluche. Todas as manhãs, antes de ir para as aulas,
olhava-me ao espelho da casa de banho e pensava em novas maneiras de dar
cabo da cabeça aos racistas do liceu.
Até inventei penteados extravagantes. Uma vez até fiz um “risco ao
contrário” – rapei o cabelo todo e só deixei uma linha finíssima no lado
esquerdo do crânio. Não é que eu fosse impopular. Até era visto como o
miúdo negro cool da cidade, mas quem tivesse a preocupação de ir um
pouco mais fundo perceberia que a minha identidade não tinha nada que ver
com cultura negra e que as minhas ações não procuravam realmente
desafiar o racismo. Eu não tinha propósito algum.
Tudo o que fazia era para provocar uma reação das pessoas que mais me
odiavam, porque as opiniões que os outros tinham sobre mim me
importavam – o que é uma maneira de viver muito superficial. Eu estava
cheio de dor, não tinha um propósito real e alguém que observasse de longe
teria a impressão de que eu renunciara a qualquer hipótese de êxito. Que
estava a encaminhar-me para o desastre. Mas não tinha abandonado toda a
minha esperança. Restava-me mais um sonho.
Queria entrar na Força Aérea.
O meu avô tinha sido cozinheiro na Força Aérea durante 37 anos e tinha
tanto orgulho nesses anos de serviço que, já depois de reformado,
continuava a vestir a farda para ir à missa de domingo e usava o uniforme
do dia a dia só para estar sentado no maldito alpendre sem fazer nada. Foi
esse orgulho que me motivou a inscrever-me na Patrulha Aérea Civil, um
corpo civil auxiliar da Força Aérea. Reuníamo-nos uma vez por semana,
desfilávamos em formação e aprendíamos com oficiais sobre as várias
funções existentes na Força Aérea – e foi assim que fiquei fascinado com o
corpo de Para-resgate, os tipos que saltam de aviões em paraquedas para ir
em socorro de pilotos cujos aviões foram derrubados.
No verão antes do meu primeiro ano, fiz uma formação de uma semana
chamada Curso de Orientação em Salto de Para-resgate. Como
habitualmente, eu era o único. Um dia, apareceu para nos falar um elemento
da unidade, chamado Scott Gearen – e apareceu com uma história do
catano. Durante um exercício de rotina, num salto de quase quatro mil
metros, Gearen abriu o paraquedas quando tinha outro companheiro
imediatamente por cima. Não era nada de extraordinário. Ele tinha o direito
de passar primeiro e, de acordo com o treino que tinham recebido, fez um
gesto com a mão ao outro para que se afastasse. Só que o tipo não o viu e
Gearen ficou numa situação de perigo grave: o tipo que vinha acima
continuava em queda livre, sulcando o ar a quase 200 quilómetros por hora.
Ainda se colocou em posição bala de canhão, abraçado aos joelhos, para
tentar evitar Gearen, mas não resultou. Gearen não fazia ideia do que ia
acontecer. O seu companheiro atravessou o seu paraquedas, fazendo-o
colapsar com o choque e, depois, acertou-lhe em cheio na cara com os
joelhos. Ficou inconsciente instantaneamente e voltou a entrar em queda
livre, já que o paraquedas esmagado oferecia muito pouca resistência. O
outro conseguiu abrir o paraquedas e sobreviveu com ferimentos ligeiros.
Gearen, na verdade, não aterrou. Ressaltou três vezes, como se fosse uma
bola de basquetebol vazia. Por se encontrar inconsciente, o seu corpo estava
morto e, por isso, não se despedaçou, apesar de ter embatido no solo a uma
velocidade de 160 quilómetros por hora. Morreu duas vezes na mesa de
operações, mas das duas vezes os médicos das Urgências ressuscitaram-no.
Acordou numa cama de hospital e ouviu que nunca recuperaria plenamente
nem voltaria a ser paraquedista de resgate. Dezoito meses depois,
desafiando os prognósticos médicos, a recuperação fora completa e ele
estava de volta ao trabalho que adorava.
Scott Gearen depois do seu acidente
Esta história obcecou-me durante anos, porque ele tinha sobrevivido ao
impossível – e essa sobrevivência tinha impacto em mim. Depois do
assassínio de Wilmoth, com todas as provocações racistas a choverem sobre
a minha cabeça (não vou maçá-lo com todos os episódios, só quero que
saiba que houve muitos mais), eu sentia-me em queda livre e sem nenhum
cabrão de um paraquedas. Gearen era uma prova viva de que é possível
superar tudo aquilo que não te mate – e desde o momento em que o ouvi
falar soube que, depois de me formar, iria alistar-me na Força Aérea, o que
só tornava o liceu ainda mais irrelevante.
Em especial depois de ser corrido da equipa principal de basquetebol, no
terceiro ano da secundária. Não me afastaram por falta de capacidade. Os
treinadores sabiam que eu era um dos melhores jogadores que tinham e que
adorava jogar. Johnny e eu estávamos sempre a bater bolas, noite e dia.
Toda a nossa amizade assentava no basquetebol, mas como eu estava
zangado com os treinadores por me terem atirado para a equipa B no ano
anterior, não fui aos treinos de verão, e eles interpretaram isso como uma
falta de compromisso para com a equipa. Não lhes importou, ou não
perceberam, que, ao tirarem-me da equipa, estavam a eliminar o único
incentivo que eu tinha para manter a média escolar – o que eu, de qualquer
modo, só conseguia copiando. Agora, não tinha nenhuma boa razão para ir à
escola. Pelo menos, era isso que pensava, porque não fazia ideia da
importância que os militares atribuem à educação. Eu supunha que eles
aceitavam qualquer um. Dois episódios convenceram-me do contrário e
motivaram-me a mudar.
O primeiro foi quando chumbei na Série de Provas de Aptidão
Vocacional das Forças Armadas (ASVAB, na sigla inglesa), no terceiro ano
da escola secundária. A ASVAB é a versão das forças armadas dos exames
académicos de admissão às universidades. É um teste-padrão que permite
ao exército avaliar, em simultâneo, o conhecimento atual e o potencial de
aprendizagem dos candidatos. E eu apresentei-me a essa prova preparado
para fazer aquilo que sabia melhor: copiar. Durante anos tinha andado a
copiar em todos os exames, em todas as disciplinas, mas ao sentar-me para
fazer a ASVAB fiquei baralhado: os que estavam à minha esquerda e à
minha direita tinham exames diferentes do meu. Ou seja, tinha que fazer o
teste sozinho e obtive um total de 20 pontos, em 99 possíveis. O mínimo
necessário para ingressar na Força Aérea é apenas de 36 pontos e eu nem aí
cheguei.
O segundo sinal de que precisava de mudar chegou com um selo dos
correios, logo antes das férias de verão, a seguir ao terceiro ano na
secundária. A minha mãe ainda se encontrava no buraco negro emocional
onde caíra depois da morte de Wilmoth, e o seu mecanismo para lidar com
isso era manter-se ocupada o mais possível. Trabalhava a tempo inteiro na
Universidade DePauw e dava aulas à noite na Universidade Estatal de
Indiana, porque se parasse a sua azáfama o tempo suficiente para pensar,
dar-se-ia conta da realidade da sua vida. Mantinha-se atarefada, nunca
estava em casa e nunca me perguntava pelas notas. Depois do primeiro
semestre do terceiro ano do liceu, lembro-me de como o Johnny e eu
levámos para casa péssimas notas, só Fs e Ds. Passámos horas a falsificá-
las. Transformávamos os Fs em Bs e os Ds em Cs – e fazíamos isto a rir à
gargalhada. Lembro-me até de sentir um orgulho perverso por ter notas
falsificadas para mostrar à minha mãe, mas ela nem me pedia para as ver.
Acreditava na minha maldita palavra.
Notas do terceiro ano da preparatória
Fazíamos vidas paralelas na mesma casa, e como eu estava mais ou
menos a criar-me sozinho, deixei de a ouvir. Na verdade, cerca de dez dias
antes de a carta chegar, ela pôs-me fora porque eu me recusei a regressar a
casa de uma festa antes da hora limite que ela impôs. E ela disse-me, que se
não respeitasse essa hora, o melhor era nem voltar de todo.
Na minha cabeça, eu já vivia entregue a mim há vários anos. Cozinhava
as minhas refeições e lavava a minha roupa. Não estava aborrecido com ela.
Eu era arrogante e pensava que já não precisava mais dela. Nessa noite,
fiquei mesmo fora e, na semana e meia seguinte, dormi em casa do Johnny
ou de outros amigos. Chegou inevitavelmente o dia em que gastei o último
dólar. Por sorte, a minha mãe telefonou-me nessa manhã para casa do
Johnny para me dizer que tinha chegado uma carta da escola. Dizia que eu
tinha perdido quase um quarto do ano escolar por causa de faltas
injustificadas, que a minha média era D e que, a menos que mostrasse uma
melhoria importante nas notas e na assiduidade, não me formaria. Não se
mostrou demasiado emotiva. Estava mais exausta do que exasperada.
“Eu vou aí a casa buscar a carta”, disse-lhe.
“Não é preciso”, respondeu. “Só queria que soubesses que estás a
caminho de chumbar.”
Apareci-lhe à porta umas horas mais tarde, com o estômago a rosnar de
fome. Não pedi perdão e ela não me exigiu um pedido de desculpas.
Limitou-se a deixar a porta aberta e a sair da frente. Eu fui para a cozinha e
preparei uma sanduíche de manteiga de amendoim e marmelada. Sem dizer
uma palavra, ela entregou-me a carta. Li-a no meu quarto, onde as paredes
estavam forradas com posters do Michael Jordan e de operações especiais
das forças armadas. Eram a inspiração para paixões gémeas que se me
escapavam por entre os dedos.
Nessa noite, depois de tomar um duche, limpei o vapor do corroído
espelho da casa de banho e olhei bem para mim. Não gostei da pessoa que
vi a olhar para mim. Era um rufia de segunda categoria, sem propósito e
sem futuro. Senti-me tão desgostoso que tive vontade de dar um murro na
cara àquele cabrão e desfazer o espelho em pedaços. Mas, em vez de fazer
isso, dei-lhe um sermão. Chegara o momento de abrir os olhos.
“Olha para ti”, disse. “Por que razão há de a Força Aérea querer um gajo
todo lixado como tu? Não representas nada. És uma vergonha.”
Peguei na espuma da barba, apliquei uma camada fina sobre a cara, pus
uma lâmina nova e continuei a falar enquanto me barbeava.
“És um sacana idiota. Não lês melhor do que um miúdo do terceiro ano.
És uma piada, tu! Nunca te esforçaste por nada na vida, para além do
basquetebol. Tens algum objetivo, tu? Dás vontade de rir.”
Depois de tirar a barba de adolescente, pus creme de barbear na cabeça.
Estava desesperado por mudar. Queria tornar-me uma nova pessoa.
“Não vês ninguém na tropa com as calças descaídas. Tens de deixar de
falar como um imitador de gangsters. Não podes continuar a fazer essas
merdas! Acabou-se essa cena de escolher o caminho fácil! Já é tempo de
cresceres de uma vez, porra!”
O vapor formava nuvens à minha volta. Espalhava-se pela pele e emergia
desde a minha alma. O que tinha começado como uma sessão espontânea de
catarse tinha-se tornado uma intervenção sobre a minha pessoa.
“Depende só de ti”, continuei. “Sim, eu sei que esta merda toda é lixada.
Sei pelo que tens passado. Eu estava lá, cabrão! Não vai aparecer ninguém
para te salvar o couro! Nem a tua mãezinha nem o Wilmoth. Ninguém! Só
depende de ti!”
Quando acabei de falar, tinha o crânio completamente liso. A água
lançava pérolas sobre o meu couro cabeludo, que escorriam pela testa e
caíam pela cana do nariz. Parecia diferente e, pela primeira vez, tinha feito
recair sobre mim a responsabilidade das coisas. Nascera um novo ritual, que
permaneceria comigo durante anos. Ia ajudar-me a subir as notas, a manter
em forma o meu desgraçado corpo e levar-me a acabar o curso para poder
entrar na Força Aérea.
O ritual era simples. Todas as noites, barbeava a cara e a cabeça, falava
em voz alta – e falava verdade. Definia metas, escrevia-as em notas post-it e
colava-as naquilo a que chamo agora o Espelho da Responsabilidade,
porque todos os dias cobrava a mim mesmo alcançar os objetivos que tinha
definido. Ao princípio, esses objetivos envolviam melhorar a minha
aparência e fazer todos os meus deveres sem terem de me pedir.
Faz a cama todos os dias como se estivesses no exército!
Puxa as calças para cima!
Rapa a cabeça todas as manhãs!
Corta a relva!
Lava a loiça!
O Espelho da Responsabilidade manteve-me focado daí em diante. Ainda
era jovem quando me ocorreu essa estratégia, mas desde esse momento
tenho encontrado utilidade nela para pessoas em qualquer fase da vida. Pode
ser alguém à beira da reforma ou em busca de uma maneira de se reinventar.
Ou alguém que passa pelo fim de uma relação ou talvez tenha ganho peso.
Que talvez esteja permanentemente incapacitado, a tentar superar uma lesão
ou apenas a compreender quanta da sua vida desperdiçou sem ter um
propósito. Em todos os casos, esses pensamentos negativos que sente
representam o desejo interior de mudança, mas a mudança não é fácil, e a
razão pela qual este ritual funcionou tão bem para mim foi por causa da
assertividade.
Não era nada meigo. Era cru, porque essa era a única maneira de eu
perceber. Nesse verão, antes de fazer o último ano do liceu, eu tive medo.
Sentia-me inseguro. Não era um miúdo esperto. Ao longo da adolescência,
tinha ignorado tudo o que tivesse a ver com responsabilidade, enquanto
pensava que estava a enganar todos os adultos à minha volta – e a enganar o
sistema. Tinha-me aprisionado num ciclo de feedback negativo de copianço
e batota que, à superfície, até podia ser visto como um avanço, até que
choquei de frente com uma porra de uma parede de tijolo chamada
realidade. Nessa noite, ao regressar a casa e ao ler a carta da escola, não
havia maneira de negar a verdade – e eu disse-a a mim mesmo, com toda a
dureza.
Não me pus aos saltinhos e a dizer “Então, David, não andas a levar a tua
educação muito a sério…”. Não, eu tinha de falar de uma forma crua,
porque a única maneira de conseguirmos mudar é sermos verdadeiros
connosco. Se não sabemos uma merda de coisa nenhuma e nunca levámos a
escola a sério, então é preciso afirmar, sem rodeios: “Sou um ignorante!” É
preciso dizermos a nós próprios que temos de mexer o rabo e bulir, porque
estamos a ficar para trás na vida!
Se olhar para o espelho e vir uma pessoa gorda, não diga a si mesmo que
precisa de perder um par de quilos. Diga a verdade: está gordo como a
merda! É isso. Se estiver gordo, diga que está gordo. Esse maldito espelho
onde se olha todos os dias diz-lhe sempre a verdade, por isso porque é que
ainda mente a si mesmo? Para se poder sentir melhor mais uns minutos e
ficar exatamente igual? Se é gordo, precisa de mudar, porque é pouco
saudável como tudo. Eu sei. Já aí estive.
Se trabalha há trinta anos a fazer a mesma merda que detesta dia após
dia, porque tem medo de se demitir e arriscar, então tem andado a viver
como um cobarde. Ponto final, é assim. Diga a verdade! Diga que já
desperdiçou tempo suficiente e que tem outros sonhos que precisarão de
coragem para serem concretizados, para não morrer como um maldito
cobarde.
Grite consigo!
Ninguém gosta de ouvir a terrível verdade. Individualmente e como
sociedade evitamos aquilo que mais precisamos de ouvir. Este mundo está
lixado, a nossa sociedade tem problemas gravíssimos. Continuamos a
dividir-nos segundo linhas raciais e culturais e as pessoas não têm tomates
para ouvir isso! A verdade é que o racismo e a intolerância continuam a
existir e algumas pessoas são tão hipersensíveis que se recusam a admiti-lo.
Até hoje, em Brazil, há muitas pessoas que afirmam não haver racismo na
sua pequena cidade. É por isso que tenho de dar crédito a Kirk Freeman.
Telefonei-lhe na primavera de 2018, e ele lembrava-se muito claramente
daquilo por que eu tinha passado. É um dos poucos que não tem medo da
verdade.
Mas quando se é o único, e não se está aprisionado numa espécie de
quinta dimensão genocida do mundo real, o melhor é abrir os olhos. A tua
vida não está lixada por causa de pessoas abertamente racistas ou do
racismo sistémico oculto. Não estás a desperdiçar ocasiões, a ganhar uma
merda ou a ser despejado de casa por culpa dos Estados Unidos ou do
cabrão do Donald Trump ou porque os teus antepassados foram escravos ou
porque há pessoas que odeiam imigrantes, ou judeus, ou assediam mulheres
ou acreditam que os gays vão para o inferno. Se há alguma destas merdas
que o impede de prosperar na vida, então tenho uma novidade para lhe dar:
Você é que se está a impedir a si mesmo!
Está a desistir, em vez de se tornar mais forte! Diga a verdade sobre as
razões autênticas para as suas limitações e poderá transformar esse
pensamento negativo, que é real, em combustível para avião a jato. As
probabilidades alinhadas contra si vão transformar-se numa rampa de
lançamento!
Não há mais tempo a perder. As horas e os dias evaporam-se como fios
de água no deserto. É por isso que é adequado mostrar-se cruel e duro
consigo sempre que perceber que está a fazer isso, para se tornar uma
pessoa melhor. Todos precisamos de uma pele mais grossa para prosperar na
vida. Ser brando consigo quando se olha ao espelho não vai inspirar as
mudanças maciças necessárias para mudar o presente e abrir o futuro.
Na manhã seguinte a essa primeira sessão com o Espelho da
Responsabilidade, atirei para o lixo as capas felpudas do volante do carro e
os dados em peluche. Pus a camisa por dentro das calças e usei-as com um
cinto; e, quando as aulas recomeçaram, deixei de almoçar na mesa habitual.
Pela primeira vez, passei a considerar que ser aceite e ter um
comportamento fixe eram uma perda do meu tempo e, em vez de comer
com os miúdos mais populares, encontrei a minha própria mesa e comi
sozinho.
É preciso sublinhar que o resto do meu progresso não pode ser descrito
como uma metamorfose instantânea, do género “se piscares os olhos vais
perder o que se passou”. A deusa fortuna não me apareceu de repente,
preparou-me um banho quente e beijou-me como se me amasse. Na
verdade, a única razão pela qual não me tornei apenas mais uma estatística é
porque, no derradeiro momento, me lancei ao trabalho.
Durante o meu último ano de liceu, tudo o que me importava era fazer
exercício físico, jogar basquetebol e estudar – e foi o Espelho da
Responsabilidade que me manteve motivado para continuar em busca de
algo melhor. Acordava antes do nascer do Sol e comecei a ir ao ginásio do
YMCA na maior parte dos dias, antes das cinco da manhã, para treinar
pesos. Estava sempre a fazer corrida, em geral à volta de um campo de golfe
local, depois de escurecer. Houve uma noite em que corri vinte quilómetros
– foi o máximo que já tinha feito na vida. Dessa vez, cheguei a um
cruzamento familiar. Era na estrada em que o campónio me tinha apontado
uma arma. Evitei passar por lá, continuei a correr, e ainda fiz quase um
quilómetro na direção contrária, antes de qualquer coisa me dizer para
voltar para trás. Cheguei ao cruzamento pela segunda vez, parei e olhei. Eu
tinha um medo de morte daquela estrada, o coração estava aos saltos no
meu peito – e foi exatamente por isso que, de repente, comecei a correr a
toda a velocidade pelo maldito alcatrão.
Segundos depois, dois cães agressivos soltaram-se e perseguiram-me
enquanto o bosque se ia adensando dos dois lados da estrada. A única coisa
que podia fazer era correr à frente dos animais. Continuei à espera que a
camioneta de caixa aberta aparecesse e me atropelasse, como se
estivéssemos no Mississípi, por volta de 1965, mas corri e corri, cada vez
mais depressa, até ficar sem fôlego. Os cães dos infernos acabaram por se
cansar e desistiram. Fiquei só eu, o ritmo e o bafo da minha respiração, e o
silêncio do campo. Era purificador. Quando regressei, o meu medo tinha
desaparecido. Eu era o dono da puta daquela estrada.
A partir daí fiz uma lavagem ao meu próprio cérebro para aprender a
apreciar o desconforto. Se começava a chover, eu ia correr. Se começava a
nevar, a minha mente dizia-me: “Vai calçar a merda das sapatilhas.” Às
vezes, fraquejava e tinha de lidar com isso no Espelho da Responsabilidade.
Mas enfrentar o espelho, enfrentar-me a mim, motivava-me a lutar através
das experiências incómodas. Em resultado disso, tornei-me mais duro. E ser
duro e resiliente ajudaram-me a alcançar os meus objetivos.
Para mim, não havia nada mais difícil do que aprender. A mesa da
cozinha transformou-se na minha sala de estudo todo o dia e toda a noite.
Depois de ter chumbado na ASVAB uma segunda vez, a minha mãe
percebeu que eu estava a falar a sério em relação à Força Aérea e procurou
um explicador que me conseguisse ajudar a encontrar um sistema que eu
pudesse usar para aprender. Esse sistema era a memorização. Eu não
conseguia aprender tomando apontamentos e aprendendo-os de cor. Eu
tinha de ler um manual e escrever cada página no meu caderno. E repetir
isso uma segunda vez – e uma terceira. Era assim que o conhecimento se
fixava ao espelho da minha mente. Não pela aprendizagem, mas por
transcrição, memorização e capacidade de recordar.
Fiz isso na disciplina de Inglês. E em História. Escrevi e memorizei
fórmulas de Álgebra. Se o meu explicador estivesse comigo uma hora, eu
tinha de olhar para as notas dessa sessão durante seis horas para conseguir
memorizar tudo. O horário da minha sala de estudos pessoal e os meus
objetivos tornaram-se notas post-it no meu Espelho da Responsabilidade.
Adivinhe o que aconteceu? Desenvolvi uma obsessão por aprender.
Em seis meses, passei de ter um nível de leitura de um miúdo do quarto
ano para um de finalista do liceu. O meu vocabulário cresceu de forma
exponencial. Escrevi milhares de fichas e revi-as durante horas, dias e
semanas. Fiz o mesmo com fórmulas matemáticas. Em parte, foi por
instinto de sobrevivência. Tinha uma grande certeza de que não ia entrar na
universidade com base nas minhas qualificações e, embora nesse último ano
já estivesse na equipa principal de basquetebol, não havia nenhum “olheiro”
de equipas universitárias que soubesse o meu nome. Tudo o que eu sabia era
que tinha de ir-me embora de Brazil, Indiana; que a tropa era a minha
melhor oportunidade; e que para lá chegar tinha de passar na ASVAB. À
terceira tentativa, alcancei os mínimos para ingressar na Força Aérea.
Viver com um propósito mudou tudo para mim – pelo menos no curto
prazo. Durante o último ano no liceu, estudar e fazer exercício deram tanta
energia à minha mente que o ódio se desprendia da minha alma como
escamas, como uma serpente a mudar de pele. Todo o ressentimento que
tinha em relação aos racistas de Brazil, a emoção que me tinha dominado e
queimado por dentro, dissipou-se, porque finalmente percebi qual era a sua
maldita origem.
Olhei para as pessoas que me estavam a fazer sentir incómodo e percebi
como elas se sentiam desconfortáveis na sua pele. Fazer pouco de alguém,
ou tentar intimidar alguém que nem sequer conheciam, com base
unicamente numa questão racial era uma indicação clara de que havia
qualquer coisa de muito errado com elas, não comigo. Mas sem
autoconfiança torna-se fácil valorizar as opiniões de outras pessoas – e eu
estava a dar valor às opiniões de todos, sem ter em atenção as mentes que as
geravam. Parece idiota, mas é muito fácil cair nesta armadilha, em especial
quando, além de seres o único, és inseguro. Logo que fui capaz de
estabelecer essa relação, passei a ver como era uma perda de tempo estar
enfurecido com essas pessoas. Porque, se ia dar-lhes um pontapé no cu, e
era isso mesmo que queria, havia muitas malditas coisas que tinha de fazer.
Cada insulto ou gesto de desdém transformava-se em mais combustível para
o motor que acelerava dentro de mim.
Ao terminar o liceu, sabia que a confiança que tinha conseguido
desenvolver não era o resultado de uma família perfeita ou de um talento
dado por Deus. Vinha de uma responsabilização pessoal, que me trouxe
respeito próprio – e o respeito por nós vai sempre iluminar um caminho que
se abre à nossa frente.
No meu caso, iluminou-me um caminho para sair de Brazil – para
sempre. Mas não saí sem mácula. Quando transcendes um lugar no tempo
que te desafiou até ao âmago, a sensação pode ser a de que se ganhou uma
guerra. Mas não se deve cair nessa ilusão. O nosso passado, os nossos
medos mais profundos, sabem como ficar adormecidos antes de voltarem a
emergir na nossa vida com o dobro da força. É preciso manter a vigilância.
No meu caso, a Força Aérea revelou que eu ainda era frágil por dentro.
Ainda era inseguro.
Ainda não era forte – de ossos e de mente.
DESAFIO #2
É chegado o momento de fazer um frente-a-frente consigo e de ser franco e
verdadeiro. Isto não é uma tática de autoestima. Não pode ser superficial.
Não faça festas ao seu ego. Trata-se aqui de abolir o ego e de dar o primeiro
passo para se tornar o seu eu autêntico!
Eu colei notas post-it no meu Espelho da Responsabilidade e vou pedir-
lhe que faça o mesmo. Os dispositivos digitais não servem. Escreva em
post-its todas as suas inseguranças, sonhos e objetivos e cole-os no seu
espelho. Se precisa de mais educação, recorde-se de que precisa de começar
a trabalhar, porque não é suficientemente esperto! Ponto final, é assim. Se
olhar para o espelho e vir alguém que tem obviamente peso a mais, isso
significa que está estupidamente gordo! Assuma isso! Não há problema em
ser cruel consigo nestes momentos porque precisamos de uma pele mais rija
para progredir na vida.
Seja um objetivo de carreira (despedir-se de um trabalho, abrir um
negócio), seja uma meta de estilo de vida (perder peso, fazer mais exercício)
ou atlético (correr os primeiros cinco quilómetros, ou dez, ou uma
maratona), precisa de ser honesto consigo em relação a onde está e a quais
são os passos que serão necessários para alcançar essa meta, dia após dia.
Cada passo, cada ponto necessário de autossuperação, deve ser escrito como
uma nota autónoma. Isso significa que terá de fazer alguma avaliação e
dividir tudo em partes. Por exemplo, se está a tentar perder vinte quilos, o
primeiro post-it pode dizer “Perder um quilo na primeira semana.”
Cumprido esse objetivo, a nota deve ser retirada e substituída por outra com
a meta de perder dois ou três quilos, até ser alcançado o objetivo final.
Seja qual for a meta, é preciso que se torne responsável pelos pequenos
passos que serão necessários para lá chegar. A superação exige dedicação e
disciplina. O espelho sujo para o qual olha todos os dias vai revelar-lhe a
verdade. Deixe de o ignorar. Use-o em seu favor. Se assim entender, ponha
nas redes sociais uma imagem sua em frente ao Espelho da
Responsabilidade, com as suas notas lá coladas, com as hashtags
#canthurtme #accountabilitymirror.
CAPÍTULO TRÊS
A TAREFA IMPOSSÍVEL
Já passava da meia-noite e as ruas estavam vazias. Conduzi a minha
carrinha pickup até mais um parque de estacionamento vazio e desliguei o
motor. No silêncio, ouvia-se o zumbido sinistro dos candeeiros da
iluminação pública e a minha caneta a raspar enquanto marcava como
inspecionado mais um restaurante franchisado de uma cadeia de fast food.
Era o último numa série interminável de lugares de fast food e de cozinhas
industriais que tinham mais visitantes noturnos do que quererá saber. É por
isso que tipos como eu apareciam em sítios como este, a altas horas da
madrugada. Pousei a tabuleta com o registo no banco do carro, peguei no
meu equipamento e comecei a substituir as armadilhas para ratos.
Essas pequenas caixas verdes estão por todo o lado. Se estiver com
atenção, vai vê-las por perto de qualquer restaurante, escondidas à vista
desarmada. O meu trabalho era pôr-lhes o isco, mudá-las de lugar ou
substituí-las. Às vezes, saía-me a lotaria e encontrava um cadáver de
ratazana, o que nunca me apanhava de surpresa. Reconhece-se a morte pelo
cheiro.
Não fora esta a missão para a qual me alistara na Força Aérea com o
sonho de ingressar numa unidade de Para-resgate. Eu tinha 19 anos e pesava
cerca de 80 quilos. Quatro anos mais tarde, quando saí da tropa, tinha
inchado, pesava mais de 130 quilos e o género de patrulha que fazia era
diferente. Com esse peso, até o simples gesto de me dobrar para trocar o
isco implicava um grande esforço. Estava tão estupidamente gordo que
tinha de coser uma meia de desporto na virilha das calças de trabalho para
elas não se rasgarem a meio quando me ajoelhava. Acredite: eu era um
espetáculo patético.
Uma vez controlado o exterior, era o momento de me aventurar no
interior, que era em si uma espécie de terra selvagem. Eu tinha as chaves de
quase todos os restaurantes nesta zona de Indianápolis e também os códigos
dos alarmes. Uma vez lá dentro, colocava uma máscara de fumigação e
acionava a bomba de cor prateada cheia de veneno. Com aquilo posto
parecia um maldito extraterrestre, com filtros duplos a saírem dos lados da
boca, protegendo-me dos vapores tóxicos.
Protegendo-me.
Se havia uma coisa de que eu gostava naquele emprego era a natureza
silenciosa de trabalhar tarde, a entrar e sair das sombras obscuras. É por
essa razão que eu gostava imenso da máscara. Era vital, não porque me
protegesse de um maldito inseticida. Precisava dela porque tornava
impossível que alguém me visse – em especial, eu. Se por acaso topasse
com o meu próprio reflexo num vidro de uma porta ou num balcão em aço
inoxidável, não era a mim que via. Era a cópia barata de um soldado de
elite. O tipo de gajo que é capaz de gamar umas bolachas da véspera antes
de sair.
Não era eu.
Às vezes, via baratas a correr para se esconderem quando eu acendia as
luzes para pulverizar debaixo das bancadas e no chão de azulejo. Via
roedores mortos presos a armadilhas pegajosas que tinha colocado em
visitas anteriores. Punha-os num saco e atirava-os para o lixo. Verificava os
sistemas de iluminação que tinha instalado para apanhar traças e moscas e
também os limpava. Em meia hora estava despachado, a caminho do
próximo restaurante. Todas as noites tinha uma dezena de paragens e tinha
de passar por todas antes do amanhecer.
Talvez este trabalho lhe pareça nojento. Ao pensar nele, também me dá
nojo, mas não é por causa do trabalho. Era trabalho honesto. Necessário.
Caramba, no campo de treino básico da Força Aérea caí nas más graças do
meu primeiro-sargento de instrução e ela obrigou-me a manter num brinco
as latrinas da caserna. Ela disse-me que se encontrasse lá, em qualquer
momento, uma amostra de porcaria, me faria regressar ao primeiro dia e ir
para uma nova unidade. Eu segui tudo com disciplina. Estava feliz por estar
na Força Aérea e limpei aquela latrina até não poder mais. Podia comer-se
do chão. Quatro anos mais tarde, já tinha desaparecido esse tipo tão cheio
de energia por causa da oportunidade que até se entusiasmava a limpar
latrinas. Eu já não sentia nada de nada.
Dizem que há sempre uma luz ao fundo do túnel, mas não quando os
olhos se adaptam à escuridão – e foi isso que aconteceu. Eu estava
atordoado. Atordoado em relação à vida, miserável no meu casamento – e
tinha aceitado essa realidade. Era um guerreiro faz-de-conta transformado
em atirador furtivo caçador de baratas no turno da noite. Mais um zombie a
vender o seu tempo na terra, a mover-se em piloto automático. Na verdade,
a única reflexão que eu nesse momento fazia sobre o meu trabalho é que se
tratava realmente de uma promoção.
Quando me exoneraram da tropa, consegui um lugar no hospital St.
Vincent. Trabalhava como segurança entre as 11 da noite e as sete da manhã
e recebia o salário mínimo, o que me dava uns 700 dólares por mês. Às
vezes, via estacionar uma camioneta da Ecolab. O hospital fazia parte da
ronda regular da empresa de exterminação e fazia parte da minha função
dar-lhes acesso à cozinha. Uma noite, em conversa, o tipo da Ecolab
mencionou que a empresa estava a contratar – e que o trabalho incluía uma
carrinha grátis e nada de chefes a vigiar o que se fazia. Para mim, também
representava um aumento salarial de 35 por cento. Não pensei nos riscos
para a saúde. Não pensei de todo. Aceitei o que que me era oferecido. Eu
seguia por esse caminho do menor esforço, de deixar que nos deem a
comida à boca, em colapso mental – o que me matava aos poucos. Mas há
uma diferença entre estar atordoado e ser ingénuo. No escuro da noite, não
havia muitas distrações para me arrancarem aos meus pensamentos e eu
sabia que a primeira peça de dominó fora derrubada por mim. Fora eu a
desencadear a reação em cadeia que me levou ao serviço da Ecolab.
A Força Aérea devia ter sido a minha saída. Aquela primeiro-sargento de
instrução acabou mesmo por me reciclar para outra unidade, onde me tornei
um recruta exemplar. Tinha 1,88 metros e pesava cerca de 80 quilos. Era
rápido e forte, a nossa unidade era a melhor esquadrilha de todo o campo de
treino e, em breve, estava a trabalhar para chegar ao meu emprego de sonho,
como para-resgate da Força Aérea. Éramos uma espécie de anjos da guarda
com dentes afiados, treinados para cair atrás das linhas inimigas e salvar do
perigo pilotos derrubados. Eu era um dos melhores nesse treino. O melhor
nas flexões e o melhor em abdominais, levantamento de pernas e corrida.
Fiquei a um ponto de me formar com honra, mas houve uma coisa de que
não falaram em toda a conversa de apresentação do treino: o à-vontade
dentro de água. É um termo bonito para uma aula em que, durante semanas,
basicamente tentam afogar-te; e eu não me sentia nada à vontade na água.
Em três anos, a minha mãe conseguiu tirar-nos da assistência pública e
das casas subsidiadas, mas ainda não havia dinheiro extra para gastar em
aulas de natação, e evitávamos ir a piscinas. Só quando, aos 12 anos, entrei
nos escoteiros é que fui finalmente confrontado com a natação. Sair de
Buffalo permitiu-me, na verdade, ingressar nos escoteiros, e o acampamento
era a melhor oportunidade que tinha para chegar a Escoteiro Explorador.
Houve uma manhã em que foi o momento de qualificação para a medalha
de mérito de natação, o que implicava nadar mais ou menos um quilómetro
e meio numa pista desenhada com boias no meio de um lago. Os outros
miúdos todos saltaram para a água e começaram a nadar, e se eu queria
manter as aparências tinha de fingir que sabia o que fazia, por isso segui-os.
Nadei à cão o melhor que pude, mas como estava sempre a engolir água
pus-me de costas e acabei por percorrer a distância num estilo merdoso que
improvisei no momento. Medalha de mérito garantida.
Mas para realizar a prova de natação para o para-resgate era preciso
saber nadar a sério. Era um percurso de 500 metros, cronometrado, em
estilo livre – e eu, com 19 anos, ainda não sabia nadar em estilo livre. Por
isso, arrastei o meu traseiro ignorante até à livraria Barnes & Noble,
comprei Natação para Totós, estudei os diagramas e treinei na piscina todos
os dias. Detestava mergulhar a cara na água, mas lá dei uma braçada, depois
duas, e em pouco tempo já fazia uma pista inteira.
Nos Escoteiros
Não flutuava tão bem como a maioria dos nadadores. Sempre que
parava, nem que fosse só um instante, começava a ir ao fundo, o que me
punha o coração a bater em pânico; o crescendo de tensão só piorava tudo.
Acabei por passar o teste de natação, mas há uma diferença entre ser
competente e estar à vontade dentro de água e outra grande diferença entre
estar à vontade e sentir confiança; se não se consegue flutuar como a
maioria, a confiança dentro de água não surge com facilidade. Às vezes,
nunca surge.
No treino de Para-resgate, o à-vontade dentro de água faz parte do
programa de evolução de dez semanas, que está cheio de exercícios
específicos concebidos para testar a capacidade de operar dentro de água e
em situação de stresse. Para mim, um dos piores era o de subir e descer. A
turma estava dividida em grupos de cinco, completamente equipados e
alinhados de um lado ao outro na zona mais baixa da piscina. Tínhamos às
costas botijas gémeas de oitenta litros em aço galvanizado e usávamos
também cintos de sete quilos. Estávamos carregados como tudo, o que não
seria um problema se não fosse o facto de, neste exercício, não nos ser
permitido respirar das botijas. Em vez disso, diziam-nos para recuar e ir da
zona baixa, de noventa centímetros, para a mais funda, com cerca de três
metros, e nessa marcha lenta para chegar à posição, a minha cabeça
começou a fervilhar com pensamentos de dúvida e negativos.
Mas que raio estás aqui a fazer? Isto não é para ti! Tu não consegues
nadar! És uma fraude e vão descobrir-te!
O tempo abrandou e esses segundos pareceram minutos. Sentia o
diafragma a sacudir-se, procurando levar mais ar aos pulmões. Eu sabia a
teoria: o relaxamento era a chave para todos os exercícios subaquáticos.
Mas estava demasiado aterrorizado para libertar a tensão. Tinha o queixo
tão cerrado quanto os punhos. A minha cabeça palpitava enquanto eu lutava
por manter o pânico à distância. Por fim, ficámos todos em posição e era o
momento de começar o sobe e desce. Isso significava dar um impulso do
fundo até à superfície (sem poder usar as barbatanas), aspirar uma golfada
de ar e voltar a descer. Subir com aquela carga toda não era fácil, mas, pelo
menos, dava para respirar, e esse primeiro trago de ar foi a minha salvação.
O oxigénio inundou o meu sistema e comecei a relaxar até ouvir o instrutor
gritar “Troca!”. Aí tínhamos de tirar as barbatanas, colocá-las nas mãos e,
com um único movimento dos braços, propulsar-nos até à superfície.
Podíamos apoiar os pés no fundo da piscina, mas não podíamos usá-los para
dar impulso. Estivemos cinco minutos neste exercício.
Desmaios à superfície ou em águas pouco profundas não são invulgares
no treino de à-vontade dentro de água: andam de mão dada com o stresse
imposto ao corpo e a absorção limitada de oxigénio. Com as barbatanas nas
mãos, eu mal conseguia erguer a cabeça acima da água para respirar, sendo
que estava em simultâneo a fazer um esforço enorme e a queimar oxigénio.
E quando se queima demasiado oxigénio, e demasiado depressa, o cérebro
apaga-se; começamos a desmaiar. Os instrutores chamavam a isso
“conhecer o feiticeiro”. Enquanto o relógio avançava, eu via estrelas a
aparecerem na minha visão periférica; sabia que o feiticeiro se aproximava.
Cumpri esse exercício e, em breve, tornou-se fácil nadar com barbatanas
nas mãos ou nos pés. O que nunca deixou de ser complicado, do princípio
ao fim, era uma das tarefas mais simples: ficar à tona sem usar as mãos.
Tínhamos de manter as mãos e o queixo bem acima da água, usando só as
pernas, que devíamos rodar num movimento como o de uma batedeira,
durante três minutos. Não parece muito tempo e para a maior parte da turma
era fácil. Para mim, era praticamente impossível. O queixo estava sempre a
tocar na água, o que queria dizer que o tempo regressava a zero a partir
desse momento. À minha volta, via os outros todos tremendamente à
vontade, com as pernas quase imóveis, enquanto eu mexia as minhas a alta
velocidade e nem conseguia chegar a metade da altura daqueles rapazes
brancos que pareciam desafiar a gravidade.
Dia após dia, passava por mais uma humilhação na piscina. Não é que
me envergonhassem publicamente. Cumpri todos os exercícios de evolução,
mas sempre a sofrer interiormente. Todas as noites, pensava na tarefa
marcada para o dia seguinte e ficava tão aterrorizado que não conseguia
dormir; em breve, o meu medo transformou-se em ressentimento para com
os meus companheiros, para quem, na minha cabeça, era tudo mais fácil. E
isso ia buscar a roupa suja do meu passado.
Eu era o único negro da unidade, o que me fazia lembrar a minha
infância no Indiana rural, e quanto mais difíceis se tornaram os exercícios
de à-vontade na piscina, mais essas águas negras do passado se erguiam até
parecer que eu estava a ser afogado de dentro para fora. Enquanto o resto da
turma dormia, esse poderoso cocktail de medo e raiva viajava pelas minhas
veias e as minhas fixações noturnas transformaram-se numa espécie de
profecia que se cumpre a si própria. E tratava-se de uma profecia em que o
fracasso era inevitável, porque o meu medo desenfreado estava a libertar
uma coisa que eu era incapaz de controlar: a mentalidade de desistência.
O ponto crítico chegou seis semanas depois do início do treino, com o
exercício de “respiração entre companheiros”. Fizemos duplas, cada um
pegava no outro pelo antebraço e, à vez, respirávamos debaixo de água pelo
único tubo de respiração. Ao mesmo tempo, os instrutores davam-nos
empurrões violentos, procurando separar-nos do tubo. Tudo isto devia
acontecer perto da superfície da água, mas como eu era péssimo a flutuar,
isso queria dizer que, na parte mais funda da piscina, ia até abaixo,
arrastando o meu companheiro. Ele respirava e passava-me o snorkel. Eu
subia à superfície, expirava para tentar expulsar a água do tubo e respirar
por ele antes de o devolver, uma tarefa que os instrutores tornavam quase
impossível. Em geral, só conseguia despejar metade do tubo e inspirava
mais água do que ar. Desde o início do exercício que funcionava com um
défice de oxigénio, enquanto lutava por me manter à superfície.
No treino militar, é função do instrutor identificar os elos mais fracos e
desafiá-los a fazer o que é pedido ou a desistir – e, neste caso, os instrutores
viam claramente as minhas dificuldades. Nesse dia, na piscina, um deles
passou o tempo todo aos gritos na minha cara, berrando e dando-me
empurrões, enquanto eu engolia água, procurando em vão respirar pelo tubo
estreito para manter o feiticeiro longe de mim. Lembro-me de mergulhar e
de olhar para o resto da turma, todos descontraídos como serenas estrelas-
do-mar. Com toda a calma, passavam com à-vontade o snorkel de uns para
os outros, enquanto eu me irritava. Sei que o instrutor só estava a fazer o
seu trabalho, mas, naquele instante, pensei: Este cabrão não me está a dar
uma oportunidade justa!
Acabei por passar também nesse exercício, mas ainda me faltavam
outros 11 e mais quatro semanas de treino na água. Fazia sentido. Nós
íamos saltar de aviões sobre a água. Precisávamos daquele treino. Só que eu
simplesmente já não queria fazê-lo mais e, na manhã seguinte, apareceu-me
uma saída completamente inesperada.
Semanas antes, tiraram-nos amostras de sangue durante um exame
médico e os médicos descobriram que eu tenho o traço de células
falciformes. Não tinha a doença, anemia falciforme, mas tinha o traço e,
naquele tempo, julgava-se que isso aumentava o risco de morte súbita por
paragem cardíaca relacionada com o exercício. A Força Aérea não queria
ver-me a cair morto no meio de uma manobra qualquer e retirou-me do
curso por motivos médicos. Fingi que a notícia me abalara muito, como se o
meu sonho estivesse a ser desfeito. Fiz uma grande representação, a mostrar
que estava lixado. Mas, por dentro, estava delirante.
Nessa semana, uns dias depois, os médicos alteraram a sua posição. Não
afirmaram especificamente que era seguro eu continuar, mas observaram
que o problema ainda não era estava bem estudado e deixaram a decisão nas
minhas mãos. Quando voltei a apresentar-me ao treino, o sargento mestre
informou-me que tinha perdido demasiados dias e que, se quisesse
continuar, teria de recomeçar como se estivesse no primeiro dia da primeira
semana. Em vez de menos de quatro semanas, passavam a faltar-me outras
dez semanas do terror, raiva e insónias que andavam de mãos dadas com os
exercícios de à-vontade na água.
Se fosse hoje, uma coisa destas nem apareceria no meu radar. Se me
disserem para correr mais e mais depressa do que os outros só para ter uma
oportunidade justa, eu limito-me a responder “entendido” e a seguir em
frente; mas, nesse tempo, eu ainda era muito verde. Era fisicamente forte,
mas estava longe de dominar a minha mente.
O sargento-mestre olhou-me fixamente, à espera da minha resposta. Nem
fui capaz de o olhar bem nos olhos: “Sabe que mais, sargento-mestre? O
médico não sabe muito sobre esta coisa das células falciformes e isso está a
preocupar-me.”
Ele fez que sim, sem mostrar qualquer emoção, e assinou os documentos
que me excluíam de vez do programa. Mencionou o problema das células
falciformes e, por isso, no papel, eu não tinha desistido, mas eu sabia a
verdade. Se fosse o tipo que sou hoje, estava-me a cagar para as células
falciformes. Ainda tenho esse traço, é uma coisa que ninguém consegue
eliminar. Mas o facto é que, naquele momento, apareceu um obstáculo e eu
desisti.
Mudei-me para Fort Campbell, no Kentucky, disse aos amigos e à
família que um problema médico me tinha afastado do programa e cumpri
os meus quatro anos de serviço no Destacamento de Controlo Aéreo Tático
(TACP em inglês, de Tactical Air Control Party), que trabalha com algumas
unidades de operações especiais. Treinaram-me para coordenar unidades em
terra e apoio aéreo – aviões velozes como os F-15 e F-16 – atrás de linhas
inimigas. Era um trabalho desafiador, com pessoas inteligentes, mas,
tristemente, nunca senti orgulho nele e não vi as oportunidades que me
proporcionava, porque sabia que era um desistente que deixara o medo ditar
o seu futuro.
Enterrava a minha vergonha no ginásio e à mesa. Pus-me a fazer
levantamento de pesos e aumentei muitíssimo a massa corporal. Comia e
fazia exercício. Fazia exercício e comia. Nos meus últimos dias na Força
Aérea, pesava mais ou menos 115 quilos. Depois de sair da tropa, continuei
a aumentar o volume corporal, tanto em músculo como em gordura, até
chegar a pesar quase 135 quilos. Queria ser grande porque o facto de ser
grande escondia o David Goggins. Conseguia ocultar esta pessoa de 80
quilos dentro de bíceps de 50 centímetros e de uma barriga flácida. Deixei
crescer um bigode farfalhudo e era intimidante para qualquer pessoa que me
visse, mas por dentro sabia que era um fracalhote – e essa é uma sensação
terrível.
Depois do campo de treino básico da Força Aérea,
com 80 quilos, em 1994
Na praia, em 1999: 130 quilos
***
A manhã em que comecei a tomar conta do meu destino começou como
outra qualquer. Quando o relógio chegava às sete da manhã, o meu turno no
Ecolab terminava e eu passava pelo drive-thru do Stake’n Shake para pedir
um grande batido de chocolate. A escala seguinte era uma loja 7-Eleven,
para comprar umas caixas de mini-donuts de chocolate Hostess. Engolia-os
no trajeto de 45 minutos até casa, um belo apartamento num campo de
golpe na bonita localidade de Carmel, Indiana, que partilhava com a minha
mulher, a Pam, e com a filha dela. Lembra-se daquele episódio no Pizza
Hut? Pois, eu acabei por casar com essa rapariga. Casei com uma rapariga
cujo pai me chamou nigger. O que é que isso diz sobre mim?
Era uma vida que não tínhamos possibilidade de pagar. Ela nem sequer
trabalhava, mas nada fazia muito sentido naqueles dias de acumular dívidas
nos cartões de crédito. Eu ia pela autoestrada a 110 quilómetros por hora, a
engolir açúcar e a ouvir a estação local de rock clássico, quando começaram
a passar The Sound of Silence. As palavras de Simon & Garfunkel soaram
como o eco da verdade.
A escuridão era realmente minha amiga. Eu trabalhava no escuro,
escondia o meu verdadeiro eu tanto de amigos como de estranhos. Ninguém
acreditaria que eu vivia atordoado e com medo, porque parecia um autêntico
animal, com o qual ninguém quereria meter-se; mas a verdade é que a
minha mente não estava bem e a minha alma vivia sob o peso de tanto
trauma e fracasso. Tinha todas as desculpas do mundo para ser um falhado –
e usava-as todas. A minha vida desmoronava-se e a Pam lidava com isso
fugindo dali. Os pais dela ainda viviam em Brazil, que ficava apenas a 110
quilómetros. Passávamos a maior parte do tempo separados.
Cheguei a casa pelas oito da manhã, e o telefone tocou logo que entrei.
Era a minha mãe. Ela conhecia as minhas rotinas.
“Vem cá a casa comer o teu pequeno-almoço de sempre”, disse-me.
O meu “pequeno-almoço de sempre” era um bufê para uma pessoa, de
dimensões tais que poucos seriam capazes de o comer de uma vez. Imagine:
oito rolos de canela Pillsbury, meia dúzia de ovos mexidos, trezentos
gramas de bacon e duas tigelas de cereais Fruity Pebbles. Não se esqueça:
eu tinha acabado de dar cabo de uma caixa de donuts e de um batido de
chocolate. Nem foi preciso responder. Ela sabia que eu iria, a correr. A
comida era a minha droga preferida e eu comia sempre tudo até à última
migalha.
Desliguei, mudei o canal de televisão e fui até ao chuveiro, onde, filtrada
através do vapor, se ouvia a voz do narrador do programa. Apanhei uns
fragmentos. “SEAL da Marinha… os mais duros… do mundo.” Enrolei
uma toalha à cintura e corri de volta para a sala. Eu era tão grande que a
toalha mal me tapava o rabo, mas sentei-me no sofá e não me mexi durante
quarenta minutos.
O documentário seguia um programa de treino em demolição
subaquática básica da Classe 224 dos SEAL (BUD/S, na sigla em inglês) na
sua chamada “Semana Infernal”: a série de tarefas mais árdua no treino
fisicamente mais exigente do universo militar. Vi homens a transpirar e a
sofrer enquanto faziam percursos com obstáculos em solos cheios de lama,
corriam sobre areia macia a segurar troncos em cima da cabeça e tremiam
de frio no meio de ondas geladas. Escorria-me suor pelo couro cabeludo e
eu olhava hipnotizado ao ver alguns deles – entre os mais fortes – atirar a
toalha ao chão e desistir. Fazia sentido. Só um terço dos que começam um
programa BUD/S conseguem completar a Semana Infernal. Em todo o
tempo que passei no treino de Para-resgate, não me lembrava de ter passado
tão mal como esses homens pareciam estar: feridos, irritados, sem dormir,
exaustos, mortos-vivos – e eu com ciúmes deles.
Quanto mais via, mais tinha a certeza de que em todo aquele sofrimento
se encontravam respostas escondidas. Respostas de que eu necessitava.
Mais do que uma vez, a câmara pairou sobre o oceano interminável, cheio
de espuma, e sempre que isso acontecia eu sentia-me patético. Os SEAL
eram tudo o que eu não era. Tinham que ver com orgulho, dignidade e o
género de excelência que vem de mergulhar no fogo, de receber uma
montanha de golpes e de regressar por mais, uma e outra vez. Eram o
equivalente humano à espada mais forte e mais afiada que possa imaginar.
Iam à procura da chama, aguentavam os golpes pelo tempo que fosse
necessário, ou ainda mais, até se tornarem destemidos e letais. Não estavam
motivados. Estavam determinados. O programa de televisão acabou a
mostrar a cerimónia de formatura. A câmara passou por 22 homens cheios
de orgulho, ombro com ombro, nas suas fardas brancas, antes de se fixar no
oficial comandante.
“Numa sociedade em que a mediocridade é demasiadas vezes a norma, e
é frequentemente recompensada”, afirmou, “existe um fascínio intenso
pelos homens que detestam a mediocridade, que recusam ser definidos em
termos convencionais e que procuram reconhecer as capacidades humanas
tradicionalmente reconhecidas. É precisamente esse género de pessoa que o
programa BUD/S está concebido para encontrar. O homem que encontra
uma maneira de completar todas e cada uma das tarefas usando o máximo
da sua capacidade. O homem capaz de se adaptar e superar todos e cada um
dos obstáculos.”
Naquele instante, senti como se o oficial estivesse a falar diretamente
para mim, mas, depois de o programa acabar, voltei à casa de banho, pus-
me em frente ao espelho e olhei-me da cabeça aos pés. Os meus 135 quilos
viam-se bem. Eu era tudo aquilo que os tipos que me odiavam na minha
cidade natal tinham dito que eu viria a ser: um gajo sem educação, sem
capacidades para o mundo real, com disciplina zero e um futuro que era um
beco sem saída. Para mim, a mediocridade teria sido uma grande promoção.
Eu encontrava-me no fundo do barril da vida, no meio dos dejetos da
sociedade; mas, pela primeira vez em muito tempo, estava desperto.
Quase não falei com a minha mãe durante o pequeno-almoço, e só comi
metade do que ela me preparou, porque a minha cabeça andava à volta com
questões não resolvidas. Eu sempre tinha querido ingressar numa unidade
de operações especiais de elite e esse desejo ainda existia, por baixo de
todas as camadas de carne e de fracasso. Estava agora a ressuscitar, graças
ao visionamento casual de um documentário que continuou a espalhar-se
em mim como um vírus, célula após célula, assumindo o controlo.
Converteu-se numa obsessão que eu era incapaz de afastar. Todas as
manhãs, depois do trabalho, durante quase três semanas, telefonava a
recrutadores para serviço ativo da Marinha e contava-lhes a minha história.
Telefonei a unidades em todo o país. Disse-lhes que estava disposto a mudar
desde que conseguissem inscrever-me no treino SEAL. Todos me
recusaram. A maior parte não tinha interesse em candidatos que já tivessem
feito serviço militar. Alguém num gabinete de recrutamento local ficou
intrigado e quis conhecer-me pessoalmente, mas quando lá passei riram-se
na minha cara. Eu era demasiado pesado e, na opinião deles, era só mais um
aspirante a delirar. Era exatamente assim que me sentia ao sair de lá.
Depois de fazer todos os telefonemas possíveis para os recrutadores,
liguei para a unidade local das reservas navais e falei pela primeira vez com
o suboficial Steven Schaljo. Ele tinha trabalhado oito anos com diversos
esquadrões de F-14, como eletricista e instrutor na estação naval de
Miramar, em San Diego, Califórnia, antes de ingressar no gabinete de
recrutamento nessa cidade, onde os SEAL treinam. A trabalhar dia e noite,
depressa ascendeu nas fileiras. A sua mudança para Indianápolis foi
acompanhada de uma promoção, com o desafio de encontrar recrutas para a
Marinha no meio das planícies de cereais. Quando falámos, ele só tinha
chegado há dez dias – e se tivesse sido outro qualquer a atender-me
provavelmente não estaria a ler este livro. Mas, graças a uma combinação
de sorte pura e persistência teimosa, encontrei um dos melhores
recrutadores da Marinha, um tipo cuja tarefa favorita era descobrir
diamantes em bruto – tipos que já tinham feito serviço, como eu, e estavam
desejosos de regressar, com a esperança de chegarem às operações
especiais.
A nossa primeira conversa não foi longa. Disse que podia ajudar-me e
que o melhor era eu ir conhecê-lo pessoalmente. Se eu era um peso pesado,
Schaljo era um peso pluma, com os seus 1,73 metros, mas não pareceu nada
impressionado pelo meu tamanho, pelo menos não imediatamente. Era
extrovertido e caloroso, como qualquer vendedor, mas dei-me conta de que
havia nele qualquer coisa de pitbull. Levou-me por um corredor para me
pesar, e quando estava na balança pus os olhos num gráfico com pesos e
medidas pendurado na parede. Para alguém com a minha altura, o peso
máximo admissível, para a Marinha, era de 87 quilos. Contive a respiração,
encolhi a barriga o mais que pude e estiquei o peito, numa lamentável
tentativa para escapar ao momento humilhante em que ele me iria rejeitar.
Esse momento nunca chegou.
“És um tipo grande”, disse Schaljo a sorrir e a abanar a cabeça, enquanto
rabiscava 135 quilos nos seus papéis. “A Marinha tem um programa que
permite aos recrutas na reserva passar ao serviço ativo. É o que vamos fazer
no teu caso. Vai ser descontinuado no fim do ano, por isso temos de o
aproveitar antes disso. A questão é que tens algum trabalho para fazer, mas
isso já sabias.” Segui os olhos dele até ao gráfico dos pesos e voltei a
confirmar. Ele assentiu, deu-me uma palmada no ombro e deixou-me para
enfrentar a minha realidade.
Eu tinha menos de três meses para perder 48 quilos.
Parecia uma tarefa impossível – e essa foi uma das razões pelas quais
não me despedi do emprego. A outra eram as ASVAB. Essa prova de
pesadelo tinha ressuscitado como o cabrão do monstro de Frankenstein. Já a
tinha passado uma vez para me alistar na Força Aérea, mas para me
qualificar para o programa BUD/S teria de obter resultados muito mais
elevados. Durante duas semanas, estudei todo o dia, e à noite ia tratar das
armadilhas no controlo de pragas. Ainda não começara a fazer exercício. A
minha grande perda de peso teria de esperar.
Fiz o teste num sábado à tarde. Na segunda-feira a seguir, telefonei a
Schaljo. “Bem-vindo à Marinha”, saudou-me. Primeiro, deu todas as boas
notícias. Tinha obtido resultados excecionalmente bons em algumas seções
e agora era oficialmente reservista, mas só tinha tido 44 em Compreensão
Mecânica. Precisava de 50 para me qualificar para o BUD/S. Ou seja, tinha
de repetir o teste completo daí a cinco semanas.
Steven Schaljo gosta hoje de olhar para trás e chamar “destino” ao nosso
encontro casual. Afirma que conseguiu sentir a minha determinação desde o
primeiro momento em que falámos e que acreditou imediatamente em mim,
sendo por isso que o meu peso não constituiu para ele um impedimento.
Mas, depois das ASVAB, eu estava cheio de dúvidas. Por isso, o que
aconteceu nessa exata noite talvez tenha sido igualmente uma forma de
destino – ou uma muito necessária dose de intervenção divina.
Não vou revelar o nome do restaurante onde tudo se passou, porque se o
fizesse nunca mais ninguém lá voltava e eu teria de contratar um advogado.
Basta dizer que o lugar era um desastre. Comecei por examinar as
armadilhas colocadas no exterior e encontrei uma ratazana morta. Lá dentro,
havia mais roedores mortos – um rato e duas ratazanas – nas armadilhas
pegajosas e baratas no lixo que não tinha sido deitado fora. Abanei a cabeça,
pus-me de joelhos debaixo do lava-loiças e fiz uma pulverização através de
uma fresta estreita na parede. Ainda não o sabia, mas tinha encontrado um
ninho; quando o veneno lá chegou, os insetos puseram-se em fuga.
Ao fim de segundos, senti uma coisa a passear-me pela nuca. Sacudi-a e
girei o pescoço para cima, para ver uma autêntica tempestade de baratas a
chover sobre o chão da cozinha, caindo de um painel aberto no teto. Tinha
atingido o filão principal de baratas e provocado a pior infestação que
alguma vez vi a trabalhar para a Ecolab. Não paravam de aparecer. Caíam-
me nos ombros e na cabeça. Eram tantas que o chão parecia mexer-se.
Larguei o pulverizador na cozinha, peguei nas armadilhas pegajosas e saí
a correr porta fora. Precisava de ar fresco e de tempo para pensar como é
que ia desinfestar aquele restaurante. Fui avaliando as opções a caminho do
lixo para deitar fora os ratos mortos, e quando abri a tampa, dei com um
guaxinim furioso a guinchar. Mostrou-me os dentes amarelos e atirou-se a
mim. Fechei logo o caixote do lixo.
Porra! Mesmo. A sério. Que merda vem a ser esta?! Quando é que eu me
ia fartar de uma vez daquela merda? Ia permitir que o meu triste presente se
transformasse num futuro completamente lixado? Quanto tempo mais iria
esperar, quantos mais anos iria desperdiçar, a pensar se havia à minha
espera no mundo um propósito? Eu soube, nesse momento, que se não
fizesse qualquer coisa e começasse a trilhar o caminho do máximo esforço,
ia ficar para sempre naquele inferno mental.
Não voltei ao restaurante. Nem recolhi o equipamento. Entrei na
carrinha, fiz uma paragem para comprar um batido de chocolate – o meu
chá reconfortante daqueles dias –, e fui para casa. Ainda estava escuro. Não
importava. Tirei a roupa de trabalho, vesti umas calças de fato de treino e
apertei os sapatos de corrida. Há mais de um ano que não corria, mas lancei-
me rua fora, pronto a fazer seis quilómetros.
Durei 400 metros. O meu coração estava acelerado. Fiquei tão tonto que
tive de sentar-me à beira do campo de golfe para recuperar o fôlego antes de
caminhar de volta a casa, muito devagar. O batido, já derretido, esperava-
me, para me reconfortar em mais um fracasso. Peguei nele, bebi-o e atirei-
me para cima do sofá. Os meus olhos encheram-se de lágrimas.
Quem raio pensava eu que era? Tinha nascido nada, não tinha
demonstrado nada e ainda não valia nada. David Goggins nos SEAL da
Marinha? Pois, está bem. Que bela ilusão. Eu nem era capaz de correr cinco
minutos seguidos pelo quarteirão. Todos os medos e inseguranças que tinha
acumulado a vida inteira começaram a desabar-me sobre a cabeça. Estava à
beira de desistir – e desistir de uma vez por todas. Foi então que encontrei a
minha velha cassete em VHS de Rocky (já com uns 15 anos), a pus no leitor
e avancei para a minha cena favorita: o décimo quarto assalto.
O Rocky original continua a ser um dos meus filmes favoritos de todos os
tempos, porque é sobre um pugilista assalariado que não sabe nada e vive
na pobreza e sem perspetivas. Nem o próprio treinador quer trabalhar com
ele. E então, do nada, surge uma hipótese de lutar pelo título com o
campeão, Apollo Creed, o pugilista mais temido da história, um homem que
derrotou por KO todos os adversários que se cruzaram no seu caminho.
Rocky só quer ser o primeiro a chegar ao fim do combate com Creed sem
sofrer KO. Isso bastaria para o transformar em alguém de quem se poderia
orgulhar pela primeira vez na vida.
O combate é mais equilibrado, sangrento e intenso do que seria de prever
e, nos assaltos intermédios, Rocky é castigado com uma dureza cada vez
maior. Está claramente a perder, e no décimo quarto assalto é derrubado
logo ao princípio, mas levanta-se imediatamente, a meio do ringue. Apollo
aproxima-se, segue-o como um leão. Desfere uns golpes fortes com a
esquerda, atinge um Rocky lento no jogo de pés com uma combinação
fulminante, aplica um gancho demolidor com a direita, e depois mais um.
Encurrala Rocky num canto. As pernas de Rocky parecem de gelatina. Nem
consegue reunir as forças necessárias para erguer os braços e defender-se.
Apollo lança mais um gancho da direita num dos lados da cabeça de Rocky,
depois um gancho com a esquerda e um impiedoso uppercut com a direita
que derruba o adversário.
Apollo recua até ao canto oposto, com os braços erguidos, mas, já com a
cara encostada ao tapete, Rocky não se rende. Enquanto o árbitro faz a
contagem decrescente, Rocky arrasta-se para as cordas. Mickey, o seu
treinador, pede-lhe que continue caído, mas Rocky não o está a ouvir.
Levanta-se sobre um joelho e, depois, sobre os joelhos e as mãos. O árbitro
chega aos seis quando Rocky agarra as cordas e se levanta. A multidão
enlouquece; Apollo volta-se e vê-o já de pé. Rocky chama-o. Os ombros do
campeão caem num gesto de incredulidade.
O combate ainda não acabou.
Desliguei a televisão e pus-me a pensar na minha própria vida. Era
desprovida de qualquer determinação e paixão, mas sabia que, se
continuasse a ceder ao medo e aos sentimentos de insuficiência, eles
ditariam o meu futuro para sempre. A única outra escolha que tinha era
encontrar a força dentro das emoções que me tinham derrubado, aproveitá-
las e usá-las para me fortalecer e levantar. E foi exatamente isso que fiz.
Deitei o batido no lixo, apertei os sapatos e saí para a rua outra vez. Na
primeira saída a correr tinha sentido dores fortes nas pernas e nos pulmões
ao fim de quatrocentos metros. O coração acelerou muito e parei. Voltei a
sentir essa dor e o coração disparou como o motor de um automóvel em
sobreaquecimento, mas continuei a correr e a dor atenuou-se. Tinha corrido
mais de um quilómetro e meio quando me dobrei para recuperar o fôlego.
Foi então que dei conta, pela primeira vez, de que nem todas as
limitações físicas e mentais são reais, e que eu tinha o hábito de desistir
demasiado cedo. Sabia também que precisaria de cada grama de coragem e
dureza que pudesse reunir para atingir o impossível. Tinha pela frente horas,
dias e semanas inteiras de sofrimento ininterrupto. Teria de levar-me ao
limite absoluto da minha condição mortal. Tinha de aceitar a possibilidade
muito real de poder morrer porque desta vez não iria desistir, por muito
acelerado que o meu coração ficasse e por muita dor que sentisse. O
problema era que eu não tinha um plano de batalha para seguir, não tinha
um manual. Tinha de criar um a partir do zero.
Um dia normal era mais ou menos assim: Acordava às 4h30, mastigava
uma banana e abria os livros dos exames ASVAB. Às cinco, levava o livro
para a bicicleta fixa, onde transpirava e estudava durante duas horas. É
preciso não esquecer que o meu corpo estava um desastre. Ainda não era
capaz de correr muitos quilómetros seguidos, por isso tinha de queimar o
máximo de calorias possível na bicicleta. Depois disso, conduzia até ao
liceu de Carmel e saltava para a piscina para duas horas de treino. A seguir,
ia para o ginásio, para um circuito de exercícios que incluía máquinas de
musculação para o peito e para as pernas e muitos exercícios de pernas. A
massa corporal era o inimigo. Precisava de muitas repetições e fazia cinco
ou seis séries de 100 a 200 repetições cada. Depois, regressava à bicicleta
fixa para mais duas horas de exercício.
Andava sempre com fome. O jantar era a única refeição a sério que fazia,
mas não incluía muita coisa. Comia um peito de frango grelhado e legumes
salteados com uma concha de arroz. A seguir ao jantar, fazia mais duas
horas de bicicleta, ia para a cama, acordava e repetia tudo outra vez,
sabendo que as probabilidades contra mim eram quase infinitas. O que eu
procurava fazer era o mesmo que um estudante medíocre tentar entrar em
Harvard ou alguém chegar a um casino, apostar todas as fichas num número
na roleta e agir como se o êxito fosse a conclusão inevitável. Eu apostava
em mim tudo o que tinha, e sem quaisquer garantias.
Pesava-me duas vezes por dia e, ao fim de duas semanas, tinha perdido
cerca de 11 quilos. O progresso acentuou-se com o exercício árduo contínuo
e o peso começou a desaparecer como que por camadas. Dez dias depois,
estava com 114 quilos, suficientemente leve para começar a fazer flexões,
abdominais e a correr como um louco. Continuava a acordar, a ir para a
bicicleta fixa, para a piscina e para o ginásio, mas juntava a tudo isto saídas
a correr de três, cinco e até seis quilómetros e meio. Deitei fora os ténis e
comprei um par de Bates Lites, as botas que os candidatos a SEAL usam
nas provas BUD/S. Comecei a correr com elas.
Com tanto esforço, poderá pensar que as minhas noites eram de muito
descanso, mas a verdade é que estavam cheias de ansiedade. O estômago
fazia barulhos e a cabeça dava voltas. Sonhava com perguntas complicadas
nas provas ASVAB e temia o treino do dia seguinte. Estava a dar tanto, e
quase sem energia, que a depressão se tornou um efeito colateral natural. O
meu casamento desfeito ia a caminho do divórcio. A minha mulher disse-me
com toda a clareza que ela e a filha não se mudariam comigo para San
Diego se, por algum milagre, eu conseguisse o que queria. Elas passavam a
maior parte do tempo em Brazil, e eu, sozinho em Carmel, vivia numa
grande agitação. Sentia-me inútil e desamparado, enquanto a minha corrente
contínua de pensamentos derrotistas ia ganhando força.
Quando a depressão nos asfixia, extingue toda a luz e deixa-nos sem
nada a que nos agarrar como esperança. Tudo o que está à volta é negativo.
Para mim, a única maneira de conseguir chegar ao meu objetivo era
alimentar-me da depressão. Tinha de dar-lhe a volta e convencer-me de que
toda essa dúvida e ansiedade eram a confirmação de que já não vivia sem
um rumo. Talvez a minha tarefa se revelasse impossível, mas pelo menos
estava outra vez de volta a uma maldita missão.
Houve noites em que me sentia deprimido e telefonei a Schaljo. Ele
estava sempre no escritório de manhã cedo e tarde, à noite. Não lhe contei
sobre a depressão, porque não quis que tivesse dúvidas sobre mim. Usei
esses telefonemas para me animar. Dizia-lhe quantos quilos tinha perdido e
a carga horária que fazia e ele lembrava-me de continuar a estudar para as
provas ASVAB.
Entendido.
Tinha gravada numa cassete a banda sonora de Rocky e encontrava
motivação na música «Going the Distance». Nos longos treinos de bicicleta
e corrida, com os instrumentos de sopro a ecoarem-me na cabeça,
imaginava-me a fazer o treino BUD/S, a mergulhar em águas geladas e a
superar a Semana Infernal. Eu ansiava, eu esperava, mas quando consegui
chegar aos 114 quilos, a minha missão de conseguir entrar nos SEAL já não
era uma fantasia. Tinha uma boa possibilidade de conseguir qualquer coisa
que a maioria das pessoas, eu incluído, julgava impossível. Ainda assim,
continuavam a ser dias maus. Uma manhã, não muito depois de ter caído
para os 114 quilos, pesei-me e só tinha perdido meio quilo em relação à
véspera. Não pensei em mais nada enquanto corri dez quilómetros e nadei
dois mil metros. Cheguei exausto e dorido ao ginásio, para a rotina habitual
de três horas.
Depois de fazer mais de cem flexões em várias séries, regressei à barra
para uma série de repetições. Era até não conseguir. No princípio, o meu
objetivo era chegar às 12, mas à décima, quando ergui o queixo acima da
barra, as minhas mãos já queimavam. Ao longo de semanas, tinha estado
sempre presente a tentação de baixar a meta, e recusei sempre. Nesse dia,
contudo, a dor foi demasiada e, ao fim da décima primeira elevação, desisti,
soltei-me e acabei o treino – a uma elevação do objetivo.
Essa elevação a menos ficou comigo – tal como o meio quilo. Tentei
afastá-los da minha mente, mas não me largavam. Perseguiram-me no
caminho para casa e quando estava à mesa da cozinha, a comer um pedaço
de frango grelhado e uma batata no forno sem sabor. Sabia que, nessa noite,
não conseguiria dormir a menos que fizesse alguma coisa, por isso peguei
nas chaves do carro.
“Se te meteres por atalhos, não vais lá chegar”, disse para mim mesmo,
em voz alta, a caminho do ginásio. “Para ti, não há atalhos, Goggins!”
Repeti na totalidade o conjunto de exercícios. Uma elevação falhada
custou-me outras 250 – e episódios semelhantes voltariam a acontecer. Se
falhava uma saída para correr ou encurtava um treino na piscina, por estar
com fome ou cansado, acabava sempre por regressar e fazer um exercício
ainda mais intenso. Era a única maneira de controlar os demónios à solta na
minha mente. De uma forma ou de outra, haveria sofrimento. Tinha de
escolher entre o sofrimento físico no momento e a angústia mental de ficar a
pensar se essa elevação falhada, a última volta por fazer na piscina, os 400
metros não percorridos na estrada ou na pista, não acabariam por me custar
a oportunidade de uma vida. Era uma escolha fácil. E, tratando-se dos
SEAL, eu não ia deixar nada à sorte.
Na véspera das provas ASVAB, a quatro semanas do início do treino,
estar dentro do peso já não era uma preocupação. Já tinha descido para 98
quilos e nunca fora tão rápido e tão forte. Corria dez quilómetros por dia,
fazia mais de 32 quilómetros de bicicleta e nadava mais de três. Tudo isso
nos dias mais frios do inverno. O meu lugar favorito para correr era a pista
de Monon, um troço asfaltado de dez quilómetros, rodeado por árvores, em
Indianápolis. Era o reino de ciclistas, mães dos subúrbios a correr e a
empurrar carrinhos de bebé, guerreiros de fim de semana e seniores. Schaljo
já me tinha passado a ordem de ação dos SEAL da Marinha. Incluía todos
os exercícios que era esperado que eu realizasse na primeira fase das provas
BUD/S – e eu fiquei feliz por ser capaz de os fazer a dobrar. Sabia que, em
geral, se qualificam para um treino SEAL típico cerca de 190 homens e que
só quarenta vão até ao fim. Eu não queria ser apenas um dos quarenta.
Queria ser o melhor.
Mas primeiro tinha de passar a maldita série de provas ASVAB. Usara
cada segundo livre para estudar intensamente. Quando não estava a fazer
exercício, sentava-me à mesa da cozinha, a memorizar fórmulas e a passar
em revista centenas de palavras de vocabulário. Com o meu treino físico a
correr bem, toda a minha ansiedade se concentrava nas ASVAB, como se
fosse um clipe atraído por um íman. Esta seria a minha derradeira hipótese
de passar na prova antes de expirar a minha elegibilidade para os SEAL. Eu
não era muito esperto e, com base no meu desempenho académico passado,
não havia nenhuma boa razão para acreditar que fosse capaz de passar com
uma nota suficientemente elevada para entrar. Se falhasse, o sonho morreria
e ver-me-ia outra vez à deriva e sem propósito.
O teste foi realizado numa pequena sala de aulas, no Forte Benjamin
Harrison, em Indianápolis. Éramos cerca de trinta, e todos jovens. A maioria
tinha acabado de sair do liceu. Cada um ficou com um computador já
antigo. No mês anterior, o teste passara a ser digital e eu não tinha
experiência com computadores. Pensei que nem sequer seria capaz de
funcionar com a maldita máquina, quanto mais responder às perguntas, mas
o programa revelou ser à prova de idiotas e eu até me senti à vontade.
As provas têm dez secções e eu fui avançando com bastante facilidade,
até que cheguei a Compreensão Mecânica, que para mim funcionava como
soro da verdade. Em breve, teria uma ideia razoável sobre se tinha estado a
mentir a mim mesmo ou se tinha o que era preciso para me tornar um
SEAL. Sempre que me aparecia uma pergunta para a qual não tinha
resposta, fazia um risco na folha de teste. Essa secção tinha cerca de trinta
perguntas e respondera ao acaso pelo menos a umas dez. Precisava que
algumas estivessem certas ou não passaria.
Depois de completar a seção final, o programa deu-me a indicação para
enviar o teste para o computador do administrador, que estava ao fundo da
sala e que faria uma classificação instantânea. Espreitei por cima do ecrã e
vi-o lá sentado, à espera. Apontei com o cursor, fiz clique e saí da sala.
Cheio de uma energia nervosa, caminhei em passos rápidos pelo parque de
estacionamento durante uns minutos, antes me sentar no meu Honda
Accord, mas não pus o motor a funcionar. Não era capaz de me ir embora.
Fiquei sentado ao volante uns 15 minutos, com o olhar perdido. Iam
passar pelo menos dois dias até Schaljo me telefonar a dizer os resultados,
mas a resposta ao enigma que era o meu futuro já estava resolvida. Eu sabia
exatamente onde me encontrava e precisava de saber a verdade. Compus-
me, voltei a entrar na sala e aproximei-me do adivinho que me revelaria o
futuro.
“Meu, tens de me dizer quanto é que tive neste teste”, disse-lhe. Ele
olhou para mim, surpreendido, mas não cedeu.
“Tenho pena, filho. O Governo é assim. Há um sistema para fazer as
coisas”, respondeu. “Não fui eu que fiz as regras e não as posso quebrar.”
“Mas o senhor não faz ideia do que este exame representa para mim, para
a minha vida. É tudo!” Ele olhou para os meus olhos vítreos durante o que
pareceram ser cinco minutos e, a seguir, voltou-se para o computador.
“Olha, estou a ignorar todas as regras do manual”, disse. “Goggins,
certo?” Eu fiz que sim e pus-me atrás dele, que ia passando ficheiros. “Aí
estás tu. Parabéns, tiveste 65. É um grande resultado.” Ele referia-se ao
resultado geral, mas não era isso que eu queria. Tudo dependia de eu ter
conseguido uma pontuação de 50 onde importava mais.
“Quanto é que tive em Compreensão Mecânica?” Ele encolheu os
ombros, fez clique e deslizou para baixo. Lá estava. O meu novo número
favorito brilhou no ecrã: 50.
“SIM!”, gritei. “SIM! SIM!”
Ainda havia uma meia dúzia a fazer o teste, mas este era o momento
mais feliz da minha vida e não consegui conter-me. Continuei a gritar
“SIM!” a plenos pulmões. O responsável por vigiar o teste quase caiu da
cadeira e os tipos que estavam na sala olharam para mim como se eu fosse
louco. Se soubessem como eu tinha estado realmente louco! Durante dois
meses, dedicara toda a minha existência a este momento específico e não ia
prescindir de desfrutar dele. Corri para o carro e gritei ainda mais.
“PORRA! SIM!!”
Telefonei à minha mãe a caminho de casa. Além de Schaljo, ela era a
única pessoa a testemunhar a minha metamorfose. “Consegui”, disse-lhe,
com lágrimas nos olhos. “Porra, consegui! Vou ser um SEAL.”
Quando Schaljo foi trabalhar, no dia seguinte, soube a notícia e
telefonou-me. Tinha enviado o meu pacote de recrutamento e tinha acabado
de saber que eu tinha entrado! Percebi na sua voz que estava feliz por mim e
que tinha orgulho por se ter concretizado aquilo que tinha visto em mim na
primeira vez que nos cruzámos.
Mas nem tudo foi cor-de-rosa. A minha mulher tinha-me apresentado um
ultimato implícito e agora era preciso tomar uma decisão. Continuar casado
e abandonar a oportunidade pela qual tinha trabalhado tanto ou divorciar-me
e procurar tornar-me um SEAL. No fim, a minha escolha não teve nada a
ver com os meus sentimentos pela Pam ou pelo pai dela. Já agora, ele tinha-
me pedido desculpa. Era sobre quem eu era e quem queria ser. Eu era um
prisioneiro dentro da minha própria mente e esta oportunidade era a minha
única hipótese de me libertar.
Celebrei o meu triunfo da maneira que qualquer candidato a SEAL devia
fazer: trabalhando mais arduamente do que nunca. Na manhã seguinte, e ao
longo de três semanas, fui para a piscina com um peso de oito quilos
amarrado à cintura. Nadei debaixo de água cinquenta metros de cada vez e
caminhei debaixo de água a todo o comprimento da piscina, com um tijolo
em cada mão, respirando apenas uma vez. Desta vez, a puta da água não ia
vencer-me.
No fim, nadava um quilómetro ou dois e, depois, ia para um tanque perto
de casa da minha mãe. É preciso recordar que estávamos no Indiana e era
dezembro. Os ramos das árvores estavam despidos. Havia gotículas de gelo
pendentes dos telhados e a neve cobria tudo, para onde quer que se olhasse,
mas o tanque ainda não gelara completamente. Metia-me na água gelada,
vestido com calças de camuflado, uma t-shirt castanha e botas, punha-me a
flutuar de costas e olhava para o céu cinzento. A água gelada cobria-me, a
dor era muito aguda – e, porra, eu adorava! Ao fim de uns minutos, saía e
começava a correr, com jorros de água a sair das botas e areia na roupa
interior. Ao fim de uns segundos, a t-shirt estava gelada e colada ao peito e
as minhas calças também pareciam ter as bainhas feitas de gelo.
A seguir, ia para o percurso de Monon. Saía-me vapor das narinas e da
boca enquanto eu grunhia e ia evitando pessoas que corriam e caminhavam.
Elas viravam a cabeça para me verem quando eu ganhava velocidade e
começava a sprintar, como se fosse o Rocky na baixa de Filadélfia. Corria o
mais depressa que conseguia durante o máximo tempo que era capaz. Corria
de um passado que já não me definia para um futuro indeterminado. Só
sabia que haveria dor – e que haveria um propósito.
E que eu estava pronto.
DESAFIO #3
O primeiro passo na jornada a caminho de uma mente resistente é sair de
forma regular da zona de conforto. Volte a pegar no diário e escreva todas as
coisas de que não gosta ou que o deixam desconfortável. Em especial
aquelas que sabe que são boas para si.
Agora, vá fazer uma delas – e repita.
Nas páginas seguintes, vou pedir-lhe que imite, até certo ponto, o que
acabou de ler, mas não tem de encontrar a sua própria tarefa impossível e
chegar lá por um caminho rápido. Não se trata de mudar a sua vida de forma
instantânea, mas sim de avançar pouco a pouco e de tornar as mudanças
sustentadas. Isso significa ir ao nível microscópico e fazer todos os dias
uma coisa que não dá qualquer prazer. Pode ser tão simples como fazer a
cama, lavar a loiça, passar a ferro ou sair de cama de madrugada para correr
seis quilómetros. A partir do momento em que isso se torna uma tarefa
realizada com conforto, passa-se para oito quilómetros – ou para dez. Se já
faz estas coisas, encontre outras tarefas. Nas nossas vidas, todos temos áreas
que ignoramos ou em que podemos melhorar. Encontre as suas. Muitas
vezes, escolhemos focar-nos nas nossas forças e não nas nossas fraquezas.
Aproveite a ocasião para transformar as suas fraquezas nas suas forças.
Fazer coisas que o deixam desconfortável, por pequenas que sejam, vai
torná-lo mais forte. Quantas mais vezes ficar desconfortável, mais forte se
tornará, e, em breve, desenvolverá um diálogo mais produtivo e dinâmico
consigo em situações de stresse.
Faça uma fotografia ou um vídeo de si fora da sua zona de conforto,
coloque-o nas redes sociais a descrever o que está a fazer e porquê, e não se
esqueça de incluir as hashtags #discomfortzone #pathofmostresistance
#canthurtme #impossibletask.
CAPÍTULO QUATRO
CONQUISTAR ALMAS
A primeira granada de atordoamento explodiu a curta distância – e, a partir
daí, passou-se tudo em câmara lenta. Um minuto antes, estávamos na sala
comum, a dizer disparates, a ver filmes de guerra e a preparar-nos para a
batalha que sabíamos próxima. Essa primeira explosão levou a outra – e, de
repente, o Pete Psicopata, como lhe chamávamos, estava à nossa frente, a
gritar com toda a força, com as bochechas vermelhas como maçãs e aquela
veia na têmpora direita a pulsar. Quando ele gritava, os olhos pareciam
saltar e todo o corpo tremia.
“Toca! A! Sair! Daqui! Porra! Vão! Vão! Vão!”
Os meus companheiros de tripulação e eu pusemo-nos a correr para a
porta, em fila, tal como tínhamos planeado. Lá fora, no escuro, SEAL da
Marinha disparavam as suas M60 contra um inimigo invisível. Era o sonho
mau que todos tínhamos aguardado a vida inteira: o pesadelo lúcido que nos
definiria ou mataria. O impulso que tínhamos era para nos lançarmos para o
chão, mas, naquele momento, a única opção era estar em movimento.
O ruído repetitivo, grave e profundo do fogo das metralhadoras
penetrava-nos até às entranhas, e o halo cor de laranja de uma outra
explosão próxima aplicava um choque de beleza violenta. Os nossos
corações batiam como um martelo pneumático, enquanto nos juntávamos na
área conhecida como Trituradora, o pátio asfaltado principal, à espera de
ordens. Isto era uma guerra, mas não seria travada em nenhuma terra
estrangeira. Esta, como a maior parte das batalhas da nossa vida, seria
ganha ou perdida nas nossas mentes.
O Pete Psicopata caminhava pesadamente sobre o asfalto esburacado,
com a boca da espingarda a fumegar no nevoeiro da noite. “Bem-vindos à
Semana Infernal, meus senhores”, disse, desta vez calmamente, com a sua
pronúncia arrastada de surfista da Califórnia. Olhou-nos de cima a baixo
como um predador a avaliar a presa. “Vai ser um grande prazer para mim
vê-los a sofrer.”
Pois – e ia mesmo haver sofrimento. O Pete Psicopata marcava o ritmo,
decidia a quantidade de elevações, flexões, abdominais, exercícios de
pernas, saltos e flexões em mergulho. Entretanto, ele e os seus
companheiros instrutores atiravam-nos água gelada com uma mangueira,
sempre a rir à gargalhada. Havia sucessivas repetições de exercícios, série
após série, sem fim à vista.
Os meus companheiros e eu estávamos próximos uns dos outros, cada
um imóvel sobre marcas de pernas de rã impressas no solo, vigiados pela
estátua do nosso santo padroeiro: o Homem Rã, uma criatura extraterrestre
assustadora vinda das profundezas, que tinha mãos e pés como os de uma
rã, garras afiadas, e um cabrão de um abdómen musculado. Desde aquela
manhã em que regressara a casa depois da última noite a caçar baratas e
entrara no turbilhão de querer entrar nos SEAL, era exatamente aqui que eu
queria estar. Na Trituradora: uma área de asfalto carregada de história – e de
sofrimento.
O treino básico de demolição submarina, BUD/S, dura seis meses e está
dividido em três fases. A Primeira Fase é integralmente dedicada a treino
físico. A Segunda consta de treino de mergulho, em que aprendemos coisas
como orientação debaixo de água e utilização de sistemas de mergulho
discretos, em circuito fechado, que não emitem bolhas e reciclam o dióxido
de carbono em ar respirável. A Terceira Fase é treino para combate terrestre.
Mas a maioria das pessoas que pensa no treino BUD/S imagina apenas a
Primeira Fase, porque são as semanas em que os novos recrutas passam pela
Trituradora, até o contingente de cerca de 120 tipos ficar reduzido à dura e
reluzente coluna vertebral dos 35 a quarenta homens mais merecedores do
tridente – o emblema que diz ao mundo que é melhor não se meter
connosco.
Os instrutores BUD/S conseguem isto trabalhando os recrutas de modo a
ultrapassarem os seus limites percetíveis, desafiando a sua masculinidade e
insistindo em padrões físicos objetivos de força, resistência e agilidade.
Padrões esses que são testados. Nessas primeiras três semanas de treino,
tivemos de, entre outras coisas, trepar por uma corda vertical de dez metros,
percorrer em menos de dez minutos uma pista de obstáculos de um
quilómetro, repleta de desafios tipo America Ninja Warrior, e correr na areia
6,5 quilómetros em menos de 32 minutos. Mas, se me perguntar, eu dir-lhe-
ei que isso tudo foi uma brincadeira de crianças. Não tem sequer
comparação com o teste crucial da Primeira Fase.
A Semana Infernal é outra coisa completamente diferente. É medieval e
surge-nos de repente, apenas na terceira semana de treino. É quando a dor
pungente nos músculos está sempre a aumentar e vivemos dia e noite com
uma sensação inquietante de hiperventilação, em que o ritmo da respiração
se torna maior do que o ritmo físico, em que os pulmões insuflam e
esvaziam como sacos de lona apertados com força pelos punhos de um
demónio, durante 130 horas seguidas. Esse é um teste que vai muito para lá
do físico e revela o coração e o caráter. Mais do que tudo, revela a
mentalidade – e, aliás, é precisamente para isso que foi concebida.
Tudo isto se passava no Centro de Comando Naval de Guerra Especial,
na imaculada ilha Coronado, uma armadilha para turistas no sul da
Califórnia, que fica em frente do elegante cabo Loma e protege a marina de
San Diego das águas do oceano Pacífico. Mas até o sol dourado da
Califórnia não era capaz de embelezar a Trituradora – e graças a Deus. Eu
gostava que as coisas fossem feias. Essa fatia de sofrimento era tudo o que
eu sempre desejara. Não porque adorasse sofrer, mas porque precisava de
saber se tinha ou não dentro de mim o que era necessário para ali continuar.
A questão é que a maior parte das pessoas não tem.
Quando a Semana Infernal começou, pelo menos quarenta tipos já
tinham desistido – e cada um deles teve de caminhar até à sineta, tocá-la
três vezes e, a seguir, depositar no alcatrão o seu capacete. O toque da sineta
surgiu pela primeira vez na era da guerra do Vietname, porque muitos
jovens desistiam durante os exercícios e se iam simplesmente embora para a
caserna. A sineta era uma maneira de saber onde estavam os recrutas, mas,
desde então, tornou-se um ritual que é preciso cumprir para sublinhar que se
está a desistir. Para quem desiste, a sineta representa o fecho. Para mim,
cada toque soava a avanço.
Nunca gostei muito do Psicopata, mas não podia objetar aos pormenores
do seu trabalho. Ele e os outros instrutores tinham a missão de reduzir a
manada. Além disso, ele não perseguia os mais fracos. Metia-se muito
comigo e também com tipos maiores do que eu. Até os mais pequenos eram
grandes bisarmas. Eu era só um entre um conjunto de machos alfa do Leste
e do Sul dos Estados Unidos, das praias da Califórnia, tanto as de classe
operária como as endinheiradas; havia alguns dos campos de cereal, como
eu, e muitos das pastagens texanas. Em todos os cursos BUD/S há uns
quantos cabrões texanos, fortes, rudes e rurais. Não há estado de onde saiam
mais SEAL. Deve ser qualquer coisa naqueles churrascos. O Psicopata não
tinha favoritos. Fôssemos de onde fôssemos, ou quem fôssemos, ele pairava
sobre nós como uma sombra impossível de afastar. Às gargalhadas, aos
gritos ou a provocar-nos em silêncio, na nossa cara, tentando infiltrar-se na
mente de qualquer homem que procurasse quebrar.
Apesar de tudo isso, a primeira hora da Semana Infernal foi realmente
divertida. No meio daquela loucura de explosões, tiros e gritos, nem se tem
a noção do pesadelo que aí vem. Há uma alta de adrenalina, por sabermos
que se está a cumprir uma iniciação na sagrada tradição do guerreiro. Na
Trituradora, os recrutas olham em volta, muito emocionados, a pensar:
“Sim, cabrões, estamos na Semana Infernal!” Pois, mas a realidade tem um
jeito de, mais tarde ou mais cedo, te aplicar um pontapé na boca.
“É a isto que vocês chamam dar tudo?”, perguntou o Pete Psicopata, sem
falar para ninguém em especial. “Este pode muito bem ser o grupo mais
patético que já passou por este programa. Vocês não param de se
envergonhar.”
Ele adorava esta parte do trabalho. Passar por cima e pelo meio de nós,
deixando a marca das solas das botas nas poças do nosso suor, saliva, ranho,
lágrimas – e sangue. Ele pensava que era forte. Todos os instrutores
pensavam – e eram, porque eram SEAL. Isso bastava para os colocar num
patamar invulgar. “Vocês nem serviam para segurar no meu protetor dos
tomates na minha Semana Infernal, é só o que vos digo.”
Sorri interiormente e continuei os exercícios enquanto o Pete passava por
perto. Tinha a compleição de um defesa de futebol americano, rápido e
forte, mas será que tinha sido uma máquina letal como o catano na sua
Semana Infernal? Senhor, tenho muitas dúvidas dessa merda, senhor!
Ele olhou para o seu superior, o oficial ao comando da Primeira Fase.
Sobre este, não havia dúvidas. Não falava grande coisa – e não precisava.
Tinha 1,85 metros, mas a sombra que projetava era bem maior do que isso.
Também era um tipo musculado. Estou a falar de uns cento e poucos quilos
de músculo tenso como aço e zero gramas de simpatia. Parecia um gorila de
lombo prateado e era por isso que lhe chamavam SBG [sigla de silverback
gorila, em inglês]. Pairava sobre tudo como uma espécie de Padrinho da
dor, a fazer cálculos silenciosos, a tomar notas mentais.
Pete Psicopata voltou-se para ele: “Senhor, estou a ficar com a piça rija
só de pensar nestas vaginas abertas a chorarem e a desistirem esta semana
como putefiazinhas choramingas.” O SBG respondeu-lhe com um ligeiro
movimento de cabeça, enquanto o Pete olhava para mim. “Olha, e tu vais
desistir”, disse-me muito suavemente. “Eu vou encarregar-me disso.”
As ameaças do Pete eram mais assustadoras quando ele as fazia desta
forma, num tom tranquilo, mas, muitas vezes, os seus olhos pareciam
escurecer, o cenho franzia-se, o sangue afluía-lhe à cara, e ele lançava um
grito que lhe saía da ponta dos dedos dos pés e ia até ao cimo da sua cabeça
careca. Uma hora depois de a Semana Infernal ter começado, pôs-se de
joelhos, ficou com a cara a uns centímetros da minha, enquanto eu acabava
mais uma série de flexões, e deu um desses gritos:
“Todos a correr para as ondas, seus grandes cagalhões!”
Já estávamos há quase três semanas no treino BUD/S e várias vezes
tínhamos feito corridas a subir e a descer a encosta de quatro metros e meio
de altura que separava a praia do grande conjunto de edifícios em cimento
onde se encontravam os escritórios, os balneários, as casernas e as salas de
aula do programa. Em geral, deitávamo-nos em águas pouco profundas,
completamente vestidos, e depois rolávamos pela areia – até ficarmos
cobertos de areia da cabeça aos pés –, antes de voltar à Trituradora, a pingar
água salgada e areia, o que aumentava o grau de dificuldade quando
chegávamos à barra de elevações. Este ritual tinha um nome: “molhado e
areado”, e eles queriam que ficássemos com areia nos ouvidos, no nariz e
em todos os orifícios do corpo. Mas, desta vez, íamos experimentar outra
coisa, a tortura das ondas, que é uma animalidade muito especial.
Como nos indicaram, corremos para as ondas a gritar como mestres
sensei de artes marciais. Completamente vestidos, de braços dados,
descemos até à zona de rebentação. Nessa noite sem luar, a maré estava alta,
quase à altura da cabeça, e as ondas eram trovões rolantes que caíam em
conjuntos de três ou quatro seguidas. Quando elas nos batiam, a água fria
encolhia os tomates e os pulmões ficavam sem fôlego.
Estávamos no início de maio e, na primavera, a água em Coronado anda
entre os 15 e os 17 graus. Como se fôssemos um só corpo, saltávamos para
cima e para baixo; éramos uma espécie de colar de pérolas de cabeças
flutuantes a perscrutar o horizonte à procura de uma onda, rezando para que
a víssemos antes que ela chegasse de surpresa e nos levasse para o fundo.
Os surfistas do grupo eram os primeiros a detetar esse momento fatal e
gritavam a avisar, para podermos mergulhar a tempo. Ao fim de mais ou
menos dez minutos, o Psicopata mandou-nos regressar a terra. À beira da
hipotermia, saímos da zona de rebentação e ficámos em sentido, enquanto o
médico via se existiam realmente sinais de hipotermia. Esse ciclo
continuaria a repetir-se. O céu foi-se tingindo de laranja e vermelho. A
temperatura caiu bastante enquanto a noite se aproximava.
“Meus senhores, despeçam-se do Sol”, disse o SBG. Até nos fez acenar
para o Sol que se punha. Um reconhecimento simbólico de uma verdade
inconveniente. Estávamos prestes a ficar com o cu congelado.
Passada uma hora, regressámos à formação de tripulação de barco, seis
homens apertados uns contra os outros, com as pilas coladas aos traseiros,
para nos mantermos quentes, mas era em vão. Ouviam-se ossos a bater de
frio em toda a praia. Tremíamos como martelos pneumáticos e fungávamos,
uma condição física que era reveladora do estado desgraçado das nossas
mentes a estilhaçarem-se; só agora tínhamos a noção de que esta merda
estava apenas a começar.
Até nos dias mais difíceis da Primeira Fase, antes da Semana Infernal,
quando o simples volume de flexões, subidas à corda, abdominais e
exercícios de pernas nos esmaga o espírito, é sempre possível encontrar uma
saída. Porque se sabe que, por muito terrível que tudo seja, se vai para casa
nessa noite, se janta com uns amigos, se vê um filme, talvez haja sexo e a
nossa cama espera por nós. Ou seja, até no mais miserável dos dias,
podemos focar-nos numa fuga ao inferno que é autêntica.
A Semana Infernal não permite nada disso. Em especial no primeiro dia,
quando ao fim de uma hora nos têm de pé, de braços dados, a olhar para o
oceano Pacífico e a entrar e a sair do mar repetidamente. Nos intervalos,
para aquecer, faziam-nos o obséquio de nos pôr a correr na areia. Em geral,
punham-nos a carregar à cabeça o barco insuflável rígido, ou então um
tronco, mas o conforto do calor, se alguma vez chegava, era sempre de
pouca dura, porque ao fim de dez minutos já nos estavam a mandar outra
vez para a água.
O relógio andou muito lentamente nessa primeira noite, enquanto o frio
se infiltrava em nós, colonizando a nossa medula de uma forma tão total
que as corridas deixaram de fazer qualquer bem. Já não haveria mais
bombas, nem mais tiros, e muito poucos gritos. Em vez disso, alastrava um
inquietante silêncio, que nos mortificava o espírito. No oceano, não
ouvíamos mais do que as ondas a desabar sobre nós, com a água que
engolíamos por acidente a dar-nos voltas no estômago, e os dentes a bater.
Com tanto frio e tanto stresse, a mente é incapaz de processar as 120 e tal
horas seguintes. Cinco dias e meio sem dormir não podem dividir-se em
pequenas partes. Não há maneira de lidar com a situação de uma forma
sistemática e, por isso, todos aqueles que já tentaram entrar para os SEAL
fizeram a si próprios uma pergunta muito simples enquanto passavam pela
primeira fase de “tortura das ondas”:
“Porque é que estou aqui?”
Estas palavras inócuas fervilhavam nas nossas mentes em turbilhão de
cada vez que éramos engolidos por uma onda gigante por volta da meia-
noite, quando já estávamos à beira da hipotermia. Porque a verdade é que
ninguém tem de ser SEAL. Porra, não tínhamos sido recrutados à força. Ser
um SEAL é uma escolha. E aquilo que essa pergunta simples revelava, no
calor da batalha, era que cada segundo que continuávamos no treino era
também uma decisão pessoal, o que fazia parecer masoquismo puro toda a
noção de querer ser um SEAL. É uma tortura voluntária. O que, para uma
mente racional, não faz qualquer sentido. É por isso que a pergunta deita
abaixo tantos homens.
Claro que os instrutores sabem isto tudo – e é por isso que, ao fim de
pouco tempo, deixam de gritar. Em vez disso, à medida que a noite
avançava, o Pete Psicopata passou a reconfortar-nos como se fosse um
irmão mais velho. Oferecia-nos uma sopa quente, um duche quente,
cobertores e boleia para regressar à caserna. Era o isco que lançava para
atrair os desistentes – e ia fazendo uma colheita de capacetes, à esquerda e à
direita. Estava a conquistar as almas daqueles que cediam por não serem
capazes de responder a essa pergunta simples. Eu percebo. Quando ainda é
só domingo e se sabe o muito que ainda falta para sexta-feira, e quando
nunca se sentiu tanto frio, é-se tentado a acreditar que não se aguenta – e
que ninguém vai aguentar. Os tipos casados punham-se a pensar “Podia
estar tão bem em casa, enroscado na minha linda mulher, em vez de estar a
tremer e a sofrer.” Os solteiros pensavam “Bem que podia estar agora atrás
de alguma miúda para a levar para cama.”
Essa espécie de atração luminosa é difícil de ignorar, mas eu vivia pela
segunda vez as primeiras etapas das provas BUD/S. Na Classe 230, já tinha
provado a maldade da Semana Infernal. Não consegui, mas não tinha
desistido. Fui afastado por motivos médicos, depois de contrair uma
pneumonia dupla. Desafiei três vezes as ordens do médico e procurei
manter-me na luta, mas acabaram por mandar-me para a caserna e fizeram-
me regressar ao primeiro dia da primeira semana da Classe 231.
Ainda não recuperara completamente dessa pneumonia quando começou
a segunda classe das BUD/S. Ainda tinha os pulmões cheios de muco e,
cada vez que tossia, o peito estremecia e parecia que havia qualquer coisa a
raspar o interior dos pulmões. Ainda assim, considerava que, desta vez,
tinha mais possibilidades, por estar preparado e por ter por companheiros
uns tipos que eram uns cabrões mesmo rijos.
No treino BUD/S, as tripulações são selecionadas por altura, porque na
Semana Infernal são esses tipos que nos vão ajudar a carregar o barco para
onde quer que vamos. Mas só o tamanho não garantia que os companheiros
fossem duros; os meus eram um bando de inadaptados e tipos estranhos.
Havia eu, o exterminador de pragas que precisara de perder 45 quilos e
fazer o exame ASVAB duas vezes só para entrar no treino SEAL e ser
devolvido à estaca zero quase imediatamente. Tínhamos também o falecido
Chris Kyle. É conhecido como o mais letal atirador furtivo na história da
Marinha. Teve tanto êxito que os hajjis em Fallujah, no Iraque, ofereceram
uma recompensa de oitenta mil dólares pela sua cabeça e tornou-se uma
lenda viva entre os marines que protegeu enquanto membro da Equipa Seal
Três. Ganhou uma medalha Estrela de Prata e quatro Estrelas de Bronze por
valentia, deixou as forças armadas e escreveu um livro, Sniper Americano,
que deu um filme de grande sucesso, com o cabrão do Bradley Cooper no
papel principal. Mas então ele não passava de um simples cowboy de rodeos
texano que mal pronunciava uma palavra.
Havia também o Bill Brown, aliás Brown, o Freak [Anormal]. A maior
parte das pessoas só o tratava por Freak – coisa que ele odiava, porque lhe
tinham chamado isso a vida inteira. Ele era, de muitas maneiras, a versão
branca de David Goggins. Cresceu em povoações ribeirinhas do sul de
Jersey e foi aí que aprendeu a ser duro. Os miúdos mais velhos faziam
pouco dele por causa da fenda palatina na boca ou porque não era muito
esperto nas aulas – e a alcunha começou aí. Meteu-se em tantas zaragatas
por causa disso que acabou por ser mandado seis meses para um centro de
detenção juvenil. Com 19 anos, já ganhava a vida sozinho, procurando
safar-se como empregado de uma estação de gasolina. Não estava a resultar.
Não tinha nem um casaco nem um automóvel. Ia para todo o lado numa
bicicleta ferrugenta de dez velocidades e andava literalmente com os
tomates gelados. Um dia, ao sair do trabalho, entrou num gabinete de
recrutamento da Marinha porque sabia que precisava de uma estrutura e de
um propósito – e também de roupa para o frio. Falaram-lhe dos SEAL e
ficou curioso, só não sabia nadar. Tal como eu, aprendeu sozinho e, ao fim
de três tentativas, passou finalmente o exame de natação para os SEAL.
Quase sem dar por isso, o Brown estava nas provas BUD/S, onde a
alcunha de Freak o continuou a perseguir. Foi dos melhores em treino físico
e passou facilmente pela Primeira Fase, mas na sala de aulas não era assim
tão seguro, nem por sombras. O treino de mergulho dos SEAL é tão difícil
intelectualmente como é fisicamente, mas ele lá se safou e ficou a duas
semanas de terminar as BUD/S quando, num dos seus derradeiros
exercícios de guerra terrestre, não conseguiu voltar a montar a arma num
treino cronometrado conhecido como “prática de armas”. O Brown acertou
no alvo, mas falhou no cronómetro. Foi reprovado nas BUD/S mesmo no
fim.
Mas não desistiu. Não, senhor, o Freak Brown não ia render-se. Eu já
tinha ouvido histórias sobre ele antes de acabarmos juntos na Classe 231.
Estava em guerra com o mundo e gostei dele imediatamente. Era um tipo
rijo como tudo, exatamente o género de pessoa que eu escolheria para me
acompanhar numa guerra. Quando levámos pela primeira vez o barco da
Trituradora para a areia fiz de maneira a que ele fosse comigo à frente, onde
o peso é maior. “Freak Brown!”, gritei-lhe. “Eu e tu vamos ser os pilares da
Tripulação Dois!” Ele voltou a cabeça para mim e eu aguentei-lhe o olhar.
“Não me chames essa merda, Goggins”, disse-me furioso.
“Então, não saias da posição, filho! Eu e tu, à frente, a puta da semana
inteira!”
“Entendido.”
Assumi a liderança da Tripulação Dois desde o início e concentrei-me
numa só coisa: fazer com que nós os seis chegássemos ao fim da Semana
Infernal. Todos aceitaram porque eu já lhes tinha dado provas – e não
apenas na Trituradora. Nos dias antes de começar a Semana Infernal, meti
na cabeça que precisávamos de roubar aos instrutores o calendário do que ia
acontecer. Contei a ideia à minha equipa uma noite, quando estávamos à
conversa na sala de aulas, que funcionava também como sala de convívio.
As minhas palavras caíram em orelhas moucas. Houve uns tipos que riram,
mas todos me ignoraram e voltámos às conversas parvas deles.
Eu percebi porquê. Não fazia sentido. Como é que alguma vez iríamos
conseguir uma cópia daquela merda? E, ainda que conseguíssemos, saber o
que se ia passar não tornaria tudo pior? E se fôssemos apanhados? A
recompensa valia o risco?
Eu acreditava que sim, porque já tinha tido uma amostra da Semana
Infernal. O Brown e alguns outros também, e sabíamos como era fácil
começar a pensar em desistir ao sermos expostos a níveis de dor e exaustão
que não se julgavam possíveis. Umas cento e trinta horas de sofrimento
podem facilmente parecer mil horas se não se consegue dormir nem
antecipar que vá haver brevemente uma pausa. E nós sabíamos outra coisa.
A Semana Infernal era um jogo mental. Os instrutores usavam o nosso
sofrimento para nos ir retirando camadas e não para descobrir quais eram os
melhores atletas. O que eles queriam era encontrar as mentes mais fortes. E
isso é uma coisa que os que desistem não sabem, a não ser quando já é
demasiado tarde.
Tudo na vida é um jogo mental! Sempre que os dramas da vida, os
grandes e os pequenos, nos arrastam para o fundo, esquecemos que, por
muito intensa que seja a dor, por muito terrível que a tortura se revele, tudo
aquilo que é mau tem um fim. Esquecer isso acontece no segundo preciso
em que entregamos a outras pessoas o controlo das nossas emoções e ações
– o que pode acontecer com facilidade quando a dor está a atingir um ponto
culminante. Na Semana Infernal, os homens que desistiram sentiram-se a
correr numa roda, à velocidade máxima, e sem ter ao alcance nenhuma
plataforma para escapar. Mas, na verdade, tenham eles descoberto isso ou
não, tratava-se de uma ilusão – e eles caíram nela.
Eu entrei na Semana Infernal sabendo que era eu quem me tinha
conduzido lá, que queria lá estar, e que possuía todas as ferramentas
necessárias para triunfar neste jogo lixado. Isso dava-me a paixão para
perseverar e para reivindicar o controlo sobre a experiência. Permitia-me
jogar forte, dobrar as regras e procurar obter uma vantagem onde e quando
fosse possível, até a sineta tocar ao fim da tarde de sexta-feira. Para mim,
isto era uma guerra – e os inimigos eram os instrutores que nos queriam
quebrar e fazer desistir! Ter nas mãos a agenda deles ajudar-nos-ia como
que a encurtar o tempo, por sabermos o que viria a seguir, e, mais do que
isso, dar-nos-ia uma vitória logo à partida. O que, por sua vez, nos daria
alguma coisa a que nos agarrarmos durante a Semana Infernal em que estes
cabrões nos estavam a dar uma tareia.
“Ouve, meu, não estou a brincar”, disse. “Precisamos desse horário!”
Vi, no lado oposto da sala, Kenny Bigbee, o outro negro que havia na
Classe 231, levantar o sobrolho. Ele também tinha estado na minha primeira
turma das provas BUD/S e lesionara-se imediatamente antes da Semana
Infernal. Estava igualmente de regresso para uma segunda tentativa. “Oh,
merda! O David Goggins voltou…”
O Kenny fez um sorriso largo – e, a seguir, começou a rir à gargalhada.
Ele tinha estado no gabinete dos instrutores, à escuta, quando os médicos
procuravam afastar-me da minha primeira Semana Infernal. Foi durante um
exercício com troncos durante o treino físico. As tripulações estavam a
carregar troncos, na praia, para cima e para baixo, os homens encharcados e
cobertos de sal e de areia. Eu corria com um tronco aos ombros e a vomitar
sangue. Uma mistura de muco e sangue corria-me do nariz e da boca e os
instrutores agarravam-me periodicamente e obrigavam-me a sentar, porque
pensavam que eu ia cair morto de um momento para o outro. Mas de cada
vez que se voltavam para o lado, eu estava de regresso à ação. A carregar o
tronco.
Nessa noite, pela rádio, o Kenny esteve sempre a ouvir o mesmo refrão.
Havia uma voz que dizia: “Temos de tirar o Goggins daqui.”
“Entendido, senhor. O Goggins está sentado”, respondia outra voz.
Então, ao fim de um bocado, o Kenny voltava a escutar a rádio: “Oh,
merda! O Goggins está outra vez a carregar o tronco. Repito: o Goggins
está outra vez com o tronco!”
O Kenny adorava contar esta história. Era um tipo de 1,55 metros e 77
quilos, mais baixo do que eu e não pertencia à nossa tripulação, mas eu
sabia que podíamos confiar nele. Na verdade, não havia ninguém melhor
para executar a missão. Na Classe 231, o Kenny foi encarregue de manter
limpo e arrumado o escritório do instrutor principal – o que significa que
tinha acesso. Nessa noite, ele entrou em pontas dos pés em território
inimigo, encontrou o horário num ficheiro, sacou uma cópia e pôs tudo no
lugar antes de alguém reparar. Assim, de uma maneira tão simples,
tínhamos alcançado a primeira vitória mesmo antes de ter sequer começado
o maior jogo mental das nossas vidas.
Claro que saber que uma coisa vai acontecer é apenas uma pequena parte
da batalha. Porque, na verdade, tortura é tortura, e na Semana Infernal, a
única maneira de chegar ao fim é suportá-la. Com um olhar, ou só com
umas palavras, eu assegurava-me de que a nossa tripulação estava a dar o
máximo a todos os momentos. Dávamos o máximo na praia, a segurar no
barco por cima da cabeça ou a correr para cima e para baixo a carregar uns
troncos filhos da puta, e, na tortura das ondas, enquanto íamos entrando no
oceano Pacífico, eu entoava a canção mais épica e mais triste do filme
Platoon.
O cinema sempre me inspirou. Rocky ajudou-me a conseguir motivação
para alcançar o sonho de ser aceite no treino SEAL, mas Platoon ia ajudar-
me, a mim e à minha tripulação, a encontrar uma capacidade extra durante
as noites escuras da Semana Infernal, quando os instrutores troçavam da
nossa dor, diziam que éramos patéticos e nos enviavam repetidamente ao
encontro das ondas. O adágio para cordas era a banda sonora de uma das
minhas cenas favoritas de Platoon, e, rodeado por um nevoeiro que nos
abraça e nos gela os ossos, eu esticava os braços como Elias ao ser atingido
a tiro pelos Vietcong – e cantava a plenos pulmões. Na Primeira Fase,
tínhamos todos visto o filme, e a minha encenação tinha um efeito duplo:
irritar os instrutores e motivar a minha equipa. Encontrar momentos de riso
no meio da dor e do delírio virava de pernas para o ar toda a experiência
melodramática. Dava-nos algum controlo sobre as nossas emoções. Repito:
isto era tudo um jogo mental – e eu tinha a puta da certeza de que não ia
perder.
Mas os jogos mais importantes dentro do jogo eram as competições que
os instrutores organizavam entre as tripulações. Nas BUD/S, quase tudo era
uma competição. Corríamos para cima e para baixo na praia carregados com
barcos e com troncos. Tínhamos corridas de remos e até fizemos a maldita
pista de obstáculos levando um barco ou um tronco. Ou então carregávamos
com eles enquanto nos equilibrávamos em vigas estreitas, sobre troncos que
giravam ou a atravessar pontes em corda. Lançávamos o barco por cima de
um muro alto ou deixávamo-lo ao pé de uma rede de carga de nove metros
de altura e, a seguir, tínhamos de trepar pela maldita coisa. A equipa
vencedora era quase sempre recompensada com descanso e as que perdiam
tinham direito a mais umas tareias extra aplicadas pelo Psicopata. Eram
obrigadas a fazer flexões e abdominais em areia molhada, e sprints à beira
da água, com os corpos já a tremer de exaustão, o que era sentido como um
fracasso em cima de um fracasso. Claro que o Psicopata lhes dizia isso com
todas as letras. Ria na cara deles enquanto acossava os que desistiam.
“És absolutamente patético”, dizia. “Espero que desistas, porque se te
deixarem continuar, vais fazer com que nos matem a todos!”
Vê-lo humilhar os meus companheiros de curso causava-me uma
sensação dupla. Por um lado, não me importava que ele fizesse o seu
trabalho, mas ele era um rufião – e eu nunca gostei de rufiões. Desde que
regressara às BUD/S, ele tinha-me tomado de ponta e, desde cedo, decidi
mostrar-lhe que não me conseguia afetar. Entre episódios de tortura nas
ondas, quando a maior parte dos recrutas se apertava uns contra os outros,
corpo contra corpo, para transferir calor, eu mantinha-me à margem. Os
outros todos tremiam. O meu corpo nem sacudia – e eu via como isso o
irritava.
Exercício na Semana Infernal
O único luxo que havia durante a Semana Infernal era a comida.
Tratavam-nos como reis. Havia omeletes, frango assado e batatas, bife, sopa
quente, massa com molho de carne, fruta de todos os tipos, bolachas,
refrigerantes, café e muito mais. O problema é que tínhamos de correr o
quilómetro e meio até lá, e regressar, com o barco de 90 quilos à cabeça. Eu
saía sempre do refeitório com uma sanduíche de manteiga de amendoim
enfiada no bolso molhado e com areia, para a devorar na praia quando os
instrutores não estivessem a olhar. Um dia, a seguir ao almoço, o Pete
Psicopata decidiu fazer-nos correr um bocadinho mais de um quilómetro e
meio. Aí pelos quatrocentos metros, quando ele aumentou o ritmo, tornou-
se óbvio que não nos encaminhava diretamente de regresso à Trituradora.
“É melhor manterem o ritmo, seus cabrões!”, gritou-nos, enquanto uma
das tripulações começava a atrasar-se. Eu olhei para os meus companheiros.
“Vamos acompanhar este cabrão! Quero que o gajo se foda!”
“Entendido”, respondeu o Freak Brown. Fiel à sua palavra, tinha ficado
comigo à frente, a segurar o barco – nos dois pontos mais pesados – desde
domingo à noite –, e estava cada vez mais forte.
O Psicopata levou-nos pela areia solta mais uns seis quilómetros. Tentou
tudo para nos deixar para trás, mas nós seguíamo-lo como uma sombra. Ele
fazia alterações de ritmo. Ora começava a sprintar, ora se agachava, de
pernas abertas, agarrando os tomates e a fazer “marcha de elefante”, ora
ainda se lançava a trote, ao ritmo de quem faz jogging, antes de arrancar
noutro sprint pela praia abaixo. Nessa fase, o barco mais próximo já ia uns
quatrocentos metros para trás, mas nós continuávamos a pisar-lhe os
calcanhares. Imitávamos todos os passos que ele fazia e recusávamos deixar
que aquele rufia tivesse alguma satisfação à nossa conta. Ele pode ter lixado
os outros todos, mas não a Tripulação Dois!
A Semana Infernal é uma ópera demoníaca, e vai em crescendo,
atingindo o auge na quarta-feira e continuando nesse plano até terminar, na
sexta-feira à tarde. Na quarta-feira, já estávamos todos desfeitos, irritados
ao máximo. Os corpos pareciam framboesas gigantes, a verter pus e sangue.
Mentalmente, éramos zombies. Os instrutores puseram-nos a fazer simples
levantamentos de barco e a verdade é que nos arrastávamos. Até a minha
tripulação mal conseguia erguer o barco. Entretanto, o Psicopata, o SBG e
os outros instrutores vigiavam-nos com atenção extrema, à procura de
debilidades como sempre.
Eu tinha um ódio genuíno aos instrutores. Eram o meu inimigo e eu
estava farto de ver como tentavam mexer com o meu cérebro. Olhei para o
Brown e, pela primeira vez nessa semana, pareceu-me frágil. Toda a
tripulação parecia. Merda, eu também me sentia péssimo. Tinha um joelho
do tamanho de uma toranja e cada passo que dava era como se incendiasse
os meus nervos, motivo pelo qual andava à procura de qualquer coisa que
me desse energia para continuar. Concentrei-me no Psicopata. Estava farto
daquele cabrão. Os instrutores pareciam tranquilos e confortáveis. Nós
estávamos desesperados e eles tinham aquilo de que nós precisávamos:
energia! Era o momento de virar o jogo de pernas para o ar e de ocupar
terreno nas cabeças deles.
Nessa noite, quando chegasse a hora de saída deles e conduzissem os
seus automóveis, para as suas casinhas, depois de uma merda de um turno
de oito horas, nós ainda estaríamos a dar o litro. Eu queria que eles não
deixassem de pensar na Tripulação Dois. Queria estar na cabeça deles
quando se metessem na cama com as mulheres. Queria ocupar tanto espaço
nessas cabeças que eles nem sequer conseguissem ficar com a piça tesa.
Para mim, isso seria tão fantástico como encostar-lhes uma faca aos
tomates. Por isso, implementei um processo a que chamo agora “Conquistar
Almas”.
Voltei-me para o Brown e perguntei-lhe: “Sabes porque te chamo
Freak?” Ele olhou para mim enquanto pousávamos o barco, para o
erguermos logo a seguir como se fôssemos autómatos ainda a funcionar,
mas já com a bateria a dar as últimas. “Porque és um dos tipos mais duros
que já vi na puta da vida!” Ele abriu um sorriso. “E sabes o que é que eu
digo a estes filhos da mãe que ali estão?” – apontei com o cotovelo para os
nove instrutores reunidos na praia, a beber café e a dizer parvoíces. “Digo-
lhes que se vão lixar!” Bill fez que sim com a cabeça e semicerrou os olhos
na direção dos gajos que nos atormentavam, enquanto eu me virava para o
resto da tripulação. “Agora, vamos levantar bem alto esta merda e mostrar-
lhes quem somos!”
“Porra, isso é lindo!”, disse o Bill. “Vamos lá!”
Em segundos, toda a minha equipa ficou cheia de energia. Não nos
limitámos a levantar e a pousar o barco: atirávamo-lo ao ar, apanhávamo-lo
por cima da cabeça, púnhamo-lo na areia e repetíamos tudo outra vez. Os
resultados foram imediatos e inegáveis. A dor e a exaustão desvaneceram-
se. A cada repetição, tornámo-nos mais rápidos e fortes e cantávamos cada
vez que lançávamos o barco ao ar.
“NÃO CONSEGUEM TOCAR NA TRIPULAÇÃO DOIS!”
Isto era um Vão-se lixar! para os instrutores – e eles prestavam toda a
atenção a este nosso segundo fôlego. No dia mais duro da semana mais dura
do treino mais duro do mundo, a Tripulação Dois movia-se a uma
velocidade relâmpago e, dessa maneira, fazia troça da Semana Infernal. A
cara dos instrutores dizia tudo. Estavam de boca aberta como se
presenciassem uma coisa nunca vista. Alguns até desviaram o olhar, quase
envergonhados. Só o SBG parecia satisfeito.
***
Desde essa noite na Semana Infernal, usei inúmeras vezes o conceito de
“conquistar almas”. Conquistar Almas é um passaporte para encontrarmos a
nossa reserva de energia e termos um segundo fôlego. É a ferramenta a que
podemos recorrer para ganhar qualquer competição ou para superar
qualquer obstáculo na vida. É possível usá-la para ganhar um jogo de
xadrez ou para derrotar qualquer adversário num daqueles conflitos de
escritório. Pode ajudar a conseguir bons resultados numa entrevista de
emprego ou na escola. E, sim, pode ser usada para ultrapassar todo o tipo de
desafios físicos. Mas lembre-se de uma coisa: trata-se de um jogo consigo
mesmo. A menos que esteja envolvido numa competição física, não estou a
sugerir que procure dominar alguém ou aniquilar o seu espírito. Na verdade,
ninguém precisa sequer de saber que está a fazer este jogo. É uma tática
para estar ao seu melhor nível sempre que o dever o chamar. É um jogo
mental consigo próprio.
Conquistar a alma de alguém significa ganhar uma vantagem tática. A
vida é toda ela sobre a procura de vantagens táticas – e foi por isso que
roubámos o calendário da Semana Infernal, que andámos a pisar os
calcanhares do Psicopata e que dei espetáculo no meio das ondas a trautear
a música do Platoon. Cada episódio desses foi um gesto de desafio que nos
conferiu poder.
Mas o desafio nem sempre é a melhor maneira de tomar a alma de
alguém. Tudo depende do terreno em que estamos. Nas provas BUD/S, os
instrutores não se importavam se procurássemos vantagens como essa.
Respeitavam isso, desde que estivéssemos a dar tudo. É preciso fazer o
trabalho de casa. Conhecer o terreno em que se opera, saber quando e onde
esticar os limites e quando alinhar com a norma.
A seguir, é preciso realizar um inventário da mente e do corpo na véspera
da batalha. Fazer uma lista das inseguranças e das fraquezas – e também das
inseguranças e fraquezas do adversário. Por exemplo, se um rufião anda a
acossá-lo, e sabe onde se sente insuficiente ou inseguro, pode adiantar-se a
qualquer insulto ou crítica que ele possa fazer. Pode rir-se de si juntamente
com ele – e isso tira-lhe poder. Se levar menos a peito aquilo que ele disser
ou fizer, então ele fica sem trunfos. Por outro lado, pessoas que estão
seguras de si não andam a acossar outras pessoas. Cuidam é dos outros. Ou
seja, se alguém o estiver a acossar, isso é um sinal de que se trata de alguém
com áreas problemáticas que podem ser exploradas ou auxiliadas. Sim, às
vezes, a melhor maneira de derrotar um rufião que nos persegue é ajudá-lo.
Se estiver dois ou três passos à frente dele, conseguirá controlar o seu
processo de pensamento; e, chegado aí, conquistará a alma dele sem ele dar
conta.
Os instrutores SEAL eram os nossos rufiões – e não repararam nos jogos
que eu andei a fazer a semana inteira para manter focada a Tripulação Dois.
E não tinham de o fazer. Parti do princípio de que eles estavam obcecados
com as nossas proezas durante a Semana Infernal, mas não tenho a certeza.
Foi uma tática que utilizei para manter a minha vantagem mental e ajudar a
minha equipa a ser bem-sucedida.
Da mesma maneira, se está a enfrentar um concorrente para uma
promoção, e sabe quais são as suas insuficiências, pode trabalhar isso antes
da sua entrevista ou avaliação. Num cenário destes, rir das próprias
fraquezas não resolverá o problema. É preciso dominá-las. Entretanto, se
tiver uma noção das fraquezas do adversário, pode explorá-las em seu
benefício, mas tudo isso implica investigação. Repito: conheça o terreno em
que se move, conheça-se a si mesmo, e é bom que conheça bem, ao
pormenor, o adversário.
Uma vez no calor da batalha, tudo dependerá da capacidade de
resistência. Se se tratar de um desafio físico difícil, terá provavelmente de
derrotar os seus próprios demónios antes de conseguir conquistar a alma do
seu adversário. Isso significa ensaiar respostas à pergunta simples que
seguramente vai surgir como uma bolha de pensamento: “Porque é que aqui
estou?” Se souber que esse momento se aproxima e tiver a sua resposta
preparada, estará equipado para tomar a decisão instantânea de ignorar a sua
mente enfraquecida e avançar. Saiba por que motivo está a lutar para
continuar a lutar!
E nunca esqueça de que toda a angústia emocional e física é finita! Tudo
chega ao fim. Sorria à dor e veja como ela se desvanece durante pelo menos
um ou dois segundos. Se for capaz de fazer isso, pode juntar esses segundos
e resistir mais do que o que o seu adversário julga possível, o que pode ser o
suficiente para conseguir um segundo fôlego. Não há um consenso
científico sobre o segundo fôlego. Alguns cientistas pensam que seja o
resultado de endorfinas que inundam o sistema nervoso, outros julgam
tratar-se de um afluxo de oxigénio capaz de dissolver o ácido láctico, assim
como de fornecer o glicogénio e os triglicerídeos de que os músculos
precisam para funcionar. Outros dizem que é puramente psicológico. Tudo o
que eu sei é que, ao darmos tudo quando nos sentíamos derrotados,
conseguimos um segundo fôlego na pior de todas as noites na Semana
Infernal. E, com esse segundo fôlego do nosso lado, é fácil quebrar o
adversário e conquistar a sua alma. O difícil é chegar a esse ponto, porque o
bilhete para a vitória depende com frequência de tirar o melhor de nós
quando nos sentimos pior.
***
Depois do triunfo nas elevações do barco, toda a turma foi agraciada com
uma hora de sono numa grande tenda militar verde que tinham montado na
praia e equipado com camas do exército. Aquela merda nem colchão tinha,
mas para nós eram como nuvens de luxo feitas de algodão: assim que nos
pusemos na horizontal, adormecemos todos.
Ah, mas o Psicopata ainda não tinha acabado a questão que tinha
comigo. Deixou-me dormir por apenas um minuto e, a seguir, acordou-me e
levou-me para a praia, para algum tempo frente-a-frente. Espreitou uma
oportunidade para me lixar finalmente a cabeça e, enquanto caminhava
sozinho para a água, sentia-me realmente desorientado. Mas o cabrão do
frio acordou-me. Decidi saborear a minha hora privativa extra de tortura nas
ondas. Já com a água pelo meio do peito, comecei a entoar mais uma vez o
Adágio para Cordas. Agora mais alto. Suficientemente alto para aquele
filho da mãe me ouvir, até com o barulho da rebentação. Aquela canção
salvou-me a vida!
Eu tinha vindo para o treino dos SEAL para ver se era suficientemente
duro para fazer parte da unidade e descobri em mim um animal interior que
nem sabia que existia. Um animal ao qual recorreria a partir desse
momento, sempre que a vida me corresse mal. No momento em que emergi
das águas do oceano, considerava-me invencível.
Se ao menos fosse…
A Semana Infernal cobra um preço a todos e, nessa noite, a 48 horas do
fim, fui ao médico para levar uma injeção de Toradol no joelho, para
diminuir o inchaço. De regresso à praia, vi as tripulações todas na água, a
fazer um exercício de remo. As ondas rebentavam com força e o vento era
intenso. O Psicopata olhou para o SBG: “Que raio é que vamos fazer com
este?”
Ele hesitava pela primeira vez – cansado de tentar vencer-me. Eu estava
preparado, pronto para qualquer desafio, mas ele já estava farto. Por ele,
mandava-me de férias para um spa. Foi nesse momento que soube que o
tinha superado; que tinha conquistado a alma dele. Mas o SBG tinha outras
ideias. Passou-me um colete salva-vidas e prendeu uma luz à parte de trás
do meu chapéu.
“Segue-me”, disse-me enquanto corria pela praia. Alcancei-o e andámos
para norte à vontade um quilómetro e meio. Já mal conseguíamos distinguir
os barcos e as suas luzes cintilantes por entre o nevoeiro e através das
ondas. “Muito bem, Goggins. Agora, vais a nado à procura do teu maldito
barco!”
Ele tinha acertado em cheio na minha insegurança mais profunda e
perfurado a minha confiança. Deixou-me num silêncio atordoado. Olhei
para ele de uma maneira que dizia: “Estás a gozar comigo, certo?” Eu já era
um nadador decente e a tortura das ondas não me assustava, porque não
estávamos assim tão distantes da praia, mas um percurso em águas abertas a
um quilómetro da costa, sob risco de hipotermia, a meio de uma tempestade
e para encontrar um barco sem ter puta de ideia de estar a dirigir-me para
ele? Parecia uma sentença de morte e eu não me tinha preparado para nada
do género. Mas, às vezes, o inesperado abate-se sobre nós como o caos e,
sem aviso, até os mais corajosos têm de estar prontos a correr riscos e a
empreender tarefas que parecem para lá das suas capacidades.
Para mim, naquele momento, resumia-se tudo a como é que eu queria ser
recordado. Podia ter recusado cumprir a ordem – e isso não me teria trazido
problemas porque não tinha um companheiro de nado (e no treino SEAL é
preciso estar sempre com um companheiro) e por ser evidente que ele me
pedia que fizesse uma coisa extremamente insegura. Mas eu também sabia
que o meu objetivo, ao ir para aquele treino, era mais do que chegar ao fim
com o tridente. Para mim, era a possibilidade de me comparar com os
melhores entre os melhores e para me distinguir da manada. Por isso,
embora nem fosse capaz de distinguir os barcos por entre as ondas alterosas,
não havia tempo para estar a remoer no medo. Nem sequer havia uma
escolha a fazer.
“De que é que estás à espera, Goggins? Mexe o teu maldito cu e não
lixes isto!”
“Entendido!”, gritei, começando a correr para as ondas. O problema é
que, com um colete salva-vidas, com um joelho ferido e de botas calçadas,
quase não conseguia nadar e era praticamente impossível mergulhar entre as
ondas. Tinha de seguir a espuma branca e, com a minha mente a gerir tantas
variáveis, o oceano parecia mais frio do que nunca. Comecei a engolir litros
de água. Era como se o mar me escancarasse a boca e inundasse todo o meu
organismo; a cada gole de água, o meu medo ia aumentando.
Não fazia ideia de que, em terra, o SBG se preparava para um resgate no
caso de acontecer o pior cenário possível. Eu não sabia que ele nunca tinha
colocado um homem na posição em que eu me encontrava. E também não
percebi que ele via em mim qualquer coisa de especial e que, como
qualquer líder forte, queria ver até onde é que eu aguentava, enquanto
espreitava a minha luz a andar para cima e para baixo, à superfície, cheio de
nervos. Foi ele que me contou isto tudo, numa conversa que tivemos há
pouco tempo. Mas, naquele momento, a única coisa que eu tentava era
sobreviver.
Consegui por fim passar a rebentação e nadei mais uns oitocentos metros
só para dar conta de que tinha seis barcos a vir na minha direção, que iam
entrando e saindo do meu campo visual graças a ondas de quase um metro e
meio provocadas pelo vento. Eles não sabiam que eu ali estava! A luz que
eu trazia era fraca e na zona baixa das ondas não conseguia ver nada. Fiquei
à espera que um deles surgisse disparado contra mim do cimo de uma onda
e me atropelasse. Só podia fazer uma coisa: ladrar no escuro, como se fosse
um leão marinho rouco.
“Tripulação Dois! Tripulação Dois!”
Foi um pequeno milagre os meus companheiros ouvirem-me. Deram a
volta ao barco e o Freak Brown agarrou-me com as suas manápulas e içou-
me como se fosse o melhor peixe que apanhara nesse dia. Fiquei caído no
meio do barco, de olhos fechados, a tiritar com violência pela primeira vez
em toda essa semana. Tinha tanto frio que era impossível disfarçar.
“Porra, Goggins, deves estar maluco! Estás bem?” Fiz que sim logo que
me recompus. Eu era o líder daquela tripulação e não podia permitir-me
mostrar fraqueza. Retesei cada músculo do meu corpo e quase
imediatamente os meus tremores diminuíram até pararem.
“É assim que se lidera na puta da frente de combate”, disse, enquanto
tossia água salgada como se fosse um pássaro ferido. Não consegui ficar
sério muito tempo. Eles sabiam perfeitamente que a ideia daquele exercício
de natação completamente maluco não tinha sido minha.
Com o relógio a aproximar-se do fim da Semana Infernal, estávamos na
fossa de provas, junto do famoso e estreito istmo Silver Strand de
Coronado. A fossa estava cheia de lama fria e tinha uma cobertura de água
gelada. Havia uma ponte em corda – duas linhas separadas, uma para os pés
e outra para as mãos – de um lado ao outro. Um a um, todos os homens
tinham de a atravessar, enquanto os instrutores agitavam aquela merda com
toda a força, tentando atirar-nos abaixo. Manter o equilíbrio nestas
circunstâncias exige uma tremenda força no centro do corpo – e nós
estávamos todos destroçados e no limite da resistência. Além disso, eu ainda
tinha o joelho todo lixado. Na verdade, até tinha piorado, motivo pelo qual
precisava de levar uma injeção a cada 12 horas. Mas ao ouvir gritar o meu
nome subi para a corda e, quando os instrutores começaram a agitá-la, fleti
os abdominais e agarrei-me a ela com toda a força que me restava.
Nove meses antes, tinha atingido o peso máximo de 135 quilos e nem
sequer era capaz correr quatrocentos metros. Nesse tempo, ao sonhar com
uma vida diferente, lembro-me de pensar que só o facto de superar a
Semana Infernal seria a maior honra que já conseguira na vida. Mesmo que
nunca concluísse com êxito as provas BUD/S, terminar a Semana Infernal
já significaria qualquer coisa. Mas eu não me limitei a sobreviver. Eu ia
acabar a Semana Infernal como o primeiro do meu grupo – e sabia, pela
primeira vez, que era um cabrão duro como tudo.
Houve um tempo em que me preocupava tanto com a possibilidade de
falhar que até tinha medo de tentar. Agora, estava pronto a enfrentar
qualquer desafio. Toda a minha vida tinha tido um medo pavoroso de água,
e em especial de água fria, mas ao estar ali, de pé, na hora derradeira,
desejei que o oceano, o vento e a lama fossem ainda mais frios!
Fisicamente, sofrera uma transformação completa, e isso explicava uma
grande parte do meu êxito nas provas BUD/S, mas aquilo que me fez
ultrapassar a Semana Infernal foi a minha mente. E eu ainda só começara a
explorar o seu poder.
Era nisso que pensava enquanto os instrutores davam tudo para me
atirarem abaixo da ponte em corda, como se eu estivesse a montar um touro
mecânico. Agarrei-me com força e cheguei tão longe como os outros da
Classe 231 antes de a natureza ganhar e de me atirar a rebolar para a lama
gelada. Limpei-a dos olhos e da boca e ri como um louco enquanto o Freak
Brown me ajudava a levantar. Não muito tempo depois, o SBG aproximou-
se da beira do poço.
“Semana Infernal terminada!”, gritou para os trinta que ainda
continuavam na fossa, todos a tremer. Estávamos todos feridos e
ensanguentados, inchados e tensos. “Rapazes, vocês fizeram um trabalho
incrível!”
Alguns tipos gritaram de alegria. Outros deixaram-se cair, de joelhos,
com lágrimas de felicidade nos olhos, e agradeceram a Deus. Eu também
olhei para os céus, puxei o Freak Brown para lhe dar um abraço e
cumprimentei toda a minha equipa com um high five. As outras tripulações
tinham perdido homens, mas a Dois não! Não só não tínhamos perdido
ninguém, como ganhámos todas as provas!
Continuámos a celebrar enquanto entrávamos num autocarro a caminho
da Trituradora. Tínhamos à espera uma piza grande para cada um, mais uma
garrafa de dois litros de Gatorade e a cobiçada t-shirt castanha. A piza soube
como um cabrão de um maná caído dos céus, mas as t-shirts tinham um
significado bem maior. Nas provas BUD/S, anda-se sempre com uma t-shirt
branca. Quando se sobrevive à Semana Infernal, ela é trocada por uma t-
shirt castanha. Era o símbolo de uma travessia até um nível superior e, ao
fim de uma vida inteira quase sempre a falhar, senti definitivamente que, na
minha vida, me encontrava num novo lugar.
Como todos os outros, procurei desfrutar do momento, mas há dois dias
que o meu joelho não estava nada bem e decidi sair dali e ir ao médico.
Quando me afastava, olhei para a direita e vi quase uma centena de
capacetes alinhados. Pertenciam aos homens que tinham tocado a sineta – e
a fila prolongava-se bem para lá da estátua, chegando ao posto de comando.
Li alguns nomes – e vi tipos de que eu gostava. Sei como se sentiam,
porque foi o que eu senti quando a minha classe de para-resgate concluiu o
curso sem mim. Essa recordação tinha-me dominado durante anos, mas
agora, depois de 130 horas passadas no inferno, deixara de me definir.
Nessa noite, todos os homens foram obrigados a ir ao médico, mas
tínhamos o corpo tão inchado que era difícil distinguir entre o que seriam
ferimentos e o que resultaria de um cansaço generalizado. Eu só sabia que
tinha o joelho triplamente lixado e que precisava de muletas para andar de
um lado para o outro. O Freak Brown saiu da consulta médica todo
amassado e cheio de nódoas negras. O Kenny saiu limpo e quase não
coxeava, mas estava muito maltratado. Felizmente, seguia-se a semana de
descanso. Eram sete dias para comer, beber e sarar antes de as coisas
voltarem a ser sérias. Não era muito tempo, mas o suficiente para que a
maior parte dos cabrões loucos que se tinham aguentado na Classe 231
ficassem bem.
E eu? O meu joelho inchado não tinha melhorado nada quando me
tiraram as muletas. Mas não havia tempo para choraminguices. A diversão
da Primeira Fase ainda não tinha acabado. A seguir a esta semana de
descanso, veio o chamado atar de nós. Pode não soar a grande coisa, mas
foi muito pior do que eu esperava, porque esse exercício específico
aconteceu no fundo da piscina, onde os mesmíssimos instrutores iriam fazer
todos os possíveis para tentar afogar o meu coirão, ainda por cima assente
só numa perna.
Foi como se o Diabo tivesse estado a assistir a todo o espetáculo, tivesse
aguardado pelo intervalo e estivesse agora prestes a começar a sua parte
favorita. Na noite antes de as provas BUD/S terem recomeçado com toda a
intensidade, era como se ouvisse as palavras dele a soarem na minha mente
stressada, enquanto andava às voltas na cama até de manhã.
Dizem que gostas de sofrer, Goggins. Dizem que pensas que és um
cabrão muito duro. Pois, então, diverte-te com a tua estadia prolongada no
inferno!
DESAFIO #4
Escolha uma qualquer situação competitiva em que se encontre neste
momento. Quem é o seu adversário? É o seu professor ou treinador, o chefe,
um cliente furioso? Não importa como o estão a tratar, só há uma maneira
de não só ganhar o respeito dele, mas de inverter a situação. A excelência.
Isso pode querer dizer tirar a nota máxima num exame, pensar numa
proposta ideal ou pulverizar uma meta de vendas. Seja o que for, quero que
trabalhe mais arduamente do que nunca nesse projeto ou nessa cadeira. Faça
tudo exatamente como lhe pedem – e proponha-se superar qualquer meta
que definam como resultado ideal.
Se o seu treinador não o põe a jogar o suficiente, faça treinos
excecionais. Entre em competição com o melhor da sua equipa e dê tudo
para o superar. Isto significa também dedicar tempo fora do campo: ver
vídeos para estudar as tendências do adversário, memorizar jogadas e
treinar no ginásio. Precisa de chamar a atenção desse treinador.
Se for o seu professor, então comece a fazer trabalho de alta qualidade.
Dedique tempo extra aos trabalhos. Escreva ensaios que o professor nem
pediu! Chegue cedo às aulas. Faça perguntas. Preste atenção. Mostre-lhe
quem é e quem quer ser.
Se for um chefe, trabalhe dia e noite. Chegue ao local de trabalho antes
dele. Saia depois de ele ir para casa. Faça de maneira a ele reparar nessa
merda – e ao chegar o momento de apresentar resultados ultrapasse as
expetativas máximas dele.
Seja quem for com que está a lidar, o seu objetivo é fazer com que eles
vejam que está a conseguir alguma coisa que eles não seriam capazes. Quer
que fiquem a pensar como você é extraordinário. Use o pensamento
negativo deles para dominar a tarefa a realizar, executando-a com tudo o
que tem. Trata-se de conquistar a puta da alma deles! A seguir, faça posts
sobre isto nas redes sociais, com as hashtags #canthurtme #takingsouls.
CAPÍTULO CINCO
MENTE BLINDADA
Doutor, não me lixe. A dois dias do fim da semana de descanso, fui a uma
consulta para avaliar a lesão. O médico enrolou para cima as minhas calças
de camuflado e assim que me apertou devagar o joelho direito, a dor
invadiu-me o cérebro. Mas eu não podia mostrar isso. Estava a representar.
Fazia aquele papel do recruta muito cansado, mas, tirando isso,
perfeitamente saudável, que cumpria as provas BUD/S, pronto para a
batalha – e se os queria enganar não podia esboçar sequer um esgar. Eu já
sabia que tinha o joelho lixado e que eram escassas as probabilidades de
completar mais cinco meses de treino só com uma perna, mas aceitar mais
um retrocesso significava ter de atravessar outra Semana Infernal – e isso
era demais para processar.
“O inchaço não diminuiu muito. Como é que sentes o joelho?”
O médico também estava a representar. Os candidatos a SEAL tinham
um acordo do género “não perguntes, não respondas” com a maior parte do
pessoal médico em serviço no Comando Naval de Guerra Especial. Eu não
ia facilitar o trabalho do médico ao revelar-lhe a verdade; e ele também não
ia enveredar pelo caminho da precaução e, dessa maneira, aniquilar o sonho
de um homem. Ele abriu a mão e a dor diminuiu. Tossi e a pneumonia
voltou outra vez a sacudir os meus pulmões, antes de sentir na pele a
verdade fria do estetoscópio.
Desde o fim da Semana Infernal, sempre que tossia cuspia bocados de
muco castanho. Nos primeiros dois dias, fiquei na cama, dia e noite, a
cuspi-los para uma garrafa de Gatorade, onde os guardava como se fossem
moedas de cêntimo. Mal conseguia respirar – e também não me conseguia
mexer grande coisa. Na Semana Infernal tinha sido um cabrão muito duro,
mas aquela merda chegara ao fim, e eu tinha de lidar com o facto de ter sido
marcado pelo Diabo (e também pelos instrutores).
“Está bem, dotor”, respondi. “Só um bocado rígido, nada mais.”
Eu precisava era de tempo. Sabia como ir suportando a dor e o meu
corpo respondera quase sempre com bons resultados. Não ia desistir só
porque havia uma dor a morder-me no joelho. Havia de passar. O médico
receitou-me medicamentos para diminuir a congestão nos pulmões e nas
narinas e deu-me ibuprofeno para o joelho. Ao fim de dois dias, respirava
melhor, mas ainda não conseguia dobrar a perna direita.
Ora isto seria um problema.
De todos os momentos nas provas BUD/S que eu pensava serem capazes
de me deitar abaixo, nunca me apareceu no radar um exercício de amarrar
nós. Mas, por outro lado, isto não eram os cabrões dos escoteiros. Estou a
falar de um exercício de amarrar nós debaixo de água, na zona da piscina
com quatro metros e meio de profundidade. E embora a água já não
despertasse em mim o medo mortal de outros tempos, o facto de eu ser uma
pessoa com grandes dificuldades em flutuar transformava qualquer
exercício dentro de água num potencial desaire, em especial se exigisse
permanecer à tona.
Mesmo antes da Semana Infernal, tínhamos efetuado exercícios na água.
Realizámos simulações de salvamentos com os instrutores e nadar
cinquenta metros debaixo de água sem barbatanas e de um só fôlego. Esse
exercício começou com um grande salto para a água seguido de um mortal
completo para anular qualquer impulso inicial. A seguir, sem usar a parede
como base para impulso, nadámos pelas pistas até ao fim da piscina de 25
metros. Aí podíamos usar a parede para ganhar impulso para o percurso de
volta. Fiz os cinquenta metros e pus a cabeça fora de água, desesperado por
ar. O coração bateu até a respiração se acalmar e tive então consciência de
que superara o primeiro de uma série de exercícios subaquáticos
complicados, cuja função era ensinar-nos a permanecermos calmos,
tranquilos e serenos enquanto sustínhamos a respiração debaixo de água.
O exercício dos nós era o que se seguia nesta série e não era para avaliar
a capacidade para fazer nós variados nem uma forma para cronometrar o
máximo de tempo que conseguíamos ficar sem respirar. Claro que as duas
coisas dão jeito em operações anfíbias, mas este exercício era mais sobre a
capacidade para lidar com fatores de stresse múltiplos, e simultâneos, num
ambiente adverso aos humanos. Apesar do meu estado de saúde, abordei o
exercício com alguma confiança. As coisas mudaram quando comecei a
flutuar.
Foi logo que o exercício começou, com oito recrutas em fila dentro de
água, a mexer as mãos e os pés como batedeiras. Para mim, isso já é difícil
com duas pernas saudáveis, mas como o joelho direito não funcionava, eu
era obrigado a fazer o trabalho só com a esquerda. O grau de dificuldade
aumentava assim exponencialmente – e o meu ritmo cardíaco também, o
que, por sua vez, esgotava a minha energia.
Cada um de nós tinha um instrutor designado para este exercício – e o
Pete Psicopata pediu especificamente para ficar comigo. Era evidente que
eu passava por dificuldades e o Psicopata, mais o seu orgulho ferido, estava
ávido de uma vingançazinha. Cada volta que eu dava com a perna direita
enviava-me ondas de dor por todo o corpo, explodindo como fogo de
artifício. Mesmo com o Psicopata a olhar-me fixamente, não consegui
esconder. E, quando eu fazia uma careta, ele sorria. Parecia um miúdo na
manhã do dia de Natal.
“Faz um nó quadrado! Agora, um de bolina!”, gritava. Eu trabalhava tão
esforçadamente que era difícil recuperar o fôlego, mas o Psicopata estava-se
a cagar. “Já, porra!” Eu engoli ar, dobrei a cintura e dei um impulso com as
pernas para baixo.
O exercício incluía ao todo cinco nós e cada recruta devia pegar nos seus
vinte centímetros de corda e dar um nó de cada vez no fundo da piscina.
Entre cada um era permitido vir à tona de água respirar, mas também
podiam fazer-se os cinco de um só fôlego. O instrutor anunciava os nós,
mas o ritmo dependia de cada um. Não era autorizado usar máscara nem
óculos de mergulho e o instrutor tinha de erguer o polegar em sinal de que
aprovava cada nó antes de nos ser permitido regressar à superfície. Se o
polegar ficasse para baixo, tínhamos de repetir o nó, corretamente; se
subíssemos antes de sinalizado o OK, isso significava uma reprovação e o
bilhete de volta para casa.
Já de regresso à superfície, não havia descanso ou pausa entre tarefas.
Flutuar era uma constante, o que implicava ritmos cardíacos acelerados e
um permanente consumo do oxigénio na corrente sanguínea para um
homem que tinha apenas uma perna útil. Traduzindo: os mergulhos eram
muitíssimo dolorosos e desmaiar era uma possibilidade real.
O Psicopata olhava para mim fixamente através da sua máscara,
enquanto eu trabalhava nos meus nós. Ao fim de trinta segundos, ele tinha
aprovado dois e viemos ambos à superfície. Ele respirava livremente e com
facilidade, mas eu arfava e engolia ar como um cão molhado e cansado. A
dor no joelho era tão má que sentia gotas de suor a formarem-se na testa.
Quando se está a transpirar numa piscina sem aquecimento já se sabe que há
uma merda qualquer que não está bem. Eu estava sem fôlego, com pouca
energia e queria desistir, mas isso significava o adeus às provas BUD/S – e
isso era coisa que não ia acontecer.
“Oh, coitadinho, estás com dores, Goggins? Entrou-te areia para a
vagina, foi?…”, perguntou-me o Psicopata. “Aposto que não consegues dar
os últimos três nós num só fôlego.”
Disse isto com um sorriso de troça, como se estivesse a desafiar-me. Eu
sabia as regras. Não tinha de aceitar o desafio do Psicopata, mas só isso já ia
deixá-lo demasiado contente – e eu não podia permitir. Fiz que sim com a
cabeça e continuei a flutuar, atrasando o momento de mergulhar até a
pulsação normalizar e eu ser capaz de uma inspiração grande e revigorante.
Mas sempre que eu abria a boca, ele atirava-me água para a cara, para me
stressar ainda mais, uma tática que era usada quando os recrutas
começavam a entrar em pânico. Isso fez com que respirar se tornasse
impossível.
“Ou mergulhas, ou chumbo-te!”
O meu tempo tinha-se esgotado. Procurei engolir algum ar antes de
mergulhar, mas apanhei foi com um bocado da água que o Psicopata me
atirou, enquanto me afundava numa retenção de respiração negativa. Tinha
os pulmões quase completamente vazios, o que queria dizer que comecei
em sofrimento desde o início, mas fiz o primeiro nó em poucos segundos. O
Psicopata demorou o seu tempo a examinar o meu trabalho. Eu tinha o
coração aos saltos como se houvesse um alerta máximo em código Morse.
Sentia-o a mover-se no peito, como se procurasse libertar-se da minha caixa
torácica e voar em liberdade. O Psicopata olhou para o nó, mexeu-lhe e
examinou-o com os olhos e os dedos, antes de erguer o polegar em câmara
lenta. Eu abanei a cabeça, desatei-o e lancei-me ao seguinte. Ele voltou a
inspecioná-lo demoradamente, enquanto o meu peito ardia e o diafragma
estava contraído ao máximo, a tentar empurrar algum ar para os meus
pulmões vazios. O nível de dor no joelho era dez numa escala de dez.
Comecei a ver estrelas no campo de visão periférica. Essas múltiplas fontes
de stresse faziam-me tremer como uma torre de Jenga e sentia-me à beira de
desmaiar. Se isso acontecesse, estaria dependente do Psicopata para me
levar para a superfície e me reanimar. Podia confiar nele para fazer isso? O
gajo detestava-me. E se ele não o fizesse? E se o meu corpo estivesse tão
esgotado que nem uma manobra de reanimação me devolvesse à vida?
A minha mente andava às voltas com todas estas perguntas simples e
tóxicas que nunca se vão embora de vez. Porque estava eu ali? Porquê
sofrer, se podia desistir e regressar ao conforto? Porquê correr um risco de
morte por causa de uma merda de um exercício com nós? Eu sabia que, se
sucumbisse e subisse à superfície, a minha carreira nos SEAL acabaria ali e
agora, mas, nesse momento, não era capaz de dizer porque é que isso me
tinha alguma vez importado.
Voltei-me para olhar para o Psicopata. Ele tinha os dois polegares
erguidos e um sorriso pateta afixado na cara, como se estivesse a ver uma
merda de uma série para rir. O seu microssegundo de prazer por causa da
minha dor trouxe-me à lembrança todos os abusos e troças que tinha sentido
em adolescente, mas em vez de me fazer de vítima e de deixar que as
emoções negativas me retirassem a energia e me obrigassem a subir à
superfície, fracassando, foi como se uma nova luz cintilasse no cérebro e me
permitisse dar à volta ao argumento.
O tempo parou enquanto eu me dava conta, pela primeira vez, de que
tinha sempre olhado para a vida inteira, para tudo aquilo por que tinha
passado, da perspetiva errada. Sim, todos os abusos que eu sentira e os
pensamentos negativos que tivera de contrariar desafiaram-me até ao mais
íntimo de mim, mas, nesse momento, deixei de me ver como a vítima de
uma má circunstância e, em vez disso, olhei para a minha vida como se
fosse o mais absoluto dos campos de treino. Ao longo deste tempo, as
minhas desvantagens tinham estado a fortalecer a minha mente e tinha-me
preparado para aquele momento preciso, na piscina, com o Pete Psicopata.
Lembro-me do meu primeiro dia no ginásio no Indiana. Tinha as palmas
das mãos suaves e depressa ficaram feridas, por não estarem habituadas a
agarrar em barras de aço. Na mentalidade, aplica-se o mesmo princípio. Até
se passarem provações, como abusos e assédios, a mente continuará num
estado suave e exposto. A vida, em especial as experiências negativas, ajuda
a calejá-la. Mas onde surgirá esse calo depende de cada um. Se escolhermos
olhar para nós, até à idade adulta, como vítimas das circunstâncias, a
calosidade vai transformar-se num ressentimento que nos protege daquilo
que não é familiar. Vai tornar-nos demasiado cautelosos e desconfiados – e,
provavelmente, excessivamente zangados com o mundo. Vai tornar-nos
receosos da derrota e inacessíveis, mas não nos dará uma mente forte. Era aí
que me encontrava em adolescente, mas depois da minha segunda Semana
Infernal tinha-me tornado outra pessoa. Já tinha lutado para superar muitas
situações horríveis e continuava aberto e pronto para mais. Essa minha
capacidade para permanecer aberto demonstrava a vontade de lutar pela
minha própria vida, o que me permitia enfrentar verdadeiras tempestades de
dor – e usar essa dor para calejar a minha suave mentalidade de vítima. Essa
merda tinha desaparecido, sepultada sob camadas de transpiração e carne
martirizada –, e agora iniciava também o processo de calejar os meus
medos. Entender isso deu-me a vantagem mental de que necessitava para,
mais uma vez, levar a melhor sobre o Pete Psicopata.
Para lhe mostrar que já não me conseguia fazer mal, sorri-lhe de volta – e
desvaneceu-se a sensação de estar à beira do desmaio. De repente, senti-me
cheio de energia. A dor diminuiu e eu senti que podia ficar debaixo de água
o dia inteiro. O Psicopata viu isso nos meus olhos. Fiz o último nó sem
pressas, sempre a olhar para ele. Fez-me um gesto com as mãos para me
despachar, enquanto o seu diafragma se contraía. Finalmente, acabei, ele
fez-me um gesto afirmativo rápido e bateu com os pés para chegar à
superfície, desesperado por respirar. Eu levei o meu tempo, juntei-me a ele à
superfície e vi-o a arfar, enquanto eu me sentia estranhamente descontraído.
Eu tinha desistido quando as coisas me correram mal no treino aquático de
Para-resgate na Força Aérea. Desta vez, vencera uma batalha importante
dentro de água. Era uma grande vitória, mas a guerra não tinha terminado.
Depois de passar o exercício dos nós, tínhamos dois minutos para subir
para a beira da piscina, vestir-nos e regressarmos à sala de aulas. Na
Primeira Fase, isso é, em geral, tempo mais do que suficiente, mas muitos –
não era só eu – ainda estávamos no processo de recuperação da Semana
Infernal e não nos movíamos ao ritmo-relâmpago habitual. Além do mais,
depois de passada a Semana Infernal, houve na Classe 231 uma ligeira
mudança de atitude.
A Semana Infernal é projetada para mostrar aos recrutas que um ser
humano é capaz de muito mais do que aquilo que pensa. Abre a mente às
verdadeiras possibilidades do potencial humano e, com isso, vem uma
mudança na mentalidade. Deixa-se de recear a água fria ou fazer flexões
todo o dia. Percebe-se que, não importa o que nos façam, nunca nos vão
vencer, e por isso já não nos apressamos tanto para cumprir os prazos
arbitrários que são fixados. Sabes que, se não os cumprires, serás castigado;
o que significa flexões, ficar molhado e areado, tudo coisas que elevem o
coeficiente de dor e de incómodo, mas para os grunhos como nós que ainda
continuavam no grupo, a atitude era Que se lixe! Já ninguém tinha medo
dos instrutores – e não íamos apressar-nos. E eles não gostaram disso nem
um bocadinho.
Eu já tinha visto muitas tareias nas provas BUD/S, mas aquela que nos
aplicaram nesse dia vai ficar como uma das piores de todos os tempos.
Fizemos flexões até já não nos conseguirmos levantar do solo, e depois
fizeram-nos deitar de costas e fazer elevações de pernas. Cada pontapé no ar
era uma tortura para mim. Por causa da dor, continuava a baixar as pernas.
Ou seja, mostrava fraqueza. E, quando se mostra fraqueza, É QUANDO
COMEÇA O JOGO!
O Psicopata e o SBG revezaram-se à minha volta. Passei das flexões aos
pontapés no ar e ao correr a quatro até eles se cansarem. Sentia as partes
móveis do meu joelho a mudarem de lugar, a flutuarem e a oscilarem de
cada vez que andava a quatro – e era uma sensação de agonia. Movia-me
mais lentamente do que o normal e sabia que estava desfeito. Voltou a
surgir-me aquela pergunta simples: Porquê? Tentava provar o quê? Desistir
parecia a opção saudável. O conforto da mediocridade parecia um alívio
doce, até que o Psicopata me gritou aos ouvidos:
“Mexe-te mais depressa, cabrão!”
Mais uma vez, fui invadido por uma sensação extraordinária. Desta vez,
o foco não era vencê-lo a ele. Eu enfrentava a pior dor que alguma vez
suportara, mas a vitória que alcançara minutos antes na piscina veio de novo
ao meu encontro. Eu tinha finalmente provado a mim mesmo que, dentro de
água, era suficientemente competente para pertencer aos SEAL. Ora, isso
era tremendamente estimulante para um tipo com uma capacidade de flutuar
negativa e que nunca na vida tivera uma aula de natação. E só cheguei a
esse ponto porque fiz o trabalho que era preciso. A piscina tinha sido a
minha kriptonite. Eu era um nadador muito melhor nesta fase de recruta dos
SEAL, mas os exercícios na água ainda me stressavam tanto que eu, até
depois de um dia de treinos, ainda costumava ir nadar pelo menos três vezes
por semana. Escalava o muro de quatro metros e meio só para conseguir
acesso fora de horas. Para além da área académica, nada me assustava tanto
nas provas BUD/S como os exercícios de natação; ao dedicar-lhes tempo
extra, conseguia criar resistência a esse medo e, debaixo de água, sob
pressão, atingir novos níveis.
Enquanto o Psicopata e o SBG me arrasavam, pensei como era incrível o
poder de uma mente calejada ao cumprir uma tarefa – e esse pensamento
tornou-se uma sensação que tomou conta do meu corpo e me fez andar à
volta da piscina com a velocidade de um urso. Eu nem acreditava no que
estava a fazer. A dor intensa tinha desaparecido – e as perguntas aborrecidas
também. Eu estava a dar tudo, mais do que nunca, a superar os limites
impostos pela lesão e pela tolerância à dor e a aproveitar um segundo fôlego
proporcionado por uma mente calejada.
Depois do andar à urso, puseram-me outra vez deitado de costas aos
pontapés no ar. E continuava sem dores! Meia hora depois, quando saíamos
da piscina, o SBG perguntou-me: “Goggins, que raio de merda é que te
entrou pelo cu acima para te transformares no Super-homem?” Eu limitei-
me a sorrir e fui-me embora. Não queria dizer nada, porque ainda não
compreendia aquilo que hoje sei.
Assim como se pode usar a energia de um adversário para conseguir uma
vantagem, também depender da mente calejada no calor da batalha pode
mudar o pensamento. Recordar aquilo por que passámos e como isso nos
reforçou a mentalidade pode elevar-nos, para sair de um ciclo mental
negativo e ultrapassar os impulsos de fraqueza, instantâneos, que nos
impelem a desistir, para podermos superar com força os obstáculos. E
quando se usa como alavanca uma mente calejada, como eu fiz na piscina
naquele dia, e se continua a lutar apesar da dor, isso pode ajudar-nos a ir
além dos limites, porque, se aceitarmos a dor como um processo natural e
recusarmos ceder e desistir, vamos envolver o sistema nervoso simpático, o
que modifica o fluxo hormonal.
O sistema nervoso simpático é o nosso reflexo de lutar ou fugir. Está
ativo logo abaixo da superfície, e se estamos perdidos, numa situação
stressante ou em dificuldades, como eu quando era um adolescente
deprimido, é essa a parte da mente que está a controlar a situação. Já todos
passámos por uma situação destas. Naquelas manhãs em que ir correr é a
última coisa que apetece, mas em que, vinte minutos depois de termos
começado, temos uma sensação de energia, a culpa é do sistema nervoso
simpático. O que eu descobri é que podemos recorrer a ele desde que
saibamos manejar a nossa própria mente.
Se permitirmos falar de nós próprios de maneira negativa, as vantagens
de uma resposta do sistema nervoso simpático ficarão fora do nosso
alcance. No entanto, se formos capazes de gerir esses momentos de dor que
estão associados ao esforço máximo, lembrando-nos daquilo por que
tivemos de passar para chegar a esse ponto da vida, estaremos numa posição
melhor para perseverar e para preferir a opção de lutar à de fugir. Isto
permitir-nos-á usar a adrenalina associada a uma resposta do sistema
simpático para nos esforçarmos ainda mais.
Os obstáculos no trabalho e na escola também podem ser superados com
uma mente calejada. Nesses casos, é pouco provável que perseverar num
ponto específico desencadeie uma resposta do sistema simpático, mas
manterá a motivação para ultrapassar qualquer dúvida que surja sobre as
capacidades próprias. Seja qual for o propósito, a oportunidade para
duvidarmos de nós está sempre presente. Sempre que se decide perseguir
um sonho ou fixar uma meta, é igualmente provável que venham à mente
todas as razões pelas quais é baixa a probabilidade de êxito. Podemos lançar
as culpas disto sobre a lixada engrenagem evolutiva da mente humana. Mas
não é preciso deixar que as dúvidas entrem na cabine de comando! Podemos
tolerar a dúvida quando ela vai como passageira no banco de trás, mas se
permitirmos que seja ela a conduzir, a derrota está garantida. Recordar que
já antes se enfrentaram dificuldades e que se sobreviveu sempre, para voltar
a lutar, tem o condão de alterar a conversa que se desenrola na nossa
cabeça. Vai permitir o controlo e a gestão das dúvidas e manter-nos focados
em dar todos e cada um dos passos necessários para concretizar a tarefa em
causa.
Parece simples, certo? Pois não é. Muito poucas pessoas se dão ao
trabalho de procurar controlar a forma como lhes surgem os pensamentos e
as dúvidas. A vasta maioria é escrava das suas mentes. A maior parte nem
sequer dá o primeiro passo para controlar o seu processo de pensamento,
porque é uma tarefa que nunca acaba – e que é impossível realizar sempre
bem. Uma pessoa média tem entre dois mil e três mil pensamentos por hora.
Ou seja, trinta a cinquenta por minuto! O guarda-redes vai deixar passar
alguns desses remates. É inevitável. Em especial se a atitude for a de seguir
pela vida sem esforço.
O treino físico é o tubo de ensaio perfeito para aprender a gerir o
processo de pensamento, porque, ao fazer exercício, é mais provável que a
concentração esteja dirigida numa só direção – e a resposta ao stresse e à
dor seja imediata e mensurável. Vai dar tudo e estabelecer o tal recorde
pessoal que disse que seria capaz ou vai fracassar? Esse desfecho raramente
depende da capacidade física, é quase sempre um teste a quão bem se está a
controlar a mente. Se se esforçar para cumprir cada série de exercícios e
usar essa energia para manter um ritmo forte, tem uma grande hipótese de
alcançar um tempo mais rápido. Não há dúvida de que é mais fácil
conseguir isso nuns dias do que noutros. E o cronómetro, ou o registo, não
importa de qualquer forma. O motivo pelo qual é importante dar o máximo
nas alturas em que se quer desistir é porque isso ajuda a calejar a mente. É a
mesma razão pela qual é preciso trabalhar melhor quando se está menos
motivado. Foi por isso que adorei o treino físico nas provas BUD/S – e
porque ainda hoje o adoro. Os desafios físicos fortalecem a minha mente,
para estar pronto para tudo aquilo que a vida me puser pela frente. Também
farão isso por si.
Mas, por muito bem que se façam as coisas, uma mente calejada não
cura ossos partidos. Na caminhada de quilómetro e meio de regresso ao
complexo BUD/S, a sensação de vitória evaporou-se e pude sentir o mal
que tinha feito a mim próprio. Tinha vinte semanas de treino e dezenas de
exercícios pela frente e mal conseguia andar. Queria negar a dor que tinha
no joelho, mas sabia que estava lixado, por isso fui diretamente ao médico,
a coxear.
Ao observar o joelho, o médico não disse nada. Limitou-se a abanar a
cabeça e mandou-me fazer uma radiografia que revelou uma fratura da
rótula. Nas provas BUD/S, quando os reservistas sofrem lesões que
demoram muito a curar, são mandados para casa – e foi o que me
aconteceu.
Regressei à caserna de muletas, desmoralizado e, ao sair, vi alguns dos
tipos que desistiram durante a Semana Infernal. Sentira pena por eles ao ver
pela primeira vez os seus capacetes alinhados por baixo da sineta, porque
conhecia bem a sensação de vazio que desistir provoca, mas vê-los frente a
frente nesse momento recordou-me que falhar faz parte da vida e que todos
tínhamos de seguir em frente.
Eu não tinha desistido, por isso sabia que voltaria a ser convidado, mas
não fazia ideia se isso implicaria ter de passar por uma terceira Semana
Infernal. Ou se, depois de ter voltado ao início duas vezes, ainda teria o
desejo ardente de abrir caminho através de outro furacão de dor, sem
qualquer garantia de êxito. Dado o meu historial de lesões, como poderia
saber? Deixei o complexo das BUD/S com mais consciência de mim e
domínio da minha mente do que nunca, mas o meu futuro era incerto como
sempre.
***
Os aviões sempre me causaram claustrofobia, por isso decidi ir de
comboio de San Diego para Chicago, o que me deu três dias inteiros para
pensar. E tinha a cabeça toda feita num oito. No primeiro dia, já nem sabia
se queria ser um SEAL. Tinha ultrapassado muita coisa. Superara a Semana
Infernal, compreendera o poder de uma mente calejada e dominado o medo
que tinha da água. Talvez já tivesse aprendido o suficiente sobre mim? Que
mais precisava de provar? No segundo dia, pensei sobre todos os outros
empregos a que poderia candidatar-me. Talvez devesse mudar de vida e ir
para bombeiro? É um trabalho lixado – e seria uma maneira de me tornar
uma espécie diferente de herói. Mas, no terceiro dia, quando o comboio fez
o desvio para Chicago, entrei numa casa de banho do tamanho de uma
cabine telefónica e olhei-me ao Espelho da Responsabilidade. É mesmo
assim que te sentes? Tens a certeza de estar pronto para desistir dos SEAL e
transformares-te num bombeiro civil? Olhei-me fixamente durante cinco
minutos antes de abanar a cabeça. Não podia mentir a mim próprio. Tinha
de falar comigo com verdade – e com clareza.
“Tenho medo. Tenho medo de voltar a passar outra vez por aquela merda
toda. Tenho medo do primeiro dia da primeira semana.”
Já estávamos divorciados, mas a Pam, a minha ex-mulher, veio buscar-
me à estação para me levar a casa da minha mãe, em Indianápolis. A Pam
ainda vivia em Brazil. Quando eu estava em San Diego tínhamos falado e,
depois de nos vermos entre a multidão que estava na plataforma da estação,
regressámos aos velhos hábitos; nessa noite, também regressámos à cama.
Nesse verão inteiro, de maio a novembro, fiquei no Midwest, a curar o
joelho e depois a fazer reabilitação. Ainda era reservista, mas continuava
indeciso sobre regressar ao treino dos SEAL. Fiz uma investigação sobre os
marines. Avaliei também os processos de candidatura a uma dezena de
unidades de bombeiros, mas, por fim, peguei no telefone e telefonei para o
quartel da instrução BUD/S. Eles precisavam de saber a minha decisão
final.
Sentado, de telefone na mão, fui passando em revista as vicissitudes do
treino para SEAL. Porra, corres dez quilómetros por dia só para comer, e
isso sem contar com as corridas de treino. Visualizei todos os exercícios de
natação e de remo, as caminhadas a carregar à cabeça barcos pesadíssimos e
troncos, dias passados na berma da estrada. Passaram-me pela cabeça as
horas a fazer elevações, abdominais, flexões e a pista com obstáculos.
Recordei a sensação de arrastar-me pela areia, de estar arranhado e ferido
todos os malditos dias e noites. As minhas memórias eram uma experiência
de mente e corpo e eu sentia o frio profundamente entranhado nos ossos.
Uma pessoa normal desistiria. Diria: porra, isto não é para mim, o que não
tem de ser não tem de ser, e recusar-se-ia a deixar-se torturar mais um
minuto que fosse.
Mas eu não estava programado de uma maneira normal.
Enquanto marcava o número, os pensamentos negativos erguiam-se
como uma sombra zangada. Não podia deixar de pensar que tinha sido
posto na terra para sofrer. Porque é que os meus demónios pessoais, o
destino, Deus, ou Satanás não me deixavam simplesmente em paz? Estava
cansado de tentar provar quem era. Farto de calejar a minha mente.
Encontrava-me mentalmente esgotado, até ao mais fundo de mim. Por outro
lado, estar totalmente esgotado é o preço a pagar por ser duro, e eu sabia
que, se desistisse, esses sentimentos e pensamentos não desapareceriam
como que por encanto. O preço de desistir seria passar o resto da vida no
purgatório. Ficaria aí aprisionado, sabendo que não tinha continuado a
combater até ao amargo final. Não há vergonha nenhuma em ser derrubado
num combate. A vergonha vem quando se atira ao chão a maldita toalha – e,
se eu nascera para sofrer, o melhor era beber o remédio até ao fim.
O oficial de treino deu-me as boas-vindas e confirmou: sim, começaria
no primeiro dia, na primeira semana. Como era de esperar, a minha t-shirt
castanha teria de ser trocada por uma branca. E ainda tinha mais uma boa
notícia para me dar: “Goggins, já sabes: esta é a última vez que te
permitimos fazer o treino BUD/S. Se voltares a magoar-te, acabou-se. Não
te autorizamos a regressar mais.”
“Entendido”, respondi.
A Classe 235 começava daí a quatro semanas. O joelho ainda não estava
completamente bem, mas o melhor era pôr-me bom, porque o teste
definitivo vinha aí.
Segundos depois de desligar, a Pam telefonou-me para dizer que
precisava de ver-me. Era uma boa ocasião. Eu ia voltar a sair da cidade, e
com sorte seria de vez, e era importante ter uma conversa sincera com ela.
Tínhamos estado a desfrutar a companhia um do outro, mas para mim era
sempre qualquer coisa de temporário. Tínhamos sido casados e ainda
éramos duas pessoas diferentes com diferentes visões do mundo. Isso não
tinha mudado e era óbvio que algumas das minhas inseguranças também
não, pois continuavam a fazer-me regressar àquilo que me era familiar.
Insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar que o resultado
seja diferente. Nunca resultaríamos juntos e chegara o momento de o dizer.
Mas ela deu-me primeiro as suas notícias.
“Estou atrasada”, disse assim que entrou, a segurar um pequeno saco de
papel. “Atrasada tipo mesmo atrasada.” A Pam parecia emocionada e
nervosa e desapareceu na casa de banho. Consegui ouvir o saco de papel a
ser rasgado e uma caixa a ser aberta; fiquei deitado na cama, a olhar para o
teto. Minutos depois, ela abriu a porta da casa de banho, segurando um teste
de gravidez e com um sorriso enorme. “Eu sabia”, disse, a morder o lábio
inferior. “Olha, David, estamos grávidos!”
Levantei-me lentamente, ela abraçou-me com toda a força e a emoção
dela desfez-me o coração. Isto não devia acontecer. O meu corpo
continuava desfeito, tinha uma dívida de 30 000 dólares em cartões de
crédito e ainda era reservista. Não tinha morada própria nem um automóvel.
Era instável, e isso tornava-me muito inseguro. Além do mais, não estava
apaixonado por aquela mulher. Foi isso que disse a mim próprio ao olhar-
me fixamente, por cima do ombro dela, para o Espelho da
Responsabilidade. O espelho que nunca mente.
Desviei os olhos.
A Pam voltou a casa para dar a notícia aos pais. Eu acompanhei-a à porta
de casa da minha mãe e, depois, deixei-me cair no sofá. Em Coronado, senti
que tinha resolvido o meu passado lixado e até encontrado nele algum
poder, e agora aqui estava eu, mais uma vez puxado para baixo. Agora, já
não era só o meu sonho de ser um SEAL. Tinha uma família em que pensar
– e isso dava a toda a situação uma dimensão imensamente maior. Desta
vez, se falhasse, isso não significaria apenas um regresso à casa de partida,
emocional e financeiro, mas que estaria a arrastar para aí, comigo, a minha
nova família. Contei tudo à minha mãe quando ela chegou a casa. Ao
conversarmos, o dique rompeu-se: o meu medo, tristeza e dilemas
explodiram para fora de mim. Pus a cabeça entre as mãos e chorei.
“Mãe, desde que nasci até hoje, a minha vida tem sido um pesadelo. Um
pesadelo que vai ficando pior”, disse-lhe. “Quanto mais me esforço, mais
difícil a vida se torna.”
“Não posso dizer-te que não”, respondeu-me. A minha mãe conhecia o
inferno e não estava a tratar-me como uma criança. “Mas também te
conheço o suficiente para saber que vais encontrar uma maneira de
ultrapassar isto.”
“Tem de ser”, disse-lhe, limpando as lágrimas. “Não tenho escolha.”
Ela deixou-me só e eu fiquei sentado no sofá toda a noite. Sentia que me
tinham tirado tudo, mas continuava vivo, o que significava que tinha de
arranjar uma maneira de seguir em frente. Tinha de compartimentar as
dúvidas e de encontrar a força para acreditar que tinha nascido para mais do
que ser um maldito coitadinho rejeitado pelos SEALS. Depois da Semana
Infernal, tinha-me sentido inquebrável e, no entanto, passada outra semana,
já era nada outra vez. Afinal, não me tinha elevado. Mas eu não era uma
merda e, se queria consertar a minha vida lixada, teria de ser mais do que
era.
Naquele sofá, encontrei uma maneira.
Eu já aprendera então a assumir a responsabilidade pelas coisas – e sabia
que era capaz de conquistar a alma de um homem no calor da batalha. Tinha
superado muitos obstáculos e percebi que cada uma dessas experiências me
tinha calejado a mente de uma forma tão rija que era capaz de enfrentar
qualquer desafio. Tudo isso me dera a impressão de que resolvera os meus
demónios do passado, mas não era verdade. Tinha estado era a ignorá-los.
As recordações dos abusos sofridos às mãos do meu pai, de todas as pessoas
que me chamaram nigger, não se evaporaram ao fim de algumas poucas
vitórias. Esses momentos encontravam-se profundamente enraizados no
meu subconsciente – e, em consequência disso, os meus alicerces
apresentavam fendas. Ora, num ser humano, o caráter são os alicerces, e
quando conseguimos muitos êxitos e os acumulamos com ainda mais
fracassos sobre uma base cheia de falhas, a estrutura que somos não será
sólida. Para desenvolver uma mente blindada – tão calejada que se torna à
prova de bala – é preciso ir à origem de todos os medos e inseguranças.
A maior parte das pessoas varre para debaixo do tapete os fracassos e os
segredos obscuros. Mas quando enfrentamos problemas, esse tapete é
levantado e a nossa escuridão reemerge, inunda a alma e influencia as
decisões que determinam o nosso caráter. Os meus medos nunca foram só
sobre a água, e as minhas ansiedades em relação à Classe 235 não eram
sobre a dificuldade da Primeira Fase. Vinham sim de feridas infetadas com
as quais tinha andado a vida inteira – e o facto de as negar equivalia a
negar-me a mim mesmo. Eu era o meu pior inimigo! Não era nem o mundo,
nem Deus, nem o Diabo, que estavam apostados em apanhar-me. Era eu!
Eu estava a rejeitar o meu passado e, portanto, a rejeitar-me. Os meus
alicerces, o meu caráter, eram definidos pela autorrejeição. Todos os medos
provinham de um mal-estar profundamente instalado que carregava comigo
pelo facto de ser David Goggins, por causa daquilo por que tinha passado.
Já depois de ter atingido um ponto em que não me importava mais o que
outros pensavam de mim, eu ainda tinha problemas em aceitar-me.
Qualquer pessoa sã de corpo e mente pode sentar-se e pensar em vinte
coisas que podiam ter corrido de maneira diferente na sua vida. Em
situações nas quais não foi provavelmente tratada com justiça ou em que
seguiu o caminho do menor esforço. Se é um dos poucos que reconhece isso
e quer calejar essas feridas e fortalecer o seu caráter, cabe-lhe a si passar em
revista o seu passado e fazer as pazes consigo, encarando esses incidentes e
todas as suas influências negativas e aceitando-os como fragilidades do seu
próprio caráter. Só quando identificar e aceitar as suas debilidades deixará
de fugir do passado. E então poderá usar esses incidentes mais eficazmente,
como combustível para ser tornar melhor e mais forte.
Ali mesmo, no sofá de casa da minha mãe, quando a Lua fazia o seu arco
no céu noturno, enfrentei os meus próprios demónios. Enfrentei-me a mim.
Não podia continuar a fugir do meu pai. Tinha de aceitar que ele era uma
parte de mim e que a sua personalidade mentirosa e vigarista me tinha
influenciado mais do que eu queria admitir. Antes dessa noite, costumava
dizer às pessoas que o meu pai tinha morrido, em vez de lhes contar a
verdade sobre quem eu era. Até nos SEAL era essa a mentira que eu
contava. E eu sabia porquê. Quando se foi espancado, não se quer
reconhecer isso. Não é coisa que nos faça sentir muito homem, por isso o
mais fácil é esquecer e seguir. Fingir que nunca aconteceu.
Mas nunca mais.
Para conseguir avança, tornou-se muito importante reavaliar a minha
vida, porque ao passar a pente fino as nossas experiências e ao ver qual é a
origem dos nossos problemas, é possível encontrar força em suportar dor e
abuso. Ao aceitar Trunis Goggins como parte de mim, eu ficava livre para
usar o meu passado como combustível. Percebi que cada episódio de abuso
infantil que podia ter-me matado me tornou duro como o catano e tão afiado
como uma espada de samurai.
É verdade: a vida tinha-me dado umas cartas lixadas. Mas, nessa noite,
comecei a pensar nela como se fosse uma corrida de 150 quilómetros com
uma mochila de 22 quilos às costas. Seria capaz de competir nessa prova,
mesmo que os outros todos corressem com facilidade e livremente, pesando
sessenta quilos? Com que rapidez conseguiria correr logo que me libertasse
de todo esse peso morto? Ainda não pensava em ultramaratonas. Para mim,
a corrida era a vida em si, e quanto mais pensava, mais compreendia até que
ponto estava preparado para os acontecimentos lixados que se avizinhavam.
A vida tinha-me levado ao fogo, tinha-me tirado, dado marteladas repetidas
e agora encaminhava-me de novo para o caldeirão do treino BUD/S; senti
que mergulhar numa terceira Semana Infernal no espaço de um ano me
condecoraria com um doutoramento em dor. Eu estava prestes a tornar-me a
espada mais afiada jamais forjada.
***
Apresentei-me na Classe 235 com uma missão e mantive-me reservado
durante a maior parte da Primeira Fase. No primeiro dia, éramos 156
homens. Eu ainda era um líder, mas desta vez não queria fazer de guardião
de ninguém durante a Semana Infernal. O joelho continuava inflamado e
precisava de concentrar todas as energias em concluir as provas BUD/S.
Tinha pela frente seis meses em que tudo ia acontecer e não tinha ilusões
sobre como ia ser difícil chegar ao fim do treino.
Um bom exemplo: o Shawn Dobbs.
Dobbs cresceu na pobreza, em Jacksonville, na Flórida. Teve de
combater alguns dos mesmos demónios que eu e chegou ao curso com uma
atitude de ressentimento para com o mundo. Eu percebi imediatamente que
ele era um atleta de elite natural. Era o primeiro em todas as corridas, ou
andava lá perto, fez o percurso de obstáculos nuns incríveis oito minutos e
meio ao fim de umas poucas tentativas e era um gajo que sabia que era um
cabrão duro. Mas, lá está, é como dizem os taoistas: os que sabem, não
falam, e os que falam, bom, não sabem nada de nada.
Na noite anterior ao começo da Semana Infernal, ele disse muita coisa
sobre os tipos da Classe 235. Já havia 55 capacetes alinhados na Trituradora
e ele tinha certeza de que ia ser um da meia dúzia a chegar ao fim. Referiu
os nomes dos tipos que sabia que iam chegar ao fim e também disse muitos
disparates sobre os tipos que sabia que iam desistir.
Ele não fazia ideia de que estava a cometer o erro clássico de se
comparar com outros do curso. Quando os vencia num exercício ou os
superava no treino físico, ficava muito orgulhoso disso. Era uma coisa que
lhe aumentava a autoconfiança e o desempenho. Nas provas BUD/S é
comum e natural que isto aconteça. Faz tudo parte da natureza competitiva
dos machos alfa que são atraídos para se tornar SEAL, mas ele não
percebeu que, na Semana Infernal, é precisa uma tripulação sólida para
sobreviver, o que significa depender dos companheiros e não vencê-los. Eu
reparei nisso enquanto ele falava e falava. Ele não fazia ideia do que o
esperava e até que ponto a privação de sono e o frio nos podem lixar a
cabeça. Ia descobrir sozinho. Nos primeiros momentos da Semana Infernal,
teve um bom desempenho, mas esse impulso para derrotar os companheiros
nos exercícios e nas corridas cronometradas acabou por se revelar na praia.
Com 1,64 metros e 85 quilos, o Dobbs tinha a estrutura física de uma
boca de incêndio, mas por ser baixo foi colocado numa tripulação de tipos
mais pequenos – a quem os instrutores tratavam por Smurfs. Na verdade, o
Pete Psicopata obrigou-os a fazer um desenho do Papá Smurf na parte da
frente do barco, só para gozar com eles. Era o género de coisas que os
instrutores faziam. Procuravam qualquer maneira de nos deitar abaixo – e
com o Dobbs funcionou. Ele não gostou de ser posto num grupo com os
tipos que considerava mais baixos e mais fracos – e vingava-se neles. No
dia seguinte, à frente de todos nós, triturou a sua própria equipa. Tomou
posição à frente a carregar o barco ou o tronco e marcou um ritmo de
corrida alucinante. Em vez de se ajustar à equipa e de guardar energia, deu
tudo desde o início. Falei com ele há pouco tempo e disse que se lembrava
do treino BUD/S como se tivesse sido na semana passada.
“Eu estava a desforrar-me na minha própria equipa”, disse-me.
“Desfazia-os de propósito, quase como se fazê-los desistir significasse uma
marca extra no meu capacete.”
Na segunda-feira de manhã, já tinha feito um bom trabalho nesse sentido.
Dois dos companheiros já tinham renunciado – o que significava que quatro
tipos de baixa estatura tinham de carregar o barco e os troncos sozinhos. Ele
admitiu-me que, naquela praia, combatia contra os seus próprios demónios.
Que os seus alicerces estavam cheios de rachas.
“Eu era um tipo inseguro, com baixa autoestima, à procura de me vingar,
e o meu ego, arrogância e insegurança dificultaram a minha própria vida.”
Tradução: a sua mente desmoronou-se de maneiras que ele nunca tinha
sentido antes – nem desde então.
Na segunda-feira à tarde, fomos fazer um percurso de natação na baía e
ele saiu da água em sofrimento. Via-se que mal conseguia caminhar e que a
sua mente balançava sobre o abismo. Olhámos um para o outro e eu vi que
ele colocava a si mesmo aquelas perguntas simples, sem encontrar uma
resposta. Era muito parecido comigo quando passei pelo Para-resgate, à
procura de uma maneira de me safar. A partir daí, o Dobbs foi um dos
recrutas com pior desempenho em toda a praia – e isso deitou-o muito
abaixo.
“Todas as pessoas que eu tinha catalogado como inferiores a vermes
estavam a dar-me dez a zero”, resume. Em breve, a tripulação dele ficou
reduzida a dois homens e ele viu-se transferido para outra equipa, com tipos
mais altos. Quando eles levantavam o barco, ele nem sequer era capaz de
lhe chegar – e todas as inseguranças sobre a sua altura e o seu passado
começaram a fazer-lhe mossa.
“Comecei a ter a convicção de que o meu lugar não era ali”, disse. “De
que era geneticamente inferior. Era como se tivesse tido superpoderes, mas
os tivesse perdido. Encontrava-me num lugar onde a minha mente nunca
tinha estado – e não tinha um mapa para me orientar.”
Imagine por um instante onde é que ele estava nesse momento. Aquele
homem tinha tido um desempenho excecional nas primeiras semanas das
provas BUD/S. Tinha saído do nada e era um atleta fenomenal. Passara no
seu percurso por imensas experiências, nas quais se podia ter apoiado. Tinha
a mente bastante calejada, mas os seus alicerces apresentavam rachas e,
quando as situações se tornaram extremas, perdeu o controlo da mente e
tornou-se escravo das dúvidas sobre si próprio.
Na segunda-feira à noite, o Dobbs apresentou-se aos médicos, a queixar-
se dos pés, afirmando estar seguro de que tinha fraturas de stresse, mas
quando tirou as botas, os pés não estavam inchados, nem com hematomas,
como ele imaginara. Pareciam perfeitamente saudáveis. Eu sei isso porque
estava sentado ao lado dele, a fazer um exame médico. Vi o seu olhar
perdido e soube que o inevitável estava próximo. Era o olhar que aparece na
cara de um homem depois de a sua alma se render. Quando saí do Para-
resgate era esse mesmo olhar que tinha. O que me unirá para sempre ao
Shawn Dobbs é o facto de eu saber que ele ia desistir antes de ele saber.
Os médicos deram-lhe ibuprofeno e mandaram-no de volta ao
sofrimento. Lembro-me de o ver a apertar as botas e de pensar quando é que
ele se iria abaixo de vez. Foi aí que o SBG chegou no seu camião e gritou:
“Esta vai ser a noite mais fria que vocês vão sentir em todas as vossas
vidas!”
Eu e a minha tripulação tínhamos o barco erguido sobre a cabeça e íamos
a caminho do infame Molhe de Aço, quando espreitei para trás e vi o Shawn
no banco traseiro do camião quentinho do SBG. Tinha-se rendido. Daí a
minutos, ele tocaria a sineta três vezes e alinharia o capacete ao lado dos
outros.
Em defesa do Dobbs, é preciso dizer que esta foi uma Semana Infernal
de pesadelo. Choveu dia e noite – o que significa que era impossível secar e
aquecer. Além disso, alguém do comando teve a ideia brilhante de que o
grupo, desta vez, não devia ter um rancho de luxo. Quase todas as refeições
eram rações prontas a comer, frias. Devem ter pensado que o desafio seria
ainda maior. Que tudo se pareceria mais com uma situação num campo de
batalha a sério. Também queria dizer que não havia descanso absolutamente
algum e que, sem calorias abundantes para queimar, era difícil para todos
encontrar a energia para superar a dor e a exaustão, quanto mais para manter
o corpo quente.
Sim, era uma desgraça, mas eu adorava aquilo perdidamente. Adorava a
beleza bárbara de ver a alma de um homem ser destruída, para depois se
reerguer e ultrapassar todos os obstáculos colocados no seu caminho. Era a
minha terceira tentativa e eu já sabia o que o corpo humano conseguia
aguentar. Sabia o que eu aguentava e alimentava-me dessa merda. Mas as
minhas pernas não se sentiam bem e o meu joelho incomodava-me desde o
primeiro dia. Até aí, a dor era de um grau que eu conseguia suportar mais
uns dias, pelo menos, mas a ideia de uma lesão era qualquer coisa que eu
tinha de bloquear da minha mente. Fui para um lugar escuro em que existia
apenas a dor, o sofrimento e eu. Não me focava nos meus companheiros
nem nos instrutores. Entrei em modo integral homem das cavernas. Estava
disposto a morrer para concluir o maldito programa de treino.
Não era o único. Na quarta-feira à noite, já tarde, a 36 horas do final da
Semana Infernal, a tragédia atingiu a Classe 235. Estávamos na piscina para
um exercício designado “nadar à minhoca”, em que cada tripulação nadava
de costas, com as pernas entrelaçadas nos troncos, formando uma cadeia.
Para nadar, era preciso usar as mãos de forma coordenada.
Reunimo-nos na piscina. Só restávamos 26, e um deles chamava-se John
Skop. Era uma figura, com 1,88 metrso e 102 quilos, mas tinha andado
doente desde o início, sempre a entrar e a sair do consultório médico.
Enquanto 25 recrutas estavam de pé, em sentido, na beira da piscina,
inchados, esfolados e a sangrar, ele sentou-se nas escadas ao lado da água, a
tiritar de frio violentamente. Parecia estar a congelar, mas havia ondas de
calor que irradiavam da sua pele. O corpo dele era um radiador em potência
máxima. Eu sentia-o a três metros de distância.
Na minha primeira Semana Infernal, tinha tido uma pneumonia e sabia
identificá-la e qual era a sensação. Ele tinha os alvéolos pulmonares cheios
de fluido. Não conseguia limpá-los, por isso mal conseguia respirar, o que
agravava o seu problema. Quando uma pneumonia se torna descontrolada
pode levar a um edema pulmonar, que pode ser fatal. Ele ia a meio caminho
disso.
Como era de esperar, durante o exercício de nadar à minhoca as pernas
dele ficaram flácidas e afundou-se como se fosse um boneco cheio de
chumbo. Dois instrutores saltaram atrás dele, e a partir daí foi o caos.
Mandaram-nos sair da água e alinharam-nos ao longo da vedação, com as
costas voltadas para a piscina, enquanto os médicos procuravam reanimar o
senhor Skop. Ouvíamos tudo e sabíamos que as suas probabilidades de
sobreviver estavam a esfumar-se. Cinco minutos depois, ele ainda não
respirava e mandaram-nos para os balneários. O senhor Skop foi levado
para o hospital e a nós disseram-nos para regressar à sala de aulas. Ainda
não sabíamos, mas a Semana Infernal já tinha terminado. Minutos mais
tarde, o SBG entrou e deu a notícia com brusquidão.
“O Sr. Skop está morto”, disse. Olhou em volta. As suas palavras foram
como um soco no estômago coletivo, aplicado a homens que já estavam no
fio da navalha, ao fim de quase uma semana sem dormir e sem repouso. O
SBG estava-se a cagar. “É este o mundo em que vocês vivem. Na vossa
linha de trabalho, ele não foi o primeiro a morrer e não será o último.”
Fixou o companheiro de quarto do Sr. Skop e disse: “Sr. Moore, não roubes
nada das merdas dele.” A seguir, saiu da sala como se fosse apenas mais um
dia tramado.
Senti-me dividido entre dor, náusea e alívio. A notícia da morte do Sr.
Skop deixou-me triste e nauseado, mas estávamos todos aliviados por
termos sobrevivido à Semana Infernal, além de que a maneira como o SBG
tinha tratado do assunto fora direta, sem rodeios, e lembro-me de pensar
que, se todos os SEAL fossem como ele, este seria sem dúvida o meu
mundo. Quantas emoções juntas.
A questão que a maioria dos civis não compreende é que é preciso um
certo grau de calejamento para executar o trabalho para o qual somos
treinados. Para viver num mundo brutal, é preciso aceitar verdades com
sangue-frio. Não estou a dizer que seja bom. Não tenho necessariamente
orgulho nisso. Mas as operações especiais são um mundo calejado e exigem
uma mente calejada.
A Semana Infernal terminou 36 horas antes do previsto. Não houve pizas
nem a cerimónia das t-shirts castanhas na Trituradora, mas 25 homens em
156 tinham chegado ao fim. Mais uma vez, eu era uns dos poucos, e mais
uma vez estava tão inchado como o logotipo do pasteleiro da Pillsbury e de
muletas, isto quando ainda faltavam 21 semanas de treinos. Tinha a rótula
intacta, mas as duas tíbias apresentavam pequenas fraturas. Ainda havia
pior. Os instrutores, irritados por terem tido de terminar prematuramente a
Semana Infernal, acabaram com a semana de descanso ao fim de apenas 48
horas. Fosse qual fosse o ângulo de avaliação, as minhas possibilidades de
concluir o curso pareciam outra vez muito baixas. Estava lixado. Quando
mexia os tornozelos, o movimento passava para as tíbias e eu sentia uma
dor abrasadora, o que era um problema monumental, porque uma semana
típica nas provas BUD/S exige correr até cem quilómetros. Imagine fazer
isso com fraturas nas duas tíbias.
A maior parte dos tipos da Classe 235 viviam no Centro de Comando
Naval de Guerra Especial, em Coronado. Eu vivia a cerca de 32
quilómetros, num apartamento de uma só divisão, em Chula Vista, que
custava setecentos dólares por mês e tinha um problema de bolor; estava lá
com a minha mulher grávida e a minha enteada. Depois de a Pam
engravidar, voltámos a casar, comprei um Honda Passport novo – o que me
deixou com uma dívida de cerca de sessenta mil dólares – e fomos os três
de Indiana para San Diego, com a ideia de reconstituir a família. Eu
concluíra a Semana Infernal pela segunda vez no espaço de um ano, e a
previsão era que ela desse à luz exatamente a coincidir com o fim do curso,
mas não havia felicidade nem na minha cabeça nem na minha alma. Como
podia haver? Vivíamos num pardieiro que estava no limite do que
conseguíamos pagar, e eu tinha o corpo outra vez desfeito. Se não
conseguisse completar o programa nem sequer seria capaz de pagar a renda,
teria de recomeçar do zero. Encontrar uma nova linha de trabalho. Não
podia deixar que isso acontecesse – e não deixaria.
Na noite antes de a Primeira Fase voltar a aumentar de intensidade, rapei
a cabeça e olhei para a minha imagem no espelho. Suportava uma dor
extrema há quase dois anos seguidos – e regressava para mais. Tinha tido
momentos de êxito, mas acabava sempre por ser enterrado vivo em
fracasso. Nessa noite, a única coisa que me permitiu seguir em frente foi
saber que tudo aquilo por que tinha passado calejara a minha mente. A
pergunta era: qual a espessura desse calo? Quanta dor poderia um homem
suportar? Tinha em mim aquilo que era necessário para correr com as
pernas partidas?
Acordei às 3h30 da madrugada e conduzi até à base. Fui a coxear até à
jaula onde guardávamos o equipamento BUD/S e deixei-me cair sobre um
banco, largando a mochila aos pés. Estava muito escuro, dentro e fora, e eu
encontrava-me completamente sozinho. À distância, ouvia as ondas
enquanto vasculhava na mochila de mergulho. Havia dois rolos de adesivo
enterrados debaixo do equipamento. Sabendo como o meu plano era louco,
quando peguei neles só abanava a cabeça e sorria.
Calcei cuidadosamente no pé direito uma meia preta grossa. A canela
estava sensível ao tato e até o menor movimento do tornozelo atingia um
registo elevado na minha escala de sofrimento. Apliquei a fita no calcanhar,
à volta do tornozelo, e depois outra vez no calcanhar, movendo o pé para
cima e para baixo até toda a zona inferior da perna e o pé ficarem bem
embrulhados. Isto era só a primeira camada. Depois, pus mais uma meia
grossa e apliquei fita no tornozelo e no pé da mesma maneira. No fim, tinha
duas meias e duas camadas de fita e, quando calcei as botas e apertei os
atacadores, o tornozelo e a tíbia estavam protegidos e imobilizados.
Satisfeito, passei ao pé esquerdo e, uma hora depois, era como se tivesse as
duas pernas envolvidas em gesso macio. Ainda me doía ao andar, mas a
tortura que sentia quando movia o tornozelo era mais tolerável. Ou pelo
menos era o que eu pensava. Descobriria ao certo quando começássemos a
correr.
A primeira corrida de treino nesse dia foi a minha prova de fogo e fiz o
melhor que pude para usar os músculos flexores da anca. Em geral,
deixamos que os pés e a parte inferior das pernas ditem o ritmo. Eu
precisava de mudar isso. Necessitei de uma concentração intensa para isolar
cada movimento e gerar movimento e energia nas pernas da cintura para
baixo. Nos primeiros trinta minutos, a dor foi a pior que jamais sentira na
vida. A fita adesiva cortava-me a pele e cada choque com o chão enviava
ondas de dor pelas minhas tíbias fraturadas.
E esta era só a primeira saída a correr do que prometiam ser cinco meses
de dor contínua. Seria possível sobreviver a isto, dia após dia? Pensei em
desistir. Se o fracasso era o meu futuro e eu teria de repensar completamente
a minha vida, que sentido fazia realizar este exercício? Porquê atrasar o
inevitável? Estava lixado da cabeça? Cada pensamento ia sempre parar à
mesma velha pergunta: porquê?
“A única maneira de garantir o fracasso imediato é desistir, meu grande
cabrão!” Isto era eu a falar comigo. A gritar, em silêncio, por cima do
estrondo da angústia que me esmagava a mente e a alma. “Aguenta a dor ou
não será só o teu fracasso. Será o fracasso da tua família!”
Imaginei o que sentiria se conseguisse realmente chegar ao fim. Se fosse
capaz de suportar a dor necessária para completar esta missão. Isso
conseguiu-me mais um quilómetro e meio, antes de mais dor se abater sobre
mim, como um tufão, dando-me voltas nas entranhas.
“Já é difícil fazer a BUD/S com saúde e tu estás aqui com duas pernas
partidas! Quem é que mais se lembraria de fazer uma coisa destas?”,
perguntei-me. “Quem mais seria capaz de correr um minuto com uma perna
partida, quanto mais dois? Só tu, Goggins! Já estás a fazer isso há vinte
minutos, Goggins! És uma máquina do catano! Cada passada que dês daqui
até ao fim só te vai tornar mais forte!”
Esta última mensagem decifrou o código como se fosse uma palavra-
passe. A minha mente calejada era o meu bilhete para seguir em frente e, à
passagem dos quarenta minutos, aconteceu uma coisa realmente
extraordinária. A dor abrandou para uma maré baixa. A fita adesiva alargara,
por isso já não cortava a pele, e os músculos e ossos tinham aquecido o
suficiente para aguentar o embate dos pés no chão. Ao longo do dia, a dor ia
tornar-se mais forte, e depois diminuir, mas tornou-se mais gerível, e
quando ela aparecia,eu dizia a mim próprio que isso provava como eu era
um tipo rijo – e como estava a tornar-me ainda muito mais duro.
Aquele ritual desenrolou-se dia após dia. Eu chegava cedo, atava os pés,
suportava trinta minutos de dor extrema, conversava comigo e convencia-
me a continuar, e sobrevivia. Isto não era daquelas merdas de “vai fingindo
até conseguires”. Para mim, o facto de estar presente todos os dias, pronto a
sujeitar-me a uma coisa daquelas, era verdadeiramente surpreendente. Os
instrutores também me recompensaram por isso. Ofereceram-se para me
atar as mãos e os pés e para me atirarem para a piscina, a ver se conseguia
nadar quatro malditas voltas. Na verdade, não se ofereceram. Insistiram. Era
uma parte de um exercício a que eles gostavam de chamar “à prova de
afogamento”. Eu preferia chamar-lhe afogamento controlado!
Com mãos e pés atados atrás das costas, só conseguíamos mexer as
pernas como golfinhos. Ao contrário de alguns dos nadadores mais
experientes do grupo, que pareciam ter saído do banco de genes do Michael
Phelps, o meu movimento de golfinho parecia o de um cavalo de baloiço – e
dava mais ou menos o mesmo impulso. Estava continuamente sem fôlego, a
lutar para me manter à tona, erguendo a cabeça para fora da água como uma
galinha, para poder respirar, acabando por afundar-me, bater com os joelhos
e procurar em vão ganhar velocidade. Tinha treinado para isto. Durante
semanas, ia à piscina e até experimentava com calções de neopreno, para
ver se conseguia escondê-los debaixo da farda e se aumentavam a minha
capacidade para boiar. Parecia que usava uma fralda debaixo dos calções
apertados do uniforme, e não ajudava, mas esse treino deu-me o à-vontade
para suportar a sensação de estar a afogar-me e passar o teste.
Havia um outro exercício terrível na Segunda Fase, também conhecida
como fase de mergulho. Implicava outra vez flutuar, o que parece uma coisa
absolutamente básica sempre que o escrevo, mas, neste caso, eram-nos
colocadas duas botijas completamente cheias, de oitenta litros, e um cinto
de peso de sete quilos. Tínhamos barbatanas, mas mexer as pernas com elas
aumentava o grau de dor e stresse nos tornozelos e nas tíbias. Tratando-se
de um exercício na água, não adiantava colocar adesivo. Tinha de aguentar a
dor.
A seguir, tínhamos de nadar cinquenta metros de costas sem ir ao fundo.
Depois, dar a volta e nadar em estilo livre mais cinquenta metros, à
superfície, e carregados com todo aquele peso! Não podíamos usar qualquer
tipo de flutuadores e manter a cabeça à tona causava dores intensas no
pescoço, nos ombros, nas ancas e na zona inferior das costas.
Nunca esquecerei os ruídos que, nesse dia, se elevavam da piscina. As
tentativas desesperadas para ficar à tona e respirar constituíam uma mistura
audível de terror, frustração e exaustão. Engolíamos água, grunhíamos e
aspirávamos ar. Ouvi gritos guturais e guinchos agudos. Vários recrutas
foram ao fundo, tiraram os cinturões com os pesos e libertaram-se das
botijas, deixando-as cair no fundo da piscina, lançando-se rapidamente para
a superfície.
Só um homem passou esse exercício à primeira tentativa. Apenas
tínhamos três hipóteses para passar qualquer um dos exercícios e, para esse,
eu precisei mesmo das três. Na última, apliquei-me a dar pontapés de
tesoura, recorrendo mais uma vez aos meus desenvolvidos músculos da
anca. Consegui, no limite.
Quando chegámos à Terceira Fase, o módulo de exercícios de combate
terrestre na ilha de San Clemente, eu já tinha as pernas curadas e sabia que
ia chegar ao fim, mas só por ser a última volta não significa que seja fácil.
No complexo principal das instalações BUD/S, na praia do istmo arenoso
The Strand, aparecem muitos mirones. Há oficiais de todas as proveniências
que vêm espreitar os treinos, o que significa que há pessoas a olhar por cima
do ombro dos instrutores. Na ilha, somos só nós e eles. Estão
completamente à vontade para serem cruéis e não mostram qualquer tipo de
piedade. E é exatamente por isso que eu adorava essa ilha!
Uma tarde, dividimo-nos em equipas de dois e três elementos para
edificar esconderijos que se confundissem com a vegetação. Estávamos a
chegar ao fim – e todos em superforma e sem medo. O que significa que o
pessoal começava a descuidar-se relativamente aos pormenores – o que
deixava os instrutores furiosos. Por isso, chamaram-nos todos a um vale,
para nos aplicar uma clássica tareia.
Haveria flexões, abdominais, pontapés no ar e flexões em mergulho em
grande quantidade. Mas antes disseram-nos para nos ajoelharmos e
cavarmos buracos com as mãos, buracos suficientemente grandes para
entrarmos lá para dentro e ficarmos só com a cabeça de fora durante um
período de tempo não especificado. Eu sorria e cavava como um louco
quando um dos instrutores se aproximou, com uma nova e criativa maneira
de me torturar.
“Goggins, levanta-te. Tu gostas demais desta merda.” Eu ri-me e
continuei a cavar, mas ele falava a sério. “Disse para te levantares, Goggins.
Estás a ter demasiado prazer com isto.”
Pus-me de pé, dei um passo ao lado e vi os meus companheiros sofrerem
durante os trinta minutos seguintes sem mim. A partir daí, os instrutores
deixaram de me incluir nestas tareias. Quando o grupo recebia ordens para
fazer flexões, elevações ou ficar molhado e areado, eu era sempre excluído.
Assumi com orgulho que tinha finalmente vencido a vontade de todo o
pessoal das BUD/S, mas também sentia a falta das tareias. Porque as via
como ocasiões para calejar a mente. Agora, para mim, tinham acabado.
Considerando que a Trituradora foi a placa central de muito do treino dos
SEAL da Marinha, faz sentido que seja aí que decorre a cerimónia final das
provas BUD/S. Houve famílias que vieram de avião. Pais e irmãos de peito
inchado de orgulho; mães, mulheres e namoradas todas arranjadas e lindas.
Em vez de dor e sofrimento, havia só sorrisos naquele pedaço de asfalto
enquanto os graduados da Classe 235 se juntavam, nos seus uniformes
brancos, debaixo de uma enorme bandeira dos Estados Unidos que
ondulava com a brisa do mar. À direita, estava a infame sineta que 130
companheiros tinham tido de fazer soar para assinalar a sua desistência
daquele que é possivelmente o mais duro treino militar. Cada um de nós foi
apresentado e reconhecido individualmente. Havia lágrimas de alegria nos
olhos da minha mãe quando chamaram o meu nome, mas, estranhamente,
eu não senti grande coisa, a não ser tristeza.
A minha mãe e eu na cerimónia de graduação
Na Trituradora e, mais tarde, no McP, o bar preferido dos SEAL na baixa
de Coronado, os meus companheiros resplandeciam de orgulho, enquanto se
faziam fotografar com as famílias. No bar, havia música aos berros
enquanto todos se embriagavam e faziam uma barulheira, como se tivessem
acabado de ganhar alguma coisa. E, para ser honesto, aquela merda toda
aborreceu-me. Porque eu tinha pena de o treino BUD/S ter acabado.
Quando me interessei pela primeira vez pelos SEAL, procurava uma
arena que me tornasse inquebrável ou me destruísse completamente. A
formação BUD/S deu-me isso. Mostrou-me do que a mente humana é
capaz, e como a usar para suportar mais dor do que alguma vez tinha
sentido, para dessa forma aprender a alcançar coisas que nem sabia que
eram possíveis. Como, por exemplo, correr com as pernas partidas. Depois
da graduação, dependeria de mim continua a perseguir tarefas impossíveis,
porque embora fosse uma proeza tornar-me apenas o trigésimo sexto afro-
americano a concluir o treino BUD/S dos SEAL da Marinha, a minha
demanda para desafiar todas as probabilidades ainda mal tinha começado!
DESAFIO #5
É tempo de visualizar! Repito: a pessoa média tem dois mil a três mil
pensamentos por hora. Em vez de se focar em merdas que não pode mudar,
imagine visualizar aquelas que pode. Escolha um qualquer obstáculo no seu
caminho, ou defina uma nova meta, e visualize como a vai superar ou
alcançar. Eu, antes de iniciar qualquer atividade que constitui um desafio,
começo por visualizar como será o meu êxito e qual a sensação que me
transmitirá. Vou pensar nisso todos os dias e esse sentimento vai
impulsionar-me para a frente quando estiver a treinar, a competir ou a
realizar qualquer tarefa.
Mas a visualização não é simplesmente sonhar acordado com uma
qualquer cerimónia de entrega de prémios – real ou metafórica. É preciso
também visualizar os desafios que provavelmente surgirão e pensar como
lidar com esses problemas quando eles surgirem. Se o fizer, estará o mais
preparado possível para a jornada. Agora, quando vou participar numa
corrida, primeiro percorro de automóvel todo o percurso e visualizo o êxito,
mas também desafios potenciais, o que me ajuda a controlar o processo de
pensamento. É impossível prepararmo-nos para tudo, mas se fizermos um
exercício antecipado de visualização estratégica estaremos o mais
preparados possível.
Isso significa igualmente estar pronto para responder às perguntas
simples. Porque estamos a fazer isto? O que é que nos empurra para esta
meta? De onde vem a escuridão de que estamos a alimentar-nos? O que nos
calejou a mente? Precisará de ter essas respostas na ponta dos dedos no
momento em que chocar contra um muro de dor e de dúvida. Para o
atravessar, terá de canalizar a sua escuridão, alimentar-se dela e apoiar-se na
sua mente calejada.
Lembre-se: a visualização nunca substituirá o trabalho que não foi feito.
É impossível visualizar mentiras. Todas as estratégias que emprego para
responder às perguntas simples e ganhar o jogo mental só são eficazes
porque me esforcei. É precisa uma autodisciplina implacável para
programar o sofrimento no dia a dia, todos os dias, mas se o fizer descobrirá
que, do outro lado desse sofriment, está toda uma outra vida à sua espera.
Este desafio não tem de ser físico – e a vitória nem sempre significa que
se chegou em primeiro lugar. Pode querer dizer que se superou finalmente
um medo que esteve presente toda a vida ou um outro obstáculo qualquer
que, no passado, nos fez desistir. Seja qual for, conte ao mundo a sua
história sobre como criou a sua mente blindada (#armoredmind) e onde ela
o levou.
CAPÍTULO SEIS
E SE?
Eu já sabia que estava lixado e a corrida nem tinha começado. Em 2014, o
Serviço Nacional de Parques não aprovou o percurso tradicional da
Badwater, por isso Chris Kostman redesenhou-o. Em vez de ter início no
Parque Nacional do Vale da Morte e de percorrer 64 quilómetros através do
deserto mais escaldante do planeta, começaria ainda mais para o interior, no
sopé de uma subida de 35 quilómetros. O meu problema não era esse. O
meu problema é que me apresentei na linha de partida com cinco quilos
acima do peso habitual para correr – e tinha ganho quatro e meio desses
cinco quilos nos últimos sete dias. Não era gordo. Um espetador comum
olharia para mim e veria alguém em forma. Mas a Badwater não era uma
corrida comum. Para a percorrer e acabar com força tinha de estar na
melhor condição – e eu não podia estar mais longe disso. A situação era
uma grande surpresa para mim, porque, depois de dois anos a correr abaixo
dos meus padrões. pensei que tinha recuperado os meus poderes.
Em janeiro, tinha ganho uma prova de cem quilómetros em trilho glacial
chamada Frozen Otter [Lontra Congelada]. Não era tão dura como a Hurt
100, mas andava lá perto. O percurso traçado no Wisconsin, às portas de
Milwaukeee, estendia-se como um 8 assimétrico, com a partida e a chegada
no centro. Passávamos por esse ponto entre as duas voltas, o que permitia às
equipas de apoio o reabastecimento com alimentos e outros bens
necessários, que guardávamos em mochilas com o material para
emergências. As condições meteorológicas podem tornar-se muito adversas
e os organizadores elaboram uma lista de produtos que os atletas devem ter
sempre consigo, para não morrerem de desidratação, hipotermia ou
exposição ao frio.
A primeira volta era a parte maior do 8 e partimos com uma temperatura
de 18 graus Celsius negativos. Aqueles trilhos nunca eram limpos de neve e
havia pontos em que ela se acumulava em montes. Noutros, o trilho parecia
ter sido coberto de propósito com uma camada de gelo escorregadio. O que
constituía um problema, porque eu, ao contrário da maioria dos meus
adversários, não usava botas ou ténis próprios para correr naquele terreno.
Tinha os meus ténis de corrida normais e amarrei-os a uns pitons baratos,
que, em teoria, deviam enfiar-se no gelo e manter-me firme. A verdade é
que o gelo ganhou esta guerra e, antes de ter passado uma hora, já os pitons
tinham desaparecido. De qualquer modo, eu seguia na frente e a abrir
caminho por entre a neve com uma altura média de quinze a vinte
centímetros. Em certos pontos, os montículos eram muito mais altos. Tinha
os pés frios e húmidos desde o início e ao fim de duas horas encontravam-se
completamente gelados, em especial os dedos. A parte superior do corpo
não estava muito melhor. Transpirar sob temperaturas negativas faz com
que o sal no corpo queime a pele. Nas axilas e no peito iam-se abrindo
feridas cor de framboesa. Tinha o corpo coberto de erupções cutâneas, os
pés doíam com cada passo, mas na minha escala de dor nada disso tinha um
registo muito alto, porque estava a correr à vontade.
Pela primeira vez desde a segunda cirurgia ao coração, o meu corpo
começava a recompor-se. Tinha cem por cento de oxigenação, como todos
os outros, uma resistência e uma força a um grande nível, e, embora aquele
trilho fosse um grande desastre escorregadio, uma técnica bem apurada.
Seguia na dianteira e parei no meu carro de apoio para recolher uma
sanduíche antes do último troço de 35 quilómetros. Os dedos dos pés
palpitavam de dor. Suspeitava que podiam estar congelados, o que que
significava que podia estar em risco de perder alguns, mas não quis
descalçar-me para ver. Uma vez mais, surgiam no meu cérebro a dúvida e o
medo, a lembrarem-me de que só uma mão cheia de pessoas tinha
terminado a Frozen Otter e de que, naquele frio, nenhum avanço era seguro.
O clima, mais do que outra variável qualquer, pode derrubar muito depressa
qualquer cabrão. Mas não dei ouvidos a nada disso. Criei um novo diálogo e
disse a mim mesmo que devia acabar a corrida com força e só me preocupar
com dedos amputados mais tarde, no hospital, depois de ser sagrado
campeão.
Voltei ao percurso. Umas horas antes, um pouco de sol tinha derretido
alguma da neve, mas o vento frio encarregou-se de congelar o caminho na
perfeição. Enquanto corria, regressei ao meu primeiro ano na Hurt 100 e ao
grande Karl Meltzer. Nesse tempo, corria de uma maneira em que o
calcanhar batia primeiro no chão e eu depois arrastava toda a superfície do
pé pelo trilho enlameado, o que aumentava as probabilidades de escorregar
e cair. O Karl não corria assim. Movia-se como uma cabra, ganhando
impulso com os dedos e correndo pelas bermas. Quando os dedos tocavam
no chão, ele atirava as pernas para o ar. Era por isso que parecia flutuar. Por
opção, mal tocava o chão, enquanto a sua cabeça e o centro do corpo
permaneciam estáveis e equilibrados. Esses seus movimentos ficaram
permanentemente gravados no meu cérebro, como uma pintura nas
cavernas. Estava sempre a visualizá-los e pus em prática essas técnicas nas
sessões de treino.
Dizem que são precisos 66 dias para construir um hábito. Eu,
infelizmente, preciso de um período muito mais longo, mas acabo por lá
chegar, e em todos os anos de provas ultra e de competição fui melhorando
a minha técnica. Um corredor autêntico analisa a sua forma. Não
aprendemos a fazer isso com os SEAL, mas conviver tantos anos com
competidores em provas ultra tornou-me capaz de assimilar e treinar
capacidades que ao princípio não pareciam naturais. Na Frozen Otter, o meu
foco principal era tocar no chão com suavidade; só o suficiente para me
impulsionar. Na minha terceira instrução BUD/S e depois no primeiro
pelotão, quando era considerado um dos melhores em corrida, a minha
cabeça balançava para todo o lado. O meu corpo não estava equilibrado e
quando um pé tocava no chão todo o peso era suportado só por essa perna, o
que provocava quedas desajeitadas em terreno escorregadio. Por tentativa e
erro, e milhares de horas de treino, aprendi a manter o equilíbrio.
Na Frozen Otter, tudo isso se uniu para fazer sentido. Com velocidade e
elegância, atravessei trilhos íngremes e escorregadios. Mantive a cabeça
quieta e no mesmo plano, os movimentos suaves, e dava passadas
silenciosas; corria apoiando primeiro a parte da frente dos pés. Ganhava
velocidade e era como se desaparecesse num vento branco, elevado a um
estado meditativo. Transformei-me no Karl Meltzer. Agora, era eu que
parecia levitar sobre um trilho impossível e acabei a corrida em 16 horas,
pulverizando o recorde da prova e ganhando o título sem perder qualquer
dedo do pé.
Os dedos dos meus pés depois da Frozen Otter
Dois anos antes, a fazer corridas fáceis de dez quilómetros, sentira
tonturas. Em 2013, na Badwater, vi-me obrigado a caminhar mais de 160
quilómetros e acabei em décimo sétimo lugar. Tinha atravessado um mau
momento e pensei que os meus dias em que podia discutir títulos tinham
passado. Depois da Frozen Otter, fui tentado a acreditar que regressara ao
nível anterior, que talvez até estivesse melhor e tivesse pela frente os
melhores anos nas provas ultra. Levei essa energia para os preparativos para
a Badwater 2014.
Eu vivia então em Chicago e trabalhava como instrutor numa
preparatória BUD/S, uma escola que formava candidatos para lidarem com
a realidade difícil que encontrariam na instrução BUD/S. Ao cabo de mais
de vinte anos, encontrava-me no último ano de serviço militar e, ao ser
colocado numa posição de onde me era possível transmitir conhecimento
aos aspirantes – e também aos farsantes –, senti que tinha completado um
ciclo. Como era habitual, fazia a correr os 16 quilómetros entre casa e o
trabalho, mais o caminho de regresso, e à hora de almoço, sempre que
podia, arranjava tempo para fazer mais uns 12 quilómetros. Aos fins de
semana, corria pelo menos uma vez entre cinquenta e 64 quilómetros. Tudo
se ia juntando numa sucessão de semanas de 210 quilómetros – e eu sentia-
me forte. Ao chegar a primavera, adicionei uma componente de treino para
o calor e antes de ir correr vestia quatro ou cinco camadas de sweatshirts,
um capuz e um blusão em Gore-Tex. Quando chegava ao trabalho, os meus
companheiros instrutores SEAL olhavam para mim espantados enquanto eu
descascava as camadas de roupa e as metia em sacos de lixo pretos que,
juntos, pesavam quase sete quilos.
Comecei o processo de redução de exercício com quatro semanas de
antecedência. Passei das semanas de 210 quilómetros para 128, cem,
sessenta e trinta. Supõe-se que a diminuição propositada de exercício gere
uma abundância de energia enquanto se come e descansa, permitindo ao
corpo reparar todo o dano feito e preparar-se para a competição. Mas, em
vez disso, eu nunca me senti pior. Não tinha fome e não conseguia dormir.
Algumas pessoas disseram-me que o meu corpo estava ávido de calorias.
Outras sugeriram que os valores de sódio podiam estar baixos. O meu
médico avaliou-me a tiroide e estava, na verdade, um pouco descontrolada,
mas os resultados não eram assim tão maus que explicassem como me
sentia mal. Talvez a explicação fosse simples. Era excesso de treino.
Duas semanas antes da corrida, pensei não participar. Preocupava-me
que fosse outra vez o coração, porque em saídas fáceis para correr sentia
uma onda de adrenalina que não conseguia descarregar. Até num ritmo
lento, a pulsação acelerava até ao ponto de arritmia. Dez dias antes da
corrida, viajei de avião para Las Vegas. Tinha programado fazer cinco
saídas a correr, mas em nenhuma delas consegui ir além dos cinco
quilómetros. Não estava a comer assim tanto, mas continuava a ganhar
peso. Era tudo água. Fui ver outro médico, que confirmou que não havia
nada de fisicamente errado comigo; ao ouvi-lo dizer isso, decidi que não ia
armar-me em fraco.
Nos primeiros quilómetros, e na subida inicial da Badwater, a minha
pulsação cardíaca era elevada, mas em parte isso devia-se à altitude, e 35
quilómetros depois cheguei ao cimo em sexto ou sétimo lugar. Surpreendido
e orgulhoso, pensei: vamos lá a ver se consigo fazer a descida. Nunca gostei
da brutalidade que é descer uma encosta a correr, porque isso desfaz os
quadris, mas também pensei que me permitiria recompor e acalmar a
respiração. O meu corpo recusou-se. Não conseguia recuperar o fôlego.
Cheguei à parte plana cá em baixo, abrandei o ritmo e comecei a caminhar.
Os outros concorrentes passaram por mim enquanto os músculos das
minhas pernas se sacudiam de forma descontrolada. Os espasmos eram de
tal ordem que parecia que eu tinha um alien dentro de mim a mexer-me as
ancas.
E, apesar disso tudo, não parei! Caminhei seis quilómetros completos
antes de procurar abrigo num quarto do motel Lone Pine, onde se tinha
instalado a equipa médica da Badwater. Observaram-me e viram que tinha a
pressão sanguínea um pouco baixa, mas que isso era facilmente corrigível.
Não encontraram um único valor que conseguisse explicar porque me sentia
tão lixado.
Comi alimentos sólidos, descansei e decidi tentar mais uma vez. Havia
uma secção plana que saía do Lone Pine e pensei que se conseguisse
superá-la talvez encontrasse um segundo fôlego, mas uns nove ou 11
quilómetros depois o vento já não soprava nas minhas velas e eu dera tudo o
que tinha. Os músculos tremiam e contorciam-se e o coração andava aos
saltos. Olhei para o tipo que me acompanhava e disse: “É isto, meu. Estou
acabado.”
O meu carro de apoio parou atrás de nós e entrei nele. Uns minutos
depois, estava deitado na cama do motel, com o rabo entre as pernas. Não
aguentara mais de oitenta quilómetros, mas qualquer humilhação associada
à desistência – coisa a que eu não estava habituado – foi afogada pela
intuição de que havia qualquer coisa que estava tremendamente mal. Aquilo
não eram os meus medos a falar, nem o meu desejo de conforto. Desta vez,
tinha a certeza de que não teria saído com vida daquelas montanhas se não
tivesse desistido de tentar ultrapassar aquela barreira.
Saímos do Lone Pine para Las Vegas, na noite seguinte, e durante dois
dias fiz tudo para descansar e recuperar, esperando que o meu corpo
atingisse um ponto próximo do equilíbrio. Estávamos hospedados no hotel
Wynn e, nessa manhã, saí para dar uma corrida, para ver se ainda me
restava algum combustível no depósito. Menos de dois quilómetros depois
já estava com o coração na boca e parei imediatamente. Caminhei de volta
ao hotel, sabendo que, apesar de tudo o que os médicos tinham dito, estava
doente; suspeitava que, fosse o que fosse, era grave.
Nessa noite, depois de ir ver um filme numa sala nos subúrbios de Las
Vegas, senti-me fraco enquanto caminhávamos para um restaurante
próximo, o Elephant Bar. A minha mãe seguia uns passos à minha frente e
eu via-a a triplicar. Fechei os olhos, voltei a abri-los – e ainda havia três
dela. A minha mãe abriu-me a porta e, ao entrar na sala refrigerada, senti-me
um pouco melhor. Ficámos numa cabine, um à frente do outro. Eu nem
conseguia ler o menu e pedi-lhe que encomendasse para mim. A partir desse
ponto, tudo piorou, e quando o empregado trouxe o que tínhamos pedido, a
visão voltou a ficar turva. Esforcei-me por manter os olhos abertos e senti-
me tonto, enquanto a minha mãe parecia flutuar sobre a mesa.
“Vais ter de chamar uma ambulância”, disse-lhe, “porque vou desmaiar.”
Desesperado por encontrar alguma estabilidade, pousei a cabeça sobre a
mesa, mas a minha mãe não telefonou a chamar uma ambulância. Deu a
volta à mesa e veio sentar-se ao meu lado; apoiei-me nela e caminhámos até
à porta e de regresso ao carro. No caminho, falei-lhe de tudo do que me
recordava do meu historial clínico, em apontamentos curtos, para o caso de
desmaiar e de ela ter de pedir ajuda. Felizmente, a minha visão e a minha
energia melhoraram o suficiente para ela me conseguir levar às urgências.
Já no passado tinha tido problemas com a tiroide, por isso foi a primeira
coisa que os médicos exploraram. Muitos SEAL têm problemas de tiroide
na casa dos trinta anos. Quando se põe um filho da mãe qualquer em
ambientes extremos, como Semanas Infernais e guerras, o seu nível
hormonal vai ficar descontrolado. Se o funcionamento da glândula tiroide
for abaixo de ótimo, fadiga, dores musculares e debilidade podem surgir
entre mais de uma dezena de efeitos secundários consideráveis, mas os
meus indicadores da tiroide estavam próximos do normal. O coração
também estava bem. Os médicos das urgências em Las Vegas disseram-me
que eu só precisava de descansar.
Regressei a Chicago e fui ao meu médico, que me mandou fazer uma
quantidade de análises ao sangue. Examinaram-me o sistema endócrino e
procuraram sinais de doença de Lyme, hepatite, artrite reumatoide e uma
mão-cheia de outras doenças autoimunes. Os resultados vieram todos sem
nada a assinalar, com exceção da tiroide, ligeiramente abaixo do nível de
funcionamento desejável, mas isso não explicava por que razão tinha eu
passado tão depressa da condição de atleta de elite, capaz de correr centenas
de quilómetros, para a de alguém que mal conseguia ter energia para apertar
os sapatos, quanto mais correr um quilómetro sem ficar à beira do colapso.
Encontrava-me numa terra de ninguém da medicina. Saí do consultório com
mais perguntas do que respostas e uma receita de medicamentos para a
tiroide.
Sentia-me pior a cada dia. Tudo desabava sobre mim. Tinha dificuldade
em sair da cama, com problemas intestinais e dores. Fizeram-me mais
análises ao sangue e decidiram que tinha Addison, uma doença autoimune
que ocorre quando as glândulas suprarrenais estão secas e o corpo não
produz suficiente cortisol – o que é comum entre os SEAL, porque somos
preparados para funcionar à base de adrenalina. Entre outros medicamentos,
o médico receitou-me o esteroide hidrocortisona, DHEA e Arimidez, mas os
comprimidos só aceleraram o meu declínio. Ele e outros médicos que
consultei não tinham pistas. Na cabeça deles, ou eu era um louco
hipocondríaco ou estava a morrer e eles não sabiam nem o que me estava a
matar nem como me tratar.
Nesta situação, lutei o melhor que pude. Os meus colegas nada sabiam
sobre este meu declínio porque eu continuei a não mostrar fraqueza. Toda a
vida tinha andado a esconder inseguranças e trauma. Mantive as
vulnerabilidades encerradas sob uma capa de aço, mas as dores acabaram
por tornar-se tão más que já não conseguia levantar-me. Telefonei a dizer
que estava doente e fiquei deitado, a olhar para o teto, e a pensar: será isto o
fim?
Espreitar para o abismo pôs a minha mente a dar voltas pelos dias,
semanas e anos passados, como dedos a passarem ficheiros. Encontrei todas
as melhores partes e uni-as numa amálgama de coisas a destacar,
transmitida em repetição contínua. Cresci a levar pancada e abusado,
atravessei sem educação um sistema que me rejeitou em cada ocasião, até
que assumi o controlo e comecei a mudar. Já tinha sido obeso. Casei e
divorciei-me. Passei por duas cirurgias ao coração, aprendi sozinho a nadar
e também a correr com as pernas partidas. Tinha pânico de alturas e lancei-
me a fazer saltos de paraquedas de grande altitude. Tinha um pavor terrível
da água e, no entanto, tornei-me técnico de mergulho e especialista em
orientação submarina, o que está uns furos de dificuldade acima de fazer
mergulho. Competi em mais de sessenta provas ultra, ganhando várias, e
estabeleci um recorde de elevações em barra. Nos primeiros anos da
primária, gaguejava e acabei por tornar-me o orador público em que os
SEAL mais confiavam. Servi o meu país no campo de batalha. Pelo
caminho, ganhei a determinação de não ser definido pelo abuso em que
nasci ou pela perseguição em que cresci. Também não seria definido pelo
talento, não tinha muito; nem pelos meus próprios medos ou debilidades.
Eu era a soma total dos obstáculos que tinha ultrapassado. E embora
tivesse contado a minha história a estudantes de todo o país, nunca me
detive o suficiente para apreciar esse relato em que narrava a vida que tinha
construído. Na minha cabeça, não tinha tempo a perder. Nunca carreguei no
botão de pausa do relógio da minha vida, porque havia sempre outra coisa
qualquer para fazer. Se tivesse um dia de vinte horas de trabalho, ainda fazia
uma de exercício e dormia três, mas de maneira a não falhar nunca. O meu
cérebro não estava programado para apreciar e sim para trabalhar, perscrutar
o horizonte, perguntar o que vinha a seguir e fazê-lo. É por isso que
acumulei tantas proezas invulgares. Estava sempre em busca da próxima
coisa importante, mas nesse momento, ali na minha cama, com o corpo em
tensão extrema e a palpitar de dor, tinha uma ideia clara do que vinha a
seguir. O cemitério. Ao fim de anos no limite, tinha finalmente despedaçado
o meu corpo físico, levando-o para lá de um ponto em que não havia
conserto.
Estava a morrer.
Durante semanas, meses, procurei uma cura para o meu mistério médico,
mas, nesse momento de catarse, não me senti triste e também não me senti
defraudado. Só tinha 38 anos, mas era como se tivesse vivido dez vidas e
experimentado muito mais do que a maior parte das pessoas com oitenta.
Não tinha pena de mim. Fazia sentido que, a certo ponto, o desgaste
cobrasse um preço. Passei horas a refletir sobre a minha jornada. Desta vez,
não estava a vasculhar o Frasco das Bolachas no meio do calor da batalha à
procura de encontrar um bilhete para a vitória. Não estava a usar os recursos
da minha vida com vista a um novo objetivo. Não, tinha terminado de lutar,
e só sentia gratidão.
Eu não estava destinado a ser esta pessoa! Tive sempre de lutar contra
mim, e agora o meu maior troféu era o meu corpo destruído. Nesse
momento, sabia que não importava se voltaria a correr outra vez, se já não
poderia mexer-me mais, ou se iria viver ou morrer; e, com essa aceitação,
veio um profundo agradecimento.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Não porque tivesse medo, mas
porque naquele momento, no ponto mais baixo, encontrei lucidez. A criança
que sempre julguei com tanta dureza não mentia nem enganava para ferir os
sentimentos de ninguém. Fazia-o para ser aceite. Violava as regras porque
não possuía as ferramentas para competir e tinha vergonha de ser burro. Fez
isso porque precisava de amigos. Eu tinha medo de dizer aos professores
que não sabia ler. Aterrorizava-me o estigma associado à educação especial
e, em vez de condenar essa criança por um segundo mais, em vez de
castigar o meu eu mais jovem, compreendi-o pela primeira vez.
Foi uma travessia solitária de lá até aqui. Tinha perdido muita coisa. Não
me divertira muito. A felicidade não era o meu cocktail preferido. O meu
cérebro mantinha-me em alerta permanente. Vivi no medo e na dúvida,
aterrado pela perspetiva de ser um zé-ninguém e não contribuir com nada.
Tinha-me julgado constantemente – e também tinha julgado todos à minha
volta.
A fúria é uma coisa poderosa. Durante anos, tinha sentido fúria contra o
mundo, canalizado toda a dor que vinha do meu passado usando-a como
combustível para me disparar para a puta da estratosfera, mas nem sempre
conseguia controlar o raio da explosão. Às vezes, a minha raiva abrasou
pessoas que não eram tão fortes como eu me tinha tornado, ou que não
trabalhavam com tanto esforço, e eu não mordia a língua nem escondia a
minha opinião. Dizia-a – e isso magoou algumas das pessoas à minha volta
e permitiu a outras que não gostavam de mim prejudicarem a minha carreira
militar. Mas deitado na cama, em Chicago, naquela manhã do outono de
2014, larguei todo esse julgamento.
Libertei-me, e a todos os que tinha conhecido, de qualquer culpa e
amargura. Era longa a lista dos críticos, incrédulos, racistas e abusadores
que povoavam o meu passado, mas já não era mais capaz de os odiar.
Mereciam o meu reconhecimento, porque tinham contribuído para me criar.
E, à medida que esse sentimento alastrava, a minha mente aquietou-se. Há
38 anos que andava a travar uma guerra e agora, no que parecia e dava a
sensação de ser o final absoluto, encontrava paz.
Existem na vida inúmeros caminhos para a autossuperação, embora a
maioria exija uma disciplina intensa – e por isso são tão poucos os que os
seguem. Na África Austral, o povo San dança trinta horas seguidas como
forma de entrar em comunhão com o divino. No Tibete, os peregrinos
erguem-se, ajoelham-se e depois estendem-se ao comprido, de rosto no
chão, antes de se erguerem de novo, num ritual de prostração que dura
semanas e meses, enquanto percorrem milhares de quilómetros antes de
chegarem a um templo sagrado e se dedicarem a uma meditação profunda.
No Japão, há um grupo de monges zen que corre mil maratonas em mil
dias, numa demanda para encontrar iluminação através da dor e do
sofrimento. Não sei se pode chamar-se “iluminação” àquilo que me
aconteceu naquela cama, mas sei que a dor desbloqueia uma passagem
secreta na mente. Uma passagem que conduz tanto a um rendimento
máximo como a um silêncio belo.
Ao princípio, se vamos para lá da capacidade que percebemos em nós, a
mente não se cala com isso. Quer que paremos, e por isso lança-nos num
círculo vicioso de pânico e dúvida, que só amplifica a autotortura. Mas se
persistimos para lá desse ponto, até a dor saturar completamente a mente,
passamos a ter um único foco. O mundo exterior desaparece. As fronteiras
dissolvem-se e sentimo-nos ligados a nós mesmos, e a todas as coisas, no
fundo da alma. Era isso que eu procurava. Esses momentos de ligação total
e poder, aos quais acedia de novo, e de uma maneira ainda mais profunda,
enquanto refletia sobre de onde vinha e tudo pelo que tinha passado.
Durante horas, flutuei nesse espaço tranquilo, rodeado por luz, sentindo
tanta gratidão como dor, tanto reconhecimento como desconforto. A certo
ponto, esse estado de sonho revelou-se como uma febre. Sorri, coloquei as
palmas das mãos sobre os olhos húmidos e esfreguei a parte de cima e de
trás da cabeça. Senti um nó familiar na base do pescoço. Estava maior do
que nunca. Atirei os lençóis para trás e examinei também os nós sobre os
músculos flexores das ancas. Também tinham aumentado de tamanho.
Poderia ser assim tão básico? Poderia o meu sofrimento estar ligado
àqueles nós? Lembrei-me imediatamente de uma sessão com um
especialista em alongamentos e em métodos avançados de treino físico e
mental que os SEAL levaram, em 2010, à base de Coronado, chamado Joe
Hippensteel. Na universidade, fora um praticante de decatlo. Era demasiado
baixo, mas estava determinado em chegar à equipa olímpica. Só que isso
não é fácil quando se tem 1,64 metros e se enfrentam decatlonistas de classe
mundial com uma média de 1,78. Ele decidiu fortalecer os membros
inferiores de modo a conseguir suplantar a genética e a saltar mais alto e a
correr mais depressa do que os adversários maiores e mais fortes. Houve um
momento em que já levantava o dobro do seu peso em dez séries de dez
repetições numa sessão, mas esse aumento de massa corporal trouxe
também muita tensão, e a tensão convida a lesões. Quanto mais treinava,
mais lesões fazia e mais fisioterapeutas consultava. Ao saber, imediatamente
antes das qualificações olímpicas, que tinha feito uma rotura nos músculos
isquiotibiais, o sonho de ir aos jogos morreu – e ele percebeu que precisava
de mudar a forma como treinava. Começou a equilibrar o trabalho de força
com alongamentos prolongados e reparou que sempre que chegava a um
certo grau de movimento numa articulação ou grupo muscular específico,
desaparecia qualquer dor que existisse nessa zona.
Tornou-se o seu próprio porquinho-da-índia e desenvolveu amplitudes
ótimas de movimento para cada músculo e articulação do corpo humano.
Nunca mais voltou a médicos ou a fisioterapeutas, porque a sua própria
metodologia se revelou muito mais eficaz. Se surgisse uma lesão, ele
tratava-a com um regime de alongamentos. Com os anos, criou uma
clientela e uma reputação entre atletas de elite na região, e, em 2010, foi
apresentado a alguns SEAL. A informação correu no Centro de Comando
Naval de Guerra Especial e ele acabou por ser convidado a apresentar o seu
programa de amplitude de movimentos a cerca de duas dezenas de SEAL.
Eu era um deles.
Enquanto dava a sua palestra, ia-nos examinando e fazendo
alongamentos. O problema com a maior parte de nós, observou, era o uso
excessivo dos músculos sem o equilíbrio adequado de flexibilidade, e esses
problemas remontavam à Semana Infernal, quando nos pediram para fazer
milhares de levantamentos de pernas e a seguir ficar deitados de costas na
água gelada, com as ondas a passarem-nos por cima. Ele calculou que
seriam necessárias vinte horas de alongamentos intensivos, usando a sua
rotina, para conseguir que a maior parte de nós voltasse a ter uma amplitude
de movimento normal nas ancas, que a partir daí poderia ser mantida,
segundo o seu cálculo, com apenas vinte minutos de alongamentos diários.
Conseguir uma amplitude de movimento ótima exigia um compromisso
maior. Chegou junto a mim, avaliou-me bem e abanou a cabeça. Como é
sabido, eu tinha passado por três Semanas Infernais. Começou a alongar-me
e disse que eu estava tão tenso que era como tentar esticar cabos de aço.
“Tu vais precisar de centenas de horas”, disse.
Eu não lhe prestei então muita atenção, porque não tinha planos para
fazer alongamentos nenhuns. A força e a potência obcecavam-me, e tudo o
que lera sugeria que um aumento de flexibilidade equivalia a uma
diminuição igual e oposta em velocidade e em força. A minha perspetiva no
leito de morte alterou essa ideia.
Ergui-me, cambaleei até ao espelho da casa de banho, virei-me e
examinei o nó na cabeça. Estiquei-me o mais alto que pude. Parecia-me que
não tinha perdido uns dois, mas sim uns quatro centímetros de altura. A
minha amplitude de movimentos nunca fora pior. E se Joe Hippensteel
tivesse razão?
E se?
Um dos meus lemas, hoje, é em paz, mas nunca satisfeito. Uma coisa era
desfrutar da paz da autoaceitação, e a minha aceitação do maldito mundo tal
como ele é, mas isso não significava ficar deitado e à espera de morrer sem
pelo menos tentar salvar-me. Não queria dizer então, e continua a não
querer dizer hoje, que aceitarei o que é imperfeito ou está errado sem lutar
para mudar as coisas para melhor. Procurara seguir a corrente dominante em
busca de uma cura, mas os médicos e os seus medicamentos não fizeram
porra nenhuma, a não ser deixarem-me a sentir muito pior. Já não tinha mais
cartas para jogar. Só me restava uma coisa: alongar-me para recuperar a
saúde.
A primeira posição foi simples. Sentei-me no chão e procurei cruzar as
pernas, ao estilo índio, mas as ancas estavam tão rígidas que os joelhos
ficavam à altura do pescoço. Desequilibrei-me e caí de costas. Precisei de
toda a força para me endireitar e tentar outra vez. Fiquei na posição dez
segundos, talvez 15, antes de esticar as pernas, porque a dor era absurda.
Sentia cãibras a apertar e a beliscar todos os músculos da parte de baixo
do corpo. Transpirava por todos os poros, mas, depois de uma curta pausa,
voltei a dobrar as pernas – e a sentir mais dor. Repeti esse ciclo, com
pausas, durante uma hora, e lentamente o meu corpo começou a abrir-se. A
seguir, fiz um alongamento simples dos quadris, aquele que todos
aprendemos a fazer na secundária. Assente na perna esquerda, dobrei a
direita e agarrei o pé com a mão direita. Joe tinha razão. Os meus quadris
estavam tão volumosos e tensos que era realmente como alongar cabos de
aço. Fiquei nessa posição até a dor crescer até um nível de sete numa escala
de dez. Depois, parei um pouco e repeti os gestos, do outro lado do corpo.
Essa posição ajudou-me a soltar os quadris e a esticar o psoas. O psoas é
o único músculo que une a coluna à parte inferior das pernas. Enrola-se pela
parte interior da pélvis, governa as ancas e é conhecido como o músculo de
lutar ou fugir. Como já percebeu, toda a minha vida foi lutar ou fugir. Em
miúdo, afogado em stresse tóxico, fiz esse músculo trabalhar horas
extraordinárias. O mesmo aconteceu nas três Semanas Infernais, na Escola
de Rangers e na Seleção Delta. Para não falar da guerra. E, no entanto,
nunca fiz nada para o descontrair; enquanto atleta, continuei a recorrer ao
meu sistema nervoso simpático e a esforçar tanto o psoas que este acabou
por endurecer. Especialmente em corridas longas, onde também entravam
em jogo a privação de sono e o clima frio. Agora, ele tentava asfixiar-me a
partir de dentro. Saberia, mais tarde, que ele tinha inclinado a pélvis,
comprimido a coluna e envolvido e apertado o tecido conjuntivo. Cortou-
me quatro centímetros na altura. Falei há pouco tempo com o Joe sobre isto.
“O que estava a acontecer contigo era um caso extremo daquilo que se
passa com 90 por cento da população”, disse-me. “Tinhas os músculos tão
contraídos que o sangue não circulava devidamente. Eram como um bife
congelado. Não é possível injetar sangue num bife congelado e por isso é
que o corpo estava a deixar de funcionar.”
E o problema não ia desaparecer sem dar luta. Cada alongamento era
como mergulhar em fogo. A inflamação e a rigidez interior eram de tal
ordem que o mais pequeno dos movimentos causava dor, para não falar de
posições que era preciso manter durante mais tempo, com o objetivo de
soltar os quadríceps e o psoas. A tortura intensificou-se quando, a seguir, me
sentei e fiz o alongamento da mariposa.
Nesse dia, fiz alongamentos durante duas horas, acordei inchado como
tudo e voltei a insistir. No segundo dia, fiz seis horas completas. Repetia
sem parar as mesmas três posições e, depois, procurava sentar-me sobre os
calcanhares, num duplo alongamento dos quadríceps que era sofrimento
puro. Também experimentei um alongamento do calcanhar. Cada sessão
começava com dificuldade, mas ao fim de uma hora ou duas, o meu corpo
já se tinha soltado o suficiente para a dor abrandar.
Não demorou muito até chegar a um ponto em que fazia alongamentos
até 12 horas por dia. Acordava às seis da manhã, alongava até às nove e,
depois, ia intercalando os exercícios com os períodos passados à secretária a
trabalhar, em especial se estava ao telefone. Na hora de almoço também
fazia alongamentos e, ao chegar a casa, pelas cinco da tarde, fazia várias
posições até ir para a cama.
Inventei uma rotina, começando pelo pescoço e ombros antes de
continuar para as ancas, psoas, glúteos, quadríceps, isquiotibiais e
calcanhares. Os alongamentos tornaram-se a minha nova obsessão. Comprei
uma bola de massagem para tentar suavizar o psoas. Fixei uma tábua contra
uma porta fechada num ângulo de setenta graus e usei-a para alongar os
calcanhares. Há quase dois anos inteiros que estava a sofrer e, depois de
meses de alongamentos continuados, dei conta de que o alto na base do
crânio começara a diminuir, tal como os nós em volta dos flexores das
ancas; a minha saúde geral e energia também tinham melhorado. Ainda não
estava sequer perto de ser flexível, e não tinha voltado a ser completamente
eu, mas largara todos os medicamentos, exceto os da tiroide, e quanto mais
alongamentos fazia, mais o meu estado melhorava. Continuei a fazê-los
pelo menos seis horas por dia, durante semanas. E depois, durante meses. E
anos. Ainda os faço.
***
Reformei-me da tropa como suboficial chefe da Marinha em novembro
de 2015; era o único militar que alguma vez fizera parte da TAC-P da Força
Aérea, passara por três Semanas Infernais nos SEAL da Marinha no espaço
de um ano (concluindo duas) e se formara na instrução BUD/S e na Escola
de Rangers. Foi um momento agridoce, porque ser militar era uma parte
muito grande da minha identidade. Ajudou a formar-me e fez de mim um
homem melhor; e eu dei tudo o que tinha.
O Bill Brown também já tinha então seguido com a sua vida. Cresceu
marginalizado como eu, não deveria ter alcançado grande coisa e até foi
afastado da sua primeira instrução BUD/S por instrutores que puseram em
causa a sua inteligência. Hoje, é advogado num escritório importante de
Filadélfia. O Freak Brown mostrou-se ao mundo e continua a mostrar-se.
O Sledge ainda está nas Equipas Seal. Era um grande bêbedo quando o
conheci, mas depois dos nossos exercícios, a sua mentalidade mudou. Ele,
que nunca corria de todo, passou a fazer maratonas. Ele, que nem bicicleta
tinha, tornou-se um dos ciclistas mais velozes de San Diego. Concluiu
vários triatlos Ironman. Dizem que “aço afia-se com aço” – e nós
demonstrámos isso.
O Shawn Dobbs nunca se tornou SEAL, mas chegou a oficial. Tem a
patente de tenente comandante e ainda é um atleta tremendo. É um Ironman,
um ciclista exímio, foi eleito Alistado de Honra na Escola de Mergulho
Avançado da Marinha e, mais tarde, fez uma licenciatura. Uma razão para
todo este êxito é o facto de ter conseguido apropriar-se do seu fracasso na
Semana Infernal – o que significa que esse fracasso deixou de ser dono dele.
O SBG também ainda está na Marinha, mas já não anda a implicar com
os candidatos BUD/S. É analista de dados e procura garantir que a guerra
especial naval continue a tornar-se mais inteligente, mais forte e mais eficaz
do que nunca. Agora, é um tipo estudioso. Um intelectual com atitude. Mas
eu conheci-o no seu auge físico e era um atleta do catano.
Desde os dias sombrios em Buffalo e Brazil, a minha mãe também
transformou completamente a sua vida. Fez um mestrado em educação e é
voluntária num grupo de ação para casos de violência doméstica, além de
vice-presidente associada sénior numa escola médica de Nashville.
Quanto a mim, os alongamentos ajudaram-me a recuperar os meus
poderes. Quando o meu tempo nas forças armadas chegava ao fim, e ainda
estava em modo de reabilitação, estudei para obter uma certificação como
técnico de emergências médicas. Uma vez mais, utilizei as minhas
capacidades de memorização, que aperfeiçoava desde a preparatória, para
terminar como o melhor da turma. Também frequentei a academia de treino
contra incêndios TEEX, onde me formei como Alistado de Honra no meu
grupo. Também recomecei a correr, desta vez com zero efeitos secundários,
e, depois de regressar a uma forma suficientemente decente, entrei numas
quantas ultramaratonas e voltei a ganhar várias, incluindo os 160
quilómetros Strolling Jim, no Tennessee, e a Infinitus, de 88 quilómetros, no
Vermont. Mas isso não era suficiente, pelo que me tornei bombeiro florestal
no Montana.
Depois de concluir a primeira temporada nas linhas da frente dos
incêndios, no verão de 2015, passei por casa da minha mãe em Nashville,
para a visitar. O telefone dela tocou à meia-noite. A minha mãe é como eu,
no sentido em que não tem um círculo de amigos alargado e não recebe
muitos telefonemas, nem sequer a horas decentes, por isso ou era engano ou
era uma emergência.
Consegui ouvir Trunnis Jr. do outro lado. Há 15 anos que não o via ou
falava com ele. A nossa relação interrompeu-se no momento em que ele
escolheu ficar com o pai, em vez de suportar dificuldades connosco.
Durante a maior parte da vida, considerei que era impossível perdoar ou
aceitar essa decisão, mas, como já disse, eu tinha mudado. Ao longo dos
anos, a minha mãe foi-me mantendo a par das informações essenciais. Ele
acabara por se afastar do pai e dos seus negócios obscuros, fizera um
doutoramento e era administrador universitário. É também um grande pai
para os seus filhos.
Pela voz da minha mãe, percebi que qualquer coisa não estava bem. Só
me lembro de a ouvir perguntar “Tens a certeza de que é a Kayla?” Ela
desligou e contou-me que a Kayla, a filha de 18 anos do meu irmão, saíra
com amigos em Indianápolis. Apareceram conhecidos distantes, surgiram
rancores, alguém puxou de uma arma, houve tiros e uma bala perdida
atingiu um dos adolescentes.
A ex-mulher ligou-lhe, em pânico, ele meteu-se no automóvel e foi
imediatamente para o local do crime, mas a polícia tinha vedado tudo com
fita e ninguém dizia nada. Distinguiu o automóvel de Kayla e um corpo
coberto por um oleado, mas ninguém lhe disse se a filha estava viva ou
morta.
Eu e a minha mãe pusemo-nos imediatamente a caminho. Conduzi a 130
quilómetros por hora debaixo de cortinas de chuva, durante cinco horas, até
chegarmos a Indianápolis. Estacionámos em casa dele pouco depois de ele
ter regressado do local do crime, onde, fora do perímetro da fita amarela,
lhe pediram para identificar a filha a partir de uma fotografia do corpo
tirada pelo telemóvel de um detetive. Não lhe deram a dignidade, nem a
privacidade, nem o tempo para se despedir ou lhe prestar um tributo. Teria
de fazer tudo isso mais tarde. Abriu a porta, caminhou uns quantos passos
para nós e desfez-se em lágrimas. A minha mãe abraçou-o primeiro. Depois,
eu puxei-o para mim, também para um abraço, e os nossos problemas de
merda deixaram de importar mais.
***
Buda terá afirmado, numa citação muito reproduzida, que vida é
sofrimento. Eu não sou budista, mas sei o que ele queria dizer, e o leitor
também. Para existir neste mundo, temos de enfrentar humilhação, sonhos
desfeitos, tristeza e perda. A natureza é mesmo assim. Cada vida específica
vem com a sua própria dose de dor, personalizada. Há de chegar a si. Não
pode detê-la. E sabe isso muito bem.
Como resposta, a maioria das pessoas está programada para procurar o
conforto, como forma de tudo anestesiar e de suavizar os golpes.
Construímos espaços seguros. Consumimos meios de comunicação que
confirmam aquilo em que acreditamos, escolhemos passatempos alinhados
com os nossos talentos, passamos a menor quantidade de tempo possível a
realizar tarefas que detestamos – e isso torna-nos brandos. Levamos uma
vida definida pelos limites que imaginamos e desejamos para estamos
confortáveis como o diabo dentro dessa caixa. Não só para nós, mas para a
família mais próxima e amigos. Os limites que criamos e aceitamos tornam-
se a lente pela qual nos veem. Através da qual nos amam e nos apreciam.
Mas, para alguns, esses limites começam a ser sentidos como uma prisão.
Quando menos esperamos, a imaginação galga esses muros e parte na
perseguição de sonhos que, no imediato, parecem alcançáveis. Porque a
maior parte dos sonhos são de facto alcançáveis. Somos motivados a fazer
mudanças pouco a pouco – e isso custa. Quebrar as grilhetas e estendermo-
nos para lá dos nossos limites percebidos dá um trabalho do catano – muitas
vezes, um esforço físico –, e ao corrermos riscos seremos recebidos pela
dúvida e pela dor, uma combinação poderosa, capaz de nos deixar de
joelhos.
A maior parte das pessoas com uma inspiração ou motivação apenas
ligeira desistirão logo aqui. Quando regressarem ao ponto de partida,
sentirão que as suas celas são muito mais pequenas e que as suas grilhetas
estão mais apertadas. Os poucos que ficam do outro lado do muro depararão
ainda com mais dor e muito mais dúvidas, por obra e graça daqueles que
pensavam que eram os seus maiores admiradores. No momento em que
devia perder cinquenta quilos em menos de três meses, todos aqueles com
quem falei me disseram que não haveria maneira de o conseguir. “Não
tenhas expetativas muito altas”, diziam-me. Essas observações frouxas só
serviram para alimentar as dúvidas que eu tinha sobre mim.
Mas não são as vozes externas que nos derrubarão. Aquilo que importa é
o que dizemos a nós mesmos. As conversas mais importantes que teremos
são as conversas que teremos connosco. Acordamos com elas, caminhamos
com elas, deitamo-nos com elas e, eventualmente, agimos em função delas.
Sejam boas ou más.
Nós somos os piores críticos e quem mais duvida de nós, porque a
dúvida é uma reação natural a qualquer tentativa ousada para mudar a vida
para melhor. É impossível não deixar que ela floresça no cérebro, mas é
possível neutralizá-la, e a toda a conversa exterior, fazendo uma pergunta
simples: E se?
“E se?” equivale a um “vai à merda” sofisticado, dirigido a quem quer
que tenha duvidado da sua grandeza ou se tenha atravessado no seu
caminho. Silencia as abordagens negativas. Recorda que ninguém sabe
realmente do que é capaz até ter dado absolutamente tudo. Transmite a
sensação de que o impossível é, pelo menos, um pouco mais possível. “E
se?” é o poder e a autorização para enfrentar os demónios interiores mais
sombrios e as piores recordações e aceitá-las como parte da nossa história
pessoal. Quando o fizer, e sempre que o fizer, conseguirá usar a sua história
como combustível para imaginar o objetivo mais audacioso e incrível – e ir
atrás dele.
Vivemos num mundo com muitas pessoas inseguras e invejosas.
Algumas até são os nossos melhores amigos. Ou familiares próximos. O
fracasso aterroriza-os. O nosso êxito também. Porque, ao transcendermos
aquilo que julgávamos possível, alargarmos os nossos limites e nos
tornarmos mais, a nossa luz vai incidir sobre os muros que ergueram à volta
deles. E essa nossa luz vai permitir-lhes que vejam os contornos da sua
própria prisão, os seus próprios limites. Mas se eles forem realmente as
pessoas fantásticas que sempre julgámos que eram, então a sua inveja vai
evoluir e, em breve, também a sua imaginação pode dar o salto; será a vez
de eles mudarem para melhor.
Espero que este livro tenha feito isto por si. Espero que, neste preciso
momento, esteja a visualizar perfeitamente os muros idiotas que o limitam a
si e que nem sabia que existiam. Espero que esteja disposto a trabalhar para
os derrubar. Espero que esteja com vontade de mudar. Vai sentir dor, mas se
a aceitar, a suportar e calejar a sua mente, atingirá um ponto em que nem
sequer a dor o consegue magoar. Há, no entanto, um problema: quando se
vive desta forma, esta prática não tem fim.
Graças a todos os alongamentos, estou em melhor forma aos 43 anos do
que estava aos vinte. Nesse tempo, andava sempre doente, tenso e stressado.
Nunca analisei a fundo porque sempre sofri de fraturas de stresse. Só lhes
punha adesivo por cima. E usava essa solução para tudo o que estivesse a
fazer mal ao corpo ou ao espírito: punha adesivo e seguia em frente. Agora,
sou mais inteligente do que nunca. E continuo a aprender.
Em 2018, regressei às montanhas para voltar a ser bombeiro florestal. Há
três anos que não estava no terreno, e tinha-me habituado a treinar em
ginásios bonitos e a viver com comodidade. Alguns poderiam chamar-lhe
luxo. Encontrava-me num hotel de topo, em Vegas, quando o incêndio 416
começou e eu recebi o telefonema. Aquilo que começou por ser um fogo em
800 hectares de terreno de pastagens nas montanhas de San Juan, na
cordilheira das Rochosas do Colorado, estava a crescer para se tornar um
monstro nunca visto, a queimar 22 mil hectares. Desliguei o telefone,
apanhei um avião a hélice para chegar a Grand Junction, saltei para uma
camioneta do Serviço Nacional Florestal dos Estados Unidos e andei três
horas até aos arredores de Durango, no Colorado, onde me equipei com as
calças verdes de Nomex, uma camisa amarela de manga comprida, o
capacete, óculos protetores e luvas e peguei no meu super Pulaski, o
machado que é a arma em que um bombeiro florestal mais confia. A
empunhar aquela coisa consigo remover terra durante horas – e é
precisamente isso que fazemos. Não lançamos água. Somos especializados
em contenção, e isso significa escavar valas e limpar mato, para não haver
material combustível na rota do fogo infernal. Cavamos e corremos,
cavamos e corremos, até todos os músculos estarem exaustos. E depois
voltamos a repetir tudo outra vez.
No primeiro dia e noite, cavámos linhas corta-fogo em redor de casas
vulneráveis, enquanto muralhas de chamas avançavam, a menos de um
quilómetro. Víamos o incêndio através das árvores e sentíamos o calor no
meio da floresta ressequida pela seca. Daí levaram-nos para uma altitude de
três mil metros e trabalhámos numa encosta com uma inclinação de 45
graus, cavando o mais fundo possível e tentando chegar ao solo mineral,
que não arde. Houve um momento em que uma árvore caiu e falhou por
poucos centímetros um dos meus companheiros. Se o apanhasse, tinha-o
matado. Sentíamos no ar o cheiro do fumo. Os nossos serradores – os
especialistas em serra elétrica – continuavam a cortar árvores mortas ou
moribundas. Arrastávamos esse material combustível para o outro lado do
leito de um ribeiro. Havia pilhas espalhadas de 15 em 15 metros, ao longo
de quase cinco quilómetros. Cada uma media aproximadamente dois metros
e meio de altura.
Trabalhámos assim durante uma semana, em turnos de 18 horas, com um
salário de 12 dólares por hora, antes de impostos. A temperatura durante o
dia era de vinte graus e, à noite, não ultrapassava os dois. No fim do turno,
estendíamos os colchões e dormíamos ao relento, onde quer que
estivéssemos. Depois, acordávamos e voltávamos ao trabalho. Não mudei
de roupa durante seis dias. A maior parte dos membros da minha equipa
tinham aí uns 15 anos menos do que eu. Eram todos tipos duros e dos mais
trabalhadores que já vi. Incluindo, e especialmente, as mulheres. Nunca
ninguém se queixou. No fim, tínhamos aberto uma clareira com mais de
cinco quilómetros, suficientemente larga para impedir que um monstro
queimasse completamente uma montanha.
Aos 43 anos, a minha carreira como bombeiro florestal está só a
começar. Adoro pertencer a uma equipa de cabrões rijos como eles são. A
minha carreira ultra também está prestes a renascer. Ainda sou
suficientemente jovem para continuar a competir e a perseguir os meus
objetivos. Estou a correr mais depressa do que nunca e não preciso de
adesivo nem de proteções para os pés. Com 33 anos, corria ao ritmo de oito
minutos e 35 segundos por 1,6 quilómetros. Agora faço 1,6 quilómetros em
sete minutos e 15 com muito à-vontade. Ainda estou a habituar-me a este
corpo novo, flexível, totalmente funcional – e a acostumar-me ao meu novo
eu.
A minha paixão ainda arde, mas, para ser honesto, demoro um pouco
mais a canalizar a minha fúria. Já não ocupa a primeira linha, à distância de
uma única contração nervosa de tomar conta do meu coração e da minha
cabeça. Agora, tenho de aceder a ela conscientemente. Mas, quando o faço,
ainda sinto todos os desafios e obstáculos, a angústia e o trabalho árduo,
como se tivessem acontecido ontem. É por isso que nos meus podcasts e
vídeos se consegue sentir a minha paixão. É uma merda que continua aí,
cauterizada no meu cérebro como tecido cicatrizado. A perseguir-me como
uma sombra que procura apanhar-me e devorar-me inteiro, mas que me vai
sempre empurrando para a frente.
Sejam quais forem os fracassos ou os triunfos que se acumulem nos anos
que estão por diante – e tenho a certeza de que haverá bastantes, de ambos
–, não tenho dúvidas de que continuarei a dar o meu máximo e a fixar-me
metas que parecem impossíveis para a maioria. E quando esses cabrões
disserem que é impossível, vou olhá-los fixamente nos olhos e responder-
lhe-ei com uma simples pergunta.
E se?
AGRADECIMENTOS
Este livro demorou sete anos a ser elaborado, com seis tentativas falhadas
pelo caminho, antes me terem apresentado ao primeiro, e único, autor que
compreendeu realmente a minha paixão e captou a minha voz. Quero
agradecer a Adam Skolnick pelas inúmeras horas que passou a aprender
tudo o que havia a aprender sobre mim e a minha vida lixada, para me
ajudar a juntar todas as peças e a passar a escrito a minha história. Não há
palavras para mostrar o orgulho que sinto pela verdade, vulnerabilidade e
candura crua deste livro.
Para Jennifer Kish, não tenho palavras. Muitas pessoas dizem isto, mas é
verdade. Só tu sabes como foi difícil para mim levar a cabo este processo;
sem ti ao meu lado não haveria livro em absoluto. É graças a ti que
encontrei tempo livre para interromper a escrita enquanto tu tomavas conta
de todos os assuntos por trás do livro. Saber que tinha a “Kish” ao meu lado
deu-me a segurança para tomar a ousada decisão de publicar uma edição de
autor! É por causa da tua ética de trabalho que tive a confiança necessária
para rejeitar um pagamento antecipado considerável por este livro – por
saber que tu sozinha aguentas aquilo que uma editora inteira faz. Só posso
dizer “obrigado”; e que te adoro.
À minha mãe, Jackie Gardner. Temos tido uma vida difícil e lixada. Mas
podemos orgulhar-nos dela, porque muitas vezes nos atiraram ao tapete e
não tínhamos ninguém à volta para nos erguer. E, de algum modo,
arranjámos sempre maneira de nos levantar. Sei que, em muitos momentos,
estavas preocupada comigo e desejaste que eu parasse; obrigado por nunca
fazeres o que os teus sentimentos te ditavam, porque isso me permitiu
descobrir mais sobre mim. A maior parte das pessoas não diria isto à mãe
para lhe agradecer, mas só tu sabes como esta mensagem realmente conta.
Mantém a força; amo-te, Mamã.
Ao meu irmão, Trunnis. A nossa vida e a maneira como crescemos
tornou-nos por vezes inimigos, mas quando houve problemas sérios
estávamos lá um para o outro. Para mim, feitas as contas, é isso a verdadeira
irmandade.
Para as pessoas que seguem, e que autorizaram que eu e o Adam as
entrevistássemos para este livro, vão o meu maior apreço e agradecimento.
As recordações que têm dos acontecimentos ajudaram-me a criar uma
descrição precisa e honesta da minha vida e da forma como ocorreram
acontecimentos específicos.
Ao meu primo, Damien. Foste sempre o meu favorito enquanto
crescíamos e passei algum dos melhores momentos da minha vida contigo,
só a fazermos disparates.
A Johnny Nichols. A nossa amizade, enquanto crescíamos em Brazil, foi,
por vezes, a única coisa positiva que tinha na vida. Não há muitas pessoas
que saibam como tu dos momentos sombrios por que passei em criança.
Obrigado por estares presente quando verdadeiramente precisava mais de ti.
Kirk Freeman: quero agradecer-te pela honestidade. Eras um dos poucos
dispostos a contar a dolorosa verdade sobre alguns dos meus problemas em
Brazil. Vou agradecer-te sempre por isso.
Scott Gearen, até hoje não fazes ideia de quanto a tua história e a tua
pessoa me ajudaram numa fase da vida em que não via mais do que
escuridão. Não sabes o impacto que tiveste num miúdo de 14 anos. É
verdade o que se diz: nunca sabes quem está a olhar para ti. Aconteceu que
eu estava a olhar para ti naquele dia, na escola de saltos para-resgate.
Agradeço a tua amizade ao longo destes anos todos.
Victor Peña, tenho muitas histórias para contar sobre ti, mas só vou dizer
uma coisa: estiveste sempre nas boas e nas más – e sempre me deste o
máximo. Por isso, meu irmão, tenho um respeito louco por ti.
Steven Schaljo, se não fosses tu, podia nem sequer haver livro. Foste o
melhor recrutador da Marinha. Obrigado, mais uma vez, por acreditares em
mim.
Kenny Bigbee, obrigado por seres o outro “único tipo negro” na
instrução BUD/S. O teu sentido de humor surgia sempre no momento certo.
Mantém-te firme, irmão.
Para o David Goggins branco, o Bill Brown, a tua disposição para chegar
ao fim nos momentos mais difíceis tornou-me melhor nos tempos mais
difíceis. Da última vez que te vi, estávamos em missão no Iraque, tu com
uma de calibre 60 e eu a operar uma M60. Espero ver-te nos Estados
Unidos, num futuro próximo!
Drew Sheets, obrigado por teres a coragem de estar na parte da frente do
barco comigo, na minha terceira Semana Infernal. Muito poucos sabem
quanto pesa realmente aquela merda! Quem ia pensar que um campónio do
Sul e um negro se tornariam tão próximos? O que se diz é verdade: os
opostos atraem-se!
Shawn Dobbs, é preciso muita coragem para fazer o que fizeste neste
livro. Eu expus-me aos leitores, mas tu não precisavas! Só posso agradecer-
te por me permitires que partilhe uma parte da tua história. Vai modificar
vidas!
A Brent Gleeson, um dos poucos tipos que conheço e a quem se aplica
realmente a expressão “como a primeira vez, de todas as vezes”. Muito
poucos saberão sequer o que isto significa. Força, Brent!
SBG, tu foste um dos primeiros SEAL que eu conheci e colocaste a
fasquia bem alto. Obrigado pelos empurrões que me deste nas três
formações BUD/S – e pelas aulas de treino e monitorização rápida do
coração!
A Dana de Coster, o melhor companheiro de treino de natação que se
pode ter. A tua liderança no meu primeiro pelotão foi inexcedível!
Sledge, tudo o que posso dizer é que o aço afia mesmo o aço! Obrigado
por seres um dos poucos tipos que todos os dias veio sempre comigo, a dar
o máximo, e se dispôs a ir contra a corrente e a ser incompreendido na
vontade de ser sempre melhor.
Morgan Lutrell, 2-5! Estaremos sempre ligados pelo nosso momento em
Uma.
Chris Kostman, sem o saberes, obrigaste-me a alcançar todo um novo
nível de mim.
John Metz, obrigado por autorizares um tipo inexperiente a entrar na tua
corrida. Isso mudou a minha vida para sempre.
Chris Roman, sempre me espantaram o teu profissionalismo e atenção ao
pormenor. És uma razão muito importante para eu ter conseguido chegar em
terceiro numa das corridas mais difíceis do planeta.
Edie Rosenthal, obrigado por todo o teu apoio e pelo trabalho
extraordinário que realizas na Special Operations Warrior Foundation.
Ao almirante Ed Winters: foi uma honra ter servido tantos anos com o
senhor. Trabalhar para um almirante pressionou-me realmente para dar o
melhor de mim em todos os momentos. Obrigado pelo seu apoio
continuado.
Steve “Wiz” Wisotzki: foi feita justiça – e obrigado por isso.
Hawk, quando me enviaste aquele mail sobre “os 13 por cento” soube
que tínhamos mentes semelhantes. És um dos poucos neste mundo que me
compreende, e à maneira como penso, sem ter de explicar nada.
Doutor Schreckengaust, obrigado por me mandar fazer aquele
eletrocardiograma. Essa merda pode muito bem ter-me salvado a vida!
T., obrigado por me empurrares naquela caminhada com pesos. Carrega
sempre!
Ronald Cabarles, continua a liderar pelo exemplo e cheio de força.
Classe 03-04 Rangers Lead The Way!
Joe Hippensteel, obrigado por me mostrares as maneiras corretas de fazer
alongamentos. Isso mudou-me realmente a vida!
Ryan Dexter, obrigado por caminhares comigo 120 quilómetros e me
teres ajudado a chegar aos 330!
Keith Kirby, obrigado pelo apoio constante ao longo dos anos.
Nandor Tamaska, obrigado por me abrires o teu ginásio, a mim e à minha
equipa, para o recorde de elevações. Nunca esquecerei a tua hospitalidade,
bondade e apoio.
Dan Cottrell, é raro encontrar alguém que dá sem esperar nada em troca.
Obrigado por permitir que se tornasse realidade um dos meus sonhos de
saltar aos quarenta anos!
Fred Thompson, obrigado por me permitires trabalhar contigo e com a
tua equipa extraordinária este ano. Aprendi imenso com vocês. Respeito-vos
loucamente!
Marc Adelman, obrigado por fazeres parte da equipa desde o primeiro
dia e pelos teus conselhos a cada passo. Que maneira de ir além da perceção
dos teus limites este ano. Sinto orgulho de cada uma das tuas realizações!
BrandFire, obrigado pelo vosso génio criativo e pela criação do site
davidgoggins.com.
Por fim, a minha gratidão mais sincera, e agradecimento, à fantástica
equipa da Scribe Media. A partir do primeiro contacto com Ticker Max até
ao derradeiro, e em cada pormenor pelo meio, tu e cada um dos membros da
tua equipa superaram as minhas expetativas – tal como tu disseste que ia
acontecer! Um agradecimento profissional à enormíssima profissional Ellie
Cole, minha diretora de publicações; a Zach Obront, por ter ajudado a
delinear um fantástico plano de marketing; a Hal Clifford, o meu editor; e a
Erin Tyler, a mais talentosa autora de capas que eu podia ter imaginado, que
ajudou a criar a capa mais bizarra de todos os tempos!