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David Goggins

NÃO ME PODEM MAGOAR


DOMINA A TUA MENTE E DESAFIA O DESTINO
Traduzido do inglês por
João Carlos Silva
Ficha Técnica
Título: Não Me Podem Magoar
Título original: Can’t Hurt Me
Autor: David Goggins
Revisão: Marta Jacinto
Capa original: Erin Tyler
Adaptação de capa: Rui Rosa
ISBN: 9789892357928

LUA DE PAPEL
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Índice
Capa
Ficha Técnica
Introdução
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Agradecimentos
À voz implacável na minha cabeça que nunca me permitirá
parar.
INTRODUÇÃO
Sabe realmente quem é e de que é capaz?
Tenho a certeza de que acredita que sim, mas acreditar numa coisa não a
torna verdadeira. A negação é a zona de conforto por excelência.
Não se preocupe, não está só. Em todas as cidades, em todos os países,
em todo o mundo, há milhões de pessoas a deambular pelas ruas, com o
olhar perdido, como zombies, viciadas no comodismo e no conforto,
adotando uma mentalidade de vítima e inconscientes do seu verdadeiro
potencial. Sei isto muito bem porque estou sempre a vê-las e a ouvi-las – e
porque eu, exatamente como você, costumava ser uma delas.
E tinha também uma maldita desculpa.
A vida não me distribuiu boas cartas. Nasci vencido, cresci a levar
golpes, na escola atormentavam-me, chamaram-me preto mais vezes do que
consigo contar.
A minha família e eu fomos pobres durante um tempo, sobrevivemos
graças à assistência social, a viver numa casa subsidiada pelo governo –
enquanto eu passava por uma depressão asfixiante. Era como estar no fundo
de um barril – e o meu futuro previsível era uma merda desoladora.
Muito poucos sabem realmente como é estar no fundo do fundo, mas eu
sou um deles. É como areias movediças: colam-se a nós, puxam-nos para
baixo e não nos libertam. Quando a vida é assim, é fácil andar à deriva e
continuar a tomar as mesmas decisões cómodas que, repetidamente, dão
cabo de nós.
Mas a verdade é que todos tomamos habitualmente decisões que nos
autolimitam. É tão natural como um pôr do Sol e tão básico como a força da
gravidade. É assim que estão programados os nossos cérebros – e é a razão
pela qual a motivação é uma merda.
Até a melhor palestra de motivação ou encorajamento de autoajuda não
passa de uma solução temporária. Não lhe vai reconfigurar o cérebro. Não
vai amplificar a sua voz nem elevar a sua vida. A motivação não muda
absolutamente ninguém. Só eu, e apenas eu, podia emendar o facto de a
vida me ter distribuído más cartas.
Foi assim que procurei a dor, me enamorei do sofrimento e, no fim,
deixei de ser o cabrão mais frágil e miserável do planeta para me tornar o
homem mais duro que Deus alguma vez criou – ou, pelo menos, é isso que
digo a mim próprio.
O mais provável é que a sua infância tenha sido muito melhor do que a
minha – e pode até acontecer que o seu nível de vida seja hoje bastante
decente; mas não importa quem é ou quem são ou tenham sido os seus pais,
nem onde vive, onde trabalha ou quanto dinheiro tem; o mais provável é
que esteja a viver a cerca de quarenta por cento da sua verdadeira
capacidade.
Isso é uma maldita vergonha.
Todos temos o potencial de ser muito mais.
Há uns anos, fui convidado para fazer parte de um painel no MIT, o
Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Nos meus tempos de aluno, nunca
pus os pés numa sala de conferências de uma universidade. Só fiz o
secundário, e com dificuldade, e ali estava eu, numa das instituições de mais
prestígio dos Estados Unidos, para um debate sobre força mental com uma
mão-cheia de outros intervenientes. A certo ponto, um respeitado professor
do MIT afirmou que todos temos limitações genéticas. Tetos que somos
incapazes de ultrapassar. Que, muito simplesmente, há coisas que não
podemos fazer, sem importar a força mental que realmente temos. Ele
defendia que, quando atingimos o nosso limite genético, a força mental nem
sequer entra na equação.
Todos os que se encontravam na sala pareciam aceitar esta versão da
realidade, pois esse professor efetivo e muito experiente era reconhecido
pelo seu trabalho de investigação precisamente sobre força mental. O tema
era o trabalho da sua vida. E era também uma quantidade de disparates; na
minha opinião, ele estava a usar a ciência para nos facilitar a vida.
Com todas estas pessoas inteligentes à volta, eu tinha estado calado até
então, a sentir-me um idiota; mas alguém na plateia reparou na cara que eu
fiz e perguntou-me se estava de acordo com o que tinha sido dito. E se
alguém me faz uma pergunta direta, eu não sou tipo para responder com
timidez.
“Há que falar do que é viver uma experiência em vez de a estudar”,
disse, virando-me para o professor. “O que o senhor afirmou é verdade para
a maioria, mas não para cem por cento das pessoas. Haverá sempre um por
cento de nós disposto a fazer o esforço de desafiar as probabilidades.”
Continuei a explicar o que conhecia da minha própria experiência. Que
qualquer um pode transformar-se numa pessoa completamente diferente e
atingir o que os chamados especialistas, como o professor, afirmam ser
impossível; mas isso exige muito coração, força de vontade e uma mente
blindada.
Heráclito, um filósofo nascido no império persa, no século V a. C., tinha
razão no que escreveu sobre os homens no campo de batalha. “Em cada cem
homens”, afirmou, “dez não deviam sequer estar aqui, oitenta não passam
de alvos, nove são os verdadeiros combatentes, e temos a sorte de os ter,
pois são eles que travarão a batalha. Ah, mas depois o que sobra é um
guerreiro…”
A partir do momento em que respiramos pela primeira vez, tornamo-nos
candidatos a morrer. Também nos tornamos candidatos a encontrar a nossa
grandeza e a transformarmo -nos nesse Guerreiro, único entre cem; mas
depende de nós prepararmo-nos para a batalha que se avizinha. Só nós
podemos dominar a nossa mente, o que é necessário para levar uma vida
audaz, digna das proezas que a maioria considera fora das suas capacidades.
Eu não sou um génio, como aqueles professores do MIT, mas sou um
desses Guerreiros únicos. E a história que está prestes a ler, a história da
minha vida lixada, vai mostrar-lhe um caminho testado que conduz ao
autodomínio e lhe dará o poder para enfrentar a sua realidade, para o tornar
responsável, para o levar além da dor, para amar o que receia, para viver
conforme o seu potencial máximo – e para descobrir quem é na realidade.
Nós, seres humanos, transformamo-nos pelo estudo, pelo hábito e pelas
histórias. Através da minha história, ficará a conhecer do que são capazes o
corpo e a mente quando são levados ao limite – e como chegar a esse ponto.
Porque, se estivermos determinados, o que quer que seja que enfrentemos –
racismo, sexismo, lesões, divórcios, depressão, obesidade, tragédia ou
pobreza –, isso torna-se combustível para a nossa metamorfose.
Os passos aqui descritos equivalem a um algoritmo evolutivo, um
algoritmo que arrasa barreiras, resplandece de glória e proporciona paz
duradoura.
Espero que esteja preparado. É tempo de entrar em guerra consigo.
CAPÍTULO UM

EU DEVIA TER SIDO MAIS UMA ESTATÍSTICA


Foi num bairro bonito que encontrámos o inferno. Em 1981, Williamsville
oferecia o mais apetecível mercado imobiliário de Buffalo, no estado de
Nova Iorque. Cheio de árvores e amigável, tinha ruas seguras, salpicadas de
casas pitorescas habitadas por cidadãos-modelo. Viviam ali médicos,
advogados, administradores de siderurgias, dentistas e jogadores
profissionais de futebol, com as suas dedicadas esposas e os seus 2,2 filhos.
Os automóveis eram novinhos em folha, as ruas estavam varridas e as
possibilidades eram ilimitadas. Estamos a falar do vivo e palpitante Sonho
Americano. O inferno era um lote de esquina, em Paradise Road [Estrada
do Paraíso].
Era onde vivíamos, numa casa branca de dois andares e quatro quartos e
um alpendre da frente enquadrado por quatro pilares; diante dele, estendia-
se o relvado mais verde e mais amplo de todo o bairro de Williamsville.
Tínhamos uma horta com legumes nas traseiras e uma garagem para dois
automóveis, onde estavam um Rolls Royce 1962 Silver Cloud e um
Mercedes 450 SLC de 1980; estacionado, na entrada, havia um Corvette
negro de 1981, novo e reluzente. Em Paradise Road, todos viviam muito
perto do topo da cadeia alimentar e, com base nas aparências, a maior parte
dos vizinhos pensava que nós, a supostamente feliz e ajustada família
Goggins, estávamos na vanguarda. Mas as superfícies brilhantes refletem
muito mais do que revelam.
Os vizinhos viam-nos quase todas as manhãs dos dias de semana, pelas
sete horas, na entrada da casa. O meu pai, Trunnis Goggins, não era alto,
mas era bem-parecido e tinha a compleição de um pugilista. Usava fatos
feitos por medida e exibia um sorriso caloroso e aberto. Era a imagem
autêntica de um homem de negócios bem-sucedido que saía para o trabalho.
A minha mãe, Jackie, era 17 anos mais nova do que ele, magra e bonita; eu
e o meu irmão éramos crianças imaculadas, bem vestidas, com calças de
ganga, camisas em tons pastel, com botões, e mochilas, exatamente como os
outros miúdos. Os miúdos brancos. Na nossa versão da América abastada,
cada entrada de cada casa era um cenário montado para saudações e acenos
de cabeça entre pais e filhos, antes de partirem rumo ao trabalho e à escola.
Cada vizinho via o que queria ver. Ninguém investigava muito a fundo.
E ainda bem. A verdade é que a família Goggins não estava a sair:
acabava de regressar a casa depois de ter passado fora mais uma noite
inteira – e se Paradise Road era o inferno, isso queria dizer que eu vivia com
o Diabo em pessoa. Assim que os vizinhos fechavam as portas ou
desapareciam na curva, o sorriso do meu pai transformava-se numa
carranca. Ladrava-nos ordens e, depois, ia dormir, mas o nosso trabalho
ainda não tinha terminado. Eu e o meu irmão, Trunnis Jr., tínhamos onde
estar – e competia à nossa zelosa mãe levar-nos.
Em 1981, eu estava na primeira classe e vivia num autêntico
atordoamento escolar. Não porque as matérias fossem difíceis – pelo menos,
ainda não eram –, mas porque eu não conseguia manter-me acordado. A voz
melodiosa da professora era a minha canção de embalar, os meus braços
cruzados sobre a carteira eram uma almofada cómoda, e as palavras bruscas
dela – assim que me apanhava a dormitar – eram como um incómodo
alarme de um despertador que não parava de tocar. As crianças desta idade
são esponjas infinitas. Absorvem a linguagem e as ideias à velocidade da
luz, para estabelecer a base fundamental sobre a qual a maioria das pessoas
edifica as suas capacidades para a vida, seja ler, soletrar ou entender as
operações matemáticas simples; mas eu, como trabalhava durante a noite,
na maior parte das manhãs não conseguia concentrar-me em nada – exceto
em procurar manter-me acordado.
O recreio e as aulas de educação física eram também campos minados,
mas completamente diferentes. No pátio de jogos, a parte simples era
manter-me acordado. A parte complicada era esconder-me. Não podia
permitir-me arregaçar as mangas da camisa. E também não podia usar
calções. As nódoas negras eram sinais de alerta e não podia mostrá-las;
sabia que, se fizesse isso, ia acabar por ficar ainda com mais. Apesar de
tudo, no recreio e na sala de aulas sabia que estava seguro, ao menos
durante um bocado. Era o único lugar onde ele não me podia chegar, pelo
menos fisicamente. O meu irmão passou por uma situação semelhante no
sexto ano, o primeiro do secundário. Tinha as suas próprias feridas para
esconder e as suas próprias horas de sono para recuperar, porque assim que
a campainha da escola soava para a saída começava a vida real.
A viagem entre Williamsville e o Distrito Masten, na zona oriental de
Buffalo, demorava cerca de meia hora, mas era como se ficassem a um
mundo de distância. Como a maior parte da zona oriental, Masten era uma
área com mau aspeto, num bairro de classe trabalhadora e de maioria negra.
No entanto, no início da década de 1980, ainda não era um maldito gueto. A
siderugia Bethlehem ainda estava em funcionamento e Buffalo era a última
grande cidade siderúrgica dos Estados Unidos. A maioria dos homens,
brancos ou negros, tinha empregos sólidos e sindicalizados e ganhavam um
salário digno, o que significava que os negócios em Masten corriam bem.
Para o meu pai, tinha sido sempre assim.
Com a idade de 20 anos, o meu pai tinha uma concessão de distribuição
de Coca-Cola e quatro rotas de distribuição na área de Buffalo. Para um
jovem, isso representava bastante dinheiro, mas ele tinha sonhos maiores e
os olhos no futuro. O futuro dele tinha quatro rodas e, em fundo, uma banda
sonora de disco funk. Quando uma padaria local fechou, ele arrendou o
edifício e construiu uma das primeiras pistas de patinagem de Buffalo.
Dez anos mais tarde, a pista de Skateland tinha sido transferida para um
edifício em Ferry Street, no coração de Masten, que ocupava quase um
quarteirão inteiro. Ele abriu um bar por cima da pista e chamou-lhe
Vermillion Room. Nos anos 1970, era o lugar da moda na zona oriental – e
foi aí que ele conheceu a minha mãe; ela tinha apenas 19 anos e ele ia nos
36. Era a primeira vez que a minha mãe estava longe de casa. Jackie tinha
sido educada segundo os preceitos da Igreja Católica. Trunnis, sendo filho
de um pastor, conhecia essa linguagem suficientemente bem para se fazer
passar por crente, o que a atraía. Mas sejamos honestos: ela estava também
inebriada pelo encanto dele.
Trannis Jr. nasceu em 1971, e eu em 1975. Quando eu tinha seis anos, a
febre das discotecas em patins estava no auge. Todas as noites, era a loucura
em Skateland. Em geral, chegávamos lá às cinco da tarde, e enquanto o meu
irmão trabalhava no balcão dos alimentos – a fazer pipocas, grelhar
cachorros, abastecer o frigorífico e pôr pizas no forno –, eu organizava os
patins, por tamanho e estilo. Todas as tardes, subia a um banquinho,
pulverizava tudo com desodorizante em aerossol e substituía as borrachas
dos travões. O pivete do aerossol ficava a pairar como uma nuvem sobre a
minha cabeça e feria-me as narinas. Os meus olhos pareciam
permanentemente raiados de sangue. Não conseguia cheirar mais nada
durante horas. Mas eram distrações que eu tinha de ignorar, para me manter
organizado e atento. Porque o meu pai, que trabalhava na cabine de DJ,
estava sempre a observar e, se desaparecesse algum par de patins, isso
significava que eu estava lixado. Antes da abertura das portas, eu dava
lustro ao chão da pista de patinagem com uma esfregona que tinha o dobro
do meu tamanho.
Em Skateland, com seis anos
Cerca das seis da tarde, a minha mãe chamava-nos para jantar no
escritório das traseiras. Ela vivia num estado permanente de negação, mas o
seu instinto maternal era genuíno, e procurava mostrá-lo e fazê-lo
sobressair, agarrando-se a qualquer resquício de normalidade. Todas as
noites, nesse escritório, a minha mãe punha dois fogões elétricos no chão,
sentava-se com as pernas cruzadas e preparava uma refeição completa –
carne assada, batatas, feijão-verde e pãezinhos –, enquanto o meu pai
tratava da contabilidade e fazia uns telefonemas.
A comida era boa, mas, até com seis e sete anos, eu sabia que esse nosso
“jantar em família” era uma fotocópia de merda em comparação com o que
se passava na maior parte das famílias. Além disso, comíamos a correr. Não
havia tempo para desfrutar, porque às sete, quando as portas abriam, o
espetáculo começava, e tínhamos de estar nos nossos postos, com tudo
preparado. O meu pai era o xerife e, a partir da sua cabina de DJ,
controlava-nos a todos. Passava os olhos pela sala, esquadrinhava-a, via
tudo, e se fizéssemos merda, ele dizia-nos. Ou, então, fazia-nos sentir.
Observado apenas sob a luz crua das lâmpadas do teto, o lugar não era
grande coisa, mas quando ele lhes diminuía a intensidade e acendia as luzes
do espetáculo, elas banhavam a pista em tons de vermelho e refletiam-se na
bola de espelhos, criando uma fantasia de patinagem disco. Fosse ao fim de
semana ou aos dias de semana, havia sempre centenas de patinadores em
fila à entrada. Em geral, vinham em família, pagavam três dólares pelo
ingresso e mais meio dólar pelo aluguer de uns patins antes de se lançarem
à pista.
Eu encarregava-me de alugar os patins e fazia isso sozinho. Andava com
o meu banquinho de um lado para o outro, como se fosse uma muleta. Sem
ele, os clientes nem me conseguiriam ver. Os patins maiores estavam na
parte baixa do balcão, mas os mais pequenos estavam guardados tão lá em
cima que eu precisava de escalar as prateleiras – e isso punha sempre os
clientes a rir à gargalhada. A minha mãe era a única pessoa encarregada da
caixa. Cobrava as entradas e, para Trunnis, o dinheiro era tudo. Ele contava
os clientes à medida que iam chegando, fazendo um cálculo em tempo real
de quanto ia ganhar, por isso tinha uma ideia aproximada do que esperar no
fim do dia, ao fazer a caixa. E era melhor não haver nenhuma falha.
O dinheiro era todo dele. Nós nunca ganhámos um cêntimo pelo nosso
trabalho. Na verdade, a minha mãe nunca teve dinheiro que fosse só dela.
Não tinha conta bancária nem cartões de crédito em seu nome. Ele
controlava tudo – e todos nós sabíamos o que aconteceria se o dinheiro na
caixa não correspondesse às contas de cabeça que ele tinha feito.
Claro que nenhum dos clientes que passou pelas nossas portas sabia de
nada disto. Para eles, Skateland era uma espécie de negócio de sonho, numa
nuvem, propriedade de uma família e gerido por ela. Como DJ, o meu pai
fazia girar os últimos ecos em vinil do disco e do funk e os primeiros sons
do hip hop. Os baixos ressoavam nas paredes vermelhas ao som de um filho
favorito de Buffalo, Rick James, dos Funkadelic, de George Clinton, e das
primeiras canções lançadas pelos inovadores do hip hop, os Run DMC.
Alguns miúdos faziam patinagem de velocidade. Eu também gostava de
andar depressa, mas havia sempre bastantes pessoas a dançar em patins,
pelo que a pista se transformava numa festa.
Na primeira hora ou duas, os pais ficavam no piso térreo e patinavam, ou
viam os filhos a dar voltas à pista oval, mas acabavam por subir a escada
para estarem na sua própria cena. Quando o número de adultos já era
significativo, Trunnis escapava-se da cabine de DJ e juntava-se a eles. O
meu pai era considerado o presidente da câmara oficioso de Masten – e
também era um político falso até às entranhas. Os clientes eram os seus
alvos – e eles nem sonhavam que, por muitos copos que oferecesse por
conta da casa ou por muitos abraços fraternais que distribuísse, ele não se
importava absolutamente nada com eles. Eram meros cifrões. Se ele
oferecia um copo a alguém, era por saber perfeitamente que essa pessoa ia
comprar mais dois ou três.
Embora existissem sessões de patinagem pela noite fora e até maratonas
de patinagem de 24 horas, as portas de Skateland fechavam, em geral, às
dez da noite. A minha mãe, o meu irmão e eu lançávamo-nos então ao
trabalho, pescando tampões ensanguentados em sanitas cheias de merda,
arejando as duas casas de banho de um cheiro persistente a marijuana,
raspando pastilha elástica cheia de bactérias do chão da pista, limpando a
cozinha da banca da comida e fazendo o inventário. Antes da meia-noite,
meio mortos, arrastávamo-nos até ao escritório. A minha mãe tapava-me a
mim e ao meu irmão com um cobertor, no sofá, cada um deitado para seu
lado, enquanto o teto vibrava com o som do baixo pesado do funk.
Mas a minha mãe continuava a trabalhar.
Assim que ela passava ao bar, Trunnis fazia-a atender à porta ou ir a
correr escada abaixo para trazer da cave caixas de bebidas, como se fosse
uma mula de carga. Havia sempre uma qualquer tarefa para fazer, por
pequena que fosse, e ela nunca parava quieta, com o meu pai a observá-la,
do balcão do bar, de onde via tudo o que se passava. Naqueles dias, Rick
James, nascido em Buffalo e um dos amigos mais próximos do meu pai,
passava por lá sempre que estava na cidade, estacionando em frente à porta
o seu Excalibur. O automóvel era um autêntico anúncio ambulante, pelo
qual todo o bairro sabia que tinha chegado um Superfreak. Mas não era a
única celebridade que aparecia. OJ Simpson, uma das maiores estrelas da
liga de futebol americano, era cliente habitual, tal como os seus
companheiros dos Buffalo Bills, bem como Teddy Pendergrass e as Sister
Sledge. Quem não conhecer os nomes, que faça uma busca.
Talvez se eu fosse mais velho, ou se o meu pai fosse um bom homem,
tivesse sentido algum orgulho em fazer parte de um momento cultural
assim, mas os miúdos pequenos não se interessam por estas coisas. É quase
como se todos nascêssemos com uma espécie de bússola moral
absolutamente calibrada, não importando quem os pais são ou o que fazem.
Com seis, sete ou oito anos, sente-se o que está certo e o que está
completamente errado. E quando se nasce no meio de um ciclone de terror e
dor sabe-se que as coisas não têm de ser assim – e essa é uma verdade que
está sempre presente, a atormentar, como uma farpa cravada na mente. Pode
escolher-se ignorá-la, mas essa pontada ligeira nunca desaparece, enquanto
os dias e as noites se fundem numa única memória difusa.
Ainda assim, há momentos que se destacam – e estou a pensar num
desses, que ainda me persegue. Foi na noite em que a minha mãe entrou no
bar antes da hora esperada e encontrou o meu pai numa conversa de
sedução com uma mulher dez anos mais nova do que ela. Trunnis viu-a a
observar e encolheu os ombros, enquanto a minha mãe lhe abriu os olhos e
bebeu de uma vez dois tragos de Johnnie Walker Red para acalmar os
nervos. Ele reparou nessa reação dela e não gostou nem um bocadinho.
A minha mãe sabia como as coisas eram. Sabia que Trunnis transportava
prostitutas para o outro lado da fronteira, para Fort Erie, no Canadá. Havia
uma cabana de verão que pertencia ao presidente de um dos maiores bancos
de Buffalo e fazia as vezes de bordel improvisado. Sempre que precisava de
prolongar uma linha de crédito, o meu pai apresentava banqueiros de
Buffalo às suas raparigas – e os empréstimos acabavam invariavelmente
aprovados. A minha mãe sabia que a jovem que estava à conversa com ele
era uma das raparigas do seu catálogo. Já a tinha visto. Houve uma vez em
que ela entrou no escritório de Skateland e apanhou-os a fazer sexo no
mesmo sofá onde todas as malditas noites aconchegava os filhos. Apanhada
em flagrante, a mulher sorriu para ela. Trunnis encolheu os ombros. Não, a
minha mãe não era uma ingénua, mas ver com os próprios olhos o que se
passava era sempre mais doloroso.
Por volta da meia-noite, a minha mãe foi de carro ao banco com um dos
seguranças, para fazer um depósito. Ele implorou-lhe que deixasse o meu
pai. Disse-lhe para não esperar, para se ir embora logo nessa noite. Talvez
soubesse o que estava para acontecer. E ela também sabia, mas não podia
fugir, porque não tinha qualquer recurso próprio e não ia deixar-nos nas
mãos dele. Além disso, não tinha qualquer direito aos bens em comum,
porque Trunnis sempre se recusara a casar com ela, o que era um enigma
cujo porquê ela só agora começava a desvendar. A minha mãe era de uma
família sólida, de classe média, e fora sempre do tipo certinho. Trunnis tinha
ressentimento em relação a isso, tratava as suas prostitutas melhor do que a
mãe dos seus filhos e, por isso, mantinha-a aprisionada. Ela dependia dele a
cem por cento; se quisesse deixá-lo, teria de ir de mãos completamente
vazias.
Em Skateland, o meu irmão e eu nunca dormimos bem. Como o
escritório ficava exatamente por baixo da pista de dança, o teto trepidava
demasiado. Naquela noite, quando a minha mãe entrou, eu já estava
acordado. Ela sorriu-me, mas eu reparei nas lágrimas que tinha nos olhos e
lembro-me do seu hálito com cheiro a uísque ao abraçar-me o mais
ternamente que conseguia. O meu pai entrou atrás dela, desalinhado e
irritado. Puxou uma pistola de debaixo da almofada em que eu dormia (sim,
leu bem, havia uma arma carregada debaixo da almofada em que eu dormia
com seis anos!), mostrou-ma e sorriu antes a esconder debaixo das calças,
num coldre que tinha junto do tornozelo. Na outra mão, tinha dois sacos de
papel com quase dez mil dólares. Até aqui, era uma noite igual às outras.
Os meus pais não falaram no caminho para casa, embora a tensão entre
eles fosse mais do que palpável. A minha mãe estacionou na entrada da casa
de Paradise Road pouco antes das seis da manhã, o que era um pouco cedo
para o nosso hábito, Trunnis saiu do carro a cambalear, desligou o alarme,
largou o dinheiro em cima da mesa da cozinha e subiu as escadas. Nós
entrámos atrás deles, e a minha mãe aconchegou-nos nas nossas camas,
beijou-me na testa e apagou a luz, antes de ir para o quarto, onde encontrou
o meu pai à espera, a acariciar o cinto de cabedal. Trunnis não gostava que a
minha mãe se pusesse a olhar para ele, especialmente em público.
“Este cinto veio desde o Texas só para te bater”, disse calmamente.
Depois, começou a volteá-lo no ar, com a fivela para a frente. Às vezes, a
minha mãe reagia – e foi isso que fez naquela noite. Atirou-lhe à cabeça um
candelabro em mármore. O meu pai desviou-se e ele foi contra a parede. Ela
correu para a casa de banho, fechou a porta e agachou-se em cima da sanita.
Ele deitou a porta abaixo aos pontapés e esbofeteou-a com força. A cabeça
dela bateu na parede. Mal estava consciente quando ele lhe pegou pelo
cabelo e a arrastou pelo corredor.
O meu irmão e eu já tínhamos ouvido a cena de violência e vimo-lo a
arrastá-la para baixo, pelas escadas, e depois a agachar-se em cima dela com
o cinto na mão. Ela estava a sangrar da testa e do lábio e ver o sangue ativou
em mim um detonador. Nesse instante, o meu ódio superou o meu medo.
Corri pela escada abaixo e saltei-lhe para cima das costas, dando-lhe
pancadas com os meus punhos pequenos e tentando arranhar-lhe os olhos.
Apanhei-o de surpresa e ele caiu em cima de um joelho. Eu, ainda em cima
dele, dava-lhe socos.
“Não batas na minha mãe!”, gritei. Ele atirou-me ao chão, veio em
direção a mim, de cinto na mão, e voltou-se para a minha mãe.
“Estás a criar um gangster”, disse, meio a sorrir.
Enrolei-me no chão como uma bola quando ele começou a bater-me com
o cinto. Sentia as pancadas e as nódoas negras a formarem-se nas minhas
costas, enquanto a minha mãe se arrastou até ao painel do alarme junto da
porta de entrada. Carregou no botão de pânico e a casa explodiu com o
alarme a disparar. Ele ficou paralisado, olhou para o teto, limpou a testa
com a manga da camisa, respirou fundo, pôs o cinto, apertou-o e subiu a
escada para se lavar de todo o ódio e maldade. A polícia vinha a caminho –
e ele sabia isso muito bem.
O alívio da minha mãe durou pouco. Trunnis foi receber os polícias à
porta. Eles olharam por cima do ombro dele e viram a minha mãe, uns
passos atrás, com a cara inchada e marcas de sangue seco. Mas os tempos
eram diferentes. Não havia movimentos #metoo. Não havia nada dessas
coisas e eles ignoraram-na. Trunnis disse-lhes que não tinha sido nada de
especial. Só um pouco de disciplina doméstica necessária.
“Olhem bem para esta casa. Parece-vos que maltrato a minha mulher?”,
perguntou. “Dou-lhe casacos de vison, anéis de diamantes, mato-me a
trabalhar para lhe dar tudo o que ela quer, e ela atira-me à cabeça um
candelabro em mármore. Está demasiado mimada.”
Os polícias riam com o meu pai enquanto ele os acompanhou ao carro-
patrulha. Foram-se embora sem falarem com a minha mãe. Nessa manhã,
não voltou a bater-lhe. Não era necessário. O dano psicológico estava feito.
A partir desse momento, ficou claro para nós que, no que respeitava a
Trunnis e aos agentes da lei, para ele era temporada de caça – e nós éramos
as presas.
No ano que se seguiu, o dia a dia não mudou muito e as sovas
continuaram, enquanto a minha mãe procurava abrir rasgões de luz na
cortina de escuridão. Ela sabia que eu queria ser escoteiro, por isso alistou-
me num agrupamento local. Ainda me recordo do sábado de manhã em que
vesti o uniforme azul-marinho de lobito. Sentia orgulho por usar uma farda
e sabia que, pelo menos por umas horas, podia fazer de conta que era um
miúdo normal. A minha mãe sorria enquanto nos preparávamos para sair.
Mas o meu orgulho, e o sorriso dela, não eram só por causa dos malditos
escoteiros. Vinham de um lugar mais profundo: estávamos a fazer alguma
coisa para encontrar algo de positivo para nós numa situação desoladora.
Era a prova de que importávamos e de que não éramos completamente
impotentes.
Foi então que o meu pai chegou a casa, vindo do Vermillion Room.
“Onde é que vão os dois?” Olhou-me fixamente. Eu não tirei os olhos do
chão. A minha mãe aclarou a garganta.
“Vou levar o David à sua primeira reunião dos escoteiros”, disse em voz
baixa.
“Vais mas é o raio que te parta!” Levantei o olhar – e ele pôs-se a rir
enquanto os meus olhos se enchiam de lágrimas. “Vamos às corridas.”
Cerca de uma hora depois, chegámos a Batavia Downs, um hipódromo
de corridas de trote, daquelas em que os jóqueis vão em pequenas carroças
puxadas pelos cavalos. Assim que passámos o portão, o meu pai agarrou
num boletim de apostas. Durante horas, ficámos os três a olhar para ele,
enquanto entregava apostas umas a seguir às outras, fumava sem parar,
bebia uísque escocês e fazia um escândalo sempre que um dos póneis em
que apostava o fazia perder dinheiro. Com o meu pai a lançar impropérios
aos deuses do jogo e a fazer uma figura ridícula, eu procurava ficar o mais
pequeno possível sempre que as pessoas passavam à minha frente, mas
ainda assim chamava a atenção. Afinal, eu era a única criança na pista com
o uniforme de escoteiro. E era, provavelmente, o primeiro escoteiro negro
que já tinham visto – além de que o meu uniforme era uma mentira. Eu era
um farsante.
Nesse dia, Trunnis perdeu milhares de dólares e não se calou com isso no
caminho para casa, com a garganta já rouca, irritada por toda a nicotina. O
meu irmão e eu íamos no banco de trás, apertado, e cada vez que ele cuspia
pela janela, o cuspo fazia um efeito de boomerang e vinha em cheio parar à
minha cara. Cada gota da sua asquerosa saliva queimava-me a pele como se
fosse veneno e intensificava-me o ódio. Tinha aprendido há muito tempo
que a melhor maneira de evitar uma sova era tornar-me o mais invisível
possível, desviar o olhar, flutuar para fora do corpo e esperar passar
despercebido. Era uma prática que todos tínhamos aperfeiçoado ao longo
dos anos, mas eu estava farto dessa merda toda. Não ia esconder-me mais
do Diabo. Nessa tarde, quando entrámos na autoestrada a caminho de casa,
ele continuava a vociferar e eu olhei-o desafiador do banco de trás. Já
ouviram dizer “A fé suplanta o medo”? Pois para mim era “O ódio suplanta
o medo.”
Ele viu o meu olhar pelo espelho retrovisor.
“Tens alguma coisa a dizer?!”
“Em primeiro lugar, não devíamos ter vindo às corridas”, respondi.
O meu irmão voltou-se para mim e olhou-me como se eu tivesse
enlouquecido completamente. A minha mãe contorceu-se no banco.
“Repete lá isso…?” As palavras saíram-lhe lentas, como gotas de horror.
Eu não disse uma palavra, e ele então começou a tentar bater-me, atirando a
mão para trás do banco. Mas eu era tão pequeno que era fácil escapar. O
carro andava pela estrada da direita para a esquerda, com ele meio virado
para trás, para mim, a dar socos no ar. Mal me conseguira tocar, o que o
deixava ainda mais furioso. Seguimos em silêncio, até que ele recuperou o
fôlego. “Assim que chegarmos a casa, vais-te despir”, disse-me.
Era o que ele dizia quando se preparava para aplicar uma valente sova –
e não havia maneira de a evitar. Fiz o que ele me disse. Despi-me no meu
quarto, atravessei o corredor para o quarto dele, fechei a porta atrás de mim,
apaguei as luzes e deitei-me de barriga para baixo numa esquina da cama,
com as pernas penduradas, o tronco esticado e o rabo a descoberto. O
protocolo era esse – e ele tinha-o definido assim para causar o máximo
sofrimento físico e psicológico possível.
As tareias eram muitas vezes brutais, mas a parte pior era a espera. Eu
não conseguia ver a porta, que estava atrás de mim, e ele demorava,
deixando que o meu medo fosse crescendo. Ao ouvi-lo abrir a porta, o medo
atingia um pico máximo. Mas o quarto continuava tão escuro que eu não via
muita coisa com a minha visão periférica – e por isso não conseguia estar
preparado para o primeiro golpe antes de o cinto me atingir a pele. Nunca
havia um número certo de pancadas, por isso eu nunca sabia quando ele ia
parar – ou se ia parar.
Esta sova durou minutos e minutos. Começou pelo rabo, mas a dor era
tão aguda que eu pus as mãos para deter os golpes; por isso, ele desceu e
começou a bater-me nas coxas. Cobri-as com as mãos e ele golpeou-me a
parte de baixo das costas. Foram dezenas de pancadas com o cinto e, no
fim, ele estava sem fôlego, a tossir e coberto de suor. Eu também respirava
aceleradamente, mas não chorava. A maldade dele era demasiado real e o
ódio dava-me coragem. Recusei-me a dar essa satisfação àquele cabrão.
Levantei-me, olhei o Diabo nos olhos, fui para o meu quarto a coxear e
fiquei de pé à frente do espelho. Tinha o corpo coberto de vergões, do
pescoço até aos joelhos. Não fui à escola durante dias.
Quando as tareias são constantes, a esperança evapora-se. Reprimem-se
as emoções, mas o trauma, de maneiras inconscientes, encontra válvulas de
escape. Depois de inúmeras sovas que ela sofreu e testemunhou, esta em
particular deixou a minha mãe num estado de névoa permanente, uma
sombra da mulher que eu recordava de uns anos antes. Na maior parte do
tempo, estava distraída e ausente, exceto se ele a chamava. Aí, saltava de
imediato, como se fosse sua escrava. Só anos mais tarde soube que ela tinha
pensamentos suicidas.
O meu irmão e eu descarregávamos a dor um no outro. Ficávamos de pé,
ou sentados, frente a frente, e ele dava-me murros com toda a força. Em
geral, isto começava como brincadeira, mas ele era quatro anos mais velho,
tinha muito mais força e usava-a toda. Eu caía, levantava-me, e ele dava-me
outro soco, com toda a força, gritando a plenos pulmões como um lutador
de artes marciais e com as feições distorcidas pela raiva.
“Não me estás a magoar! Não consegues melhor do que isso?”, gritava-
lhe eu. Queria que ele soubesse que eu conseguia aguentar mais dor do que
ele alguma vez seria capaz de causar, mas, chegada a hora de ir dormir, e já
sem mais batalhas para travar, nem lugar para me esconder, eu urinava na
cama. Quase todas as noites.
O dia a dia da minha mãe era uma lição de sobrevivência. Ouvia
constantemente que não valia nada, de tal maneira que começava a acreditar
que era verdade. Tudo o que ela fazia era um esforço para o apaziguar, para
ele não bater nos filhos nem a espancar com o cinto, mas, neste mundo,
existiam armadilhas invisíveis e, às vezes, ela nem sabia quando ou porquê
as tinha ativado, até ele começar a esbofeteá-la. De outras vezes, ela sabia
de antemão que se tinha posto a jeito para levar mais uma tareia cruel.
Um dia, cheguei mais cedo, vindo da escola, com uma dor de ouvidos
tremenda, e deitei-me na cama deles, no lado da minha mãe; a minha orelha
esquerda palpitava com uma dor terrível. A cada palpitação, o meu ódio
crescia. Sabia muito bem que não me levariam ao médico, porque o meu pai
não aprovava gastar o seu dinheiro em médicos ou dentistas. Não tínhamos
seguro de saúde, nem pediatra, nem dentista. Se nos magoássemos ou
ficássemos doentes, dizia-nos para aguentarmos, porque ele não ia pagar por
nada que não fosse em benefício direto de Trunnis Goggins. A nossa saúde
não alcançava essa categoria e isso irritava-me como tudo.
Ao fim de cerca de meia hora, a minha mãe subiu para ver como eu
estava. Ao virar-me de costas, ela viu sangue a escorrer pelo pescoço,
manchando a almofada.
“Acabou-se”, disse-me. “Vem comigo.”
Tirou-me da cama, vestiu-me e ajudou-me a entrar no carro dela, mas
antes de conseguir arrancar, o meu pai veio atrás de nós.
“Onde é que pensas que vais?!”
“Vou às urgências”, respondeu-lhe, ligando a ignição. Ele ainda tentou
agarrar o volante, mas ela antecipou-se e acelerou, deixando-o no meio de
uma nuvem de pó. Ele voltou para casa furioso, bateu com a porta e chamou
o meu irmão.
“Filho, arranja-me um Johnnie Walker!” Trunnis Jr. trouxe-lhe do bar
uma garrafa de Red Label e um copo. Ele serviu um, e depois outro, e foi
vendo o meu pai beber shot atrás de shot. Cada um alimentava o seu inferno
interior. “Tu e o David precisam de ser fortes”, disparatava. “Não ando aqui
a educar um par de paneleiros! E é isso que vais ser se fores ao médico cada
vez que tens um dói-dói, percebes?” O meu irmão fez que sim com a
cabeça, petrificado. “O teu apelido é Goggins – e os Goggins aguentam!”
O médico que me viu, nessa noite, disse à minha mãe que tínhamos
chegado às urgências mesmo a tempo. A infeção que eu tinha no ouvido era
tão grave que, se tivéssemos esperado mais, eu teria perdido para sempre a
audição do lado esquerdo. Ela arriscou a própria pele para salvar a minha –
e ambos sabíamos que ia pagar por isso. Regressámos a casa num silêncio
arrepiante.
O meu pai continuava alterado, à mesa da cozinha, quando demos a
curva para Paradise Road – e o meu irmão continuava a servir-lhe shots.
Trunnis Jr. tinha medo do pai, mas também o idolatrava e estava sob o
domínio dele. Como filho mais velho, era mais bem tratado. Trunnis
também perdia as estribeiras com ele, mas, na sua mente retorcida, Trunnis
Jr. era o seu príncipe. “Quando cresceres, quero ver-te ser o homem da tua
casa”, disse-lhe Trunnis. “E, esta noite, vais ver-me ser um homem.”
Momentos depois de entrarmos em casa, Trunnis espancou a mãe sem
piedade, mas o meu irmão não suportou olhar. De cada vez que as tareias
explodiam como uma tempestade elétrica sobre as nossas cabeças, ele ia
para o quarto e esperava que passassem. Ignorava a escuridão porque, para
ele, a verdade era demasiado pesada de suportar. Já eu estava sempre a
prestar uma maldita atenção a tudo.
Durante o verão, sem escola, não havia hipótese de ter folga de Trunnis
aos dias de semana, mas o meu irmão e eu aprendemos a saltar para o selim
das bicicletas e a ficar longe o máximo tempo possível. Um dia, cheguei a
casa para almoçar e entrei pela garagem, como era habitual. O meu pai
geralmente dormia até bem entrada a tarde, por isso imaginei que a costa
estava livre. Enganei-me. Ele era paranoico. Tinha entrado em suficientes
negócios sujos para fazer inimigos e, por isso, quando nós saímos de casa,
ele fora ligar o alarme.
Assim que abri a porta, as sirenes começaram a soar e senti um vazio no
estômago. Fiquei paralisado, de costas contra a parede, e pus-me à escuta de
passos. Ao ouvir os degraus ranger, soube que estava tramado. Desceu a
escada vestido com o roupão turco castanho, de pistola em punho, e foi da
sala de jantar para a sala de estar, com a arma bem espetada. Vi o cano
aparecer lentamente na esquina.
Assim que deu a volta à esquina, ele viu-me, de pé, a uns seis metros de
distância, mas não baixou a arma. Apontou-a bem ao meio dos meus olhos.
Eu fitei-o direitamente, da maneira mais inexpressiva que fui capaz, com os
pés pregados às tabuas do soalho. Não havia mais ninguém em casa, e uma
parte de mim estava à espera que ele puxasse o gatilho, mas, nesta fase da
vida, já não me importava se vivia ou se morria. Era um miúdo de oito anos
exausto, pura e simplesmente farto de ser aterrorizado pelo pai – e também
farto de Skateland. Ao fim de um ou dois minutos, ele baixou a arma e
voltou para cima.
No ponto em que nos encontrávamos, estava a tornar-se evidente que
alguém ia morrer em Paradise Road. A minha mãe sabia onde Trunnis
guardava o revólver de calibre 38. Havia dias em que o seguia e via quanto
tempo demorava – era como se imaginasse como tudo iria desenrolar-se.
Iam para Skateland em carros separados, ela pegava na arma que estava
debaixo das almofadas do sofá do escritório antes de ele lá chegar e
esperava-o junto da porta da frente, de revólver em punho. Ele estacionava,
ela saía e assassinava-o logo ali, no passeio – deixando o cadáver para o
leiteiro o encontrar. Os meus tios, irmãos dela, dissuadiram-na, mas
concordaram que era preciso fazer alguma coisa drástica, ou então seria ela
a aparecer morta.
Foi uma antiga vizinha que lhe mostrou uma saída. Betty vivia em frente
à nossa casa e as duas mantiveram o contato mesmo depois de ela se mudar.
Betty era vinte anos mais velha do que a minha mãe e a sua sensatez andava
a par da idade. Ela encorajou a minha mãe a planear a fuga com semanas de
antecedência. O primeiro passo era ter um cartão de crédito em seu nome.
Isso significava que era preciso reconquistar a confiança de Trunnis –
porque era necessária a assinatura dele. Betty também lembrou à minha mãe
a importância de manter em segredo a amizade entre as duas.
Durante algumas semanas, Jackie enganou Trunnis, tratou-o como
costumava fazer quando era uma beldade de 19 anos com os olhos a cintilar.
Fê-lo acreditar que voltara a adorá-lo e pôs-lhe à frente dos olhos um pedido
para ter um cartão de crédito; ele disse que se sentia feliz por poder
proporcionar-lhe algum poder de compra. Quando o correio trouxe o cartão,
a minha mãe sentiu a forma em plástico através do envelope, enquanto a sua
mente se deixava tomar por uma onda de alívio. Abriu o envelope, tirou o
cartão e admirou-o. Brilhava como um bilhete dourado.
Uns dias mais tarde, ouviu o meu pai a conversar ao telefone com um
amigo e a dizer o pior possível dela, quando ele estava na cozinha a tomar o
pequeno-almoço comigo e com o meu irmão. Foi a última gota. Aproximou-
se de nós, que estávamos à mesa, e disse: “Vou deixar o vosso pai. Vocês
podem ficar ou podem vir comigo.”
O meu pai ficou numa mudez estupefacta e o meu irmão também, mas eu
saltei da cadeira como se ela estivesse em chamas, peguei nuns quantos
sacos de lixo pretos e subi as escadas a correr para começar a fazer as
malas. O meu irmão também começou a juntar as suas coisas. Antes de
irmos embora, sentámo-nos à mesa da cozinha para mais uma conversa.
Trunnis olhou para a minha mãe cheio de espanto – e de desprezo.
“Tu não tens nada, e sem mim não és nada”, disse-lhe. “Não tens
educação, não tens dinheiro nem perspetivas. Daqui a um ano, vais ser uma
prostituta.” Fez uma pausa e, depois, voltou-se para o meu irmão e para
mim. “Vocês vão crescer e tornar-se os dois uns paneleiros. E nem penses
em regressar, Jackie. Cinco minutos depois de te ires embora, eu vou ter
aqui em casa outra mulher no teu lugar.”
A minha mãe fez que sim com a cabeça e levantou-se. Ela tinha-lhe dado
a juventude, e até a própria alma – e, finalmente, estava farta. Empacotou
do seu passado o menos que pôde. Deixou para trás os casacos de vison e os
anéis de diamantes. Não se importava que ele os oferecesse à rameira com
quem ia namorar.
Trunnis ficou a observar-nos a carregar as coisas no Volvo da minha mãe
(o único veículo que era dele e em que nunca andava), onde as bicicletas já
estavam presas atrás. Arrancámos devagar e, ao princípio, ele não se mexeu,
mas vi, antes de dobrarmos a esquina, que ele se dirigia para a garagem. A
minha mãe carregou a fundo no acelerador.
É preciso dar-lhe crédito: ela tinha planeado os imprevistos. Antecipando
que ele podia segui-la, não se dirigiu para oeste, para a autoestrada
interestadual por onde seguiria caso fosse para casa dos pais, no Indiana.
Em vez disso, foi para a casa de Betty, que ficava ao fundo de um caminho
em terra, em construção, de cuja existência o meu pai nem sequer sabia.
Betty esperava-nos, com a porta da garagem aberta. Estacionámos lá dentro.
Betty fechou a porta, e enquanto o meu pai seguia disparado pela
autoestrada no seu Corvette, a perseguir-nos, nós esperámos até anoitecer,
mesmo debaixo do seu nariz. Sabíamos que, por essa hora, ele estaria em
Skateland, a abrir as portas. Nem por sombras ia perder a oportunidade de
fazer mais dinheiro. Não importava o que tivesse acontecido.
Começou tudo a correr mal uns 150 quilómetros depois de sairmos de
Buffalo, quando o velho Volvo começou a queimar óleo. O escape começou
a lançar enormes colunas de fumo negro e a minha mãe entrou em pânico.
Era como se tivesse estado a reprimir tudo, a conter todo o seu medo a uma
grande profundidade, a escondê-lo atrás de uma máscara de compostura
forçada, até surgir um obstáculo e ela se desmoronar. Corriam-lhe lágrimas
pelo rosto.
“E agora, o que é que faço?”, perguntava, com os olhos muito abertos. O
meu irmão, que nunca quis sair de casa, disse-lhe para dar meia-volta e
regressar. Eu ia ao lado dela, no banco da frente. Ela olhou para mim,
expectante: “O que é que faço?”
“Temos que ir, mamã”, respondi-lhe. “Mãe, temos que ir.”
Ela parou numa estação de serviço no meio do nada. Histérica, correu
para uma cabine telefónica e ligou a Betty.
“Não consigo fazer isto, Betty”, disse. “O carro avariou. Tenho de
voltar!”
“Onde estás?”, perguntou-lhe calmamente a amiga.
“Não sei”, respondeu a minha mãe. “Não faço ideia onde estou!”
Betty disse-lhe para ir à procura de um empregado da estação de serviço
– ainda os havia, nesse tempo – e para lhe passar o telefone. O homem
explicou que estávamos nos arredores de Erie, na Pensilvânia, e depois de
Betty lhe transmitir algumas indicações, ele voltou a passar o telefone à
minha mãe.
“Jackie, há um concessionário da Volvo em Erie. Encontra um hotel para
passar a noite e leva lá o carro amanhã de manhã. O homem da estação de
serviço vai pôr o combustível necessário para lá chegares.” A minha mãe
estava a ouvir, mas não respondia. “Jackie? Estás a ouvir-me? Faz o que te
digo e tudo vai correr bem.”
“Sim. Está bem”, respondeu ela, emocionalmente esgotada. “Hotel.
Concessionário Volvo. Entendido.”
Não sei como será hoje Erie, mas então só lá havia um hotel decente: um
Holiday Inn, que era perto do concessionário da Volvo. O meu irmão e eu
seguimos a minha mãe até à receção, onde nos aguardavam mais más
notícias. O hotel estava completamente cheio. A minha mãe deixou cair os
ombros pesadamente. Eu e o meu irmão ficámos um de cada lado dela, a
segurar os sacos de lixo pretos com a nossa roupa. Éramos a imagem do
desespero – e o porteiro da noite percebeu isso.
“Olhe, posso abrir-vos umas camas desdobráveis na sala de
conferências”, disse. “Há uma casa de banho ao lado, mas têm de se
levantar cedo, porque há uma conferência que começa às nove da manhã.”
Agradecidos, dormimos na sala de conferências, com a carpete industrial
e as luzes fluorescentes; era o nosso purgatório pessoal. Estávamos em fuga
e estávamos contra as cordas, mas a minha mãe não tinha atirado a toalha ao
chão. Reclinou-se a olhar fixamente para os azulejos do teto até o meu
irmão e eu adormecermos. A seguir, escapuliu-se para a cafetaria ao lado;
esteve toda a noite a vigiar as bicicletas – e a estrada.
Já estávamos à porta do concessionário da Volvo quando a garagem
abriu, o que deu aos mecânicos o tempo preciso para localizar a peça de que
precisávamos e regressarmos à estrada antes de o dia chegar ao fim. Saímos
de Erie ao pôr do Sol, viajámos a noite inteira e chegámos oito horas depois
a casa dos meus avós, em Brazil, no Indiana. A minha mãe começou a
chorar assim que, ainda antes de amanhecer, estacionou à frente da velha
casa de madeira – e eu percebia porquê.
Sentimos que a nossa chegada era um momento importante – e essa
sensação ainda hoje permanece. Eu só tinha oito anos, mas, na verdade, já
me encontrava numa segunda fase da vida. Não sabia o que me aguardava –
o que nos aguardava – naquela cidade pequena e rural do sul do Indiana, e
também não me importava grande coisa. Só sabia que tinha escapado do
inferno; pela primeira vez na vida, estávamos livres do Diabo em pessoa.
***
Ficámos com os meus avós nos seis meses seguintes, e eu matriculei-me
na segunda classe – pela segunda vez –, numa escola católica local chamada
Anunciação. Era o único com oito anos na segunda classe, mas nenhum dos
outros miúdos sabia que eu estava a repetir o ano – e não há dúvida de que
precisava. Mal sabia ler, mas tive a sorte de encontrar como professora a
irmã Katherine. Magra e pequenina, a irmã Katherine tinha sessenta anos e
um dente de ouro à frente. Era freira, mas não usava hábito. Também era
rabugenta como tudo e não suportava malcriações. Eu adorava essa atitude
de mazona.
Na segunda classe, em Brazil
A Escola da Anunciação era pequena. A irmã Katherine dava as aulas da
primeira e da segunda classe numa única sala e, com apenas 18 crianças a
cargo, não estava disposta a fugir às suas responsabilidades e a atribuir as
culpas pelos meus problemas académicos, ou pelo mau comportamento de
qualquer um, a dificuldades de aprendizagem ou a problemas emocionais.
Ela não conhecia o meu passado, nem tinha de conhecer. A única coisa que
lhe importava era que eu tinha aparecido com a pré-escolar feita e que o
trabalho dela era agora formar a minha mente. Tinha todas as desculpas do
mundo para me encaminhar para um especialista qualquer ou para me pôr a
etiqueta de criança problemática, mas não era nada o estilo dela. Ela tinha
começado a ensinar antes de se ter tornado uma coisa normal colar rótulos
às crianças, e personificava a mentalidade de zero desculpas de que eu
precisava para me pôr a par dos outros miúdos.
A irmã Katherine é a razão pela qual eu nunca confiarei num sorriso nem
julgarei um cenho franzido. O meu pai sorria imenso e estava-se a cagar
para mim, mas a resmungona irmã Katherina importava-se realmente
connosco, importava-se comigo. Ela queria que fôssemos o melhor que
pudéssemos. Sei isto porque ela o demonstrou ao passar tempo extra
comigo, tanto quanto fosse necessário, até eu aprender o que devia. Antes
de o ano acabar, eu já conseguia ler a um nível de segunda classe. O Trunnis
Jr. não se adaptou como eu, nem de perto nem longe. Ao fim de uns meses,
já regressara a Buffalo; era a sombra do meu pai e trabalhava em Skateland
como se nunca tivesse ido embora.
Entretanto, tínhamos mudado para uma casa nossa: um apartamento de
65 metros quadrados e dois quartos, em Lamplight Manor, um bairro social,
que nos custava sete dólares por mês. O meu pai, que todas as noites
ganhava milhares, enviava-nos esporadicamente 25 dólares a cada três ou
quatro semanas (se tanto), de pensão de alimentos, enquanto a minha mãe
ganhava umas centenas de dólares mensais num emprego num armazém.
Nas horas livres, tinha aulas na Universidade Estatal do Indiana, que
também tinha de pagar. Tínhamos dificuldades, essa é a verdade, e a minha
mãe inscreveu-se na assistência social, recebendo 123 dólares por mês e
senhas de alimentos. No primeiro mês, entregaram-lhe o cheque, mas, ao
descobrirem que ela tinha um automóvel, desqualificaram-na. Explicaram-
lhe que ficariam muito felizes por ajudá-la se ela o vendesse.
O problema é que vivíamos numa cidade rural com cerca de 8000
habitantes e sem um sistema de transporte público desenvolvido.
Precisávamos do automóvel para eu poder ir para a escola e para ela ir
trabalhar e frequentar as aulas noturnas. Ela estava absolutamente
determinada a mudar as suas circunstâncias de vida e encontrou uma
solução alternativa através do programa de Ajuda para Crianças
Dependentes. Arranjou uma maneira de o nosso cheque ser encaminhado
para a minha avó, que depois o endossava a ela, mas isso não chegava para
tornar a vida fácil. Quanto valem realmente 123 dólares?
Lembro-me distintamente de uma noite em que tínhamos tão pouco
dinheiro que regressámos a casa com o depósito de gasolina quase a zero –
e, ao chegarmos, o frigorífico também estava vazio, o recibo da luz vencera
e não havia dinheiro no banco. Lembrei-me, então, de que tínhamos dois
jarros cheios de moedas de cêntimo e outros trocos. Fui buscá-los à
prateleira.
“Mãe, vamos contar os nossos trocos!”
Ela sorriu. Em criança, o pai tinha-a ensinado a apanhar e juntar as
moedas que encontrava na rua. Ele fora marcado pela Grande Depressão e
sabia bem o que era viver sem nada. “Nunca se sabe quando podes
precisar”, dizia-lhe. Enquanto vivíamos no inferno, e levávamos todas as
noites para casa milhares de dólares, a noção de que, um dia, o dinheiro
podia acabar parecia absurda, mas a minha mãe guardara este hábito de
infância. O Trunnis até costumava fazer troça dela por causa disso; agora,
chegara o momento de averiguar até onde esse dinheiro poderia levar-nos.
Despejámos as moedas no chão da sala e contámos o dinheiro suficiente
para poder pagar a conta da luz, encher o depósito do carro e fazer compras
no supermercado. Até chegou para comprar uns hambúrgueres no Hardee’s,
no regresso a casa. Eram tempos sombrios, mas estávamos a conseguir
sobreviver. Com dificuldade. A minha mãe sentia uma falta imensa do meu
irmão, mas estava contente por eu me estar a adaptar e a fazer amigos. Eu
tinha tido um bom ano escolar e, desde a primeira noite no Indiana, nunca
mais voltara a molhar a cama. Parecia que estava a sarar, mas os meus
demónios não tinham desaparecido. Estavam adormecidos. E quando
regressaram, foi com toda a força.
***
O terceiro ano foi um choque para o meu sistema. Não só porque tivemos
de aprender caligrafia e eu ainda me estava a acostumar a ler em
maiúsculas, mas também porque a nossa professora, a Senhora D, não se
parecia nada com a irmã Katherine. A turma ainda era pequena, éramos
cerca de vinte ao todo, do terceiro e do quarto ano, mas ela não era capaz de
lidar connosco como a irmã Katherine, nem nada que se parecesse – e não
estava interessada em gastar comigo o tempo extra de que eu precisava.
Os meus problemas começaram com o teste estandardizado que fizemos
durante as primeiras duas semanas de aulas. Tive resultados desastrosos.
Ainda estava atrasado em relação aos outros e tinha dificuldades a
desenvolver os temas dados nos dias anteriores, quanto mais no ano
anterior. Para a irmã Katherine, resultados destes eram sinais de que ela
precisava de dedicar mais tempo ao seu aluno mais fraco – e, todos os dias,
me lançava desafios para eu me superar. Já a Senhora D procurava uma
maneira de se escapar. Ao fim do primeiro mês de aulas, disse à minha mãe
que eu deveria estar noutra escola. Uma escola para “alunos especiais”.
Qualquer criança sabe o que significa “alunos especiais”. Quer dizer que
estás à beira de ser estigmatizado para o resto da puta da tua vida. Quer
dizer que não és normal. Só essa ameaça era um gatilho e, quase de um dia
para o outro, desenvolvi uma gaguez. O stresse e a ansiedade entupiram o
meu fluxo para transformar pensamentos em palavras – e, na escola, ficava
pior.
Imagine ser a única criança negra numa aula, em toda a escola, e suportar
a humilhação diária de ser também o mais burro. Eu sentia que tudo o que
procurava fazer ou dizer estava errado e as coisas ficaram tão más que, em
vez de responder, e soar como um disco riscado quando a professora me
chamava, preferia muitas vezes ficar calado. Era uma questão de limitar a
exposição para salvar a face.
A Senhora D nem sequer tentava mostrar empatia. Entrava diretamente
em modo de frustração e descarregava-a em mim, aos gritos, às vezes
inclinada para a frente, com a mão nas costas da minha cadeira e a cara a
centímetros da minha. Ela não fazia ideia da caixa de Pandora que estava a
abrir. Para mim, a escola fora um porto seguro, o único lugar em que eu
sabia que não podia ser magoado; no Indiana, transformou-se na minha
câmara de tortura.
A Senhora D queria-me fora da sua aula e a direção apoiou-a, até que a
minha mãe começou a lutar por mim. O diretor concordou em manter-me
inscrito se a minha mãe me pusesse num terapeuta da fala e me levasse a
sessões de terapia de grupo com um psicólogo local que eles
recomendavam.
O consultório do psicólogo ficava ao lado do hospital – que é
precisamente onde deve estar se queres que uma criança pequena tenha
dúvidas sobre si. Era tudo como um filme mau. O psicólogo dispôs sete
cadeiras em semicírculo à sua volta, mas havia miúdos que não conseguiam,
ou não queriam, ficar quietos. Um deles levava um capacete posto e batia
repetidamente com a cabeça na parede. Outro levantava-se quando o
médico ia a meio de uma frase, ia até um canto distante e urinava num
caixote do lixo. O que estava ao meu lado era o mais normal do grupo – e
era um tipo que tinha deitado fogo à própria casa! Lembro-me de estar a
olhar fixamente para o psicólogo ao fim do dia e pensar: eu não pertenço
aqui, de maneira nenhuma.
Essa experiência fez aumentar em vários graus a minha ansiedade social.
A minha gaguez tornou-se descontrolada. O meu cabelo começou a cair e
apareceram-me na pele manchas brancas. O médico diagnosticou-me como
um caso de transtorno de défice de atenção e receitou Ritalina, mas os meus
problemas eram mais complexos do que isso.
Eu sofria de stresse tóxico.
Já está demonstrado que o tipo de abuso físico e emocional a que eu fui
sujeito tem uma vasta gama de efeitos colaterais em crianças, porque, nos
primeiros anos de vida, o cérebro cresce e desenvolve-se rapidamente. Se,
durante esses anos, o teu pai é um filho da puta malvado, apostado em
destruir todos os que estão em sua casa, o stresse dispara, e quando esses
picos de stresse são demasiado frequentes é possível traçar uma linha entre
todos eles. Esse passa a ser o novo normal. As crianças nessa situação ficam
num modo permanente de “lutar ou fugir”. É um modo que pode ser
extremamente útil quando se está em perigo, porque nos prepara para o
combate ou nos impele a fugir dos problemas, mas não é uma maneira
saudável de viver.
Eu não sou o género de pessoa que procura explicar tudo com a ciência,
mas factos são factos. Já li que alguns pediatras acreditam que o stresse
tóxico causa mais dano às crianças do que a poliomielite ou a meningite.
Sei, por experiência própria, que provoca incapacidades de aprendizagem e
ansiedade social, porque, afirmam os médicos, limita o desenvolvimento da
linguagem e da memória, o que faz com que seja difícil, até para o aluno
mais dotado, lembrar-se do que já aprendeu. Pensando no longo prazo,
quando crianças como eu crescem, enfrentam um risco acrescido de
depressão clínica, doenças cardíacas, obesidade e cancro, para não falar do
consumo excessivo de tabaco, álcool e drogas. Quem cresce num agregado
familiar onde há abuso tem uma probabilidade 53 por cento maior de ser
preso por delitos cometidos enquanto menor. A probabilidade de cometer
um crime violento em adulto é 38 por cento mais elevada. Eu era uma
espécie de criança-emblema desse termo genérico que nós todos já ouvimos
alguma vez: “juventude em risco”. Não era a minha mãe que estava a criar
um delinquente. Basta olhar para as estatísticas e é evidente: se alguém me
lançou num caminho para a destruição foi o Trunnis Goggins.
Não fiquei muito tempo na terapia de grupo – e também não tomei
Ritalina. A minha mãe foi buscar-me ao fim da segunda sessão e eu sentei-
me ao lado dela, no automóvel, com o olhar perdido no infinito. “Mãe, não
venho mais”, disse-lhe. “Estes meninos são malucos.” Ela concordou.
Mas eu continuava a ser uma criança com problemas, e embora haja
procedimentos sobre a melhor maneira de ensinar e gerir crianças que
sofrem de stresse tóxico, é justo reconhecer que a Senhora D não teve
acesso a esses estudos. Não posso culpá-la pela sua ignorância. Nos anos
1980, a ciência não era tão clara a este respeito como é agora. Tudo o que
sei é que a irmã Katherine foi para as trincheiras com a mesma criança
problemática com que a Senhora D teve de lidar, mas manteve sempre uma
expetativa elevada e nunca permitiu que a frustração a dominasse. Ela tinha
uma mentalidade do tipo Vamos ver, todos aprendem de uma maneira
diferente dos outros, e vamos descobrir qual é a tua. Deduziu que eu
precisava de repetição, de resolver os mesmos problemas uma e outra vez –
e sabia que isso exigia tempo. Com a Senhora D, era tudo uma questão de
produtividade. O que ela dizia era Mantém-te a par dos outros, ou vais
borda fora. Eu, entretanto, sentia-me encurralado. Sabia que, se não
mostrasse algum progresso, seria despachado de vez para esse buraco negro
do ensino especial. Por isso, encontrei uma solução.
Comecei a fazer batota.
Era difícil estudar, em especial com o meu cérebro todo lixado, mas eu
era muito bom a fazer batota. Copiei os trabalhos de casa de amigos e as
respostas dos colegas de carteira nos testes. Até copiei as respostas das
provas estandardizadas que não contavam para nada na minha classificação.
Funcionou! A melhoria dos meus resultados aplacou a Senhora D, e a minha
mãe deixou de receber telefonemas da escola. Eu pensei que tinha resolvido
um problema e, na verdade, estava a criar alguns novos, ao escolher o
caminho do menor esforço. O meu mecanismo para lidar com a situação
garantiu que eu nunca aprenderia nada na escola e nunca conseguiria estar a
par dos outros – o que me empurrava para um destino de reprovações no
futuro.
A graça salvadora desses primeiros anos em Brazil foi que eu era
demasiado novo para compreender o tipo de preconceito que, em breve,
teria de enfrentar no novo lugar para onde ia viver – e que era bem tacanho.
Quando se é único, há sempre o risco de se ser empurrado para as margens,
colocado sob suspeita e ignorado, acossado e maltratado por pessoas
ignorantes. A vida é assim – e era assim, em especial, naquele tempo.
Quando a realidade me aplicou um pontapé na garganta, a minha vida já se
tinha tornado um imprevisto total, uma espécie de bolinho da sorte do tipo
“toma lá e vai-te lixar”. Sempre que o abria, a mensagem era a mesma.
Nasceste para falhar!
DESAFIO #1
As cartas más que a vida me distribuiu chegaram cedo e ficaram por um
tempo mas, na vida, chega sempre um momento em que todos somos
colocados perante desafios. Quais são as suas cartas más? Com que género
de merda está a lidar? Está a levar tareias? É abusado? Acossado? Alguma
vez se sente inseguro? Talvez o seu fator limitador seja estar a crescer de
uma forma tão confortável e estável, sem nunca exigir nada de si?
Quais são os fatores atuais que limitam o seu crescimento e êxito? Há
alguém que se atravessa à sua frente no caminho para a escola ou para o
trabalho? Sente que o subestimam e não é levado em conta quando surge
uma oportunidade? Quais são as probabilidades difíceis que tem agora
diante de si? Está a estorvar-se a si mesmo?
Pegue no seu diário – e se não tiver um, compre, ou comece um no seu
computador pessoal, tablet, ou no bloco de notas do seu smartphone – e
responda a tudo com o maior pormenor que for capaz. Não encare esta
tarefa com condescendência. Eu mostrei-lhe todas as peças da minha roupa
suja. Se foi magoado, ou se ainda está a ser, conte a história na totalidade.
Dê uma forma à sua dor. Absorva o poder que ela tem, porque está à beira
de dar a volta a essa merda.
Vai usar a sua própria história, esta lista de desculpas, esta série muito
boa de razões pelas quais não deverá ambicionar a nada de jeito, para
alimentar o seu êxito máximo. Parece divertido, não? Pois parece, mas não
vai ser. Mas não se preocupe ainda com isso. Lá chegaremos. Por agora,
trata-se somente de fazer o inventário.
Depois de fazer a sua lista, partilhe-a com quem quiser. Para alguns,
pode ser através das redes sociais, publicando uma fotografia ou escrevendo
umas poucas linhas sobre a forma como as suas circunstâncias passadas ou
presentes o desafiam a ir ao mais profundo da sua alma. Se esse for o seu
caso, use as hashtags #badhand ou #canthurtme. Ou pode reconhecê-lo e
aceitá-lo em privado. Faça como for melhor para si. Sei que é difícil, mas só
este simples gesto vai começar a dar-lhe o poder de superação.
CAPÍTULO DOIS

A VERDADE MAGOA
Wilmoth Irving era um novo começo. Até ele ter encontrado a minha mãe e
lhe ter pedido o número de telefone, eu só conhecera infelicidade e conflito.
Quando havia dinheiro, as nossas vidas eram definidas pelo trauma. Livres
do meu pai, vimo-nos submersos pela nossa própria disfunção de síndroma
de stresse pós-traumático e pobreza. Andava no quarto ano quando a minha
mãe conheceu o Wilmoth, um carpinteiro e empreiteiro bem-sucedido de
Indianápolis. Foi atraída pelo sorriso fácil e pelo estilo descontraído. Não
havia violência naquele homem. Permitia-nos respirar fundo. Junto dele,
sentíamos que contávamos com algum apoio, como se, finalmente, alguma
coisa de bom nos estivesse a acontecer.
A minha mãe ria quando estavam juntos. Era um sorriso luminoso e
genuíno. Até caminhava um pouco mais direita. Ele dava-lhe orgulho e
fazia-a sentir-se bonita outra vez. Quanto a mim, Wilmoth converteu-se no
mais próximo de uma figura paterna saudável que eu tive. Não me mimava.
Não me dizia que gostava de mim, nem nenhuma dessas merdas falsas e
sensíveis, mas estava presente. O basquetebol tinha-se tornado uma
obsessão pessoal desde a escola primária. Era o centro da relação com o
meu melhor amigo, Johnny Nichols, e Wilmoth sabia jogar. Ele e eu
estávamos sempre a bater bolas. Ele ensinou-me movimentos, melhorou a
minha disciplina a defender e ajudou-me a desenvolver o salto e
lançamento. Celebrávamos juntos os aniversários e os feriados e, no verão
antes do meu oitavo ano, ele pôs um joelho no chão e pediu à minha mãe
que formalizassem a relação.
Com Wilmoth
Ainda não tínhamos feito a mudança permanente para Indianápolis e ele
tinha passado o dia de Natal connosco em casa dos meus avós, em Brazil.
No dia seguinte, Wilmoth tinha um jogo de basquetebol do seu campeonato
amador e convidou-me para substituir um dos seus companheiros. Eu fiquei
tão entusiasmado que preparei a mala com dois dias de antecipação, mas,
nessa manhã, ele disse-me que afinal não podia ir.
“Desta vez, vais ter de ficar aqui, Pequeno David”, disse-me. Baixei a
cabeça e dei um suspiro. Ele percebeu que eu ficara perturbado e procurou
tranquilizar-me: “A tua mamã vai ter comigo daqui a uns dias, e então
poderemos jogar.”
Fiz que sim com a cabeça, contrariado, mas tinha sido educado a não me
meter nos assuntos dos adultos e sabia que não me era devida uma
explicação ou um jogo de substituição. No alpendre, a minha mãe e eu
vimo-lo afastar-se, em marcha atrás, pelo caminho de acesso, sorrir e fazer
aquele aceno único de despedida com a mão, tão caraterístico dele. Depois,
arrancou.
Foi a última vez que o vimos vivo.
Nessa noite, fez o tal jogo do seu campeonato, como planeado, e depois
regressou sozinho à “casa com os leões brancos”. Ao dar a morada a
amigos, familiares ou distribuidores, era assim que descrevia a sua casa com
estilo de rancho, em que o acesso era enquadrado por duas esculturas de
leões em pedra assentes em pilares. Passou entre os leões e estacionou na
garagem, que tinha acesso direto à casa, inconsciente do perigo que se
aproximava pelas costas. Nunca baixou a porta da garagem.
Há horas que o seguiam, à espreita de uma oportunidade, e quando ele
saiu do carro emergiram das sombras e dispararam à queima-roupa. Foi
atingido cinco vezes no peito. Ao cair no chão da garagem, um assassino
aproximou-se e deu-lhe um último tiro mesmo entre os olhos.
O pai de Wilmoth vivia a uns quarteirões e, na manhã seguinte, ao passar
pelos leões brancos, reparou que a porta da garagem estava aberta e teve o
pressentimento de que havia qualquer coisa errada. Subiu o caminho de
acesso e entrou na garagem, onde desatou aos soluços sobre o corpo do
filho.
Wilmoth tinha apenas 43 anos.
Eu ainda estava em casa da minha avó quando a mãe de Wilmoth
telefonou, momentos mais tarde. A minha avó desligou e chamou-me para o
seu lado, para me dar a notícia. Pensei na minha mãe. Wilmoth fora o seu
salvador. Ela tinha estado a sair da sua concha, a abrir-se, pronta para
acreditar em coisas boas. O que é que isto lhe iria fazer? Não podia Deus
dar-lhe um maldito descanso? A raiva começou a subir aos poucos, mas
depressa tomou conta de mim. Libertei-me da minha avó e dei um soco no
frigorífico, deixando-lhe uma marca.
Conduzimos até nossa casa para ver a minha mãe, que já estava
desesperada por não ter notícias de Wilmoth. Quando chegámos, tinha
acabado de telefonar para casa dele, e ficou desconcertada quando um
detetive a atendeu, mas não estava à espera daquilo que tínhamos para lhe
contar. Nem podia. Vimos a sua confusão enquanto a minha avó se dirigia a
ela, lhe tirava o telefone das mãos e a fazia sentar-se.
Ao princípio, não acreditou em nós. Wilmoth gostava de pregar partidas
e esta era precisamente o género de brincadeira retorcida que ele podia
muito bem engendrar. Mas depois lembrou-se que, dois meses antes,
alguém tinha disparado sobre ele. Ele dissera-lhe, nessa ocasião, que os
tipos não andavam atrás dele e que as balas eram para outra pessoa. Como
só o tinham atingido de raspão, a minha mãe decidiu esquecer o caso. Até
àquele momento, nunca suspeitou que Wilmoth tivesse uma espécie de vida
secreta nas ruas da qual ela nada sabia. A polícia nunca descobriu realmente
por que motivo ele foi baleado e morto. Especulou-se sobre o envolvimento
num negócio obscuro ou que era um caso de drogas que correu mal. A
minha mãe ainda estava em negação ao fazer a mala, mas incluiu um
vestido para o funeral.
Quando chegámos, havia fita amarela da polícia à volta da casa, como se
fosse um presente de Natal errado. Aquilo não era brincadeira nenhuma. A
minha mãe estacionou, passou por baixo da fita e eu segui atrás dela pela
porta da frente. Lembro-me de espreitar para a esquerda para olhar de
relance o local onde Wilmoth tinha sido morto. Ainda havia uma poça de
sangue frio no chão da garagem. Eu era um miúdo de 14 anos a deambular
pelo local de um crime, mas ninguém, nem a minha mãe, nem a família de
Wilmoth, nem a polícia, parecia incomodado por eu andar por ali, a
absorver as vibrações negativas do homicídio do meu quase padrasto.
Por muito estapafúrdio que pareça, a polícia autorizou a minha mãe a
passar essa noite em casa de Wilmoth. Não ficou sozinha, mas com o
cunhado, armado com duas pistolas para o caso de os assassinos
regressarem. Eu acabei por ficar em casa da irmã de Wilmoth, a alguns
quilómetros, no quarto dos fundos; era escura e assustadora e deixaram-me
toda a noite sozinho. A casa tinha um desses móveis de televisão analógica
com 13 canais pré-programados e comandados por um botão. Só três é que
não tinham estática e eu deixei a televisão ligada num canal de notícias
locais. Passavam a mesma gravação a cada meia hora: uma imagem de mim
e da minha mãe a passar por debaixo da fita amarela da polícia, e o corpo de
Wilmoth a ser levado numa maca para uma ambulância, com um lençol a
cobri-lo.
Era uma cena de filme de terror. Eu ali sentado, sozinho, a ver a mesma
coisa vezes sem conta. A minha mente era um disco riscado que ia
deslizando para a escuridão. O nosso passado fora sombrio e, agora, o nosso
futuro de céu azul também tinha ido para o galheiro. Não ia haver alívio
nenhum, seria apenas a minha realidade lixada de sempre a tapar toda a luz.
Cada vez que via aquelas imagens, o meu medo crescia até encher a sala –
mas não conseguia deixar de olhar.
Uns dias depois do funeral de Wilmoth, e logo a seguir ao dia de Ano
Novo, entrei num autocarro da escola em Brazil, no Indiana. Ainda estava
de luto e com a cabeça em tumulto, porque a minha mãe e eu ainda não
decidíramos se ficávamos em Brazil ou se nos mudávamos para
Indianápolis, como planeado. Estávamos num limbo e ela continuava em
estado de choque. Ainda não tinha chorado a morte de Wilmoth. Em vez
disso, esvaziou-se outra vez de emoções. Era como se a dor que tinha
sentido ao longo da vida regressasse à superfície sob a forma de uma ferida
aberta na qual ela desaparecia – e não havia maneira de a alcançar nesse
vazio. Entretanto, a escola estava a começar, por isso eu segui a corrente,
procurando agarrar-me a qualquer farrapo de normalidade que
vislumbrasse.
Mas era difícil. Na maior parte dos dias, ia de autocarro para a escola, e
no primeiro dia do novo período não consegui afastar uma memória que
guardara do ano anterior. Nessa manhã, sentei-me num banco por cima do
pneu traseiro esquerdo, a olhar pela janela, como era costume. Chegámos à
escola e o autocarro encostou ao passeio, mas era preciso esperar que os
veículos à nossa frente avançassem antes de podermos descer. Entretanto,
um automóvel parou ao nosso lado e um miúdo encantador e muito
entusiasmado correu na direção do nosso autocarro com um prato de
bolachas. O condutor não o viu. O autocarro avançou.
Vi o olhar aterrorizado no rosto da mãe segundos antes de um jorro de
sangue salpicar, de repente, a minha janela. A mãe deu um grito de horror.
Ela já não estava ali connosco. Parecia e soava como um animal feroz e
ferido, arrancando literalmente punhados do seu cabelo. Em breve,
ouviram-se sirenes à distância, cada vez mais próximas. O rapazinho tinha
cerca de seis anos. As bolachas eram um presente para o condutor.
Deram-nos ordem para sair do autocarro e, enquanto caminhava ao lado
da tragédia, por alguma razão – chamem-lhe curiosidade humana, chamem-
lhe atração magnética do sombrio pelo sombrio –, espreitei por debaixo do
veículo e vi-o. Tinha a cabeça quase tão plana como uma folha de papel, o
cérebro e o sangue misturavam-se sob a carroceria como óleo derramado.
Essa imagem não me tinha vindo à cabeça uma única vez durante quase
um ano inteiro, mas a morte de Wilmoth despertou-a – e agora, não
conseguia pensar noutra coisa. Tinha passado o limite. Não havia nada que
me importasse. Tinha visto o suficiente para saber que o mundo estava
cheio de tragédia humana e que ela continuaria a acumular-se, aos montões,
até me engolir.
Deixei de ser capaz de dormir na cama. A minha mãe também.
Adormecia no seu cadeirão, em frente da televisão aos berros ou com um
livro nas mãos. Durante um tempo, ainda procurei enroscar-me na cama à
noite, mas acabava por acordar sempre no chão em posição fetal. Desisti e
comecei a dormir ao nível do solo. Talvez por saber que, se encontrasse
conforto no fundo, não poderia cair mais.
Éramos duas pessoas com uma necessidade extrema de um novo começo
e pensámos que ele ia acontecer; por isso, mesmo sem Wilmoth, fizemos a
mudança para Indianápolis. A minha mãe inscreveu-me nos exames de
admissão à escola secundária Cathedral, um colégio privado no centro da
cidade. Como sempre, fiz batota – e fui um cabrãozinho demasiado esperto.
Quando o correio trouxe a carta de admissão e o horário das aulas, no verão
antes do primeiro ano, propunham-me uma lista completa de aulas para
alunos avançados!
Fui abrindo o meu caminho, a fazer batota e a copiar, e consegui entrar
na equipa de basquetebol dos caloiros, que era uma das melhores do seu
nível em todo o estado. Tínhamos vários futuros jogadores universitários e
eu comecei como base. Isso representou um grande estímulo para a minha
confiança, mas não podia desenvolvê-lo porque sabia que era uma fraude
académica. Além disso, o colégio era demasiado caro, por isso a minha mãe
tirou-me do Cathedral ao fim de um ano.
Comecei o segundo ano na secundária North Central, um liceu público
com quatro mil alunos, num bairro maioritariamente negro. No primeiro
dia, apareci vestido como se fosse um rapazinho branco mimado de um
colégio privado. As minhas calças de ganga estavam definitivamente
demasiado apertadas e levava a camisa de colarinho por dentro das calças,
presas com um cinto entrançado. Só não me expulsaram do edifício a fazer
troça de mim porque eu sabia jogar basquete.
Todo este meu segundo ano do liceu andou à volta de ser popular. Mudei
completamente a maneira de vestir, era cada vez mais influenciado pela
cultura do hip hop, e dava-me com rapazes que giravam na órbita de
gangues e delinquentes marginais – o que queria dizer que nem sempre ia à
escola. Um dia, a minha mãe chegou a casa a meio do dia e encontrou-me
sentado à mesa da casa de jantar com aquilo que, na descrição dela, eram
“dez rufias”. Não estava enganada. Ao fim de umas semanas, fez as malas e
voltámos a Brazil, Indiana.
Inscrevi-me na secundária Northview, na semana das provas de
basquetebol, e lembro-me de aparecer à hora de almoço, quando o refeitório
estava cheio. Havia 1200 alunos inscritos em Northview (só cinco eram
negros) e, da última vez que me tinham visto, eu parecia-me muito com
eles. Mas já não.
Apareci com calças cinco tamanhos acima do meu e muito descaídas.
Também vestia um blusão extra largo dos Chicago Bulls e tinha um boné
posto ao contrário e de lado. Em poucos segundos, todos os olhares estavam
postos em mim. Professores, estudantes e pessoal administrativo
observavam-me como se eu pertencesse a uma espécie exótica. Eu era o
primeiro miúdo negro com aspeto de rufião que muitos deles tinham visto
de perto. A minha simples presença tinha feito parar a música. Eu era a
agulha a arrastar pelo vinil, a rasgar todo um novo ritmo, e, como o próprio
hip hop, todos repararam, mas nem todos gostaram. Quanto a mim,
pavoneei-me pelo cenário como se não desse a mínima importância.
Mas era mentira. Eu mostrava todo o género de atitudes arrogantes e
fizera uma entrada completamente descarada, mas, nesse regresso, sentia-
me imensamente inseguro. Buffalo tinha sido como viver num inferno
calcinante. Os meus primeiros anos em Brazil foram uma incubadora
perfeita para o stresse pós-traumático e, antes de me ir embora, recebera
uma dose dupla de trauma por morte. A mudança para Indianápolis fora
uma oportunidade para escapar à tristeza e deixar tudo para trás. As aulas
não eram fáceis para mim, mas tinha feito amigos e desenvolvido um estilo
novo. Agora, ao regressar, parecia suficientemente diferente por fora para
perpetuar essa ilusão de que tinha mudado. Mas, para conseguires mudar,
tens primeiro de trabalhar as tuas merdas. Enfrentá-las e ser honesto. E eu
não tinha feito nada desse trabalho. Continuava a ser um miúdo parvo sem
nada de sólido em que se apoiar – e as provas de basquetebol deram cabo do
resto da confiança que me restava.
No ginásio, obrigaram-me a vestir o equipamento da escola em vez da
minha roupa de exercício mais genérica. Nesse tempo, o estilo estava a
tornar-se largueirão e uns tamanhos acima – e Chris Webber e Jalen Rose
dos Fab Five haveriam de torná-lo famoso, na Universidade de Michigan.
Em Brazil, os treinadores não estavam ao corrente desse estilo. Puseram-me
a jogar basquetebol nuns calções brancos justos que mais pareciam roupa
interior; apertavam-me os tomates, estrangulavam-me as coxas e
assentavam-me mal em todos os sentidos. Vi-me aprisionado no estado de
sonho favorito dos treinadores; uma espécie de bolha temporal de Larry
Bird. O que fazia todo o sentido, porque Larry, a Lenda, era basicamente
um santo padroeiro em Brazil e em todo o Indiana. Na verdade, a filha dele
andava na nossa escola. Éramos amigos. Mas isso não queria dizer que eu
quisesse vestir-me como ele!
Depois, havia o meu comportamento. Em Indianápolis, os treinadores
deixavam-nos dizer asneiras em campo. Se eu fizesse um bom gesto técnico
ou um grande lançamento mesmo na cara de alguém, dizia-lhe qualquer
coisa sobre a mamã ou a namorada. Em Indianápolis, eu tinha apurado bem
as merdas que dizia em campo. E tornei-me muito bom nisso. Era o
Draymond Green da minha escola – e isso fazia parte da cultura de
basquetebol da cidade. Ao regressar à vida rural, senti muito a falta disso.
Quando as provas começaram, eu dominava muito a bola, e se isso irritava
outros miúdos e os fazia ficar mal, eu não deixava de lhes fazer notar isso –
nem aos treinadores. A minha atitude envergonhava os treinadores (que
aparentemente ignoravam que o seu herói, Larry, a Lenda, também foi um
dos grandes de todos os tempos a dizer merda em campo). Não demorou
muito até me tirarem a bola das mãos e me colocarem em posições
avançadas, onde eu nunca jogara. Não me sentia à vontade tão perto do
cesto e o meu jogo mostrava-o. Isso fez-me calar a boca. Entretanto, o
Johnny dominava a cena.
A única coisa boa que me aconteceu nessa semana foi recuperar a minha
amizade com Johnny Nichols. Tínhamos mantido o contacto quando eu
estava longe e as nossas maratonas de duelos um-contra-um estavam de
volta e em grande. Ele era baixinho, mas foi sempre bom jogador – e era
sempre um dos melhores nas provas. Encestava, passava a quem estava
desmarcado e corria pelo campo todo. Não foi surpresa nenhuma ele ser
selecionado para a equipa da escola, mas ficámos os dois em choque por eu
não ter conseguido mais do que ir parar à segunda equipa, e por pouco.
Fiquei devastado. E não foi por causa das provas de basquetebol. Para
mim, esse resultado foi outro sintoma de uma coisa que eu andava a sentir.
Brazil parecia estar igual, era eu que sentia as coisas diferentes. A escola
primária tinha sido complicada em termos académicos, mas embora
fôssemos uma das poucas famílias negras da comunidade, nunca notei ou
senti um racismo palpável. Agora, em adolescente, sentia-o em todo o lado,
e não era por me ter tornado hipersensível. O racismo descarado tinha
estado sempre presente.
Não muito depois de termos regressado a Brazil, o meu primo Damien e
eu fomos a uma festa que era já longe da cidade. Ultrapassámos em muito a
hora limite que nos tinham fixado para regressar. Na verdade, estivemos
acordados toda a noite e, ao nascer do dia, telefonámos à nossa avó para nos
ir buscar e dar boleia para casa.
“Desculpem?…”, disse ela. “Vocês desobedeceram-me, por isso o
melhor que têm a fazer é porem-se a andar.”
Percebemos a mensagem.
Ela vivia a uns 16 quilómetros, por um longo caminho rural, mas lá
fomos caminhando, a dizer piadas e divertidos. Damien vivia em
Indianápolis e vestíamos os dois jeans muito largos e blusões Starter vários
tamanhos acima, que não eram propriamente a norma nas estradas rurais de
Brazil. Ao fim de umas horas, tínhamos percorrido uns 11 quilómetros
quando apareceu na estrada uma camioneta de caixa aberta a vir na nossa
direção. Desviámo-nos para a berma para a deixar passar, ela abrandou e
vimos dois adolescentes na cabine e um terceiro de pé na caixa. O que ia no
lugar de passageiro apontou para nós e gritou pela janela aberta.
“Niggers!”
Não reagimos de maneira exagerada. Baixámos a cabeça e continuámos
a caminhar ao mesmo ritmo, até que escutámos o chaço a parar no alcatrão,
com os travões a guinchar e levantando uma nuvem de pó. Foi então que me
virei e vi sair o tipo que vinha no lugar do passageiro, um campónio com
muito mau aspeto. Empunhava uma pistola. Apontou-a à minha cabeça
enquanto se dirigia para nós, ameaçando-me.
“De que porra de sítio é que vocês são e porque é que vieram a esta porra
desta cidade?!”
Damien continuou estrada fora, enquanto eu olhei fixamente nos olhos o
tipo com a pistola, em silêncio. Ele chegou a menos de um metro de mim.
Uma ameaça de violência não é muito mais real do que isto. Senti arrepios,
mas recusei-me a fugir ou a acobardar-me. Ao fim de uns segundos, ele
regressou à carrinha e foram-se embora a toda a velocidade.
Não foi a primeira vez que ouvi aquela palavra. Não muito tempo antes,
estava eu num Pizza Hut com o Johhny e com duas raparigas, incluindo
uma ruiva de que eu gostava, chamada Pam. Ela também gostava de mim,
mas nunca fizemos nada quanto a isso. Éramos dois jovens inocentes que
desfrutavam da companhia um do outro, mas, um dia, o pai dela foi buscá-
la e apanhou-nos juntos; a Pam viu-o e ficou branca como cal.
Ele irrompeu pelo restaurante cheio e caminhou decidido para a nossa
mesa, com todos a olharem. Nunca se dirigiu a mim. Só olhou a filha nos
olhos e disse-lhe: “Nunca mais te quero ver com este preto.”
Ela apressou-se a sair, atrás do pai, vermelha de vergonha, enquanto eu
fiquei sentado, paralisado, a olhar para o chão. Tinha sido o momento mais
humilhante da minha vida. Doeu-me muito mais do que o incidente da
pistola por ser em público – e por a palavra ter sido cuspida por um adulto.
Eu não percebia nem como nem porquê podia ele estar tão cheio de ódio, e,
se ele sentia dessa maneira, quantas mais pessoas em Brazil não
partilhavam essa opinião sempre que me viam andar pela rua? Não é o
género de enigma que se queira resolver.
***
Se não me virem, não me chamarão nada. Foi assim que funcionei
durante o meu segundo ano na secundária, em Brazil, Indiana. Escondia-me
nas últimas filas das salas de aulas, deslizava pela cadeira e procurava
sempre passar despercebido, fosse qual fosse a disciplina. Nesse ano, era
obrigatório aprender uma língua estrangeira, o que para mim era estranho.
Não por não reconhecer que isso era importante, mas porque eu mal sabia
ler inglês, quanto mais compreender espanhol. Ao fim de uns oito anos
completos a fazer batota, a minha ignorância tinha cristalizado. Ia passando
de ano, como era esperado de mim, mas não tinha aprendido nada de nada.
Era um daqueles miúdos que pensa que está a enganar o sistema e, na
verdade, esteve todo o tempo a enganar-se a si mesmo.
Uma manhã, mais ou menos a meio do ano escolar, entrei na aula de
espanhol e peguei no manual que estava numa estante. Passar sem estudar
implicava toda uma técnica, Não tinha de prestar atenção, mas tinha de
fingir que sim, por isso afundei-me na cadeira, abri o livro e olhei fixamente
para a professora.
Quando abri o livro, toda a sala ficou em silêncio. Pelo menos para mim.
Os lábios da professora continuavam a mexer-se, mas eu não ouvia nada,
porque a minha atenção se concentrava em absoluto na mensagem deixada
para mim – e só para mim.
Cada aluno tinha o seu manual próprio nessa disciplina e o meu nome
estava escrito no canto superior direito da capa. Por isso era fácil saber que
era o meu. Debaixo da mensagem, alguém tinha feito um desenho de mim
numa forca. Era rudimentar, como naquele jogo que costumávamos fazer
em crianças. Por baixo, estavam as palavras.
“Niger, vamos matar-te!”
Tinham escrito mal a palavra, mas eu nem fazia ideia. Eu mal conseguia
soletrar – e talvez tivessem querido sublinhar isso. Passei os olhos pela aula,
enquanto a minha fúria crescia como um furacão, até eu sentir literalmente
os ouvidos a zumbir. Eu não devia estar aqui, pensei. Não devia ter voltado
para Brazil!
Fiz uma lista de todos os incidentes por que já tinha passado e pensei que
não seria capaz de aguentar muito mais. A professora ainda estava a falar
quando me levantei sem avisar. Chamou-me pelo nome, mas eu não ouvia
nada. Saí da aula de livro na mão e corri para o gabinete do diretor. Estava
tão furioso que nem parei na receção. Entrei de rompante e atirei a prova
para cima da secretária dele.
“Estou farto desta merda”, disse.
Kirk Freeman era o diretor e ainda hoje se recorda de ter erguido os
olhos da secretária e de ter visto lágrimas nos meus olhos. Não era mistério
nenhum o porquê de toda esta merda estar a acontecer em Brazil. O sul do
Indiana foi sempre um viveiro de racistas e ele sabia isso muito bem.
Quatro anos depois, em 1995, o Ku Klux Klan faria uma marcha pela rua
principal de Brazil, no dia da Independência, todos encapuzados e vestidos
a rigor. O KKK era ativo em Center Point, uma localidade que ficava a não
mais de 15 minutos, e havia miúdos de lá que frequentavam a nossa escola.
Alguns sentavam-se atrás de mim na aula de História e diziam piadas
racistas, dirigidas a mim, dia após dia. Eu não estava à espera que fosse
aberta uma investigação para descobrir quem tinha escrito aquilo. Acima de
tudo, naquele momento, eu procurava um pouco de compaixão; vi no olhar
do diretor Frank que ele se sentia mal por causa do que eu estava a passar,
mas que não sabia o que fazer. Não sabia como havia de me ajudar.
Examinou o desenho e a mensagem durante um bom bocado, depois
levantou os olhos e fitou-me, pronto a consolar-me com as suas palavras de
sabedoria.
“David, isto é ignorância pura”, disse. “Nem sequer sabem escrever
nigger.”
Tinham-me ameaçado de morte e ele não era capaz de mais do que isto?!
Nunca esquecerei a solidão que senti ao sair do gabinete dele. Era
assustador pensar que havia tanto ódio à solta pelos corredores e que
alguém, que eu nem sabia quem era, queria ver-me morto por causa da cor
da minha pele. Uma pergunta continuava às voltas na minha cabeça: quem é
que raio me odeia desta maneira? Não fazia ideia de quem era o meu
inimigo. Seria um dos campónios da minha aula de História ou era alguém
que eu considerava meu amigo, mas que, na verdade, não gostava de mim
nem um bocadinho? Uma coisa era olhar para o cano de uma pistola no
meio de uma estrada, ou lidar com um pai racista. Pelo menos essa merda
era honesta. Mas não saber quem é que, na minha escola, pensava dessa
maneira era totalmente diferente e eu não era capaz de tirar isso da cabeça.
Embora tivesse muitos amigos, todos eles brancos, não conseguia deixar de
ver o racismo escondido e gravado nas paredes com tinta invisível, o que
tornava extremamente difícil carregar o fardo de ser o único.
Manifestação do KKK, j62
em Center Point, em 1995 – Center Point fica a 15
minutos da minha casa, em Brazil
Quase todas, ou todas, as minorias nos Estados Unidos, juntamente com
as mulheres e as pessoas gay, conhecem bem esse vírus da solidão. Como é
entrar em salas onde és o único do teu tipo. A maioria dos homens brancos
não faz ideia de como pode ser difícil. Desejo que soubessem. Porque
saberiam então como é esgotante. Como, em certos dias, a única coisa que
se quer fazer é ficar em casa, estendido na cama, porque sair a público
implica estar completamente exposto, vulnerável a um mundo que está
sempre a avaliar-te e a julgar-te. Pelo menos a sensação é essa. A verdade é
que não se pode ter uma certeza absoluta de quando é que isto está a
acontecer num dado momento. Mas sente-se com frequência que é assim, o
que é só por si uma espécie de tortura mental. Em Brazil, onde quer que
fosse, eu era o único. À mesa no refeitório, com Johnny e o nosso grupo.
Em todas as aulas. Até no maldito ginásio de basquetebol.
No fim desse ano letivo, fiz 16 anos e o meu avô comprou-me um Chevy
Citation usado, de cor castanho cocó. Logo numa das primeiras manhãs em
que o conduzi para a escola, alguém pintou com spray a palavra nigger na
porta do lado do condutor. Desta vez, escreveram sem erro – e o diretor
Freeman ficou de novo sem palavras. A fúria que fervilhava em mim, nesse
dia, era indescritível, mas não irradiava para o exterior. Destroçava-me a
partir de dentro, porque ainda não tinha aprendido o que fazer com todas
essas emoções ou como as canalizar.
Devia andar à luta com todos? Já fora suspenso três vezes por me
envolver em zaragatas, e andava numa fase em que estava quase insensível
a tudo. Em vez de ir por aí, fechei-me em mim e caí no poço do
nacionalismo negro. Malcolm X tornou-se o meu profeta preferido. Todos
os malditos dias, ao chegar a casa vindo da escola, via um vídeo de um dos
seus primeiros discursos. Procurava encontrar conforto em algum lado e a
forma como ele analisava a história e transformava em raiva o desespero
dos negros era um alimento para mim, embora não percebesse a maior parte
das suas filosofias políticas e económicas. Aquilo com que eu me
relacionava era com a sua raiva para com um sistema feito por e para
brancos, porque eu vivia no meio de uma névoa de ódio, aprisionado na
minha própria fúria e ignorância estéreis. Mas eu não era o tipo certo para a
Nação do Islão. Para essa merda era preciso ter disciplina – e eu não tinha
nada disso.
Em vez disso, no meu terceiro ano, fiz tudo o que podia para chatear.
Tornei-me o estereotipo perfeito do que os racistas brancos detestavam e
temiam. Usava sempre as calças abaixo do rabo. Liguei de forma
rudimentar a aparelhagem do carro a colunas de som que ocuparam toda a
mala do meu Citation. As janelas tremiam quando eu passava pela rua
principal de Brazil, com Gin and Juice, de Snoop, no volume máximo.
Forrei o volante com três tapetes de pelo comprido e pendurei no retrovisor
um par de dados de peluche. Todas as manhãs, antes de ir para as aulas,
olhava-me ao espelho da casa de banho e pensava em novas maneiras de dar
cabo da cabeça aos racistas do liceu.
Até inventei penteados extravagantes. Uma vez até fiz um “risco ao
contrário” – rapei o cabelo todo e só deixei uma linha finíssima no lado
esquerdo do crânio. Não é que eu fosse impopular. Até era visto como o
miúdo negro cool da cidade, mas quem tivesse a preocupação de ir um
pouco mais fundo perceberia que a minha identidade não tinha nada que ver
com cultura negra e que as minhas ações não procuravam realmente
desafiar o racismo. Eu não tinha propósito algum.
Tudo o que fazia era para provocar uma reação das pessoas que mais me
odiavam, porque as opiniões que os outros tinham sobre mim me
importavam – o que é uma maneira de viver muito superficial. Eu estava
cheio de dor, não tinha um propósito real e alguém que observasse de longe
teria a impressão de que eu renunciara a qualquer hipótese de êxito. Que
estava a encaminhar-me para o desastre. Mas não tinha abandonado toda a
minha esperança. Restava-me mais um sonho.
Queria entrar na Força Aérea.
O meu avô tinha sido cozinheiro na Força Aérea durante 37 anos e tinha
tanto orgulho nesses anos de serviço que, já depois de reformado,
continuava a vestir a farda para ir à missa de domingo e usava o uniforme
do dia a dia só para estar sentado no maldito alpendre sem fazer nada. Foi
esse orgulho que me motivou a inscrever-me na Patrulha Aérea Civil, um
corpo civil auxiliar da Força Aérea. Reuníamo-nos uma vez por semana,
desfilávamos em formação e aprendíamos com oficiais sobre as várias
funções existentes na Força Aérea – e foi assim que fiquei fascinado com o
corpo de Para-resgate, os tipos que saltam de aviões em paraquedas para ir
em socorro de pilotos cujos aviões foram derrubados.
No verão antes do meu primeiro ano, fiz uma formação de uma semana
chamada Curso de Orientação em Salto de Para-resgate. Como
habitualmente, eu era o único. Um dia, apareceu para nos falar um elemento
da unidade, chamado Scott Gearen – e apareceu com uma história do
catano. Durante um exercício de rotina, num salto de quase quatro mil
metros, Gearen abriu o paraquedas quando tinha outro companheiro
imediatamente por cima. Não era nada de extraordinário. Ele tinha o direito
de passar primeiro e, de acordo com o treino que tinham recebido, fez um
gesto com a mão ao outro para que se afastasse. Só que o tipo não o viu e
Gearen ficou numa situação de perigo grave: o tipo que vinha acima
continuava em queda livre, sulcando o ar a quase 200 quilómetros por hora.
Ainda se colocou em posição bala de canhão, abraçado aos joelhos, para
tentar evitar Gearen, mas não resultou. Gearen não fazia ideia do que ia
acontecer. O seu companheiro atravessou o seu paraquedas, fazendo-o
colapsar com o choque e, depois, acertou-lhe em cheio na cara com os
joelhos. Ficou inconsciente instantaneamente e voltou a entrar em queda
livre, já que o paraquedas esmagado oferecia muito pouca resistência. O
outro conseguiu abrir o paraquedas e sobreviveu com ferimentos ligeiros.
Gearen, na verdade, não aterrou. Ressaltou três vezes, como se fosse uma
bola de basquetebol vazia. Por se encontrar inconsciente, o seu corpo estava
morto e, por isso, não se despedaçou, apesar de ter embatido no solo a uma
velocidade de 160 quilómetros por hora. Morreu duas vezes na mesa de
operações, mas das duas vezes os médicos das Urgências ressuscitaram-no.
Acordou numa cama de hospital e ouviu que nunca recuperaria plenamente
nem voltaria a ser paraquedista de resgate. Dezoito meses depois,
desafiando os prognósticos médicos, a recuperação fora completa e ele
estava de volta ao trabalho que adorava.
Scott Gearen depois do seu acidente
Esta história obcecou-me durante anos, porque ele tinha sobrevivido ao
impossível – e essa sobrevivência tinha impacto em mim. Depois do
assassínio de Wilmoth, com todas as provocações racistas a choverem sobre
a minha cabeça (não vou maçá-lo com todos os episódios, só quero que
saiba que houve muitos mais), eu sentia-me em queda livre e sem nenhum
cabrão de um paraquedas. Gearen era uma prova viva de que é possível
superar tudo aquilo que não te mate – e desde o momento em que o ouvi
falar soube que, depois de me formar, iria alistar-me na Força Aérea, o que
só tornava o liceu ainda mais irrelevante.
Em especial depois de ser corrido da equipa principal de basquetebol, no
terceiro ano da secundária. Não me afastaram por falta de capacidade. Os
treinadores sabiam que eu era um dos melhores jogadores que tinham e que
adorava jogar. Johnny e eu estávamos sempre a bater bolas, noite e dia.
Toda a nossa amizade assentava no basquetebol, mas como eu estava
zangado com os treinadores por me terem atirado para a equipa B no ano
anterior, não fui aos treinos de verão, e eles interpretaram isso como uma
falta de compromisso para com a equipa. Não lhes importou, ou não
perceberam, que, ao tirarem-me da equipa, estavam a eliminar o único
incentivo que eu tinha para manter a média escolar – o que eu, de qualquer
modo, só conseguia copiando. Agora, não tinha nenhuma boa razão para ir à
escola. Pelo menos, era isso que pensava, porque não fazia ideia da
importância que os militares atribuem à educação. Eu supunha que eles
aceitavam qualquer um. Dois episódios convenceram-me do contrário e
motivaram-me a mudar.
O primeiro foi quando chumbei na Série de Provas de Aptidão
Vocacional das Forças Armadas (ASVAB, na sigla inglesa), no terceiro ano
da escola secundária. A ASVAB é a versão das forças armadas dos exames
académicos de admissão às universidades. É um teste-padrão que permite
ao exército avaliar, em simultâneo, o conhecimento atual e o potencial de
aprendizagem dos candidatos. E eu apresentei-me a essa prova preparado
para fazer aquilo que sabia melhor: copiar. Durante anos tinha andado a
copiar em todos os exames, em todas as disciplinas, mas ao sentar-me para
fazer a ASVAB fiquei baralhado: os que estavam à minha esquerda e à
minha direita tinham exames diferentes do meu. Ou seja, tinha que fazer o
teste sozinho e obtive um total de 20 pontos, em 99 possíveis. O mínimo
necessário para ingressar na Força Aérea é apenas de 36 pontos e eu nem aí
cheguei.
O segundo sinal de que precisava de mudar chegou com um selo dos
correios, logo antes das férias de verão, a seguir ao terceiro ano na
secundária. A minha mãe ainda se encontrava no buraco negro emocional
onde caíra depois da morte de Wilmoth, e o seu mecanismo para lidar com
isso era manter-se ocupada o mais possível. Trabalhava a tempo inteiro na
Universidade DePauw e dava aulas à noite na Universidade Estatal de
Indiana, porque se parasse a sua azáfama o tempo suficiente para pensar,
dar-se-ia conta da realidade da sua vida. Mantinha-se atarefada, nunca
estava em casa e nunca me perguntava pelas notas. Depois do primeiro
semestre do terceiro ano do liceu, lembro-me de como o Johnny e eu
levámos para casa péssimas notas, só Fs e Ds. Passámos horas a falsificá-
las. Transformávamos os Fs em Bs e os Ds em Cs – e fazíamos isto a rir à
gargalhada. Lembro-me até de sentir um orgulho perverso por ter notas
falsificadas para mostrar à minha mãe, mas ela nem me pedia para as ver.
Acreditava na minha maldita palavra.
Notas do terceiro ano da preparatória
Fazíamos vidas paralelas na mesma casa, e como eu estava mais ou
menos a criar-me sozinho, deixei de a ouvir. Na verdade, cerca de dez dias
antes de a carta chegar, ela pôs-me fora porque eu me recusei a regressar a
casa de uma festa antes da hora limite que ela impôs. E ela disse-me, que se
não respeitasse essa hora, o melhor era nem voltar de todo.
Na minha cabeça, eu já vivia entregue a mim há vários anos. Cozinhava
as minhas refeições e lavava a minha roupa. Não estava aborrecido com ela.
Eu era arrogante e pensava que já não precisava mais dela. Nessa noite,
fiquei mesmo fora e, na semana e meia seguinte, dormi em casa do Johnny
ou de outros amigos. Chegou inevitavelmente o dia em que gastei o último
dólar. Por sorte, a minha mãe telefonou-me nessa manhã para casa do
Johnny para me dizer que tinha chegado uma carta da escola. Dizia que eu
tinha perdido quase um quarto do ano escolar por causa de faltas
injustificadas, que a minha média era D e que, a menos que mostrasse uma
melhoria importante nas notas e na assiduidade, não me formaria. Não se
mostrou demasiado emotiva. Estava mais exausta do que exasperada.
“Eu vou aí a casa buscar a carta”, disse-lhe.
“Não é preciso”, respondeu. “Só queria que soubesses que estás a
caminho de chumbar.”
Apareci-lhe à porta umas horas mais tarde, com o estômago a rosnar de
fome. Não pedi perdão e ela não me exigiu um pedido de desculpas.
Limitou-se a deixar a porta aberta e a sair da frente. Eu fui para a cozinha e
preparei uma sanduíche de manteiga de amendoim e marmelada. Sem dizer
uma palavra, ela entregou-me a carta. Li-a no meu quarto, onde as paredes
estavam forradas com posters do Michael Jordan e de operações especiais
das forças armadas. Eram a inspiração para paixões gémeas que se me
escapavam por entre os dedos.
Nessa noite, depois de tomar um duche, limpei o vapor do corroído
espelho da casa de banho e olhei bem para mim. Não gostei da pessoa que
vi a olhar para mim. Era um rufia de segunda categoria, sem propósito e
sem futuro. Senti-me tão desgostoso que tive vontade de dar um murro na
cara àquele cabrão e desfazer o espelho em pedaços. Mas, em vez de fazer
isso, dei-lhe um sermão. Chegara o momento de abrir os olhos.
“Olha para ti”, disse. “Por que razão há de a Força Aérea querer um gajo
todo lixado como tu? Não representas nada. És uma vergonha.”
Peguei na espuma da barba, apliquei uma camada fina sobre a cara, pus
uma lâmina nova e continuei a falar enquanto me barbeava.
“És um sacana idiota. Não lês melhor do que um miúdo do terceiro ano.
És uma piada, tu! Nunca te esforçaste por nada na vida, para além do
basquetebol. Tens algum objetivo, tu? Dás vontade de rir.”
Depois de tirar a barba de adolescente, pus creme de barbear na cabeça.
Estava desesperado por mudar. Queria tornar-me uma nova pessoa.
“Não vês ninguém na tropa com as calças descaídas. Tens de deixar de
falar como um imitador de gangsters. Não podes continuar a fazer essas
merdas! Acabou-se essa cena de escolher o caminho fácil! Já é tempo de
cresceres de uma vez, porra!”
O vapor formava nuvens à minha volta. Espalhava-se pela pele e emergia
desde a minha alma. O que tinha começado como uma sessão espontânea de
catarse tinha-se tornado uma intervenção sobre a minha pessoa.
“Depende só de ti”, continuei. “Sim, eu sei que esta merda toda é lixada.
Sei pelo que tens passado. Eu estava lá, cabrão! Não vai aparecer ninguém
para te salvar o couro! Nem a tua mãezinha nem o Wilmoth. Ninguém! Só
depende de ti!”
Quando acabei de falar, tinha o crânio completamente liso. A água
lançava pérolas sobre o meu couro cabeludo, que escorriam pela testa e
caíam pela cana do nariz. Parecia diferente e, pela primeira vez, tinha feito
recair sobre mim a responsabilidade das coisas. Nascera um novo ritual, que
permaneceria comigo durante anos. Ia ajudar-me a subir as notas, a manter
em forma o meu desgraçado corpo e levar-me a acabar o curso para poder
entrar na Força Aérea.
O ritual era simples. Todas as noites, barbeava a cara e a cabeça, falava
em voz alta – e falava verdade. Definia metas, escrevia-as em notas post-it e
colava-as naquilo a que chamo agora o Espelho da Responsabilidade,
porque todos os dias cobrava a mim mesmo alcançar os objetivos que tinha
definido. Ao princípio, esses objetivos envolviam melhorar a minha
aparência e fazer todos os meus deveres sem terem de me pedir.
Faz a cama todos os dias como se estivesses no exército!
Puxa as calças para cima!
Rapa a cabeça todas as manhãs!
Corta a relva!
Lava a loiça!
O Espelho da Responsabilidade manteve-me focado daí em diante. Ainda
era jovem quando me ocorreu essa estratégia, mas desde esse momento
tenho encontrado utilidade nela para pessoas em qualquer fase da vida. Pode
ser alguém à beira da reforma ou em busca de uma maneira de se reinventar.
Ou alguém que passa pelo fim de uma relação ou talvez tenha ganho peso.
Que talvez esteja permanentemente incapacitado, a tentar superar uma lesão
ou apenas a compreender quanta da sua vida desperdiçou sem ter um
propósito. Em todos os casos, esses pensamentos negativos que sente
representam o desejo interior de mudança, mas a mudança não é fácil, e a
razão pela qual este ritual funcionou tão bem para mim foi por causa da
assertividade.
Não era nada meigo. Era cru, porque essa era a única maneira de eu
perceber. Nesse verão, antes de fazer o último ano do liceu, eu tive medo.
Sentia-me inseguro. Não era um miúdo esperto. Ao longo da adolescência,
tinha ignorado tudo o que tivesse a ver com responsabilidade, enquanto
pensava que estava a enganar todos os adultos à minha volta – e a enganar o
sistema. Tinha-me aprisionado num ciclo de feedback negativo de copianço
e batota que, à superfície, até podia ser visto como um avanço, até que
choquei de frente com uma porra de uma parede de tijolo chamada
realidade. Nessa noite, ao regressar a casa e ao ler a carta da escola, não
havia maneira de negar a verdade – e eu disse-a a mim mesmo, com toda a
dureza.
Não me pus aos saltinhos e a dizer “Então, David, não andas a levar a tua
educação muito a sério…”. Não, eu tinha de falar de uma forma crua,
porque a única maneira de conseguirmos mudar é sermos verdadeiros
connosco. Se não sabemos uma merda de coisa nenhuma e nunca levámos a
escola a sério, então é preciso afirmar, sem rodeios: “Sou um ignorante!” É
preciso dizermos a nós próprios que temos de mexer o rabo e bulir, porque
estamos a ficar para trás na vida!
Se olhar para o espelho e vir uma pessoa gorda, não diga a si mesmo que
precisa de perder um par de quilos. Diga a verdade: está gordo como a
merda! É isso. Se estiver gordo, diga que está gordo. Esse maldito espelho
onde se olha todos os dias diz-lhe sempre a verdade, por isso porque é que
ainda mente a si mesmo? Para se poder sentir melhor mais uns minutos e
ficar exatamente igual? Se é gordo, precisa de mudar, porque é pouco
saudável como tudo. Eu sei. Já aí estive.
Se trabalha há trinta anos a fazer a mesma merda que detesta dia após
dia, porque tem medo de se demitir e arriscar, então tem andado a viver
como um cobarde. Ponto final, é assim. Diga a verdade! Diga que já
desperdiçou tempo suficiente e que tem outros sonhos que precisarão de
coragem para serem concretizados, para não morrer como um maldito
cobarde.
Grite consigo!
Ninguém gosta de ouvir a terrível verdade. Individualmente e como
sociedade evitamos aquilo que mais precisamos de ouvir. Este mundo está
lixado, a nossa sociedade tem problemas gravíssimos. Continuamos a
dividir-nos segundo linhas raciais e culturais e as pessoas não têm tomates
para ouvir isso! A verdade é que o racismo e a intolerância continuam a
existir e algumas pessoas são tão hipersensíveis que se recusam a admiti-lo.
Até hoje, em Brazil, há muitas pessoas que afirmam não haver racismo na
sua pequena cidade. É por isso que tenho de dar crédito a Kirk Freeman.
Telefonei-lhe na primavera de 2018, e ele lembrava-se muito claramente
daquilo por que eu tinha passado. É um dos poucos que não tem medo da
verdade.
Mas quando se é o único, e não se está aprisionado numa espécie de
quinta dimensão genocida do mundo real, o melhor é abrir os olhos. A tua
vida não está lixada por causa de pessoas abertamente racistas ou do
racismo sistémico oculto. Não estás a desperdiçar ocasiões, a ganhar uma
merda ou a ser despejado de casa por culpa dos Estados Unidos ou do
cabrão do Donald Trump ou porque os teus antepassados foram escravos ou
porque há pessoas que odeiam imigrantes, ou judeus, ou assediam mulheres
ou acreditam que os gays vão para o inferno. Se há alguma destas merdas
que o impede de prosperar na vida, então tenho uma novidade para lhe dar:
Você é que se está a impedir a si mesmo!
Está a desistir, em vez de se tornar mais forte! Diga a verdade sobre as
razões autênticas para as suas limitações e poderá transformar esse
pensamento negativo, que é real, em combustível para avião a jato. As
probabilidades alinhadas contra si vão transformar-se numa rampa de
lançamento!
Não há mais tempo a perder. As horas e os dias evaporam-se como fios
de água no deserto. É por isso que é adequado mostrar-se cruel e duro
consigo sempre que perceber que está a fazer isso, para se tornar uma
pessoa melhor. Todos precisamos de uma pele mais grossa para prosperar na
vida. Ser brando consigo quando se olha ao espelho não vai inspirar as
mudanças maciças necessárias para mudar o presente e abrir o futuro.
Na manhã seguinte a essa primeira sessão com o Espelho da
Responsabilidade, atirei para o lixo as capas felpudas do volante do carro e
os dados em peluche. Pus a camisa por dentro das calças e usei-as com um
cinto; e, quando as aulas recomeçaram, deixei de almoçar na mesa habitual.
Pela primeira vez, passei a considerar que ser aceite e ter um
comportamento fixe eram uma perda do meu tempo e, em vez de comer
com os miúdos mais populares, encontrei a minha própria mesa e comi
sozinho.
É preciso sublinhar que o resto do meu progresso não pode ser descrito
como uma metamorfose instantânea, do género “se piscares os olhos vais
perder o que se passou”. A deusa fortuna não me apareceu de repente,
preparou-me um banho quente e beijou-me como se me amasse. Na
verdade, a única razão pela qual não me tornei apenas mais uma estatística é
porque, no derradeiro momento, me lancei ao trabalho.
Durante o meu último ano de liceu, tudo o que me importava era fazer
exercício físico, jogar basquetebol e estudar – e foi o Espelho da
Responsabilidade que me manteve motivado para continuar em busca de
algo melhor. Acordava antes do nascer do Sol e comecei a ir ao ginásio do
YMCA na maior parte dos dias, antes das cinco da manhã, para treinar
pesos. Estava sempre a fazer corrida, em geral à volta de um campo de golfe
local, depois de escurecer. Houve uma noite em que corri vinte quilómetros
– foi o máximo que já tinha feito na vida. Dessa vez, cheguei a um
cruzamento familiar. Era na estrada em que o campónio me tinha apontado
uma arma. Evitei passar por lá, continuei a correr, e ainda fiz quase um
quilómetro na direção contrária, antes de qualquer coisa me dizer para
voltar para trás. Cheguei ao cruzamento pela segunda vez, parei e olhei. Eu
tinha um medo de morte daquela estrada, o coração estava aos saltos no
meu peito – e foi exatamente por isso que, de repente, comecei a correr a
toda a velocidade pelo maldito alcatrão.
Segundos depois, dois cães agressivos soltaram-se e perseguiram-me
enquanto o bosque se ia adensando dos dois lados da estrada. A única coisa
que podia fazer era correr à frente dos animais. Continuei à espera que a
camioneta de caixa aberta aparecesse e me atropelasse, como se
estivéssemos no Mississípi, por volta de 1965, mas corri e corri, cada vez
mais depressa, até ficar sem fôlego. Os cães dos infernos acabaram por se
cansar e desistiram. Fiquei só eu, o ritmo e o bafo da minha respiração, e o
silêncio do campo. Era purificador. Quando regressei, o meu medo tinha
desaparecido. Eu era o dono da puta daquela estrada.
A partir daí fiz uma lavagem ao meu próprio cérebro para aprender a
apreciar o desconforto. Se começava a chover, eu ia correr. Se começava a
nevar, a minha mente dizia-me: “Vai calçar a merda das sapatilhas.” Às
vezes, fraquejava e tinha de lidar com isso no Espelho da Responsabilidade.
Mas enfrentar o espelho, enfrentar-me a mim, motivava-me a lutar através
das experiências incómodas. Em resultado disso, tornei-me mais duro. E ser
duro e resiliente ajudaram-me a alcançar os meus objetivos.
Para mim, não havia nada mais difícil do que aprender. A mesa da
cozinha transformou-se na minha sala de estudo todo o dia e toda a noite.
Depois de ter chumbado na ASVAB uma segunda vez, a minha mãe
percebeu que eu estava a falar a sério em relação à Força Aérea e procurou
um explicador que me conseguisse ajudar a encontrar um sistema que eu
pudesse usar para aprender. Esse sistema era a memorização. Eu não
conseguia aprender tomando apontamentos e aprendendo-os de cor. Eu
tinha de ler um manual e escrever cada página no meu caderno. E repetir
isso uma segunda vez – e uma terceira. Era assim que o conhecimento se
fixava ao espelho da minha mente. Não pela aprendizagem, mas por
transcrição, memorização e capacidade de recordar.
Fiz isso na disciplina de Inglês. E em História. Escrevi e memorizei
fórmulas de Álgebra. Se o meu explicador estivesse comigo uma hora, eu
tinha de olhar para as notas dessa sessão durante seis horas para conseguir
memorizar tudo. O horário da minha sala de estudos pessoal e os meus
objetivos tornaram-se notas post-it no meu Espelho da Responsabilidade.
Adivinhe o que aconteceu? Desenvolvi uma obsessão por aprender.
Em seis meses, passei de ter um nível de leitura de um miúdo do quarto
ano para um de finalista do liceu. O meu vocabulário cresceu de forma
exponencial. Escrevi milhares de fichas e revi-as durante horas, dias e
semanas. Fiz o mesmo com fórmulas matemáticas. Em parte, foi por
instinto de sobrevivência. Tinha uma grande certeza de que não ia entrar na
universidade com base nas minhas qualificações e, embora nesse último ano
já estivesse na equipa principal de basquetebol, não havia nenhum “olheiro”
de equipas universitárias que soubesse o meu nome. Tudo o que eu sabia era
que tinha de ir-me embora de Brazil, Indiana; que a tropa era a minha
melhor oportunidade; e que para lá chegar tinha de passar na ASVAB. À
terceira tentativa, alcancei os mínimos para ingressar na Força Aérea.
Viver com um propósito mudou tudo para mim – pelo menos no curto
prazo. Durante o último ano no liceu, estudar e fazer exercício deram tanta
energia à minha mente que o ódio se desprendia da minha alma como
escamas, como uma serpente a mudar de pele. Todo o ressentimento que
tinha em relação aos racistas de Brazil, a emoção que me tinha dominado e
queimado por dentro, dissipou-se, porque finalmente percebi qual era a sua
maldita origem.
Olhei para as pessoas que me estavam a fazer sentir incómodo e percebi
como elas se sentiam desconfortáveis na sua pele. Fazer pouco de alguém,
ou tentar intimidar alguém que nem sequer conheciam, com base
unicamente numa questão racial era uma indicação clara de que havia
qualquer coisa de muito errado com elas, não comigo. Mas sem
autoconfiança torna-se fácil valorizar as opiniões de outras pessoas – e eu
estava a dar valor às opiniões de todos, sem ter em atenção as mentes que as
geravam. Parece idiota, mas é muito fácil cair nesta armadilha, em especial
quando, além de seres o único, és inseguro. Logo que fui capaz de
estabelecer essa relação, passei a ver como era uma perda de tempo estar
enfurecido com essas pessoas. Porque, se ia dar-lhes um pontapé no cu, e
era isso mesmo que queria, havia muitas malditas coisas que tinha de fazer.
Cada insulto ou gesto de desdém transformava-se em mais combustível para
o motor que acelerava dentro de mim.
Ao terminar o liceu, sabia que a confiança que tinha conseguido
desenvolver não era o resultado de uma família perfeita ou de um talento
dado por Deus. Vinha de uma responsabilização pessoal, que me trouxe
respeito próprio – e o respeito por nós vai sempre iluminar um caminho que
se abre à nossa frente.
No meu caso, iluminou-me um caminho para sair de Brazil – para
sempre. Mas não saí sem mácula. Quando transcendes um lugar no tempo
que te desafiou até ao âmago, a sensação pode ser a de que se ganhou uma
guerra. Mas não se deve cair nessa ilusão. O nosso passado, os nossos
medos mais profundos, sabem como ficar adormecidos antes de voltarem a
emergir na nossa vida com o dobro da força. É preciso manter a vigilância.
No meu caso, a Força Aérea revelou que eu ainda era frágil por dentro.
Ainda era inseguro.
Ainda não era forte – de ossos e de mente.
DESAFIO #2
É chegado o momento de fazer um frente-a-frente consigo e de ser franco e
verdadeiro. Isto não é uma tática de autoestima. Não pode ser superficial.
Não faça festas ao seu ego. Trata-se aqui de abolir o ego e de dar o primeiro
passo para se tornar o seu eu autêntico!
Eu colei notas post-it no meu Espelho da Responsabilidade e vou pedir-
lhe que faça o mesmo. Os dispositivos digitais não servem. Escreva em
post-its todas as suas inseguranças, sonhos e objetivos e cole-os no seu
espelho. Se precisa de mais educação, recorde-se de que precisa de começar
a trabalhar, porque não é suficientemente esperto! Ponto final, é assim. Se
olhar para o espelho e vir alguém que tem obviamente peso a mais, isso
significa que está estupidamente gordo! Assuma isso! Não há problema em
ser cruel consigo nestes momentos porque precisamos de uma pele mais rija
para progredir na vida.
Seja um objetivo de carreira (despedir-se de um trabalho, abrir um
negócio), seja uma meta de estilo de vida (perder peso, fazer mais exercício)
ou atlético (correr os primeiros cinco quilómetros, ou dez, ou uma
maratona), precisa de ser honesto consigo em relação a onde está e a quais
são os passos que serão necessários para alcançar essa meta, dia após dia.
Cada passo, cada ponto necessário de autossuperação, deve ser escrito como
uma nota autónoma. Isso significa que terá de fazer alguma avaliação e
dividir tudo em partes. Por exemplo, se está a tentar perder vinte quilos, o
primeiro post-it pode dizer “Perder um quilo na primeira semana.”
Cumprido esse objetivo, a nota deve ser retirada e substituída por outra com
a meta de perder dois ou três quilos, até ser alcançado o objetivo final.
Seja qual for a meta, é preciso que se torne responsável pelos pequenos
passos que serão necessários para lá chegar. A superação exige dedicação e
disciplina. O espelho sujo para o qual olha todos os dias vai revelar-lhe a
verdade. Deixe de o ignorar. Use-o em seu favor. Se assim entender, ponha
nas redes sociais uma imagem sua em frente ao Espelho da
Responsabilidade, com as suas notas lá coladas, com as hashtags
#canthurtme #accountabilitymirror.
CAPÍTULO TRÊS

A TAREFA IMPOSSÍVEL
Já passava da meia-noite e as ruas estavam vazias. Conduzi a minha
carrinha pickup até mais um parque de estacionamento vazio e desliguei o
motor. No silêncio, ouvia-se o zumbido sinistro dos candeeiros da
iluminação pública e a minha caneta a raspar enquanto marcava como
inspecionado mais um restaurante franchisado de uma cadeia de fast food.
Era o último numa série interminável de lugares de fast food e de cozinhas
industriais que tinham mais visitantes noturnos do que quererá saber. É por
isso que tipos como eu apareciam em sítios como este, a altas horas da
madrugada. Pousei a tabuleta com o registo no banco do carro, peguei no
meu equipamento e comecei a substituir as armadilhas para ratos.
Essas pequenas caixas verdes estão por todo o lado. Se estiver com
atenção, vai vê-las por perto de qualquer restaurante, escondidas à vista
desarmada. O meu trabalho era pôr-lhes o isco, mudá-las de lugar ou
substituí-las. Às vezes, saía-me a lotaria e encontrava um cadáver de
ratazana, o que nunca me apanhava de surpresa. Reconhece-se a morte pelo
cheiro.
Não fora esta a missão para a qual me alistara na Força Aérea com o
sonho de ingressar numa unidade de Para-resgate. Eu tinha 19 anos e pesava
cerca de 80 quilos. Quatro anos mais tarde, quando saí da tropa, tinha
inchado, pesava mais de 130 quilos e o género de patrulha que fazia era
diferente. Com esse peso, até o simples gesto de me dobrar para trocar o
isco implicava um grande esforço. Estava tão estupidamente gordo que
tinha de coser uma meia de desporto na virilha das calças de trabalho para
elas não se rasgarem a meio quando me ajoelhava. Acredite: eu era um
espetáculo patético.
Uma vez controlado o exterior, era o momento de me aventurar no
interior, que era em si uma espécie de terra selvagem. Eu tinha as chaves de
quase todos os restaurantes nesta zona de Indianápolis e também os códigos
dos alarmes. Uma vez lá dentro, colocava uma máscara de fumigação e
acionava a bomba de cor prateada cheia de veneno. Com aquilo posto
parecia um maldito extraterrestre, com filtros duplos a saírem dos lados da
boca, protegendo-me dos vapores tóxicos.
Protegendo-me.
Se havia uma coisa de que eu gostava naquele emprego era a natureza
silenciosa de trabalhar tarde, a entrar e sair das sombras obscuras. É por
essa razão que eu gostava imenso da máscara. Era vital, não porque me
protegesse de um maldito inseticida. Precisava dela porque tornava
impossível que alguém me visse – em especial, eu. Se por acaso topasse
com o meu próprio reflexo num vidro de uma porta ou num balcão em aço
inoxidável, não era a mim que via. Era a cópia barata de um soldado de
elite. O tipo de gajo que é capaz de gamar umas bolachas da véspera antes
de sair.
Não era eu.
Às vezes, via baratas a correr para se esconderem quando eu acendia as
luzes para pulverizar debaixo das bancadas e no chão de azulejo. Via
roedores mortos presos a armadilhas pegajosas que tinha colocado em
visitas anteriores. Punha-os num saco e atirava-os para o lixo. Verificava os
sistemas de iluminação que tinha instalado para apanhar traças e moscas e
também os limpava. Em meia hora estava despachado, a caminho do
próximo restaurante. Todas as noites tinha uma dezena de paragens e tinha
de passar por todas antes do amanhecer.
Talvez este trabalho lhe pareça nojento. Ao pensar nele, também me dá
nojo, mas não é por causa do trabalho. Era trabalho honesto. Necessário.
Caramba, no campo de treino básico da Força Aérea caí nas más graças do
meu primeiro-sargento de instrução e ela obrigou-me a manter num brinco
as latrinas da caserna. Ela disse-me que se encontrasse lá, em qualquer
momento, uma amostra de porcaria, me faria regressar ao primeiro dia e ir
para uma nova unidade. Eu segui tudo com disciplina. Estava feliz por estar
na Força Aérea e limpei aquela latrina até não poder mais. Podia comer-se
do chão. Quatro anos mais tarde, já tinha desaparecido esse tipo tão cheio
de energia por causa da oportunidade que até se entusiasmava a limpar
latrinas. Eu já não sentia nada de nada.
Dizem que há sempre uma luz ao fundo do túnel, mas não quando os
olhos se adaptam à escuridão – e foi isso que aconteceu. Eu estava
atordoado. Atordoado em relação à vida, miserável no meu casamento – e
tinha aceitado essa realidade. Era um guerreiro faz-de-conta transformado
em atirador furtivo caçador de baratas no turno da noite. Mais um zombie a
vender o seu tempo na terra, a mover-se em piloto automático. Na verdade,
a única reflexão que eu nesse momento fazia sobre o meu trabalho é que se
tratava realmente de uma promoção.
Quando me exoneraram da tropa, consegui um lugar no hospital St.
Vincent. Trabalhava como segurança entre as 11 da noite e as sete da manhã
e recebia o salário mínimo, o que me dava uns 700 dólares por mês. Às
vezes, via estacionar uma camioneta da Ecolab. O hospital fazia parte da
ronda regular da empresa de exterminação e fazia parte da minha função
dar-lhes acesso à cozinha. Uma noite, em conversa, o tipo da Ecolab
mencionou que a empresa estava a contratar – e que o trabalho incluía uma
carrinha grátis e nada de chefes a vigiar o que se fazia. Para mim, também
representava um aumento salarial de 35 por cento. Não pensei nos riscos
para a saúde. Não pensei de todo. Aceitei o que que me era oferecido. Eu
seguia por esse caminho do menor esforço, de deixar que nos deem a
comida à boca, em colapso mental – o que me matava aos poucos. Mas há
uma diferença entre estar atordoado e ser ingénuo. No escuro da noite, não
havia muitas distrações para me arrancarem aos meus pensamentos e eu
sabia que a primeira peça de dominó fora derrubada por mim. Fora eu a
desencadear a reação em cadeia que me levou ao serviço da Ecolab.
A Força Aérea devia ter sido a minha saída. Aquela primeiro-sargento de
instrução acabou mesmo por me reciclar para outra unidade, onde me tornei
um recruta exemplar. Tinha 1,88 metros e pesava cerca de 80 quilos. Era
rápido e forte, a nossa unidade era a melhor esquadrilha de todo o campo de
treino e, em breve, estava a trabalhar para chegar ao meu emprego de sonho,
como para-resgate da Força Aérea. Éramos uma espécie de anjos da guarda
com dentes afiados, treinados para cair atrás das linhas inimigas e salvar do
perigo pilotos derrubados. Eu era um dos melhores nesse treino. O melhor
nas flexões e o melhor em abdominais, levantamento de pernas e corrida.
Fiquei a um ponto de me formar com honra, mas houve uma coisa de que
não falaram em toda a conversa de apresentação do treino: o à-vontade
dentro de água. É um termo bonito para uma aula em que, durante semanas,
basicamente tentam afogar-te; e eu não me sentia nada à vontade na água.
Em três anos, a minha mãe conseguiu tirar-nos da assistência pública e
das casas subsidiadas, mas ainda não havia dinheiro extra para gastar em
aulas de natação, e evitávamos ir a piscinas. Só quando, aos 12 anos, entrei
nos escoteiros é que fui finalmente confrontado com a natação. Sair de
Buffalo permitiu-me, na verdade, ingressar nos escoteiros, e o acampamento
era a melhor oportunidade que tinha para chegar a Escoteiro Explorador.
Houve uma manhã em que foi o momento de qualificação para a medalha
de mérito de natação, o que implicava nadar mais ou menos um quilómetro
e meio numa pista desenhada com boias no meio de um lago. Os outros
miúdos todos saltaram para a água e começaram a nadar, e se eu queria
manter as aparências tinha de fingir que sabia o que fazia, por isso segui-os.
Nadei à cão o melhor que pude, mas como estava sempre a engolir água
pus-me de costas e acabei por percorrer a distância num estilo merdoso que
improvisei no momento. Medalha de mérito garantida.
Mas para realizar a prova de natação para o para-resgate era preciso
saber nadar a sério. Era um percurso de 500 metros, cronometrado, em
estilo livre – e eu, com 19 anos, ainda não sabia nadar em estilo livre. Por
isso, arrastei o meu traseiro ignorante até à livraria Barnes & Noble,
comprei Natação para Totós, estudei os diagramas e treinei na piscina todos
os dias. Detestava mergulhar a cara na água, mas lá dei uma braçada, depois
duas, e em pouco tempo já fazia uma pista inteira.
Nos Escoteiros
Não flutuava tão bem como a maioria dos nadadores. Sempre que
parava, nem que fosse só um instante, começava a ir ao fundo, o que me
punha o coração a bater em pânico; o crescendo de tensão só piorava tudo.
Acabei por passar o teste de natação, mas há uma diferença entre ser
competente e estar à vontade dentro de água e outra grande diferença entre
estar à vontade e sentir confiança; se não se consegue flutuar como a
maioria, a confiança dentro de água não surge com facilidade. Às vezes,
nunca surge.
No treino de Para-resgate, o à-vontade dentro de água faz parte do
programa de evolução de dez semanas, que está cheio de exercícios
específicos concebidos para testar a capacidade de operar dentro de água e
em situação de stresse. Para mim, um dos piores era o de subir e descer. A
turma estava dividida em grupos de cinco, completamente equipados e
alinhados de um lado ao outro na zona mais baixa da piscina. Tínhamos às
costas botijas gémeas de oitenta litros em aço galvanizado e usávamos
também cintos de sete quilos. Estávamos carregados como tudo, o que não
seria um problema se não fosse o facto de, neste exercício, não nos ser
permitido respirar das botijas. Em vez disso, diziam-nos para recuar e ir da
zona baixa, de noventa centímetros, para a mais funda, com cerca de três
metros, e nessa marcha lenta para chegar à posição, a minha cabeça
começou a fervilhar com pensamentos de dúvida e negativos.
Mas que raio estás aqui a fazer? Isto não é para ti! Tu não consegues
nadar! És uma fraude e vão descobrir-te!
O tempo abrandou e esses segundos pareceram minutos. Sentia o
diafragma a sacudir-se, procurando levar mais ar aos pulmões. Eu sabia a
teoria: o relaxamento era a chave para todos os exercícios subaquáticos.
Mas estava demasiado aterrorizado para libertar a tensão. Tinha o queixo
tão cerrado quanto os punhos. A minha cabeça palpitava enquanto eu lutava
por manter o pânico à distância. Por fim, ficámos todos em posição e era o
momento de começar o sobe e desce. Isso significava dar um impulso do
fundo até à superfície (sem poder usar as barbatanas), aspirar uma golfada
de ar e voltar a descer. Subir com aquela carga toda não era fácil, mas, pelo
menos, dava para respirar, e esse primeiro trago de ar foi a minha salvação.
O oxigénio inundou o meu sistema e comecei a relaxar até ouvir o instrutor
gritar “Troca!”. Aí tínhamos de tirar as barbatanas, colocá-las nas mãos e,
com um único movimento dos braços, propulsar-nos até à superfície.
Podíamos apoiar os pés no fundo da piscina, mas não podíamos usá-los para
dar impulso. Estivemos cinco minutos neste exercício.
Desmaios à superfície ou em águas pouco profundas não são invulgares
no treino de à-vontade dentro de água: andam de mão dada com o stresse
imposto ao corpo e a absorção limitada de oxigénio. Com as barbatanas nas
mãos, eu mal conseguia erguer a cabeça acima da água para respirar, sendo
que estava em simultâneo a fazer um esforço enorme e a queimar oxigénio.
E quando se queima demasiado oxigénio, e demasiado depressa, o cérebro
apaga-se; começamos a desmaiar. Os instrutores chamavam a isso
“conhecer o feiticeiro”. Enquanto o relógio avançava, eu via estrelas a
aparecerem na minha visão periférica; sabia que o feiticeiro se aproximava.
Cumpri esse exercício e, em breve, tornou-se fácil nadar com barbatanas
nas mãos ou nos pés. O que nunca deixou de ser complicado, do princípio
ao fim, era uma das tarefas mais simples: ficar à tona sem usar as mãos.
Tínhamos de manter as mãos e o queixo bem acima da água, usando só as
pernas, que devíamos rodar num movimento como o de uma batedeira,
durante três minutos. Não parece muito tempo e para a maior parte da turma
era fácil. Para mim, era praticamente impossível. O queixo estava sempre a
tocar na água, o que queria dizer que o tempo regressava a zero a partir
desse momento. À minha volta, via os outros todos tremendamente à
vontade, com as pernas quase imóveis, enquanto eu mexia as minhas a alta
velocidade e nem conseguia chegar a metade da altura daqueles rapazes
brancos que pareciam desafiar a gravidade.
Dia após dia, passava por mais uma humilhação na piscina. Não é que
me envergonhassem publicamente. Cumpri todos os exercícios de evolução,
mas sempre a sofrer interiormente. Todas as noites, pensava na tarefa
marcada para o dia seguinte e ficava tão aterrorizado que não conseguia
dormir; em breve, o meu medo transformou-se em ressentimento para com
os meus companheiros, para quem, na minha cabeça, era tudo mais fácil. E
isso ia buscar a roupa suja do meu passado.
Eu era o único negro da unidade, o que me fazia lembrar a minha
infância no Indiana rural, e quanto mais difíceis se tornaram os exercícios
de à-vontade na piscina, mais essas águas negras do passado se erguiam até
parecer que eu estava a ser afogado de dentro para fora. Enquanto o resto da
turma dormia, esse poderoso cocktail de medo e raiva viajava pelas minhas
veias e as minhas fixações noturnas transformaram-se numa espécie de
profecia que se cumpre a si própria. E tratava-se de uma profecia em que o
fracasso era inevitável, porque o meu medo desenfreado estava a libertar
uma coisa que eu era incapaz de controlar: a mentalidade de desistência.
O ponto crítico chegou seis semanas depois do início do treino, com o
exercício de “respiração entre companheiros”. Fizemos duplas, cada um
pegava no outro pelo antebraço e, à vez, respirávamos debaixo de água pelo
único tubo de respiração. Ao mesmo tempo, os instrutores davam-nos
empurrões violentos, procurando separar-nos do tubo. Tudo isto devia
acontecer perto da superfície da água, mas como eu era péssimo a flutuar,
isso queria dizer que, na parte mais funda da piscina, ia até abaixo,
arrastando o meu companheiro. Ele respirava e passava-me o snorkel. Eu
subia à superfície, expirava para tentar expulsar a água do tubo e respirar
por ele antes de o devolver, uma tarefa que os instrutores tornavam quase
impossível. Em geral, só conseguia despejar metade do tubo e inspirava
mais água do que ar. Desde o início do exercício que funcionava com um
défice de oxigénio, enquanto lutava por me manter à superfície.
No treino militar, é função do instrutor identificar os elos mais fracos e
desafiá-los a fazer o que é pedido ou a desistir – e, neste caso, os instrutores
viam claramente as minhas dificuldades. Nesse dia, na piscina, um deles
passou o tempo todo aos gritos na minha cara, berrando e dando-me
empurrões, enquanto eu engolia água, procurando em vão respirar pelo tubo
estreito para manter o feiticeiro longe de mim. Lembro-me de mergulhar e
de olhar para o resto da turma, todos descontraídos como serenas estrelas-
do-mar. Com toda a calma, passavam com à-vontade o snorkel de uns para
os outros, enquanto eu me irritava. Sei que o instrutor só estava a fazer o
seu trabalho, mas, naquele instante, pensei: Este cabrão não me está a dar
uma oportunidade justa!
Acabei por passar também nesse exercício, mas ainda me faltavam
outros 11 e mais quatro semanas de treino na água. Fazia sentido. Nós
íamos saltar de aviões sobre a água. Precisávamos daquele treino. Só que eu
simplesmente já não queria fazê-lo mais e, na manhã seguinte, apareceu-me
uma saída completamente inesperada.
Semanas antes, tiraram-nos amostras de sangue durante um exame
médico e os médicos descobriram que eu tenho o traço de células
falciformes. Não tinha a doença, anemia falciforme, mas tinha o traço e,
naquele tempo, julgava-se que isso aumentava o risco de morte súbita por
paragem cardíaca relacionada com o exercício. A Força Aérea não queria
ver-me a cair morto no meio de uma manobra qualquer e retirou-me do
curso por motivos médicos. Fingi que a notícia me abalara muito, como se o
meu sonho estivesse a ser desfeito. Fiz uma grande representação, a mostrar
que estava lixado. Mas, por dentro, estava delirante.
Nessa semana, uns dias depois, os médicos alteraram a sua posição. Não
afirmaram especificamente que era seguro eu continuar, mas observaram
que o problema ainda não era estava bem estudado e deixaram a decisão nas
minhas mãos. Quando voltei a apresentar-me ao treino, o sargento mestre
informou-me que tinha perdido demasiados dias e que, se quisesse
continuar, teria de recomeçar como se estivesse no primeiro dia da primeira
semana. Em vez de menos de quatro semanas, passavam a faltar-me outras
dez semanas do terror, raiva e insónias que andavam de mãos dadas com os
exercícios de à-vontade na água.
Se fosse hoje, uma coisa destas nem apareceria no meu radar. Se me
disserem para correr mais e mais depressa do que os outros só para ter uma
oportunidade justa, eu limito-me a responder “entendido” e a seguir em
frente; mas, nesse tempo, eu ainda era muito verde. Era fisicamente forte,
mas estava longe de dominar a minha mente.
O sargento-mestre olhou-me fixamente, à espera da minha resposta. Nem
fui capaz de o olhar bem nos olhos: “Sabe que mais, sargento-mestre? O
médico não sabe muito sobre esta coisa das células falciformes e isso está a
preocupar-me.”
Ele fez que sim, sem mostrar qualquer emoção, e assinou os documentos
que me excluíam de vez do programa. Mencionou o problema das células
falciformes e, por isso, no papel, eu não tinha desistido, mas eu sabia a
verdade. Se fosse o tipo que sou hoje, estava-me a cagar para as células
falciformes. Ainda tenho esse traço, é uma coisa que ninguém consegue
eliminar. Mas o facto é que, naquele momento, apareceu um obstáculo e eu
desisti.
Mudei-me para Fort Campbell, no Kentucky, disse aos amigos e à
família que um problema médico me tinha afastado do programa e cumpri
os meus quatro anos de serviço no Destacamento de Controlo Aéreo Tático
(TACP em inglês, de Tactical Air Control Party), que trabalha com algumas
unidades de operações especiais. Treinaram-me para coordenar unidades em
terra e apoio aéreo – aviões velozes como os F-15 e F-16 – atrás de linhas
inimigas. Era um trabalho desafiador, com pessoas inteligentes, mas,
tristemente, nunca senti orgulho nele e não vi as oportunidades que me
proporcionava, porque sabia que era um desistente que deixara o medo ditar
o seu futuro.
Enterrava a minha vergonha no ginásio e à mesa. Pus-me a fazer
levantamento de pesos e aumentei muitíssimo a massa corporal. Comia e
fazia exercício. Fazia exercício e comia. Nos meus últimos dias na Força
Aérea, pesava mais ou menos 115 quilos. Depois de sair da tropa, continuei
a aumentar o volume corporal, tanto em músculo como em gordura, até
chegar a pesar quase 135 quilos. Queria ser grande porque o facto de ser
grande escondia o David Goggins. Conseguia ocultar esta pessoa de 80
quilos dentro de bíceps de 50 centímetros e de uma barriga flácida. Deixei
crescer um bigode farfalhudo e era intimidante para qualquer pessoa que me
visse, mas por dentro sabia que era um fracalhote – e essa é uma sensação
terrível.
Depois do campo de treino básico da Força Aérea,
com 80 quilos, em 1994
Na praia, em 1999: 130 quilos
***
A manhã em que comecei a tomar conta do meu destino começou como
outra qualquer. Quando o relógio chegava às sete da manhã, o meu turno no
Ecolab terminava e eu passava pelo drive-thru do Stake’n Shake para pedir
um grande batido de chocolate. A escala seguinte era uma loja 7-Eleven,
para comprar umas caixas de mini-donuts de chocolate Hostess. Engolia-os
no trajeto de 45 minutos até casa, um belo apartamento num campo de
golpe na bonita localidade de Carmel, Indiana, que partilhava com a minha
mulher, a Pam, e com a filha dela. Lembra-se daquele episódio no Pizza
Hut? Pois, eu acabei por casar com essa rapariga. Casei com uma rapariga
cujo pai me chamou nigger. O que é que isso diz sobre mim?
Era uma vida que não tínhamos possibilidade de pagar. Ela nem sequer
trabalhava, mas nada fazia muito sentido naqueles dias de acumular dívidas
nos cartões de crédito. Eu ia pela autoestrada a 110 quilómetros por hora, a
engolir açúcar e a ouvir a estação local de rock clássico, quando começaram
a passar The Sound of Silence. As palavras de Simon & Garfunkel soaram
como o eco da verdade.
A escuridão era realmente minha amiga. Eu trabalhava no escuro,
escondia o meu verdadeiro eu tanto de amigos como de estranhos. Ninguém
acreditaria que eu vivia atordoado e com medo, porque parecia um autêntico
animal, com o qual ninguém quereria meter-se; mas a verdade é que a
minha mente não estava bem e a minha alma vivia sob o peso de tanto
trauma e fracasso. Tinha todas as desculpas do mundo para ser um falhado –
e usava-as todas. A minha vida desmoronava-se e a Pam lidava com isso
fugindo dali. Os pais dela ainda viviam em Brazil, que ficava apenas a 110
quilómetros. Passávamos a maior parte do tempo separados.
Cheguei a casa pelas oito da manhã, e o telefone tocou logo que entrei.
Era a minha mãe. Ela conhecia as minhas rotinas.
“Vem cá a casa comer o teu pequeno-almoço de sempre”, disse-me.
O meu “pequeno-almoço de sempre” era um bufê para uma pessoa, de
dimensões tais que poucos seriam capazes de o comer de uma vez. Imagine:
oito rolos de canela Pillsbury, meia dúzia de ovos mexidos, trezentos
gramas de bacon e duas tigelas de cereais Fruity Pebbles. Não se esqueça:
eu tinha acabado de dar cabo de uma caixa de donuts e de um batido de
chocolate. Nem foi preciso responder. Ela sabia que eu iria, a correr. A
comida era a minha droga preferida e eu comia sempre tudo até à última
migalha.
Desliguei, mudei o canal de televisão e fui até ao chuveiro, onde, filtrada
através do vapor, se ouvia a voz do narrador do programa. Apanhei uns
fragmentos. “SEAL da Marinha… os mais duros… do mundo.” Enrolei
uma toalha à cintura e corri de volta para a sala. Eu era tão grande que a
toalha mal me tapava o rabo, mas sentei-me no sofá e não me mexi durante
quarenta minutos.
O documentário seguia um programa de treino em demolição
subaquática básica da Classe 224 dos SEAL (BUD/S, na sigla em inglês) na
sua chamada “Semana Infernal”: a série de tarefas mais árdua no treino
fisicamente mais exigente do universo militar. Vi homens a transpirar e a
sofrer enquanto faziam percursos com obstáculos em solos cheios de lama,
corriam sobre areia macia a segurar troncos em cima da cabeça e tremiam
de frio no meio de ondas geladas. Escorria-me suor pelo couro cabeludo e
eu olhava hipnotizado ao ver alguns deles – entre os mais fortes – atirar a
toalha ao chão e desistir. Fazia sentido. Só um terço dos que começam um
programa BUD/S conseguem completar a Semana Infernal. Em todo o
tempo que passei no treino de Para-resgate, não me lembrava de ter passado
tão mal como esses homens pareciam estar: feridos, irritados, sem dormir,
exaustos, mortos-vivos – e eu com ciúmes deles.
Quanto mais via, mais tinha a certeza de que em todo aquele sofrimento
se encontravam respostas escondidas. Respostas de que eu necessitava.
Mais do que uma vez, a câmara pairou sobre o oceano interminável, cheio
de espuma, e sempre que isso acontecia eu sentia-me patético. Os SEAL
eram tudo o que eu não era. Tinham que ver com orgulho, dignidade e o
género de excelência que vem de mergulhar no fogo, de receber uma
montanha de golpes e de regressar por mais, uma e outra vez. Eram o
equivalente humano à espada mais forte e mais afiada que possa imaginar.
Iam à procura da chama, aguentavam os golpes pelo tempo que fosse
necessário, ou ainda mais, até se tornarem destemidos e letais. Não estavam
motivados. Estavam determinados. O programa de televisão acabou a
mostrar a cerimónia de formatura. A câmara passou por 22 homens cheios
de orgulho, ombro com ombro, nas suas fardas brancas, antes de se fixar no
oficial comandante.
“Numa sociedade em que a mediocridade é demasiadas vezes a norma, e
é frequentemente recompensada”, afirmou, “existe um fascínio intenso
pelos homens que detestam a mediocridade, que recusam ser definidos em
termos convencionais e que procuram reconhecer as capacidades humanas
tradicionalmente reconhecidas. É precisamente esse género de pessoa que o
programa BUD/S está concebido para encontrar. O homem que encontra
uma maneira de completar todas e cada uma das tarefas usando o máximo
da sua capacidade. O homem capaz de se adaptar e superar todos e cada um
dos obstáculos.”
Naquele instante, senti como se o oficial estivesse a falar diretamente
para mim, mas, depois de o programa acabar, voltei à casa de banho, pus-
me em frente ao espelho e olhei-me da cabeça aos pés. Os meus 135 quilos
viam-se bem. Eu era tudo aquilo que os tipos que me odiavam na minha
cidade natal tinham dito que eu viria a ser: um gajo sem educação, sem
capacidades para o mundo real, com disciplina zero e um futuro que era um
beco sem saída. Para mim, a mediocridade teria sido uma grande promoção.
Eu encontrava-me no fundo do barril da vida, no meio dos dejetos da
sociedade; mas, pela primeira vez em muito tempo, estava desperto.
Quase não falei com a minha mãe durante o pequeno-almoço, e só comi
metade do que ela me preparou, porque a minha cabeça andava à volta com
questões não resolvidas. Eu sempre tinha querido ingressar numa unidade
de operações especiais de elite e esse desejo ainda existia, por baixo de
todas as camadas de carne e de fracasso. Estava agora a ressuscitar, graças
ao visionamento casual de um documentário que continuou a espalhar-se
em mim como um vírus, célula após célula, assumindo o controlo.
Converteu-se numa obsessão que eu era incapaz de afastar. Todas as
manhãs, depois do trabalho, durante quase três semanas, telefonava a
recrutadores para serviço ativo da Marinha e contava-lhes a minha história.
Telefonei a unidades em todo o país. Disse-lhes que estava disposto a mudar
desde que conseguissem inscrever-me no treino SEAL. Todos me
recusaram. A maior parte não tinha interesse em candidatos que já tivessem
feito serviço militar. Alguém num gabinete de recrutamento local ficou
intrigado e quis conhecer-me pessoalmente, mas quando lá passei riram-se
na minha cara. Eu era demasiado pesado e, na opinião deles, era só mais um
aspirante a delirar. Era exatamente assim que me sentia ao sair de lá.
Depois de fazer todos os telefonemas possíveis para os recrutadores,
liguei para a unidade local das reservas navais e falei pela primeira vez com
o suboficial Steven Schaljo. Ele tinha trabalhado oito anos com diversos
esquadrões de F-14, como eletricista e instrutor na estação naval de
Miramar, em San Diego, Califórnia, antes de ingressar no gabinete de
recrutamento nessa cidade, onde os SEAL treinam. A trabalhar dia e noite,
depressa ascendeu nas fileiras. A sua mudança para Indianápolis foi
acompanhada de uma promoção, com o desafio de encontrar recrutas para a
Marinha no meio das planícies de cereais. Quando falámos, ele só tinha
chegado há dez dias – e se tivesse sido outro qualquer a atender-me
provavelmente não estaria a ler este livro. Mas, graças a uma combinação
de sorte pura e persistência teimosa, encontrei um dos melhores
recrutadores da Marinha, um tipo cuja tarefa favorita era descobrir
diamantes em bruto – tipos que já tinham feito serviço, como eu, e estavam
desejosos de regressar, com a esperança de chegarem às operações
especiais.
A nossa primeira conversa não foi longa. Disse que podia ajudar-me e
que o melhor era eu ir conhecê-lo pessoalmente. Se eu era um peso pesado,
Schaljo era um peso pluma, com os seus 1,73 metros, mas não pareceu nada
impressionado pelo meu tamanho, pelo menos não imediatamente. Era
extrovertido e caloroso, como qualquer vendedor, mas dei-me conta de que
havia nele qualquer coisa de pitbull. Levou-me por um corredor para me
pesar, e quando estava na balança pus os olhos num gráfico com pesos e
medidas pendurado na parede. Para alguém com a minha altura, o peso
máximo admissível, para a Marinha, era de 87 quilos. Contive a respiração,
encolhi a barriga o mais que pude e estiquei o peito, numa lamentável
tentativa para escapar ao momento humilhante em que ele me iria rejeitar.
Esse momento nunca chegou.
“És um tipo grande”, disse Schaljo a sorrir e a abanar a cabeça, enquanto
rabiscava 135 quilos nos seus papéis. “A Marinha tem um programa que
permite aos recrutas na reserva passar ao serviço ativo. É o que vamos fazer
no teu caso. Vai ser descontinuado no fim do ano, por isso temos de o
aproveitar antes disso. A questão é que tens algum trabalho para fazer, mas
isso já sabias.” Segui os olhos dele até ao gráfico dos pesos e voltei a
confirmar. Ele assentiu, deu-me uma palmada no ombro e deixou-me para
enfrentar a minha realidade.
Eu tinha menos de três meses para perder 48 quilos.
Parecia uma tarefa impossível – e essa foi uma das razões pelas quais
não me despedi do emprego. A outra eram as ASVAB. Essa prova de
pesadelo tinha ressuscitado como o cabrão do monstro de Frankenstein. Já a
tinha passado uma vez para me alistar na Força Aérea, mas para me
qualificar para o programa BUD/S teria de obter resultados muito mais
elevados. Durante duas semanas, estudei todo o dia, e à noite ia tratar das
armadilhas no controlo de pragas. Ainda não começara a fazer exercício. A
minha grande perda de peso teria de esperar.
Fiz o teste num sábado à tarde. Na segunda-feira a seguir, telefonei a
Schaljo. “Bem-vindo à Marinha”, saudou-me. Primeiro, deu todas as boas
notícias. Tinha obtido resultados excecionalmente bons em algumas seções
e agora era oficialmente reservista, mas só tinha tido 44 em Compreensão
Mecânica. Precisava de 50 para me qualificar para o BUD/S. Ou seja, tinha
de repetir o teste completo daí a cinco semanas.
Steven Schaljo gosta hoje de olhar para trás e chamar “destino” ao nosso
encontro casual. Afirma que conseguiu sentir a minha determinação desde o
primeiro momento em que falámos e que acreditou imediatamente em mim,
sendo por isso que o meu peso não constituiu para ele um impedimento.
Mas, depois das ASVAB, eu estava cheio de dúvidas. Por isso, o que
aconteceu nessa exata noite talvez tenha sido igualmente uma forma de
destino – ou uma muito necessária dose de intervenção divina.
Não vou revelar o nome do restaurante onde tudo se passou, porque se o
fizesse nunca mais ninguém lá voltava e eu teria de contratar um advogado.
Basta dizer que o lugar era um desastre. Comecei por examinar as
armadilhas colocadas no exterior e encontrei uma ratazana morta. Lá dentro,
havia mais roedores mortos – um rato e duas ratazanas – nas armadilhas
pegajosas e baratas no lixo que não tinha sido deitado fora. Abanei a cabeça,
pus-me de joelhos debaixo do lava-loiças e fiz uma pulverização através de
uma fresta estreita na parede. Ainda não o sabia, mas tinha encontrado um
ninho; quando o veneno lá chegou, os insetos puseram-se em fuga.
Ao fim de segundos, senti uma coisa a passear-me pela nuca. Sacudi-a e
girei o pescoço para cima, para ver uma autêntica tempestade de baratas a
chover sobre o chão da cozinha, caindo de um painel aberto no teto. Tinha
atingido o filão principal de baratas e provocado a pior infestação que
alguma vez vi a trabalhar para a Ecolab. Não paravam de aparecer. Caíam-
me nos ombros e na cabeça. Eram tantas que o chão parecia mexer-se.
Larguei o pulverizador na cozinha, peguei nas armadilhas pegajosas e saí
a correr porta fora. Precisava de ar fresco e de tempo para pensar como é
que ia desinfestar aquele restaurante. Fui avaliando as opções a caminho do
lixo para deitar fora os ratos mortos, e quando abri a tampa, dei com um
guaxinim furioso a guinchar. Mostrou-me os dentes amarelos e atirou-se a
mim. Fechei logo o caixote do lixo.
Porra! Mesmo. A sério. Que merda vem a ser esta?! Quando é que eu me
ia fartar de uma vez daquela merda? Ia permitir que o meu triste presente se
transformasse num futuro completamente lixado? Quanto tempo mais iria
esperar, quantos mais anos iria desperdiçar, a pensar se havia à minha
espera no mundo um propósito? Eu soube, nesse momento, que se não
fizesse qualquer coisa e começasse a trilhar o caminho do máximo esforço,
ia ficar para sempre naquele inferno mental.
Não voltei ao restaurante. Nem recolhi o equipamento. Entrei na
carrinha, fiz uma paragem para comprar um batido de chocolate – o meu
chá reconfortante daqueles dias –, e fui para casa. Ainda estava escuro. Não
importava. Tirei a roupa de trabalho, vesti umas calças de fato de treino e
apertei os sapatos de corrida. Há mais de um ano que não corria, mas lancei-
me rua fora, pronto a fazer seis quilómetros.
Durei 400 metros. O meu coração estava acelerado. Fiquei tão tonto que
tive de sentar-me à beira do campo de golfe para recuperar o fôlego antes de
caminhar de volta a casa, muito devagar. O batido, já derretido, esperava-
me, para me reconfortar em mais um fracasso. Peguei nele, bebi-o e atirei-
me para cima do sofá. Os meus olhos encheram-se de lágrimas.
Quem raio pensava eu que era? Tinha nascido nada, não tinha
demonstrado nada e ainda não valia nada. David Goggins nos SEAL da
Marinha? Pois, está bem. Que bela ilusão. Eu nem era capaz de correr cinco
minutos seguidos pelo quarteirão. Todos os medos e inseguranças que tinha
acumulado a vida inteira começaram a desabar-me sobre a cabeça. Estava à
beira de desistir – e desistir de uma vez por todas. Foi então que encontrei a
minha velha cassete em VHS de Rocky (já com uns 15 anos), a pus no leitor
e avancei para a minha cena favorita: o décimo quarto assalto.
O Rocky original continua a ser um dos meus filmes favoritos de todos os
tempos, porque é sobre um pugilista assalariado que não sabe nada e vive
na pobreza e sem perspetivas. Nem o próprio treinador quer trabalhar com
ele. E então, do nada, surge uma hipótese de lutar pelo título com o
campeão, Apollo Creed, o pugilista mais temido da história, um homem que
derrotou por KO todos os adversários que se cruzaram no seu caminho.
Rocky só quer ser o primeiro a chegar ao fim do combate com Creed sem
sofrer KO. Isso bastaria para o transformar em alguém de quem se poderia
orgulhar pela primeira vez na vida.
O combate é mais equilibrado, sangrento e intenso do que seria de prever
e, nos assaltos intermédios, Rocky é castigado com uma dureza cada vez
maior. Está claramente a perder, e no décimo quarto assalto é derrubado
logo ao princípio, mas levanta-se imediatamente, a meio do ringue. Apollo
aproxima-se, segue-o como um leão. Desfere uns golpes fortes com a
esquerda, atinge um Rocky lento no jogo de pés com uma combinação
fulminante, aplica um gancho demolidor com a direita, e depois mais um.
Encurrala Rocky num canto. As pernas de Rocky parecem de gelatina. Nem
consegue reunir as forças necessárias para erguer os braços e defender-se.
Apollo lança mais um gancho da direita num dos lados da cabeça de Rocky,
depois um gancho com a esquerda e um impiedoso uppercut com a direita
que derruba o adversário.
Apollo recua até ao canto oposto, com os braços erguidos, mas, já com a
cara encostada ao tapete, Rocky não se rende. Enquanto o árbitro faz a
contagem decrescente, Rocky arrasta-se para as cordas. Mickey, o seu
treinador, pede-lhe que continue caído, mas Rocky não o está a ouvir.
Levanta-se sobre um joelho e, depois, sobre os joelhos e as mãos. O árbitro
chega aos seis quando Rocky agarra as cordas e se levanta. A multidão
enlouquece; Apollo volta-se e vê-o já de pé. Rocky chama-o. Os ombros do
campeão caem num gesto de incredulidade.
O combate ainda não acabou.
Desliguei a televisão e pus-me a pensar na minha própria vida. Era
desprovida de qualquer determinação e paixão, mas sabia que, se
continuasse a ceder ao medo e aos sentimentos de insuficiência, eles
ditariam o meu futuro para sempre. A única outra escolha que tinha era
encontrar a força dentro das emoções que me tinham derrubado, aproveitá-
las e usá-las para me fortalecer e levantar. E foi exatamente isso que fiz.
Deitei o batido no lixo, apertei os sapatos e saí para a rua outra vez. Na
primeira saída a correr tinha sentido dores fortes nas pernas e nos pulmões
ao fim de quatrocentos metros. O coração acelerou muito e parei. Voltei a
sentir essa dor e o coração disparou como o motor de um automóvel em
sobreaquecimento, mas continuei a correr e a dor atenuou-se. Tinha corrido
mais de um quilómetro e meio quando me dobrei para recuperar o fôlego.
Foi então que dei conta, pela primeira vez, de que nem todas as
limitações físicas e mentais são reais, e que eu tinha o hábito de desistir
demasiado cedo. Sabia também que precisaria de cada grama de coragem e
dureza que pudesse reunir para atingir o impossível. Tinha pela frente horas,
dias e semanas inteiras de sofrimento ininterrupto. Teria de levar-me ao
limite absoluto da minha condição mortal. Tinha de aceitar a possibilidade
muito real de poder morrer porque desta vez não iria desistir, por muito
acelerado que o meu coração ficasse e por muita dor que sentisse. O
problema era que eu não tinha um plano de batalha para seguir, não tinha
um manual. Tinha de criar um a partir do zero.
Um dia normal era mais ou menos assim: Acordava às 4h30, mastigava
uma banana e abria os livros dos exames ASVAB. Às cinco, levava o livro
para a bicicleta fixa, onde transpirava e estudava durante duas horas. É
preciso não esquecer que o meu corpo estava um desastre. Ainda não era
capaz de correr muitos quilómetros seguidos, por isso tinha de queimar o
máximo de calorias possível na bicicleta. Depois disso, conduzia até ao
liceu de Carmel e saltava para a piscina para duas horas de treino. A seguir,
ia para o ginásio, para um circuito de exercícios que incluía máquinas de
musculação para o peito e para as pernas e muitos exercícios de pernas. A
massa corporal era o inimigo. Precisava de muitas repetições e fazia cinco
ou seis séries de 100 a 200 repetições cada. Depois, regressava à bicicleta
fixa para mais duas horas de exercício.
Andava sempre com fome. O jantar era a única refeição a sério que fazia,
mas não incluía muita coisa. Comia um peito de frango grelhado e legumes
salteados com uma concha de arroz. A seguir ao jantar, fazia mais duas
horas de bicicleta, ia para a cama, acordava e repetia tudo outra vez,
sabendo que as probabilidades contra mim eram quase infinitas. O que eu
procurava fazer era o mesmo que um estudante medíocre tentar entrar em
Harvard ou alguém chegar a um casino, apostar todas as fichas num número
na roleta e agir como se o êxito fosse a conclusão inevitável. Eu apostava
em mim tudo o que tinha, e sem quaisquer garantias.
Pesava-me duas vezes por dia e, ao fim de duas semanas, tinha perdido
cerca de 11 quilos. O progresso acentuou-se com o exercício árduo contínuo
e o peso começou a desaparecer como que por camadas. Dez dias depois,
estava com 114 quilos, suficientemente leve para começar a fazer flexões,
abdominais e a correr como um louco. Continuava a acordar, a ir para a
bicicleta fixa, para a piscina e para o ginásio, mas juntava a tudo isto saídas
a correr de três, cinco e até seis quilómetros e meio. Deitei fora os ténis e
comprei um par de Bates Lites, as botas que os candidatos a SEAL usam
nas provas BUD/S. Comecei a correr com elas.
Com tanto esforço, poderá pensar que as minhas noites eram de muito
descanso, mas a verdade é que estavam cheias de ansiedade. O estômago
fazia barulhos e a cabeça dava voltas. Sonhava com perguntas complicadas
nas provas ASVAB e temia o treino do dia seguinte. Estava a dar tanto, e
quase sem energia, que a depressão se tornou um efeito colateral natural. O
meu casamento desfeito ia a caminho do divórcio. A minha mulher disse-me
com toda a clareza que ela e a filha não se mudariam comigo para San
Diego se, por algum milagre, eu conseguisse o que queria. Elas passavam a
maior parte do tempo em Brazil, e eu, sozinho em Carmel, vivia numa
grande agitação. Sentia-me inútil e desamparado, enquanto a minha corrente
contínua de pensamentos derrotistas ia ganhando força.
Quando a depressão nos asfixia, extingue toda a luz e deixa-nos sem
nada a que nos agarrar como esperança. Tudo o que está à volta é negativo.
Para mim, a única maneira de conseguir chegar ao meu objetivo era
alimentar-me da depressão. Tinha de dar-lhe a volta e convencer-me de que
toda essa dúvida e ansiedade eram a confirmação de que já não vivia sem
um rumo. Talvez a minha tarefa se revelasse impossível, mas pelo menos
estava outra vez de volta a uma maldita missão.
Houve noites em que me sentia deprimido e telefonei a Schaljo. Ele
estava sempre no escritório de manhã cedo e tarde, à noite. Não lhe contei
sobre a depressão, porque não quis que tivesse dúvidas sobre mim. Usei
esses telefonemas para me animar. Dizia-lhe quantos quilos tinha perdido e
a carga horária que fazia e ele lembrava-me de continuar a estudar para as
provas ASVAB.
Entendido.
Tinha gravada numa cassete a banda sonora de Rocky e encontrava
motivação na música «Going the Distance». Nos longos treinos de bicicleta
e corrida, com os instrumentos de sopro a ecoarem-me na cabeça,
imaginava-me a fazer o treino BUD/S, a mergulhar em águas geladas e a
superar a Semana Infernal. Eu ansiava, eu esperava, mas quando consegui
chegar aos 114 quilos, a minha missão de conseguir entrar nos SEAL já não
era uma fantasia. Tinha uma boa possibilidade de conseguir qualquer coisa
que a maioria das pessoas, eu incluído, julgava impossível. Ainda assim,
continuavam a ser dias maus. Uma manhã, não muito depois de ter caído
para os 114 quilos, pesei-me e só tinha perdido meio quilo em relação à
véspera. Não pensei em mais nada enquanto corri dez quilómetros e nadei
dois mil metros. Cheguei exausto e dorido ao ginásio, para a rotina habitual
de três horas.
Depois de fazer mais de cem flexões em várias séries, regressei à barra
para uma série de repetições. Era até não conseguir. No princípio, o meu
objetivo era chegar às 12, mas à décima, quando ergui o queixo acima da
barra, as minhas mãos já queimavam. Ao longo de semanas, tinha estado
sempre presente a tentação de baixar a meta, e recusei sempre. Nesse dia,
contudo, a dor foi demasiada e, ao fim da décima primeira elevação, desisti,
soltei-me e acabei o treino – a uma elevação do objetivo.
Essa elevação a menos ficou comigo – tal como o meio quilo. Tentei
afastá-los da minha mente, mas não me largavam. Perseguiram-me no
caminho para casa e quando estava à mesa da cozinha, a comer um pedaço
de frango grelhado e uma batata no forno sem sabor. Sabia que, nessa noite,
não conseguiria dormir a menos que fizesse alguma coisa, por isso peguei
nas chaves do carro.
“Se te meteres por atalhos, não vais lá chegar”, disse para mim mesmo,
em voz alta, a caminho do ginásio. “Para ti, não há atalhos, Goggins!”
Repeti na totalidade o conjunto de exercícios. Uma elevação falhada
custou-me outras 250 – e episódios semelhantes voltariam a acontecer. Se
falhava uma saída para correr ou encurtava um treino na piscina, por estar
com fome ou cansado, acabava sempre por regressar e fazer um exercício
ainda mais intenso. Era a única maneira de controlar os demónios à solta na
minha mente. De uma forma ou de outra, haveria sofrimento. Tinha de
escolher entre o sofrimento físico no momento e a angústia mental de ficar a
pensar se essa elevação falhada, a última volta por fazer na piscina, os 400
metros não percorridos na estrada ou na pista, não acabariam por me custar
a oportunidade de uma vida. Era uma escolha fácil. E, tratando-se dos
SEAL, eu não ia deixar nada à sorte.
Na véspera das provas ASVAB, a quatro semanas do início do treino,
estar dentro do peso já não era uma preocupação. Já tinha descido para 98
quilos e nunca fora tão rápido e tão forte. Corria dez quilómetros por dia,
fazia mais de 32 quilómetros de bicicleta e nadava mais de três. Tudo isso
nos dias mais frios do inverno. O meu lugar favorito para correr era a pista
de Monon, um troço asfaltado de dez quilómetros, rodeado por árvores, em
Indianápolis. Era o reino de ciclistas, mães dos subúrbios a correr e a
empurrar carrinhos de bebé, guerreiros de fim de semana e seniores. Schaljo
já me tinha passado a ordem de ação dos SEAL da Marinha. Incluía todos
os exercícios que era esperado que eu realizasse na primeira fase das provas
BUD/S – e eu fiquei feliz por ser capaz de os fazer a dobrar. Sabia que, em
geral, se qualificam para um treino SEAL típico cerca de 190 homens e que
só quarenta vão até ao fim. Eu não queria ser apenas um dos quarenta.
Queria ser o melhor.
Mas primeiro tinha de passar a maldita série de provas ASVAB. Usara
cada segundo livre para estudar intensamente. Quando não estava a fazer
exercício, sentava-me à mesa da cozinha, a memorizar fórmulas e a passar
em revista centenas de palavras de vocabulário. Com o meu treino físico a
correr bem, toda a minha ansiedade se concentrava nas ASVAB, como se
fosse um clipe atraído por um íman. Esta seria a minha derradeira hipótese
de passar na prova antes de expirar a minha elegibilidade para os SEAL. Eu
não era muito esperto e, com base no meu desempenho académico passado,
não havia nenhuma boa razão para acreditar que fosse capaz de passar com
uma nota suficientemente elevada para entrar. Se falhasse, o sonho morreria
e ver-me-ia outra vez à deriva e sem propósito.
O teste foi realizado numa pequena sala de aulas, no Forte Benjamin
Harrison, em Indianápolis. Éramos cerca de trinta, e todos jovens. A maioria
tinha acabado de sair do liceu. Cada um ficou com um computador já
antigo. No mês anterior, o teste passara a ser digital e eu não tinha
experiência com computadores. Pensei que nem sequer seria capaz de
funcionar com a maldita máquina, quanto mais responder às perguntas, mas
o programa revelou ser à prova de idiotas e eu até me senti à vontade.
As provas têm dez secções e eu fui avançando com bastante facilidade,
até que cheguei a Compreensão Mecânica, que para mim funcionava como
soro da verdade. Em breve, teria uma ideia razoável sobre se tinha estado a
mentir a mim mesmo ou se tinha o que era preciso para me tornar um
SEAL. Sempre que me aparecia uma pergunta para a qual não tinha
resposta, fazia um risco na folha de teste. Essa secção tinha cerca de trinta
perguntas e respondera ao acaso pelo menos a umas dez. Precisava que
algumas estivessem certas ou não passaria.
Depois de completar a seção final, o programa deu-me a indicação para
enviar o teste para o computador do administrador, que estava ao fundo da
sala e que faria uma classificação instantânea. Espreitei por cima do ecrã e
vi-o lá sentado, à espera. Apontei com o cursor, fiz clique e saí da sala.
Cheio de uma energia nervosa, caminhei em passos rápidos pelo parque de
estacionamento durante uns minutos, antes me sentar no meu Honda
Accord, mas não pus o motor a funcionar. Não era capaz de me ir embora.
Fiquei sentado ao volante uns 15 minutos, com o olhar perdido. Iam
passar pelo menos dois dias até Schaljo me telefonar a dizer os resultados,
mas a resposta ao enigma que era o meu futuro já estava resolvida. Eu sabia
exatamente onde me encontrava e precisava de saber a verdade. Compus-
me, voltei a entrar na sala e aproximei-me do adivinho que me revelaria o
futuro.
“Meu, tens de me dizer quanto é que tive neste teste”, disse-lhe. Ele
olhou para mim, surpreendido, mas não cedeu.
“Tenho pena, filho. O Governo é assim. Há um sistema para fazer as
coisas”, respondeu. “Não fui eu que fiz as regras e não as posso quebrar.”
“Mas o senhor não faz ideia do que este exame representa para mim, para
a minha vida. É tudo!” Ele olhou para os meus olhos vítreos durante o que
pareceram ser cinco minutos e, a seguir, voltou-se para o computador.
“Olha, estou a ignorar todas as regras do manual”, disse. “Goggins,
certo?” Eu fiz que sim e pus-me atrás dele, que ia passando ficheiros. “Aí
estás tu. Parabéns, tiveste 65. É um grande resultado.” Ele referia-se ao
resultado geral, mas não era isso que eu queria. Tudo dependia de eu ter
conseguido uma pontuação de 50 onde importava mais.
“Quanto é que tive em Compreensão Mecânica?” Ele encolheu os
ombros, fez clique e deslizou para baixo. Lá estava. O meu novo número
favorito brilhou no ecrã: 50.
“SIM!”, gritei. “SIM! SIM!”
Ainda havia uma meia dúzia a fazer o teste, mas este era o momento
mais feliz da minha vida e não consegui conter-me. Continuei a gritar
“SIM!” a plenos pulmões. O responsável por vigiar o teste quase caiu da
cadeira e os tipos que estavam na sala olharam para mim como se eu fosse
louco. Se soubessem como eu tinha estado realmente louco! Durante dois
meses, dedicara toda a minha existência a este momento específico e não ia
prescindir de desfrutar dele. Corri para o carro e gritei ainda mais.
“PORRA! SIM!!”
Telefonei à minha mãe a caminho de casa. Além de Schaljo, ela era a
única pessoa a testemunhar a minha metamorfose. “Consegui”, disse-lhe,
com lágrimas nos olhos. “Porra, consegui! Vou ser um SEAL.”
Quando Schaljo foi trabalhar, no dia seguinte, soube a notícia e
telefonou-me. Tinha enviado o meu pacote de recrutamento e tinha acabado
de saber que eu tinha entrado! Percebi na sua voz que estava feliz por mim e
que tinha orgulho por se ter concretizado aquilo que tinha visto em mim na
primeira vez que nos cruzámos.
Mas nem tudo foi cor-de-rosa. A minha mulher tinha-me apresentado um
ultimato implícito e agora era preciso tomar uma decisão. Continuar casado
e abandonar a oportunidade pela qual tinha trabalhado tanto ou divorciar-me
e procurar tornar-me um SEAL. No fim, a minha escolha não teve nada a
ver com os meus sentimentos pela Pam ou pelo pai dela. Já agora, ele tinha-
me pedido desculpa. Era sobre quem eu era e quem queria ser. Eu era um
prisioneiro dentro da minha própria mente e esta oportunidade era a minha
única hipótese de me libertar.
Celebrei o meu triunfo da maneira que qualquer candidato a SEAL devia
fazer: trabalhando mais arduamente do que nunca. Na manhã seguinte, e ao
longo de três semanas, fui para a piscina com um peso de oito quilos
amarrado à cintura. Nadei debaixo de água cinquenta metros de cada vez e
caminhei debaixo de água a todo o comprimento da piscina, com um tijolo
em cada mão, respirando apenas uma vez. Desta vez, a puta da água não ia
vencer-me.
No fim, nadava um quilómetro ou dois e, depois, ia para um tanque perto
de casa da minha mãe. É preciso recordar que estávamos no Indiana e era
dezembro. Os ramos das árvores estavam despidos. Havia gotículas de gelo
pendentes dos telhados e a neve cobria tudo, para onde quer que se olhasse,
mas o tanque ainda não gelara completamente. Metia-me na água gelada,
vestido com calças de camuflado, uma t-shirt castanha e botas, punha-me a
flutuar de costas e olhava para o céu cinzento. A água gelada cobria-me, a
dor era muito aguda – e, porra, eu adorava! Ao fim de uns minutos, saía e
começava a correr, com jorros de água a sair das botas e areia na roupa
interior. Ao fim de uns segundos, a t-shirt estava gelada e colada ao peito e
as minhas calças também pareciam ter as bainhas feitas de gelo.
A seguir, ia para o percurso de Monon. Saía-me vapor das narinas e da
boca enquanto eu grunhia e ia evitando pessoas que corriam e caminhavam.
Elas viravam a cabeça para me verem quando eu ganhava velocidade e
começava a sprintar, como se fosse o Rocky na baixa de Filadélfia. Corria o
mais depressa que conseguia durante o máximo tempo que era capaz. Corria
de um passado que já não me definia para um futuro indeterminado. Só
sabia que haveria dor – e que haveria um propósito.
E que eu estava pronto.
DESAFIO #3
O primeiro passo na jornada a caminho de uma mente resistente é sair de
forma regular da zona de conforto. Volte a pegar no diário e escreva todas as
coisas de que não gosta ou que o deixam desconfortável. Em especial
aquelas que sabe que são boas para si.
Agora, vá fazer uma delas – e repita.
Nas páginas seguintes, vou pedir-lhe que imite, até certo ponto, o que
acabou de ler, mas não tem de encontrar a sua própria tarefa impossível e
chegar lá por um caminho rápido. Não se trata de mudar a sua vida de forma
instantânea, mas sim de avançar pouco a pouco e de tornar as mudanças
sustentadas. Isso significa ir ao nível microscópico e fazer todos os dias
uma coisa que não dá qualquer prazer. Pode ser tão simples como fazer a
cama, lavar a loiça, passar a ferro ou sair de cama de madrugada para correr
seis quilómetros. A partir do momento em que isso se torna uma tarefa
realizada com conforto, passa-se para oito quilómetros – ou para dez. Se já
faz estas coisas, encontre outras tarefas. Nas nossas vidas, todos temos áreas
que ignoramos ou em que podemos melhorar. Encontre as suas. Muitas
vezes, escolhemos focar-nos nas nossas forças e não nas nossas fraquezas.
Aproveite a ocasião para transformar as suas fraquezas nas suas forças.
Fazer coisas que o deixam desconfortável, por pequenas que sejam, vai
torná-lo mais forte. Quantas mais vezes ficar desconfortável, mais forte se
tornará, e, em breve, desenvolverá um diálogo mais produtivo e dinâmico
consigo em situações de stresse.
Faça uma fotografia ou um vídeo de si fora da sua zona de conforto,
coloque-o nas redes sociais a descrever o que está a fazer e porquê, e não se
esqueça de incluir as hashtags #discomfortzone #pathofmostresistance
#canthurtme #impossibletask.
CAPÍTULO QUATRO

CONQUISTAR ALMAS
A primeira granada de atordoamento explodiu a curta distância – e, a partir
daí, passou-se tudo em câmara lenta. Um minuto antes, estávamos na sala
comum, a dizer disparates, a ver filmes de guerra e a preparar-nos para a
batalha que sabíamos próxima. Essa primeira explosão levou a outra – e, de
repente, o Pete Psicopata, como lhe chamávamos, estava à nossa frente, a
gritar com toda a força, com as bochechas vermelhas como maçãs e aquela
veia na têmpora direita a pulsar. Quando ele gritava, os olhos pareciam
saltar e todo o corpo tremia.
“Toca! A! Sair! Daqui! Porra! Vão! Vão! Vão!”
Os meus companheiros de tripulação e eu pusemo-nos a correr para a
porta, em fila, tal como tínhamos planeado. Lá fora, no escuro, SEAL da
Marinha disparavam as suas M60 contra um inimigo invisível. Era o sonho
mau que todos tínhamos aguardado a vida inteira: o pesadelo lúcido que nos
definiria ou mataria. O impulso que tínhamos era para nos lançarmos para o
chão, mas, naquele momento, a única opção era estar em movimento.
O ruído repetitivo, grave e profundo do fogo das metralhadoras
penetrava-nos até às entranhas, e o halo cor de laranja de uma outra
explosão próxima aplicava um choque de beleza violenta. Os nossos
corações batiam como um martelo pneumático, enquanto nos juntávamos na
área conhecida como Trituradora, o pátio asfaltado principal, à espera de
ordens. Isto era uma guerra, mas não seria travada em nenhuma terra
estrangeira. Esta, como a maior parte das batalhas da nossa vida, seria
ganha ou perdida nas nossas mentes.
O Pete Psicopata caminhava pesadamente sobre o asfalto esburacado,
com a boca da espingarda a fumegar no nevoeiro da noite. “Bem-vindos à
Semana Infernal, meus senhores”, disse, desta vez calmamente, com a sua
pronúncia arrastada de surfista da Califórnia. Olhou-nos de cima a baixo
como um predador a avaliar a presa. “Vai ser um grande prazer para mim
vê-los a sofrer.”
Pois – e ia mesmo haver sofrimento. O Pete Psicopata marcava o ritmo,
decidia a quantidade de elevações, flexões, abdominais, exercícios de
pernas, saltos e flexões em mergulho. Entretanto, ele e os seus
companheiros instrutores atiravam-nos água gelada com uma mangueira,
sempre a rir à gargalhada. Havia sucessivas repetições de exercícios, série
após série, sem fim à vista.
Os meus companheiros e eu estávamos próximos uns dos outros, cada
um imóvel sobre marcas de pernas de rã impressas no solo, vigiados pela
estátua do nosso santo padroeiro: o Homem Rã, uma criatura extraterrestre
assustadora vinda das profundezas, que tinha mãos e pés como os de uma
rã, garras afiadas, e um cabrão de um abdómen musculado. Desde aquela
manhã em que regressara a casa depois da última noite a caçar baratas e
entrara no turbilhão de querer entrar nos SEAL, era exatamente aqui que eu
queria estar. Na Trituradora: uma área de asfalto carregada de história – e de
sofrimento.
O treino básico de demolição submarina, BUD/S, dura seis meses e está
dividido em três fases. A Primeira Fase é integralmente dedicada a treino
físico. A Segunda consta de treino de mergulho, em que aprendemos coisas
como orientação debaixo de água e utilização de sistemas de mergulho
discretos, em circuito fechado, que não emitem bolhas e reciclam o dióxido
de carbono em ar respirável. A Terceira Fase é treino para combate terrestre.
Mas a maioria das pessoas que pensa no treino BUD/S imagina apenas a
Primeira Fase, porque são as semanas em que os novos recrutas passam pela
Trituradora, até o contingente de cerca de 120 tipos ficar reduzido à dura e
reluzente coluna vertebral dos 35 a quarenta homens mais merecedores do
tridente – o emblema que diz ao mundo que é melhor não se meter
connosco.
Os instrutores BUD/S conseguem isto trabalhando os recrutas de modo a
ultrapassarem os seus limites percetíveis, desafiando a sua masculinidade e
insistindo em padrões físicos objetivos de força, resistência e agilidade.
Padrões esses que são testados. Nessas primeiras três semanas de treino,
tivemos de, entre outras coisas, trepar por uma corda vertical de dez metros,
percorrer em menos de dez minutos uma pista de obstáculos de um
quilómetro, repleta de desafios tipo America Ninja Warrior, e correr na areia
6,5 quilómetros em menos de 32 minutos. Mas, se me perguntar, eu dir-lhe-
ei que isso tudo foi uma brincadeira de crianças. Não tem sequer
comparação com o teste crucial da Primeira Fase.
A Semana Infernal é outra coisa completamente diferente. É medieval e
surge-nos de repente, apenas na terceira semana de treino. É quando a dor
pungente nos músculos está sempre a aumentar e vivemos dia e noite com
uma sensação inquietante de hiperventilação, em que o ritmo da respiração
se torna maior do que o ritmo físico, em que os pulmões insuflam e
esvaziam como sacos de lona apertados com força pelos punhos de um
demónio, durante 130 horas seguidas. Esse é um teste que vai muito para lá
do físico e revela o coração e o caráter. Mais do que tudo, revela a
mentalidade – e, aliás, é precisamente para isso que foi concebida.
Tudo isto se passava no Centro de Comando Naval de Guerra Especial,
na imaculada ilha Coronado, uma armadilha para turistas no sul da
Califórnia, que fica em frente do elegante cabo Loma e protege a marina de
San Diego das águas do oceano Pacífico. Mas até o sol dourado da
Califórnia não era capaz de embelezar a Trituradora – e graças a Deus. Eu
gostava que as coisas fossem feias. Essa fatia de sofrimento era tudo o que
eu sempre desejara. Não porque adorasse sofrer, mas porque precisava de
saber se tinha ou não dentro de mim o que era necessário para ali continuar.
A questão é que a maior parte das pessoas não tem.
Quando a Semana Infernal começou, pelo menos quarenta tipos já
tinham desistido – e cada um deles teve de caminhar até à sineta, tocá-la
três vezes e, a seguir, depositar no alcatrão o seu capacete. O toque da sineta
surgiu pela primeira vez na era da guerra do Vietname, porque muitos
jovens desistiam durante os exercícios e se iam simplesmente embora para a
caserna. A sineta era uma maneira de saber onde estavam os recrutas, mas,
desde então, tornou-se um ritual que é preciso cumprir para sublinhar que se
está a desistir. Para quem desiste, a sineta representa o fecho. Para mim,
cada toque soava a avanço.
Nunca gostei muito do Psicopata, mas não podia objetar aos pormenores
do seu trabalho. Ele e os outros instrutores tinham a missão de reduzir a
manada. Além disso, ele não perseguia os mais fracos. Metia-se muito
comigo e também com tipos maiores do que eu. Até os mais pequenos eram
grandes bisarmas. Eu era só um entre um conjunto de machos alfa do Leste
e do Sul dos Estados Unidos, das praias da Califórnia, tanto as de classe
operária como as endinheiradas; havia alguns dos campos de cereal, como
eu, e muitos das pastagens texanas. Em todos os cursos BUD/S há uns
quantos cabrões texanos, fortes, rudes e rurais. Não há estado de onde saiam
mais SEAL. Deve ser qualquer coisa naqueles churrascos. O Psicopata não
tinha favoritos. Fôssemos de onde fôssemos, ou quem fôssemos, ele pairava
sobre nós como uma sombra impossível de afastar. Às gargalhadas, aos
gritos ou a provocar-nos em silêncio, na nossa cara, tentando infiltrar-se na
mente de qualquer homem que procurasse quebrar.
Apesar de tudo isso, a primeira hora da Semana Infernal foi realmente
divertida. No meio daquela loucura de explosões, tiros e gritos, nem se tem
a noção do pesadelo que aí vem. Há uma alta de adrenalina, por sabermos
que se está a cumprir uma iniciação na sagrada tradição do guerreiro. Na
Trituradora, os recrutas olham em volta, muito emocionados, a pensar:
“Sim, cabrões, estamos na Semana Infernal!” Pois, mas a realidade tem um
jeito de, mais tarde ou mais cedo, te aplicar um pontapé na boca.
“É a isto que vocês chamam dar tudo?”, perguntou o Pete Psicopata, sem
falar para ninguém em especial. “Este pode muito bem ser o grupo mais
patético que já passou por este programa. Vocês não param de se
envergonhar.”
Ele adorava esta parte do trabalho. Passar por cima e pelo meio de nós,
deixando a marca das solas das botas nas poças do nosso suor, saliva, ranho,
lágrimas – e sangue. Ele pensava que era forte. Todos os instrutores
pensavam – e eram, porque eram SEAL. Isso bastava para os colocar num
patamar invulgar. “Vocês nem serviam para segurar no meu protetor dos
tomates na minha Semana Infernal, é só o que vos digo.”
Sorri interiormente e continuei os exercícios enquanto o Pete passava por
perto. Tinha a compleição de um defesa de futebol americano, rápido e
forte, mas será que tinha sido uma máquina letal como o catano na sua
Semana Infernal? Senhor, tenho muitas dúvidas dessa merda, senhor!
Ele olhou para o seu superior, o oficial ao comando da Primeira Fase.
Sobre este, não havia dúvidas. Não falava grande coisa – e não precisava.
Tinha 1,85 metros, mas a sombra que projetava era bem maior do que isso.
Também era um tipo musculado. Estou a falar de uns cento e poucos quilos
de músculo tenso como aço e zero gramas de simpatia. Parecia um gorila de
lombo prateado e era por isso que lhe chamavam SBG [sigla de silverback
gorila, em inglês]. Pairava sobre tudo como uma espécie de Padrinho da
dor, a fazer cálculos silenciosos, a tomar notas mentais.
Pete Psicopata voltou-se para ele: “Senhor, estou a ficar com a piça rija
só de pensar nestas vaginas abertas a chorarem e a desistirem esta semana
como putefiazinhas choramingas.” O SBG respondeu-lhe com um ligeiro
movimento de cabeça, enquanto o Pete olhava para mim. “Olha, e tu vais
desistir”, disse-me muito suavemente. “Eu vou encarregar-me disso.”
As ameaças do Pete eram mais assustadoras quando ele as fazia desta
forma, num tom tranquilo, mas, muitas vezes, os seus olhos pareciam
escurecer, o cenho franzia-se, o sangue afluía-lhe à cara, e ele lançava um
grito que lhe saía da ponta dos dedos dos pés e ia até ao cimo da sua cabeça
careca. Uma hora depois de a Semana Infernal ter começado, pôs-se de
joelhos, ficou com a cara a uns centímetros da minha, enquanto eu acabava
mais uma série de flexões, e deu um desses gritos:
“Todos a correr para as ondas, seus grandes cagalhões!”
Já estávamos há quase três semanas no treino BUD/S e várias vezes
tínhamos feito corridas a subir e a descer a encosta de quatro metros e meio
de altura que separava a praia do grande conjunto de edifícios em cimento
onde se encontravam os escritórios, os balneários, as casernas e as salas de
aula do programa. Em geral, deitávamo-nos em águas pouco profundas,
completamente vestidos, e depois rolávamos pela areia – até ficarmos
cobertos de areia da cabeça aos pés –, antes de voltar à Trituradora, a pingar
água salgada e areia, o que aumentava o grau de dificuldade quando
chegávamos à barra de elevações. Este ritual tinha um nome: “molhado e
areado”, e eles queriam que ficássemos com areia nos ouvidos, no nariz e
em todos os orifícios do corpo. Mas, desta vez, íamos experimentar outra
coisa, a tortura das ondas, que é uma animalidade muito especial.
Como nos indicaram, corremos para as ondas a gritar como mestres
sensei de artes marciais. Completamente vestidos, de braços dados,
descemos até à zona de rebentação. Nessa noite sem luar, a maré estava alta,
quase à altura da cabeça, e as ondas eram trovões rolantes que caíam em
conjuntos de três ou quatro seguidas. Quando elas nos batiam, a água fria
encolhia os tomates e os pulmões ficavam sem fôlego.
Estávamos no início de maio e, na primavera, a água em Coronado anda
entre os 15 e os 17 graus. Como se fôssemos um só corpo, saltávamos para
cima e para baixo; éramos uma espécie de colar de pérolas de cabeças
flutuantes a perscrutar o horizonte à procura de uma onda, rezando para que
a víssemos antes que ela chegasse de surpresa e nos levasse para o fundo.
Os surfistas do grupo eram os primeiros a detetar esse momento fatal e
gritavam a avisar, para podermos mergulhar a tempo. Ao fim de mais ou
menos dez minutos, o Psicopata mandou-nos regressar a terra. À beira da
hipotermia, saímos da zona de rebentação e ficámos em sentido, enquanto o
médico via se existiam realmente sinais de hipotermia. Esse ciclo
continuaria a repetir-se. O céu foi-se tingindo de laranja e vermelho. A
temperatura caiu bastante enquanto a noite se aproximava.
“Meus senhores, despeçam-se do Sol”, disse o SBG. Até nos fez acenar
para o Sol que se punha. Um reconhecimento simbólico de uma verdade
inconveniente. Estávamos prestes a ficar com o cu congelado.
Passada uma hora, regressámos à formação de tripulação de barco, seis
homens apertados uns contra os outros, com as pilas coladas aos traseiros,
para nos mantermos quentes, mas era em vão. Ouviam-se ossos a bater de
frio em toda a praia. Tremíamos como martelos pneumáticos e fungávamos,
uma condição física que era reveladora do estado desgraçado das nossas
mentes a estilhaçarem-se; só agora tínhamos a noção de que esta merda
estava apenas a começar.
Até nos dias mais difíceis da Primeira Fase, antes da Semana Infernal,
quando o simples volume de flexões, subidas à corda, abdominais e
exercícios de pernas nos esmaga o espírito, é sempre possível encontrar uma
saída. Porque se sabe que, por muito terrível que tudo seja, se vai para casa
nessa noite, se janta com uns amigos, se vê um filme, talvez haja sexo e a
nossa cama espera por nós. Ou seja, até no mais miserável dos dias,
podemos focar-nos numa fuga ao inferno que é autêntica.
A Semana Infernal não permite nada disso. Em especial no primeiro dia,
quando ao fim de uma hora nos têm de pé, de braços dados, a olhar para o
oceano Pacífico e a entrar e a sair do mar repetidamente. Nos intervalos,
para aquecer, faziam-nos o obséquio de nos pôr a correr na areia. Em geral,
punham-nos a carregar à cabeça o barco insuflável rígido, ou então um
tronco, mas o conforto do calor, se alguma vez chegava, era sempre de
pouca dura, porque ao fim de dez minutos já nos estavam a mandar outra
vez para a água.
O relógio andou muito lentamente nessa primeira noite, enquanto o frio
se infiltrava em nós, colonizando a nossa medula de uma forma tão total
que as corridas deixaram de fazer qualquer bem. Já não haveria mais
bombas, nem mais tiros, e muito poucos gritos. Em vez disso, alastrava um
inquietante silêncio, que nos mortificava o espírito. No oceano, não
ouvíamos mais do que as ondas a desabar sobre nós, com a água que
engolíamos por acidente a dar-nos voltas no estômago, e os dentes a bater.
Com tanto frio e tanto stresse, a mente é incapaz de processar as 120 e tal
horas seguintes. Cinco dias e meio sem dormir não podem dividir-se em
pequenas partes. Não há maneira de lidar com a situação de uma forma
sistemática e, por isso, todos aqueles que já tentaram entrar para os SEAL
fizeram a si próprios uma pergunta muito simples enquanto passavam pela
primeira fase de “tortura das ondas”:
“Porque é que estou aqui?”
Estas palavras inócuas fervilhavam nas nossas mentes em turbilhão de
cada vez que éramos engolidos por uma onda gigante por volta da meia-
noite, quando já estávamos à beira da hipotermia. Porque a verdade é que
ninguém tem de ser SEAL. Porra, não tínhamos sido recrutados à força. Ser
um SEAL é uma escolha. E aquilo que essa pergunta simples revelava, no
calor da batalha, era que cada segundo que continuávamos no treino era
também uma decisão pessoal, o que fazia parecer masoquismo puro toda a
noção de querer ser um SEAL. É uma tortura voluntária. O que, para uma
mente racional, não faz qualquer sentido. É por isso que a pergunta deita
abaixo tantos homens.
Claro que os instrutores sabem isto tudo – e é por isso que, ao fim de
pouco tempo, deixam de gritar. Em vez disso, à medida que a noite
avançava, o Pete Psicopata passou a reconfortar-nos como se fosse um
irmão mais velho. Oferecia-nos uma sopa quente, um duche quente,
cobertores e boleia para regressar à caserna. Era o isco que lançava para
atrair os desistentes – e ia fazendo uma colheita de capacetes, à esquerda e à
direita. Estava a conquistar as almas daqueles que cediam por não serem
capazes de responder a essa pergunta simples. Eu percebo. Quando ainda é
só domingo e se sabe o muito que ainda falta para sexta-feira, e quando
nunca se sentiu tanto frio, é-se tentado a acreditar que não se aguenta – e
que ninguém vai aguentar. Os tipos casados punham-se a pensar “Podia
estar tão bem em casa, enroscado na minha linda mulher, em vez de estar a
tremer e a sofrer.” Os solteiros pensavam “Bem que podia estar agora atrás
de alguma miúda para a levar para cama.”
Essa espécie de atração luminosa é difícil de ignorar, mas eu vivia pela
segunda vez as primeiras etapas das provas BUD/S. Na Classe 230, já tinha
provado a maldade da Semana Infernal. Não consegui, mas não tinha
desistido. Fui afastado por motivos médicos, depois de contrair uma
pneumonia dupla. Desafiei três vezes as ordens do médico e procurei
manter-me na luta, mas acabaram por mandar-me para a caserna e fizeram-
me regressar ao primeiro dia da primeira semana da Classe 231.
Ainda não recuperara completamente dessa pneumonia quando começou
a segunda classe das BUD/S. Ainda tinha os pulmões cheios de muco e,
cada vez que tossia, o peito estremecia e parecia que havia qualquer coisa a
raspar o interior dos pulmões. Ainda assim, considerava que, desta vez,
tinha mais possibilidades, por estar preparado e por ter por companheiros
uns tipos que eram uns cabrões mesmo rijos.
No treino BUD/S, as tripulações são selecionadas por altura, porque na
Semana Infernal são esses tipos que nos vão ajudar a carregar o barco para
onde quer que vamos. Mas só o tamanho não garantia que os companheiros
fossem duros; os meus eram um bando de inadaptados e tipos estranhos.
Havia eu, o exterminador de pragas que precisara de perder 45 quilos e
fazer o exame ASVAB duas vezes só para entrar no treino SEAL e ser
devolvido à estaca zero quase imediatamente. Tínhamos também o falecido
Chris Kyle. É conhecido como o mais letal atirador furtivo na história da
Marinha. Teve tanto êxito que os hajjis em Fallujah, no Iraque, ofereceram
uma recompensa de oitenta mil dólares pela sua cabeça e tornou-se uma
lenda viva entre os marines que protegeu enquanto membro da Equipa Seal
Três. Ganhou uma medalha Estrela de Prata e quatro Estrelas de Bronze por
valentia, deixou as forças armadas e escreveu um livro, Sniper Americano,
que deu um filme de grande sucesso, com o cabrão do Bradley Cooper no
papel principal. Mas então ele não passava de um simples cowboy de rodeos
texano que mal pronunciava uma palavra.
Havia também o Bill Brown, aliás Brown, o Freak [Anormal]. A maior
parte das pessoas só o tratava por Freak – coisa que ele odiava, porque lhe
tinham chamado isso a vida inteira. Ele era, de muitas maneiras, a versão
branca de David Goggins. Cresceu em povoações ribeirinhas do sul de
Jersey e foi aí que aprendeu a ser duro. Os miúdos mais velhos faziam
pouco dele por causa da fenda palatina na boca ou porque não era muito
esperto nas aulas – e a alcunha começou aí. Meteu-se em tantas zaragatas
por causa disso que acabou por ser mandado seis meses para um centro de
detenção juvenil. Com 19 anos, já ganhava a vida sozinho, procurando
safar-se como empregado de uma estação de gasolina. Não estava a resultar.
Não tinha nem um casaco nem um automóvel. Ia para todo o lado numa
bicicleta ferrugenta de dez velocidades e andava literalmente com os
tomates gelados. Um dia, ao sair do trabalho, entrou num gabinete de
recrutamento da Marinha porque sabia que precisava de uma estrutura e de
um propósito – e também de roupa para o frio. Falaram-lhe dos SEAL e
ficou curioso, só não sabia nadar. Tal como eu, aprendeu sozinho e, ao fim
de três tentativas, passou finalmente o exame de natação para os SEAL.
Quase sem dar por isso, o Brown estava nas provas BUD/S, onde a
alcunha de Freak o continuou a perseguir. Foi dos melhores em treino físico
e passou facilmente pela Primeira Fase, mas na sala de aulas não era assim
tão seguro, nem por sombras. O treino de mergulho dos SEAL é tão difícil
intelectualmente como é fisicamente, mas ele lá se safou e ficou a duas
semanas de terminar as BUD/S quando, num dos seus derradeiros
exercícios de guerra terrestre, não conseguiu voltar a montar a arma num
treino cronometrado conhecido como “prática de armas”. O Brown acertou
no alvo, mas falhou no cronómetro. Foi reprovado nas BUD/S mesmo no
fim.
Mas não desistiu. Não, senhor, o Freak Brown não ia render-se. Eu já
tinha ouvido histórias sobre ele antes de acabarmos juntos na Classe 231.
Estava em guerra com o mundo e gostei dele imediatamente. Era um tipo
rijo como tudo, exatamente o género de pessoa que eu escolheria para me
acompanhar numa guerra. Quando levámos pela primeira vez o barco da
Trituradora para a areia fiz de maneira a que ele fosse comigo à frente, onde
o peso é maior. “Freak Brown!”, gritei-lhe. “Eu e tu vamos ser os pilares da
Tripulação Dois!” Ele voltou a cabeça para mim e eu aguentei-lhe o olhar.
“Não me chames essa merda, Goggins”, disse-me furioso.
“Então, não saias da posição, filho! Eu e tu, à frente, a puta da semana
inteira!”
“Entendido.”
Assumi a liderança da Tripulação Dois desde o início e concentrei-me
numa só coisa: fazer com que nós os seis chegássemos ao fim da Semana
Infernal. Todos aceitaram porque eu já lhes tinha dado provas – e não
apenas na Trituradora. Nos dias antes de começar a Semana Infernal, meti
na cabeça que precisávamos de roubar aos instrutores o calendário do que ia
acontecer. Contei a ideia à minha equipa uma noite, quando estávamos à
conversa na sala de aulas, que funcionava também como sala de convívio.
As minhas palavras caíram em orelhas moucas. Houve uns tipos que riram,
mas todos me ignoraram e voltámos às conversas parvas deles.
Eu percebi porquê. Não fazia sentido. Como é que alguma vez iríamos
conseguir uma cópia daquela merda? E, ainda que conseguíssemos, saber o
que se ia passar não tornaria tudo pior? E se fôssemos apanhados? A
recompensa valia o risco?
Eu acreditava que sim, porque já tinha tido uma amostra da Semana
Infernal. O Brown e alguns outros também, e sabíamos como era fácil
começar a pensar em desistir ao sermos expostos a níveis de dor e exaustão
que não se julgavam possíveis. Umas cento e trinta horas de sofrimento
podem facilmente parecer mil horas se não se consegue dormir nem
antecipar que vá haver brevemente uma pausa. E nós sabíamos outra coisa.
A Semana Infernal era um jogo mental. Os instrutores usavam o nosso
sofrimento para nos ir retirando camadas e não para descobrir quais eram os
melhores atletas. O que eles queriam era encontrar as mentes mais fortes. E
isso é uma coisa que os que desistem não sabem, a não ser quando já é
demasiado tarde.
Tudo na vida é um jogo mental! Sempre que os dramas da vida, os
grandes e os pequenos, nos arrastam para o fundo, esquecemos que, por
muito intensa que seja a dor, por muito terrível que a tortura se revele, tudo
aquilo que é mau tem um fim. Esquecer isso acontece no segundo preciso
em que entregamos a outras pessoas o controlo das nossas emoções e ações
– o que pode acontecer com facilidade quando a dor está a atingir um ponto
culminante. Na Semana Infernal, os homens que desistiram sentiram-se a
correr numa roda, à velocidade máxima, e sem ter ao alcance nenhuma
plataforma para escapar. Mas, na verdade, tenham eles descoberto isso ou
não, tratava-se de uma ilusão – e eles caíram nela.
Eu entrei na Semana Infernal sabendo que era eu quem me tinha
conduzido lá, que queria lá estar, e que possuía todas as ferramentas
necessárias para triunfar neste jogo lixado. Isso dava-me a paixão para
perseverar e para reivindicar o controlo sobre a experiência. Permitia-me
jogar forte, dobrar as regras e procurar obter uma vantagem onde e quando
fosse possível, até a sineta tocar ao fim da tarde de sexta-feira. Para mim,
isto era uma guerra – e os inimigos eram os instrutores que nos queriam
quebrar e fazer desistir! Ter nas mãos a agenda deles ajudar-nos-ia como
que a encurtar o tempo, por sabermos o que viria a seguir, e, mais do que
isso, dar-nos-ia uma vitória logo à partida. O que, por sua vez, nos daria
alguma coisa a que nos agarrarmos durante a Semana Infernal em que estes
cabrões nos estavam a dar uma tareia.
“Ouve, meu, não estou a brincar”, disse. “Precisamos desse horário!”
Vi, no lado oposto da sala, Kenny Bigbee, o outro negro que havia na
Classe 231, levantar o sobrolho. Ele também tinha estado na minha primeira
turma das provas BUD/S e lesionara-se imediatamente antes da Semana
Infernal. Estava igualmente de regresso para uma segunda tentativa. “Oh,
merda! O David Goggins voltou…”
O Kenny fez um sorriso largo – e, a seguir, começou a rir à gargalhada.
Ele tinha estado no gabinete dos instrutores, à escuta, quando os médicos
procuravam afastar-me da minha primeira Semana Infernal. Foi durante um
exercício com troncos durante o treino físico. As tripulações estavam a
carregar troncos, na praia, para cima e para baixo, os homens encharcados e
cobertos de sal e de areia. Eu corria com um tronco aos ombros e a vomitar
sangue. Uma mistura de muco e sangue corria-me do nariz e da boca e os
instrutores agarravam-me periodicamente e obrigavam-me a sentar, porque
pensavam que eu ia cair morto de um momento para o outro. Mas de cada
vez que se voltavam para o lado, eu estava de regresso à ação. A carregar o
tronco.
Nessa noite, pela rádio, o Kenny esteve sempre a ouvir o mesmo refrão.
Havia uma voz que dizia: “Temos de tirar o Goggins daqui.”
“Entendido, senhor. O Goggins está sentado”, respondia outra voz.
Então, ao fim de um bocado, o Kenny voltava a escutar a rádio: “Oh,
merda! O Goggins está outra vez a carregar o tronco. Repito: o Goggins
está outra vez com o tronco!”
O Kenny adorava contar esta história. Era um tipo de 1,55 metros e 77
quilos, mais baixo do que eu e não pertencia à nossa tripulação, mas eu
sabia que podíamos confiar nele. Na verdade, não havia ninguém melhor
para executar a missão. Na Classe 231, o Kenny foi encarregue de manter
limpo e arrumado o escritório do instrutor principal – o que significa que
tinha acesso. Nessa noite, ele entrou em pontas dos pés em território
inimigo, encontrou o horário num ficheiro, sacou uma cópia e pôs tudo no
lugar antes de alguém reparar. Assim, de uma maneira tão simples,
tínhamos alcançado a primeira vitória mesmo antes de ter sequer começado
o maior jogo mental das nossas vidas.
Claro que saber que uma coisa vai acontecer é apenas uma pequena parte
da batalha. Porque, na verdade, tortura é tortura, e na Semana Infernal, a
única maneira de chegar ao fim é suportá-la. Com um olhar, ou só com
umas palavras, eu assegurava-me de que a nossa tripulação estava a dar o
máximo a todos os momentos. Dávamos o máximo na praia, a segurar no
barco por cima da cabeça ou a correr para cima e para baixo a carregar uns
troncos filhos da puta, e, na tortura das ondas, enquanto íamos entrando no
oceano Pacífico, eu entoava a canção mais épica e mais triste do filme
Platoon.
O cinema sempre me inspirou. Rocky ajudou-me a conseguir motivação
para alcançar o sonho de ser aceite no treino SEAL, mas Platoon ia ajudar-
me, a mim e à minha tripulação, a encontrar uma capacidade extra durante
as noites escuras da Semana Infernal, quando os instrutores troçavam da
nossa dor, diziam que éramos patéticos e nos enviavam repetidamente ao
encontro das ondas. O adágio para cordas era a banda sonora de uma das
minhas cenas favoritas de Platoon, e, rodeado por um nevoeiro que nos
abraça e nos gela os ossos, eu esticava os braços como Elias ao ser atingido
a tiro pelos Vietcong – e cantava a plenos pulmões. Na Primeira Fase,
tínhamos todos visto o filme, e a minha encenação tinha um efeito duplo:
irritar os instrutores e motivar a minha equipa. Encontrar momentos de riso
no meio da dor e do delírio virava de pernas para o ar toda a experiência
melodramática. Dava-nos algum controlo sobre as nossas emoções. Repito:
isto era tudo um jogo mental – e eu tinha a puta da certeza de que não ia
perder.
Mas os jogos mais importantes dentro do jogo eram as competições que
os instrutores organizavam entre as tripulações. Nas BUD/S, quase tudo era
uma competição. Corríamos para cima e para baixo na praia carregados com
barcos e com troncos. Tínhamos corridas de remos e até fizemos a maldita
pista de obstáculos levando um barco ou um tronco. Ou então carregávamos
com eles enquanto nos equilibrávamos em vigas estreitas, sobre troncos que
giravam ou a atravessar pontes em corda. Lançávamos o barco por cima de
um muro alto ou deixávamo-lo ao pé de uma rede de carga de nove metros
de altura e, a seguir, tínhamos de trepar pela maldita coisa. A equipa
vencedora era quase sempre recompensada com descanso e as que perdiam
tinham direito a mais umas tareias extra aplicadas pelo Psicopata. Eram
obrigadas a fazer flexões e abdominais em areia molhada, e sprints à beira
da água, com os corpos já a tremer de exaustão, o que era sentido como um
fracasso em cima de um fracasso. Claro que o Psicopata lhes dizia isso com
todas as letras. Ria na cara deles enquanto acossava os que desistiam.
“És absolutamente patético”, dizia. “Espero que desistas, porque se te
deixarem continuar, vais fazer com que nos matem a todos!”
Vê-lo humilhar os meus companheiros de curso causava-me uma
sensação dupla. Por um lado, não me importava que ele fizesse o seu
trabalho, mas ele era um rufião – e eu nunca gostei de rufiões. Desde que
regressara às BUD/S, ele tinha-me tomado de ponta e, desde cedo, decidi
mostrar-lhe que não me conseguia afetar. Entre episódios de tortura nas
ondas, quando a maior parte dos recrutas se apertava uns contra os outros,
corpo contra corpo, para transferir calor, eu mantinha-me à margem. Os
outros todos tremiam. O meu corpo nem sacudia – e eu via como isso o
irritava.
Exercício na Semana Infernal
O único luxo que havia durante a Semana Infernal era a comida.
Tratavam-nos como reis. Havia omeletes, frango assado e batatas, bife, sopa
quente, massa com molho de carne, fruta de todos os tipos, bolachas,
refrigerantes, café e muito mais. O problema é que tínhamos de correr o
quilómetro e meio até lá, e regressar, com o barco de 90 quilos à cabeça. Eu
saía sempre do refeitório com uma sanduíche de manteiga de amendoim
enfiada no bolso molhado e com areia, para a devorar na praia quando os
instrutores não estivessem a olhar. Um dia, a seguir ao almoço, o Pete
Psicopata decidiu fazer-nos correr um bocadinho mais de um quilómetro e
meio. Aí pelos quatrocentos metros, quando ele aumentou o ritmo, tornou-
se óbvio que não nos encaminhava diretamente de regresso à Trituradora.
“É melhor manterem o ritmo, seus cabrões!”, gritou-nos, enquanto uma
das tripulações começava a atrasar-se. Eu olhei para os meus companheiros.
“Vamos acompanhar este cabrão! Quero que o gajo se foda!”
“Entendido”, respondeu o Freak Brown. Fiel à sua palavra, tinha ficado
comigo à frente, a segurar o barco – nos dois pontos mais pesados – desde
domingo à noite –, e estava cada vez mais forte.
O Psicopata levou-nos pela areia solta mais uns seis quilómetros. Tentou
tudo para nos deixar para trás, mas nós seguíamo-lo como uma sombra. Ele
fazia alterações de ritmo. Ora começava a sprintar, ora se agachava, de
pernas abertas, agarrando os tomates e a fazer “marcha de elefante”, ora
ainda se lançava a trote, ao ritmo de quem faz jogging, antes de arrancar
noutro sprint pela praia abaixo. Nessa fase, o barco mais próximo já ia uns
quatrocentos metros para trás, mas nós continuávamos a pisar-lhe os
calcanhares. Imitávamos todos os passos que ele fazia e recusávamos deixar
que aquele rufia tivesse alguma satisfação à nossa conta. Ele pode ter lixado
os outros todos, mas não a Tripulação Dois!
A Semana Infernal é uma ópera demoníaca, e vai em crescendo,
atingindo o auge na quarta-feira e continuando nesse plano até terminar, na
sexta-feira à tarde. Na quarta-feira, já estávamos todos desfeitos, irritados
ao máximo. Os corpos pareciam framboesas gigantes, a verter pus e sangue.
Mentalmente, éramos zombies. Os instrutores puseram-nos a fazer simples
levantamentos de barco e a verdade é que nos arrastávamos. Até a minha
tripulação mal conseguia erguer o barco. Entretanto, o Psicopata, o SBG e
os outros instrutores vigiavam-nos com atenção extrema, à procura de
debilidades como sempre.
Eu tinha um ódio genuíno aos instrutores. Eram o meu inimigo e eu
estava farto de ver como tentavam mexer com o meu cérebro. Olhei para o
Brown e, pela primeira vez nessa semana, pareceu-me frágil. Toda a
tripulação parecia. Merda, eu também me sentia péssimo. Tinha um joelho
do tamanho de uma toranja e cada passo que dava era como se incendiasse
os meus nervos, motivo pelo qual andava à procura de qualquer coisa que
me desse energia para continuar. Concentrei-me no Psicopata. Estava farto
daquele cabrão. Os instrutores pareciam tranquilos e confortáveis. Nós
estávamos desesperados e eles tinham aquilo de que nós precisávamos:
energia! Era o momento de virar o jogo de pernas para o ar e de ocupar
terreno nas cabeças deles.
Nessa noite, quando chegasse a hora de saída deles e conduzissem os
seus automóveis, para as suas casinhas, depois de uma merda de um turno
de oito horas, nós ainda estaríamos a dar o litro. Eu queria que eles não
deixassem de pensar na Tripulação Dois. Queria estar na cabeça deles
quando se metessem na cama com as mulheres. Queria ocupar tanto espaço
nessas cabeças que eles nem sequer conseguissem ficar com a piça tesa.
Para mim, isso seria tão fantástico como encostar-lhes uma faca aos
tomates. Por isso, implementei um processo a que chamo agora “Conquistar
Almas”.
Voltei-me para o Brown e perguntei-lhe: “Sabes porque te chamo
Freak?” Ele olhou para mim enquanto pousávamos o barco, para o
erguermos logo a seguir como se fôssemos autómatos ainda a funcionar,
mas já com a bateria a dar as últimas. “Porque és um dos tipos mais duros
que já vi na puta da vida!” Ele abriu um sorriso. “E sabes o que é que eu
digo a estes filhos da mãe que ali estão?” – apontei com o cotovelo para os
nove instrutores reunidos na praia, a beber café e a dizer parvoíces. “Digo-
lhes que se vão lixar!” Bill fez que sim com a cabeça e semicerrou os olhos
na direção dos gajos que nos atormentavam, enquanto eu me virava para o
resto da tripulação. “Agora, vamos levantar bem alto esta merda e mostrar-
lhes quem somos!”
“Porra, isso é lindo!”, disse o Bill. “Vamos lá!”
Em segundos, toda a minha equipa ficou cheia de energia. Não nos
limitámos a levantar e a pousar o barco: atirávamo-lo ao ar, apanhávamo-lo
por cima da cabeça, púnhamo-lo na areia e repetíamos tudo outra vez. Os
resultados foram imediatos e inegáveis. A dor e a exaustão desvaneceram-
se. A cada repetição, tornámo-nos mais rápidos e fortes e cantávamos cada
vez que lançávamos o barco ao ar.
“NÃO CONSEGUEM TOCAR NA TRIPULAÇÃO DOIS!”
Isto era um Vão-se lixar! para os instrutores – e eles prestavam toda a
atenção a este nosso segundo fôlego. No dia mais duro da semana mais dura
do treino mais duro do mundo, a Tripulação Dois movia-se a uma
velocidade relâmpago e, dessa maneira, fazia troça da Semana Infernal. A
cara dos instrutores dizia tudo. Estavam de boca aberta como se
presenciassem uma coisa nunca vista. Alguns até desviaram o olhar, quase
envergonhados. Só o SBG parecia satisfeito.
***
Desde essa noite na Semana Infernal, usei inúmeras vezes o conceito de
“conquistar almas”. Conquistar Almas é um passaporte para encontrarmos a
nossa reserva de energia e termos um segundo fôlego. É a ferramenta a que
podemos recorrer para ganhar qualquer competição ou para superar
qualquer obstáculo na vida. É possível usá-la para ganhar um jogo de
xadrez ou para derrotar qualquer adversário num daqueles conflitos de
escritório. Pode ajudar a conseguir bons resultados numa entrevista de
emprego ou na escola. E, sim, pode ser usada para ultrapassar todo o tipo de
desafios físicos. Mas lembre-se de uma coisa: trata-se de um jogo consigo
mesmo. A menos que esteja envolvido numa competição física, não estou a
sugerir que procure dominar alguém ou aniquilar o seu espírito. Na verdade,
ninguém precisa sequer de saber que está a fazer este jogo. É uma tática
para estar ao seu melhor nível sempre que o dever o chamar. É um jogo
mental consigo próprio.
Conquistar a alma de alguém significa ganhar uma vantagem tática. A
vida é toda ela sobre a procura de vantagens táticas – e foi por isso que
roubámos o calendário da Semana Infernal, que andámos a pisar os
calcanhares do Psicopata e que dei espetáculo no meio das ondas a trautear
a música do Platoon. Cada episódio desses foi um gesto de desafio que nos
conferiu poder.
Mas o desafio nem sempre é a melhor maneira de tomar a alma de
alguém. Tudo depende do terreno em que estamos. Nas provas BUD/S, os
instrutores não se importavam se procurássemos vantagens como essa.
Respeitavam isso, desde que estivéssemos a dar tudo. É preciso fazer o
trabalho de casa. Conhecer o terreno em que se opera, saber quando e onde
esticar os limites e quando alinhar com a norma.
A seguir, é preciso realizar um inventário da mente e do corpo na véspera
da batalha. Fazer uma lista das inseguranças e das fraquezas – e também das
inseguranças e fraquezas do adversário. Por exemplo, se um rufião anda a
acossá-lo, e sabe onde se sente insuficiente ou inseguro, pode adiantar-se a
qualquer insulto ou crítica que ele possa fazer. Pode rir-se de si juntamente
com ele – e isso tira-lhe poder. Se levar menos a peito aquilo que ele disser
ou fizer, então ele fica sem trunfos. Por outro lado, pessoas que estão
seguras de si não andam a acossar outras pessoas. Cuidam é dos outros. Ou
seja, se alguém o estiver a acossar, isso é um sinal de que se trata de alguém
com áreas problemáticas que podem ser exploradas ou auxiliadas. Sim, às
vezes, a melhor maneira de derrotar um rufião que nos persegue é ajudá-lo.
Se estiver dois ou três passos à frente dele, conseguirá controlar o seu
processo de pensamento; e, chegado aí, conquistará a alma dele sem ele dar
conta.
Os instrutores SEAL eram os nossos rufiões – e não repararam nos jogos
que eu andei a fazer a semana inteira para manter focada a Tripulação Dois.
E não tinham de o fazer. Parti do princípio de que eles estavam obcecados
com as nossas proezas durante a Semana Infernal, mas não tenho a certeza.
Foi uma tática que utilizei para manter a minha vantagem mental e ajudar a
minha equipa a ser bem-sucedida.
Da mesma maneira, se está a enfrentar um concorrente para uma
promoção, e sabe quais são as suas insuficiências, pode trabalhar isso antes
da sua entrevista ou avaliação. Num cenário destes, rir das próprias
fraquezas não resolverá o problema. É preciso dominá-las. Entretanto, se
tiver uma noção das fraquezas do adversário, pode explorá-las em seu
benefício, mas tudo isso implica investigação. Repito: conheça o terreno em
que se move, conheça-se a si mesmo, e é bom que conheça bem, ao
pormenor, o adversário.
Uma vez no calor da batalha, tudo dependerá da capacidade de
resistência. Se se tratar de um desafio físico difícil, terá provavelmente de
derrotar os seus próprios demónios antes de conseguir conquistar a alma do
seu adversário. Isso significa ensaiar respostas à pergunta simples que
seguramente vai surgir como uma bolha de pensamento: “Porque é que aqui
estou?” Se souber que esse momento se aproxima e tiver a sua resposta
preparada, estará equipado para tomar a decisão instantânea de ignorar a sua
mente enfraquecida e avançar. Saiba por que motivo está a lutar para
continuar a lutar!
E nunca esqueça de que toda a angústia emocional e física é finita! Tudo
chega ao fim. Sorria à dor e veja como ela se desvanece durante pelo menos
um ou dois segundos. Se for capaz de fazer isso, pode juntar esses segundos
e resistir mais do que o que o seu adversário julga possível, o que pode ser o
suficiente para conseguir um segundo fôlego. Não há um consenso
científico sobre o segundo fôlego. Alguns cientistas pensam que seja o
resultado de endorfinas que inundam o sistema nervoso, outros julgam
tratar-se de um afluxo de oxigénio capaz de dissolver o ácido láctico, assim
como de fornecer o glicogénio e os triglicerídeos de que os músculos
precisam para funcionar. Outros dizem que é puramente psicológico. Tudo o
que eu sei é que, ao darmos tudo quando nos sentíamos derrotados,
conseguimos um segundo fôlego na pior de todas as noites na Semana
Infernal. E, com esse segundo fôlego do nosso lado, é fácil quebrar o
adversário e conquistar a sua alma. O difícil é chegar a esse ponto, porque o
bilhete para a vitória depende com frequência de tirar o melhor de nós
quando nos sentimos pior.
***
Depois do triunfo nas elevações do barco, toda a turma foi agraciada com
uma hora de sono numa grande tenda militar verde que tinham montado na
praia e equipado com camas do exército. Aquela merda nem colchão tinha,
mas para nós eram como nuvens de luxo feitas de algodão: assim que nos
pusemos na horizontal, adormecemos todos.
Ah, mas o Psicopata ainda não tinha acabado a questão que tinha
comigo. Deixou-me dormir por apenas um minuto e, a seguir, acordou-me e
levou-me para a praia, para algum tempo frente-a-frente. Espreitou uma
oportunidade para me lixar finalmente a cabeça e, enquanto caminhava
sozinho para a água, sentia-me realmente desorientado. Mas o cabrão do
frio acordou-me. Decidi saborear a minha hora privativa extra de tortura nas
ondas. Já com a água pelo meio do peito, comecei a entoar mais uma vez o
Adágio para Cordas. Agora mais alto. Suficientemente alto para aquele
filho da mãe me ouvir, até com o barulho da rebentação. Aquela canção
salvou-me a vida!
Eu tinha vindo para o treino dos SEAL para ver se era suficientemente
duro para fazer parte da unidade e descobri em mim um animal interior que
nem sabia que existia. Um animal ao qual recorreria a partir desse
momento, sempre que a vida me corresse mal. No momento em que emergi
das águas do oceano, considerava-me invencível.
Se ao menos fosse…
A Semana Infernal cobra um preço a todos e, nessa noite, a 48 horas do
fim, fui ao médico para levar uma injeção de Toradol no joelho, para
diminuir o inchaço. De regresso à praia, vi as tripulações todas na água, a
fazer um exercício de remo. As ondas rebentavam com força e o vento era
intenso. O Psicopata olhou para o SBG: “Que raio é que vamos fazer com
este?”
Ele hesitava pela primeira vez – cansado de tentar vencer-me. Eu estava
preparado, pronto para qualquer desafio, mas ele já estava farto. Por ele,
mandava-me de férias para um spa. Foi nesse momento que soube que o
tinha superado; que tinha conquistado a alma dele. Mas o SBG tinha outras
ideias. Passou-me um colete salva-vidas e prendeu uma luz à parte de trás
do meu chapéu.
“Segue-me”, disse-me enquanto corria pela praia. Alcancei-o e andámos
para norte à vontade um quilómetro e meio. Já mal conseguíamos distinguir
os barcos e as suas luzes cintilantes por entre o nevoeiro e através das
ondas. “Muito bem, Goggins. Agora, vais a nado à procura do teu maldito
barco!”
Ele tinha acertado em cheio na minha insegurança mais profunda e
perfurado a minha confiança. Deixou-me num silêncio atordoado. Olhei
para ele de uma maneira que dizia: “Estás a gozar comigo, certo?” Eu já era
um nadador decente e a tortura das ondas não me assustava, porque não
estávamos assim tão distantes da praia, mas um percurso em águas abertas a
um quilómetro da costa, sob risco de hipotermia, a meio de uma tempestade
e para encontrar um barco sem ter puta de ideia de estar a dirigir-me para
ele? Parecia uma sentença de morte e eu não me tinha preparado para nada
do género. Mas, às vezes, o inesperado abate-se sobre nós como o caos e,
sem aviso, até os mais corajosos têm de estar prontos a correr riscos e a
empreender tarefas que parecem para lá das suas capacidades.
Para mim, naquele momento, resumia-se tudo a como é que eu queria ser
recordado. Podia ter recusado cumprir a ordem – e isso não me teria trazido
problemas porque não tinha um companheiro de nado (e no treino SEAL é
preciso estar sempre com um companheiro) e por ser evidente que ele me
pedia que fizesse uma coisa extremamente insegura. Mas eu também sabia
que o meu objetivo, ao ir para aquele treino, era mais do que chegar ao fim
com o tridente. Para mim, era a possibilidade de me comparar com os
melhores entre os melhores e para me distinguir da manada. Por isso,
embora nem fosse capaz de distinguir os barcos por entre as ondas alterosas,
não havia tempo para estar a remoer no medo. Nem sequer havia uma
escolha a fazer.
“De que é que estás à espera, Goggins? Mexe o teu maldito cu e não
lixes isto!”
“Entendido!”, gritei, começando a correr para as ondas. O problema é
que, com um colete salva-vidas, com um joelho ferido e de botas calçadas,
quase não conseguia nadar e era praticamente impossível mergulhar entre as
ondas. Tinha de seguir a espuma branca e, com a minha mente a gerir tantas
variáveis, o oceano parecia mais frio do que nunca. Comecei a engolir litros
de água. Era como se o mar me escancarasse a boca e inundasse todo o meu
organismo; a cada gole de água, o meu medo ia aumentando.
Não fazia ideia de que, em terra, o SBG se preparava para um resgate no
caso de acontecer o pior cenário possível. Eu não sabia que ele nunca tinha
colocado um homem na posição em que eu me encontrava. E também não
percebi que ele via em mim qualquer coisa de especial e que, como
qualquer líder forte, queria ver até onde é que eu aguentava, enquanto
espreitava a minha luz a andar para cima e para baixo, à superfície, cheio de
nervos. Foi ele que me contou isto tudo, numa conversa que tivemos há
pouco tempo. Mas, naquele momento, a única coisa que eu tentava era
sobreviver.
Consegui por fim passar a rebentação e nadei mais uns oitocentos metros
só para dar conta de que tinha seis barcos a vir na minha direção, que iam
entrando e saindo do meu campo visual graças a ondas de quase um metro e
meio provocadas pelo vento. Eles não sabiam que eu ali estava! A luz que
eu trazia era fraca e na zona baixa das ondas não conseguia ver nada. Fiquei
à espera que um deles surgisse disparado contra mim do cimo de uma onda
e me atropelasse. Só podia fazer uma coisa: ladrar no escuro, como se fosse
um leão marinho rouco.
“Tripulação Dois! Tripulação Dois!”
Foi um pequeno milagre os meus companheiros ouvirem-me. Deram a
volta ao barco e o Freak Brown agarrou-me com as suas manápulas e içou-
me como se fosse o melhor peixe que apanhara nesse dia. Fiquei caído no
meio do barco, de olhos fechados, a tiritar com violência pela primeira vez
em toda essa semana. Tinha tanto frio que era impossível disfarçar.
“Porra, Goggins, deves estar maluco! Estás bem?” Fiz que sim logo que
me recompus. Eu era o líder daquela tripulação e não podia permitir-me
mostrar fraqueza. Retesei cada músculo do meu corpo e quase
imediatamente os meus tremores diminuíram até pararem.
“É assim que se lidera na puta da frente de combate”, disse, enquanto
tossia água salgada como se fosse um pássaro ferido. Não consegui ficar
sério muito tempo. Eles sabiam perfeitamente que a ideia daquele exercício
de natação completamente maluco não tinha sido minha.
Com o relógio a aproximar-se do fim da Semana Infernal, estávamos na
fossa de provas, junto do famoso e estreito istmo Silver Strand de
Coronado. A fossa estava cheia de lama fria e tinha uma cobertura de água
gelada. Havia uma ponte em corda – duas linhas separadas, uma para os pés
e outra para as mãos – de um lado ao outro. Um a um, todos os homens
tinham de a atravessar, enquanto os instrutores agitavam aquela merda com
toda a força, tentando atirar-nos abaixo. Manter o equilíbrio nestas
circunstâncias exige uma tremenda força no centro do corpo – e nós
estávamos todos destroçados e no limite da resistência. Além disso, eu ainda
tinha o joelho todo lixado. Na verdade, até tinha piorado, motivo pelo qual
precisava de levar uma injeção a cada 12 horas. Mas ao ouvir gritar o meu
nome subi para a corda e, quando os instrutores começaram a agitá-la, fleti
os abdominais e agarrei-me a ela com toda a força que me restava.
Nove meses antes, tinha atingido o peso máximo de 135 quilos e nem
sequer era capaz correr quatrocentos metros. Nesse tempo, ao sonhar com
uma vida diferente, lembro-me de pensar que só o facto de superar a
Semana Infernal seria a maior honra que já conseguira na vida. Mesmo que
nunca concluísse com êxito as provas BUD/S, terminar a Semana Infernal
já significaria qualquer coisa. Mas eu não me limitei a sobreviver. Eu ia
acabar a Semana Infernal como o primeiro do meu grupo – e sabia, pela
primeira vez, que era um cabrão duro como tudo.
Houve um tempo em que me preocupava tanto com a possibilidade de
falhar que até tinha medo de tentar. Agora, estava pronto a enfrentar
qualquer desafio. Toda a minha vida tinha tido um medo pavoroso de água,
e em especial de água fria, mas ao estar ali, de pé, na hora derradeira,
desejei que o oceano, o vento e a lama fossem ainda mais frios!
Fisicamente, sofrera uma transformação completa, e isso explicava uma
grande parte do meu êxito nas provas BUD/S, mas aquilo que me fez
ultrapassar a Semana Infernal foi a minha mente. E eu ainda só começara a
explorar o seu poder.
Era nisso que pensava enquanto os instrutores davam tudo para me
atirarem abaixo da ponte em corda, como se eu estivesse a montar um touro
mecânico. Agarrei-me com força e cheguei tão longe como os outros da
Classe 231 antes de a natureza ganhar e de me atirar a rebolar para a lama
gelada. Limpei-a dos olhos e da boca e ri como um louco enquanto o Freak
Brown me ajudava a levantar. Não muito tempo depois, o SBG aproximou-
se da beira do poço.
“Semana Infernal terminada!”, gritou para os trinta que ainda
continuavam na fossa, todos a tremer. Estávamos todos feridos e
ensanguentados, inchados e tensos. “Rapazes, vocês fizeram um trabalho
incrível!”
Alguns tipos gritaram de alegria. Outros deixaram-se cair, de joelhos,
com lágrimas de felicidade nos olhos, e agradeceram a Deus. Eu também
olhei para os céus, puxei o Freak Brown para lhe dar um abraço e
cumprimentei toda a minha equipa com um high five. As outras tripulações
tinham perdido homens, mas a Dois não! Não só não tínhamos perdido
ninguém, como ganhámos todas as provas!
Continuámos a celebrar enquanto entrávamos num autocarro a caminho
da Trituradora. Tínhamos à espera uma piza grande para cada um, mais uma
garrafa de dois litros de Gatorade e a cobiçada t-shirt castanha. A piza soube
como um cabrão de um maná caído dos céus, mas as t-shirts tinham um
significado bem maior. Nas provas BUD/S, anda-se sempre com uma t-shirt
branca. Quando se sobrevive à Semana Infernal, ela é trocada por uma t-
shirt castanha. Era o símbolo de uma travessia até um nível superior e, ao
fim de uma vida inteira quase sempre a falhar, senti definitivamente que, na
minha vida, me encontrava num novo lugar.
Como todos os outros, procurei desfrutar do momento, mas há dois dias
que o meu joelho não estava nada bem e decidi sair dali e ir ao médico.
Quando me afastava, olhei para a direita e vi quase uma centena de
capacetes alinhados. Pertenciam aos homens que tinham tocado a sineta – e
a fila prolongava-se bem para lá da estátua, chegando ao posto de comando.
Li alguns nomes – e vi tipos de que eu gostava. Sei como se sentiam,
porque foi o que eu senti quando a minha classe de para-resgate concluiu o
curso sem mim. Essa recordação tinha-me dominado durante anos, mas
agora, depois de 130 horas passadas no inferno, deixara de me definir.
Nessa noite, todos os homens foram obrigados a ir ao médico, mas
tínhamos o corpo tão inchado que era difícil distinguir entre o que seriam
ferimentos e o que resultaria de um cansaço generalizado. Eu só sabia que
tinha o joelho triplamente lixado e que precisava de muletas para andar de
um lado para o outro. O Freak Brown saiu da consulta médica todo
amassado e cheio de nódoas negras. O Kenny saiu limpo e quase não
coxeava, mas estava muito maltratado. Felizmente, seguia-se a semana de
descanso. Eram sete dias para comer, beber e sarar antes de as coisas
voltarem a ser sérias. Não era muito tempo, mas o suficiente para que a
maior parte dos cabrões loucos que se tinham aguentado na Classe 231
ficassem bem.
E eu? O meu joelho inchado não tinha melhorado nada quando me
tiraram as muletas. Mas não havia tempo para choraminguices. A diversão
da Primeira Fase ainda não tinha acabado. A seguir a esta semana de
descanso, veio o chamado atar de nós. Pode não soar a grande coisa, mas
foi muito pior do que eu esperava, porque esse exercício específico
aconteceu no fundo da piscina, onde os mesmíssimos instrutores iriam fazer
todos os possíveis para tentar afogar o meu coirão, ainda por cima assente
só numa perna.
Foi como se o Diabo tivesse estado a assistir a todo o espetáculo, tivesse
aguardado pelo intervalo e estivesse agora prestes a começar a sua parte
favorita. Na noite antes de as provas BUD/S terem recomeçado com toda a
intensidade, era como se ouvisse as palavras dele a soarem na minha mente
stressada, enquanto andava às voltas na cama até de manhã.
Dizem que gostas de sofrer, Goggins. Dizem que pensas que és um
cabrão muito duro. Pois, então, diverte-te com a tua estadia prolongada no
inferno!
DESAFIO #4
Escolha uma qualquer situação competitiva em que se encontre neste
momento. Quem é o seu adversário? É o seu professor ou treinador, o chefe,
um cliente furioso? Não importa como o estão a tratar, só há uma maneira
de não só ganhar o respeito dele, mas de inverter a situação. A excelência.
Isso pode querer dizer tirar a nota máxima num exame, pensar numa
proposta ideal ou pulverizar uma meta de vendas. Seja o que for, quero que
trabalhe mais arduamente do que nunca nesse projeto ou nessa cadeira. Faça
tudo exatamente como lhe pedem – e proponha-se superar qualquer meta
que definam como resultado ideal.
Se o seu treinador não o põe a jogar o suficiente, faça treinos
excecionais. Entre em competição com o melhor da sua equipa e dê tudo
para o superar. Isto significa também dedicar tempo fora do campo: ver
vídeos para estudar as tendências do adversário, memorizar jogadas e
treinar no ginásio. Precisa de chamar a atenção desse treinador.
Se for o seu professor, então comece a fazer trabalho de alta qualidade.
Dedique tempo extra aos trabalhos. Escreva ensaios que o professor nem
pediu! Chegue cedo às aulas. Faça perguntas. Preste atenção. Mostre-lhe
quem é e quem quer ser.
Se for um chefe, trabalhe dia e noite. Chegue ao local de trabalho antes
dele. Saia depois de ele ir para casa. Faça de maneira a ele reparar nessa
merda – e ao chegar o momento de apresentar resultados ultrapasse as
expetativas máximas dele.
Seja quem for com que está a lidar, o seu objetivo é fazer com que eles
vejam que está a conseguir alguma coisa que eles não seriam capazes. Quer
que fiquem a pensar como você é extraordinário. Use o pensamento
negativo deles para dominar a tarefa a realizar, executando-a com tudo o
que tem. Trata-se de conquistar a puta da alma deles! A seguir, faça posts
sobre isto nas redes sociais, com as hashtags #canthurtme #takingsouls.
CAPÍTULO CINCO

MENTE BLINDADA
Doutor, não me lixe. A dois dias do fim da semana de descanso, fui a uma
consulta para avaliar a lesão. O médico enrolou para cima as minhas calças
de camuflado e assim que me apertou devagar o joelho direito, a dor
invadiu-me o cérebro. Mas eu não podia mostrar isso. Estava a representar.
Fazia aquele papel do recruta muito cansado, mas, tirando isso,
perfeitamente saudável, que cumpria as provas BUD/S, pronto para a
batalha – e se os queria enganar não podia esboçar sequer um esgar. Eu já
sabia que tinha o joelho lixado e que eram escassas as probabilidades de
completar mais cinco meses de treino só com uma perna, mas aceitar mais
um retrocesso significava ter de atravessar outra Semana Infernal – e isso
era demais para processar.
“O inchaço não diminuiu muito. Como é que sentes o joelho?”
O médico também estava a representar. Os candidatos a SEAL tinham
um acordo do género “não perguntes, não respondas” com a maior parte do
pessoal médico em serviço no Comando Naval de Guerra Especial. Eu não
ia facilitar o trabalho do médico ao revelar-lhe a verdade; e ele também não
ia enveredar pelo caminho da precaução e, dessa maneira, aniquilar o sonho
de um homem. Ele abriu a mão e a dor diminuiu. Tossi e a pneumonia
voltou outra vez a sacudir os meus pulmões, antes de sentir na pele a
verdade fria do estetoscópio.
Desde o fim da Semana Infernal, sempre que tossia cuspia bocados de
muco castanho. Nos primeiros dois dias, fiquei na cama, dia e noite, a
cuspi-los para uma garrafa de Gatorade, onde os guardava como se fossem
moedas de cêntimo. Mal conseguia respirar – e também não me conseguia
mexer grande coisa. Na Semana Infernal tinha sido um cabrão muito duro,
mas aquela merda chegara ao fim, e eu tinha de lidar com o facto de ter sido
marcado pelo Diabo (e também pelos instrutores).
“Está bem, dotor”, respondi. “Só um bocado rígido, nada mais.”
Eu precisava era de tempo. Sabia como ir suportando a dor e o meu
corpo respondera quase sempre com bons resultados. Não ia desistir só
porque havia uma dor a morder-me no joelho. Havia de passar. O médico
receitou-me medicamentos para diminuir a congestão nos pulmões e nas
narinas e deu-me ibuprofeno para o joelho. Ao fim de dois dias, respirava
melhor, mas ainda não conseguia dobrar a perna direita.
Ora isto seria um problema.
De todos os momentos nas provas BUD/S que eu pensava serem capazes
de me deitar abaixo, nunca me apareceu no radar um exercício de amarrar
nós. Mas, por outro lado, isto não eram os cabrões dos escoteiros. Estou a
falar de um exercício de amarrar nós debaixo de água, na zona da piscina
com quatro metros e meio de profundidade. E embora a água já não
despertasse em mim o medo mortal de outros tempos, o facto de eu ser uma
pessoa com grandes dificuldades em flutuar transformava qualquer
exercício dentro de água num potencial desaire, em especial se exigisse
permanecer à tona.
Mesmo antes da Semana Infernal, tínhamos efetuado exercícios na água.
Realizámos simulações de salvamentos com os instrutores e nadar
cinquenta metros debaixo de água sem barbatanas e de um só fôlego. Esse
exercício começou com um grande salto para a água seguido de um mortal
completo para anular qualquer impulso inicial. A seguir, sem usar a parede
como base para impulso, nadámos pelas pistas até ao fim da piscina de 25
metros. Aí podíamos usar a parede para ganhar impulso para o percurso de
volta. Fiz os cinquenta metros e pus a cabeça fora de água, desesperado por
ar. O coração bateu até a respiração se acalmar e tive então consciência de
que superara o primeiro de uma série de exercícios subaquáticos
complicados, cuja função era ensinar-nos a permanecermos calmos,
tranquilos e serenos enquanto sustínhamos a respiração debaixo de água.
O exercício dos nós era o que se seguia nesta série e não era para avaliar
a capacidade para fazer nós variados nem uma forma para cronometrar o
máximo de tempo que conseguíamos ficar sem respirar. Claro que as duas
coisas dão jeito em operações anfíbias, mas este exercício era mais sobre a
capacidade para lidar com fatores de stresse múltiplos, e simultâneos, num
ambiente adverso aos humanos. Apesar do meu estado de saúde, abordei o
exercício com alguma confiança. As coisas mudaram quando comecei a
flutuar.
Foi logo que o exercício começou, com oito recrutas em fila dentro de
água, a mexer as mãos e os pés como batedeiras. Para mim, isso já é difícil
com duas pernas saudáveis, mas como o joelho direito não funcionava, eu
era obrigado a fazer o trabalho só com a esquerda. O grau de dificuldade
aumentava assim exponencialmente – e o meu ritmo cardíaco também, o
que, por sua vez, esgotava a minha energia.
Cada um de nós tinha um instrutor designado para este exercício – e o
Pete Psicopata pediu especificamente para ficar comigo. Era evidente que
eu passava por dificuldades e o Psicopata, mais o seu orgulho ferido, estava
ávido de uma vingançazinha. Cada volta que eu dava com a perna direita
enviava-me ondas de dor por todo o corpo, explodindo como fogo de
artifício. Mesmo com o Psicopata a olhar-me fixamente, não consegui
esconder. E, quando eu fazia uma careta, ele sorria. Parecia um miúdo na
manhã do dia de Natal.
“Faz um nó quadrado! Agora, um de bolina!”, gritava. Eu trabalhava tão
esforçadamente que era difícil recuperar o fôlego, mas o Psicopata estava-se
a cagar. “Já, porra!” Eu engoli ar, dobrei a cintura e dei um impulso com as
pernas para baixo.
O exercício incluía ao todo cinco nós e cada recruta devia pegar nos seus
vinte centímetros de corda e dar um nó de cada vez no fundo da piscina.
Entre cada um era permitido vir à tona de água respirar, mas também
podiam fazer-se os cinco de um só fôlego. O instrutor anunciava os nós,
mas o ritmo dependia de cada um. Não era autorizado usar máscara nem
óculos de mergulho e o instrutor tinha de erguer o polegar em sinal de que
aprovava cada nó antes de nos ser permitido regressar à superfície. Se o
polegar ficasse para baixo, tínhamos de repetir o nó, corretamente; se
subíssemos antes de sinalizado o OK, isso significava uma reprovação e o
bilhete de volta para casa.
Já de regresso à superfície, não havia descanso ou pausa entre tarefas.
Flutuar era uma constante, o que implicava ritmos cardíacos acelerados e
um permanente consumo do oxigénio na corrente sanguínea para um
homem que tinha apenas uma perna útil. Traduzindo: os mergulhos eram
muitíssimo dolorosos e desmaiar era uma possibilidade real.
O Psicopata olhava para mim fixamente através da sua máscara,
enquanto eu trabalhava nos meus nós. Ao fim de trinta segundos, ele tinha
aprovado dois e viemos ambos à superfície. Ele respirava livremente e com
facilidade, mas eu arfava e engolia ar como um cão molhado e cansado. A
dor no joelho era tão má que sentia gotas de suor a formarem-se na testa.
Quando se está a transpirar numa piscina sem aquecimento já se sabe que há
uma merda qualquer que não está bem. Eu estava sem fôlego, com pouca
energia e queria desistir, mas isso significava o adeus às provas BUD/S – e
isso era coisa que não ia acontecer.
“Oh, coitadinho, estás com dores, Goggins? Entrou-te areia para a
vagina, foi?…”, perguntou-me o Psicopata. “Aposto que não consegues dar
os últimos três nós num só fôlego.”
Disse isto com um sorriso de troça, como se estivesse a desafiar-me. Eu
sabia as regras. Não tinha de aceitar o desafio do Psicopata, mas só isso já ia
deixá-lo demasiado contente – e eu não podia permitir. Fiz que sim com a
cabeça e continuei a flutuar, atrasando o momento de mergulhar até a
pulsação normalizar e eu ser capaz de uma inspiração grande e revigorante.
Mas sempre que eu abria a boca, ele atirava-me água para a cara, para me
stressar ainda mais, uma tática que era usada quando os recrutas
começavam a entrar em pânico. Isso fez com que respirar se tornasse
impossível.
“Ou mergulhas, ou chumbo-te!”
O meu tempo tinha-se esgotado. Procurei engolir algum ar antes de
mergulhar, mas apanhei foi com um bocado da água que o Psicopata me
atirou, enquanto me afundava numa retenção de respiração negativa. Tinha
os pulmões quase completamente vazios, o que queria dizer que comecei
em sofrimento desde o início, mas fiz o primeiro nó em poucos segundos. O
Psicopata demorou o seu tempo a examinar o meu trabalho. Eu tinha o
coração aos saltos como se houvesse um alerta máximo em código Morse.
Sentia-o a mover-se no peito, como se procurasse libertar-se da minha caixa
torácica e voar em liberdade. O Psicopata olhou para o nó, mexeu-lhe e
examinou-o com os olhos e os dedos, antes de erguer o polegar em câmara
lenta. Eu abanei a cabeça, desatei-o e lancei-me ao seguinte. Ele voltou a
inspecioná-lo demoradamente, enquanto o meu peito ardia e o diafragma
estava contraído ao máximo, a tentar empurrar algum ar para os meus
pulmões vazios. O nível de dor no joelho era dez numa escala de dez.
Comecei a ver estrelas no campo de visão periférica. Essas múltiplas fontes
de stresse faziam-me tremer como uma torre de Jenga e sentia-me à beira de
desmaiar. Se isso acontecesse, estaria dependente do Psicopata para me
levar para a superfície e me reanimar. Podia confiar nele para fazer isso? O
gajo detestava-me. E se ele não o fizesse? E se o meu corpo estivesse tão
esgotado que nem uma manobra de reanimação me devolvesse à vida?
A minha mente andava às voltas com todas estas perguntas simples e
tóxicas que nunca se vão embora de vez. Porque estava eu ali? Porquê
sofrer, se podia desistir e regressar ao conforto? Porquê correr um risco de
morte por causa de uma merda de um exercício com nós? Eu sabia que, se
sucumbisse e subisse à superfície, a minha carreira nos SEAL acabaria ali e
agora, mas, nesse momento, não era capaz de dizer porque é que isso me
tinha alguma vez importado.
Voltei-me para olhar para o Psicopata. Ele tinha os dois polegares
erguidos e um sorriso pateta afixado na cara, como se estivesse a ver uma
merda de uma série para rir. O seu microssegundo de prazer por causa da
minha dor trouxe-me à lembrança todos os abusos e troças que tinha sentido
em adolescente, mas em vez de me fazer de vítima e de deixar que as
emoções negativas me retirassem a energia e me obrigassem a subir à
superfície, fracassando, foi como se uma nova luz cintilasse no cérebro e me
permitisse dar à volta ao argumento.
O tempo parou enquanto eu me dava conta, pela primeira vez, de que
tinha sempre olhado para a vida inteira, para tudo aquilo por que tinha
passado, da perspetiva errada. Sim, todos os abusos que eu sentira e os
pensamentos negativos que tivera de contrariar desafiaram-me até ao mais
íntimo de mim, mas, nesse momento, deixei de me ver como a vítima de
uma má circunstância e, em vez disso, olhei para a minha vida como se
fosse o mais absoluto dos campos de treino. Ao longo deste tempo, as
minhas desvantagens tinham estado a fortalecer a minha mente e tinha-me
preparado para aquele momento preciso, na piscina, com o Pete Psicopata.
Lembro-me do meu primeiro dia no ginásio no Indiana. Tinha as palmas
das mãos suaves e depressa ficaram feridas, por não estarem habituadas a
agarrar em barras de aço. Na mentalidade, aplica-se o mesmo princípio. Até
se passarem provações, como abusos e assédios, a mente continuará num
estado suave e exposto. A vida, em especial as experiências negativas, ajuda
a calejá-la. Mas onde surgirá esse calo depende de cada um. Se escolhermos
olhar para nós, até à idade adulta, como vítimas das circunstâncias, a
calosidade vai transformar-se num ressentimento que nos protege daquilo
que não é familiar. Vai tornar-nos demasiado cautelosos e desconfiados – e,
provavelmente, excessivamente zangados com o mundo. Vai tornar-nos
receosos da derrota e inacessíveis, mas não nos dará uma mente forte. Era aí
que me encontrava em adolescente, mas depois da minha segunda Semana
Infernal tinha-me tornado outra pessoa. Já tinha lutado para superar muitas
situações horríveis e continuava aberto e pronto para mais. Essa minha
capacidade para permanecer aberto demonstrava a vontade de lutar pela
minha própria vida, o que me permitia enfrentar verdadeiras tempestades de
dor – e usar essa dor para calejar a minha suave mentalidade de vítima. Essa
merda tinha desaparecido, sepultada sob camadas de transpiração e carne
martirizada –, e agora iniciava também o processo de calejar os meus
medos. Entender isso deu-me a vantagem mental de que necessitava para,
mais uma vez, levar a melhor sobre o Pete Psicopata.
Para lhe mostrar que já não me conseguia fazer mal, sorri-lhe de volta – e
desvaneceu-se a sensação de estar à beira do desmaio. De repente, senti-me
cheio de energia. A dor diminuiu e eu senti que podia ficar debaixo de água
o dia inteiro. O Psicopata viu isso nos meus olhos. Fiz o último nó sem
pressas, sempre a olhar para ele. Fez-me um gesto com as mãos para me
despachar, enquanto o seu diafragma se contraía. Finalmente, acabei, ele
fez-me um gesto afirmativo rápido e bateu com os pés para chegar à
superfície, desesperado por respirar. Eu levei o meu tempo, juntei-me a ele à
superfície e vi-o a arfar, enquanto eu me sentia estranhamente descontraído.
Eu tinha desistido quando as coisas me correram mal no treino aquático de
Para-resgate na Força Aérea. Desta vez, vencera uma batalha importante
dentro de água. Era uma grande vitória, mas a guerra não tinha terminado.
Depois de passar o exercício dos nós, tínhamos dois minutos para subir
para a beira da piscina, vestir-nos e regressarmos à sala de aulas. Na
Primeira Fase, isso é, em geral, tempo mais do que suficiente, mas muitos –
não era só eu – ainda estávamos no processo de recuperação da Semana
Infernal e não nos movíamos ao ritmo-relâmpago habitual. Além do mais,
depois de passada a Semana Infernal, houve na Classe 231 uma ligeira
mudança de atitude.
A Semana Infernal é projetada para mostrar aos recrutas que um ser
humano é capaz de muito mais do que aquilo que pensa. Abre a mente às
verdadeiras possibilidades do potencial humano e, com isso, vem uma
mudança na mentalidade. Deixa-se de recear a água fria ou fazer flexões
todo o dia. Percebe-se que, não importa o que nos façam, nunca nos vão
vencer, e por isso já não nos apressamos tanto para cumprir os prazos
arbitrários que são fixados. Sabes que, se não os cumprires, serás castigado;
o que significa flexões, ficar molhado e areado, tudo coisas que elevem o
coeficiente de dor e de incómodo, mas para os grunhos como nós que ainda
continuavam no grupo, a atitude era Que se lixe! Já ninguém tinha medo
dos instrutores – e não íamos apressar-nos. E eles não gostaram disso nem
um bocadinho.
Eu já tinha visto muitas tareias nas provas BUD/S, mas aquela que nos
aplicaram nesse dia vai ficar como uma das piores de todos os tempos.
Fizemos flexões até já não nos conseguirmos levantar do solo, e depois
fizeram-nos deitar de costas e fazer elevações de pernas. Cada pontapé no ar
era uma tortura para mim. Por causa da dor, continuava a baixar as pernas.
Ou seja, mostrava fraqueza. E, quando se mostra fraqueza, É QUANDO
COMEÇA O JOGO!
O Psicopata e o SBG revezaram-se à minha volta. Passei das flexões aos
pontapés no ar e ao correr a quatro até eles se cansarem. Sentia as partes
móveis do meu joelho a mudarem de lugar, a flutuarem e a oscilarem de
cada vez que andava a quatro – e era uma sensação de agonia. Movia-me
mais lentamente do que o normal e sabia que estava desfeito. Voltou a
surgir-me aquela pergunta simples: Porquê? Tentava provar o quê? Desistir
parecia a opção saudável. O conforto da mediocridade parecia um alívio
doce, até que o Psicopata me gritou aos ouvidos:
“Mexe-te mais depressa, cabrão!”
Mais uma vez, fui invadido por uma sensação extraordinária. Desta vez,
o foco não era vencê-lo a ele. Eu enfrentava a pior dor que alguma vez
suportara, mas a vitória que alcançara minutos antes na piscina veio de novo
ao meu encontro. Eu tinha finalmente provado a mim mesmo que, dentro de
água, era suficientemente competente para pertencer aos SEAL. Ora, isso
era tremendamente estimulante para um tipo com uma capacidade de flutuar
negativa e que nunca na vida tivera uma aula de natação. E só cheguei a
esse ponto porque fiz o trabalho que era preciso. A piscina tinha sido a
minha kriptonite. Eu era um nadador muito melhor nesta fase de recruta dos
SEAL, mas os exercícios na água ainda me stressavam tanto que eu, até
depois de um dia de treinos, ainda costumava ir nadar pelo menos três vezes
por semana. Escalava o muro de quatro metros e meio só para conseguir
acesso fora de horas. Para além da área académica, nada me assustava tanto
nas provas BUD/S como os exercícios de natação; ao dedicar-lhes tempo
extra, conseguia criar resistência a esse medo e, debaixo de água, sob
pressão, atingir novos níveis.
Enquanto o Psicopata e o SBG me arrasavam, pensei como era incrível o
poder de uma mente calejada ao cumprir uma tarefa – e esse pensamento
tornou-se uma sensação que tomou conta do meu corpo e me fez andar à
volta da piscina com a velocidade de um urso. Eu nem acreditava no que
estava a fazer. A dor intensa tinha desaparecido – e as perguntas aborrecidas
também. Eu estava a dar tudo, mais do que nunca, a superar os limites
impostos pela lesão e pela tolerância à dor e a aproveitar um segundo fôlego
proporcionado por uma mente calejada.
Depois do andar à urso, puseram-me outra vez deitado de costas aos
pontapés no ar. E continuava sem dores! Meia hora depois, quando saíamos
da piscina, o SBG perguntou-me: “Goggins, que raio de merda é que te
entrou pelo cu acima para te transformares no Super-homem?” Eu limitei-
me a sorrir e fui-me embora. Não queria dizer nada, porque ainda não
compreendia aquilo que hoje sei.
Assim como se pode usar a energia de um adversário para conseguir uma
vantagem, também depender da mente calejada no calor da batalha pode
mudar o pensamento. Recordar aquilo por que passámos e como isso nos
reforçou a mentalidade pode elevar-nos, para sair de um ciclo mental
negativo e ultrapassar os impulsos de fraqueza, instantâneos, que nos
impelem a desistir, para podermos superar com força os obstáculos. E
quando se usa como alavanca uma mente calejada, como eu fiz na piscina
naquele dia, e se continua a lutar apesar da dor, isso pode ajudar-nos a ir
além dos limites, porque, se aceitarmos a dor como um processo natural e
recusarmos ceder e desistir, vamos envolver o sistema nervoso simpático, o
que modifica o fluxo hormonal.
O sistema nervoso simpático é o nosso reflexo de lutar ou fugir. Está
ativo logo abaixo da superfície, e se estamos perdidos, numa situação
stressante ou em dificuldades, como eu quando era um adolescente
deprimido, é essa a parte da mente que está a controlar a situação. Já todos
passámos por uma situação destas. Naquelas manhãs em que ir correr é a
última coisa que apetece, mas em que, vinte minutos depois de termos
começado, temos uma sensação de energia, a culpa é do sistema nervoso
simpático. O que eu descobri é que podemos recorrer a ele desde que
saibamos manejar a nossa própria mente.
Se permitirmos falar de nós próprios de maneira negativa, as vantagens
de uma resposta do sistema nervoso simpático ficarão fora do nosso
alcance. No entanto, se formos capazes de gerir esses momentos de dor que
estão associados ao esforço máximo, lembrando-nos daquilo por que
tivemos de passar para chegar a esse ponto da vida, estaremos numa posição
melhor para perseverar e para preferir a opção de lutar à de fugir. Isto
permitir-nos-á usar a adrenalina associada a uma resposta do sistema
simpático para nos esforçarmos ainda mais.
Os obstáculos no trabalho e na escola também podem ser superados com
uma mente calejada. Nesses casos, é pouco provável que perseverar num
ponto específico desencadeie uma resposta do sistema simpático, mas
manterá a motivação para ultrapassar qualquer dúvida que surja sobre as
capacidades próprias. Seja qual for o propósito, a oportunidade para
duvidarmos de nós está sempre presente. Sempre que se decide perseguir
um sonho ou fixar uma meta, é igualmente provável que venham à mente
todas as razões pelas quais é baixa a probabilidade de êxito. Podemos lançar
as culpas disto sobre a lixada engrenagem evolutiva da mente humana. Mas
não é preciso deixar que as dúvidas entrem na cabine de comando! Podemos
tolerar a dúvida quando ela vai como passageira no banco de trás, mas se
permitirmos que seja ela a conduzir, a derrota está garantida. Recordar que
já antes se enfrentaram dificuldades e que se sobreviveu sempre, para voltar
a lutar, tem o condão de alterar a conversa que se desenrola na nossa
cabeça. Vai permitir o controlo e a gestão das dúvidas e manter-nos focados
em dar todos e cada um dos passos necessários para concretizar a tarefa em
causa.
Parece simples, certo? Pois não é. Muito poucas pessoas se dão ao
trabalho de procurar controlar a forma como lhes surgem os pensamentos e
as dúvidas. A vasta maioria é escrava das suas mentes. A maior parte nem
sequer dá o primeiro passo para controlar o seu processo de pensamento,
porque é uma tarefa que nunca acaba – e que é impossível realizar sempre
bem. Uma pessoa média tem entre dois mil e três mil pensamentos por hora.
Ou seja, trinta a cinquenta por minuto! O guarda-redes vai deixar passar
alguns desses remates. É inevitável. Em especial se a atitude for a de seguir
pela vida sem esforço.
O treino físico é o tubo de ensaio perfeito para aprender a gerir o
processo de pensamento, porque, ao fazer exercício, é mais provável que a
concentração esteja dirigida numa só direção – e a resposta ao stresse e à
dor seja imediata e mensurável. Vai dar tudo e estabelecer o tal recorde
pessoal que disse que seria capaz ou vai fracassar? Esse desfecho raramente
depende da capacidade física, é quase sempre um teste a quão bem se está a
controlar a mente. Se se esforçar para cumprir cada série de exercícios e
usar essa energia para manter um ritmo forte, tem uma grande hipótese de
alcançar um tempo mais rápido. Não há dúvida de que é mais fácil
conseguir isso nuns dias do que noutros. E o cronómetro, ou o registo, não
importa de qualquer forma. O motivo pelo qual é importante dar o máximo
nas alturas em que se quer desistir é porque isso ajuda a calejar a mente. É a
mesma razão pela qual é preciso trabalhar melhor quando se está menos
motivado. Foi por isso que adorei o treino físico nas provas BUD/S – e
porque ainda hoje o adoro. Os desafios físicos fortalecem a minha mente,
para estar pronto para tudo aquilo que a vida me puser pela frente. Também
farão isso por si.
Mas, por muito bem que se façam as coisas, uma mente calejada não
cura ossos partidos. Na caminhada de quilómetro e meio de regresso ao
complexo BUD/S, a sensação de vitória evaporou-se e pude sentir o mal
que tinha feito a mim próprio. Tinha vinte semanas de treino e dezenas de
exercícios pela frente e mal conseguia andar. Queria negar a dor que tinha
no joelho, mas sabia que estava lixado, por isso fui diretamente ao médico,
a coxear.
Ao observar o joelho, o médico não disse nada. Limitou-se a abanar a
cabeça e mandou-me fazer uma radiografia que revelou uma fratura da
rótula. Nas provas BUD/S, quando os reservistas sofrem lesões que
demoram muito a curar, são mandados para casa – e foi o que me
aconteceu.
Regressei à caserna de muletas, desmoralizado e, ao sair, vi alguns dos
tipos que desistiram durante a Semana Infernal. Sentira pena por eles ao ver
pela primeira vez os seus capacetes alinhados por baixo da sineta, porque
conhecia bem a sensação de vazio que desistir provoca, mas vê-los frente a
frente nesse momento recordou-me que falhar faz parte da vida e que todos
tínhamos de seguir em frente.
Eu não tinha desistido, por isso sabia que voltaria a ser convidado, mas
não fazia ideia se isso implicaria ter de passar por uma terceira Semana
Infernal. Ou se, depois de ter voltado ao início duas vezes, ainda teria o
desejo ardente de abrir caminho através de outro furacão de dor, sem
qualquer garantia de êxito. Dado o meu historial de lesões, como poderia
saber? Deixei o complexo das BUD/S com mais consciência de mim e
domínio da minha mente do que nunca, mas o meu futuro era incerto como
sempre.
***
Os aviões sempre me causaram claustrofobia, por isso decidi ir de
comboio de San Diego para Chicago, o que me deu três dias inteiros para
pensar. E tinha a cabeça toda feita num oito. No primeiro dia, já nem sabia
se queria ser um SEAL. Tinha ultrapassado muita coisa. Superara a Semana
Infernal, compreendera o poder de uma mente calejada e dominado o medo
que tinha da água. Talvez já tivesse aprendido o suficiente sobre mim? Que
mais precisava de provar? No segundo dia, pensei sobre todos os outros
empregos a que poderia candidatar-me. Talvez devesse mudar de vida e ir
para bombeiro? É um trabalho lixado – e seria uma maneira de me tornar
uma espécie diferente de herói. Mas, no terceiro dia, quando o comboio fez
o desvio para Chicago, entrei numa casa de banho do tamanho de uma
cabine telefónica e olhei-me ao Espelho da Responsabilidade. É mesmo
assim que te sentes? Tens a certeza de estar pronto para desistir dos SEAL e
transformares-te num bombeiro civil? Olhei-me fixamente durante cinco
minutos antes de abanar a cabeça. Não podia mentir a mim próprio. Tinha
de falar comigo com verdade – e com clareza.
“Tenho medo. Tenho medo de voltar a passar outra vez por aquela merda
toda. Tenho medo do primeiro dia da primeira semana.”
Já estávamos divorciados, mas a Pam, a minha ex-mulher, veio buscar-
me à estação para me levar a casa da minha mãe, em Indianápolis. A Pam
ainda vivia em Brazil. Quando eu estava em San Diego tínhamos falado e,
depois de nos vermos entre a multidão que estava na plataforma da estação,
regressámos aos velhos hábitos; nessa noite, também regressámos à cama.
Nesse verão inteiro, de maio a novembro, fiquei no Midwest, a curar o
joelho e depois a fazer reabilitação. Ainda era reservista, mas continuava
indeciso sobre regressar ao treino dos SEAL. Fiz uma investigação sobre os
marines. Avaliei também os processos de candidatura a uma dezena de
unidades de bombeiros, mas, por fim, peguei no telefone e telefonei para o
quartel da instrução BUD/S. Eles precisavam de saber a minha decisão
final.
Sentado, de telefone na mão, fui passando em revista as vicissitudes do
treino para SEAL. Porra, corres dez quilómetros por dia só para comer, e
isso sem contar com as corridas de treino. Visualizei todos os exercícios de
natação e de remo, as caminhadas a carregar à cabeça barcos pesadíssimos e
troncos, dias passados na berma da estrada. Passaram-me pela cabeça as
horas a fazer elevações, abdominais, flexões e a pista com obstáculos.
Recordei a sensação de arrastar-me pela areia, de estar arranhado e ferido
todos os malditos dias e noites. As minhas memórias eram uma experiência
de mente e corpo e eu sentia o frio profundamente entranhado nos ossos.
Uma pessoa normal desistiria. Diria: porra, isto não é para mim, o que não
tem de ser não tem de ser, e recusar-se-ia a deixar-se torturar mais um
minuto que fosse.
Mas eu não estava programado de uma maneira normal.
Enquanto marcava o número, os pensamentos negativos erguiam-se
como uma sombra zangada. Não podia deixar de pensar que tinha sido
posto na terra para sofrer. Porque é que os meus demónios pessoais, o
destino, Deus, ou Satanás não me deixavam simplesmente em paz? Estava
cansado de tentar provar quem era. Farto de calejar a minha mente.
Encontrava-me mentalmente esgotado, até ao mais fundo de mim. Por outro
lado, estar totalmente esgotado é o preço a pagar por ser duro, e eu sabia
que, se desistisse, esses sentimentos e pensamentos não desapareceriam
como que por encanto. O preço de desistir seria passar o resto da vida no
purgatório. Ficaria aí aprisionado, sabendo que não tinha continuado a
combater até ao amargo final. Não há vergonha nenhuma em ser derrubado
num combate. A vergonha vem quando se atira ao chão a maldita toalha – e,
se eu nascera para sofrer, o melhor era beber o remédio até ao fim.
O oficial de treino deu-me as boas-vindas e confirmou: sim, começaria
no primeiro dia, na primeira semana. Como era de esperar, a minha t-shirt
castanha teria de ser trocada por uma branca. E ainda tinha mais uma boa
notícia para me dar: “Goggins, já sabes: esta é a última vez que te
permitimos fazer o treino BUD/S. Se voltares a magoar-te, acabou-se. Não
te autorizamos a regressar mais.”
“Entendido”, respondi.
A Classe 235 começava daí a quatro semanas. O joelho ainda não estava
completamente bem, mas o melhor era pôr-me bom, porque o teste
definitivo vinha aí.
Segundos depois de desligar, a Pam telefonou-me para dizer que
precisava de ver-me. Era uma boa ocasião. Eu ia voltar a sair da cidade, e
com sorte seria de vez, e era importante ter uma conversa sincera com ela.
Tínhamos estado a desfrutar a companhia um do outro, mas para mim era
sempre qualquer coisa de temporário. Tínhamos sido casados e ainda
éramos duas pessoas diferentes com diferentes visões do mundo. Isso não
tinha mudado e era óbvio que algumas das minhas inseguranças também
não, pois continuavam a fazer-me regressar àquilo que me era familiar.
Insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar que o resultado
seja diferente. Nunca resultaríamos juntos e chegara o momento de o dizer.
Mas ela deu-me primeiro as suas notícias.
“Estou atrasada”, disse assim que entrou, a segurar um pequeno saco de
papel. “Atrasada tipo mesmo atrasada.” A Pam parecia emocionada e
nervosa e desapareceu na casa de banho. Consegui ouvir o saco de papel a
ser rasgado e uma caixa a ser aberta; fiquei deitado na cama, a olhar para o
teto. Minutos depois, ela abriu a porta da casa de banho, segurando um teste
de gravidez e com um sorriso enorme. “Eu sabia”, disse, a morder o lábio
inferior. “Olha, David, estamos grávidos!”
Levantei-me lentamente, ela abraçou-me com toda a força e a emoção
dela desfez-me o coração. Isto não devia acontecer. O meu corpo
continuava desfeito, tinha uma dívida de 30 000 dólares em cartões de
crédito e ainda era reservista. Não tinha morada própria nem um automóvel.
Era instável, e isso tornava-me muito inseguro. Além do mais, não estava
apaixonado por aquela mulher. Foi isso que disse a mim próprio ao olhar-
me fixamente, por cima do ombro dela, para o Espelho da
Responsabilidade. O espelho que nunca mente.
Desviei os olhos.
A Pam voltou a casa para dar a notícia aos pais. Eu acompanhei-a à porta
de casa da minha mãe e, depois, deixei-me cair no sofá. Em Coronado, senti
que tinha resolvido o meu passado lixado e até encontrado nele algum
poder, e agora aqui estava eu, mais uma vez puxado para baixo. Agora, já
não era só o meu sonho de ser um SEAL. Tinha uma família em que pensar
– e isso dava a toda a situação uma dimensão imensamente maior. Desta
vez, se falhasse, isso não significaria apenas um regresso à casa de partida,
emocional e financeiro, mas que estaria a arrastar para aí, comigo, a minha
nova família. Contei tudo à minha mãe quando ela chegou a casa. Ao
conversarmos, o dique rompeu-se: o meu medo, tristeza e dilemas
explodiram para fora de mim. Pus a cabeça entre as mãos e chorei.
“Mãe, desde que nasci até hoje, a minha vida tem sido um pesadelo. Um
pesadelo que vai ficando pior”, disse-lhe. “Quanto mais me esforço, mais
difícil a vida se torna.”
“Não posso dizer-te que não”, respondeu-me. A minha mãe conhecia o
inferno e não estava a tratar-me como uma criança. “Mas também te
conheço o suficiente para saber que vais encontrar uma maneira de
ultrapassar isto.”
“Tem de ser”, disse-lhe, limpando as lágrimas. “Não tenho escolha.”
Ela deixou-me só e eu fiquei sentado no sofá toda a noite. Sentia que me
tinham tirado tudo, mas continuava vivo, o que significava que tinha de
arranjar uma maneira de seguir em frente. Tinha de compartimentar as
dúvidas e de encontrar a força para acreditar que tinha nascido para mais do
que ser um maldito coitadinho rejeitado pelos SEALS. Depois da Semana
Infernal, tinha-me sentido inquebrável e, no entanto, passada outra semana,
já era nada outra vez. Afinal, não me tinha elevado. Mas eu não era uma
merda e, se queria consertar a minha vida lixada, teria de ser mais do que
era.
Naquele sofá, encontrei uma maneira.
Eu já aprendera então a assumir a responsabilidade pelas coisas – e sabia
que era capaz de conquistar a alma de um homem no calor da batalha. Tinha
superado muitos obstáculos e percebi que cada uma dessas experiências me
tinha calejado a mente de uma forma tão rija que era capaz de enfrentar
qualquer desafio. Tudo isso me dera a impressão de que resolvera os meus
demónios do passado, mas não era verdade. Tinha estado era a ignorá-los.
As recordações dos abusos sofridos às mãos do meu pai, de todas as pessoas
que me chamaram nigger, não se evaporaram ao fim de algumas poucas
vitórias. Esses momentos encontravam-se profundamente enraizados no
meu subconsciente – e, em consequência disso, os meus alicerces
apresentavam fendas. Ora, num ser humano, o caráter são os alicerces, e
quando conseguimos muitos êxitos e os acumulamos com ainda mais
fracassos sobre uma base cheia de falhas, a estrutura que somos não será
sólida. Para desenvolver uma mente blindada – tão calejada que se torna à
prova de bala – é preciso ir à origem de todos os medos e inseguranças.
A maior parte das pessoas varre para debaixo do tapete os fracassos e os
segredos obscuros. Mas quando enfrentamos problemas, esse tapete é
levantado e a nossa escuridão reemerge, inunda a alma e influencia as
decisões que determinam o nosso caráter. Os meus medos nunca foram só
sobre a água, e as minhas ansiedades em relação à Classe 235 não eram
sobre a dificuldade da Primeira Fase. Vinham sim de feridas infetadas com
as quais tinha andado a vida inteira – e o facto de as negar equivalia a
negar-me a mim mesmo. Eu era o meu pior inimigo! Não era nem o mundo,
nem Deus, nem o Diabo, que estavam apostados em apanhar-me. Era eu!
Eu estava a rejeitar o meu passado e, portanto, a rejeitar-me. Os meus
alicerces, o meu caráter, eram definidos pela autorrejeição. Todos os medos
provinham de um mal-estar profundamente instalado que carregava comigo
pelo facto de ser David Goggins, por causa daquilo por que tinha passado.
Já depois de ter atingido um ponto em que não me importava mais o que
outros pensavam de mim, eu ainda tinha problemas em aceitar-me.
Qualquer pessoa sã de corpo e mente pode sentar-se e pensar em vinte
coisas que podiam ter corrido de maneira diferente na sua vida. Em
situações nas quais não foi provavelmente tratada com justiça ou em que
seguiu o caminho do menor esforço. Se é um dos poucos que reconhece isso
e quer calejar essas feridas e fortalecer o seu caráter, cabe-lhe a si passar em
revista o seu passado e fazer as pazes consigo, encarando esses incidentes e
todas as suas influências negativas e aceitando-os como fragilidades do seu
próprio caráter. Só quando identificar e aceitar as suas debilidades deixará
de fugir do passado. E então poderá usar esses incidentes mais eficazmente,
como combustível para ser tornar melhor e mais forte.
Ali mesmo, no sofá de casa da minha mãe, quando a Lua fazia o seu arco
no céu noturno, enfrentei os meus próprios demónios. Enfrentei-me a mim.
Não podia continuar a fugir do meu pai. Tinha de aceitar que ele era uma
parte de mim e que a sua personalidade mentirosa e vigarista me tinha
influenciado mais do que eu queria admitir. Antes dessa noite, costumava
dizer às pessoas que o meu pai tinha morrido, em vez de lhes contar a
verdade sobre quem eu era. Até nos SEAL era essa a mentira que eu
contava. E eu sabia porquê. Quando se foi espancado, não se quer
reconhecer isso. Não é coisa que nos faça sentir muito homem, por isso o
mais fácil é esquecer e seguir. Fingir que nunca aconteceu.
Mas nunca mais.
Para conseguir avança, tornou-se muito importante reavaliar a minha
vida, porque ao passar a pente fino as nossas experiências e ao ver qual é a
origem dos nossos problemas, é possível encontrar força em suportar dor e
abuso. Ao aceitar Trunis Goggins como parte de mim, eu ficava livre para
usar o meu passado como combustível. Percebi que cada episódio de abuso
infantil que podia ter-me matado me tornou duro como o catano e tão afiado
como uma espada de samurai.
É verdade: a vida tinha-me dado umas cartas lixadas. Mas, nessa noite,
comecei a pensar nela como se fosse uma corrida de 150 quilómetros com
uma mochila de 22 quilos às costas. Seria capaz de competir nessa prova,
mesmo que os outros todos corressem com facilidade e livremente, pesando
sessenta quilos? Com que rapidez conseguiria correr logo que me libertasse
de todo esse peso morto? Ainda não pensava em ultramaratonas. Para mim,
a corrida era a vida em si, e quanto mais pensava, mais compreendia até que
ponto estava preparado para os acontecimentos lixados que se avizinhavam.
A vida tinha-me levado ao fogo, tinha-me tirado, dado marteladas repetidas
e agora encaminhava-me de novo para o caldeirão do treino BUD/S; senti
que mergulhar numa terceira Semana Infernal no espaço de um ano me
condecoraria com um doutoramento em dor. Eu estava prestes a tornar-me a
espada mais afiada jamais forjada.
***
Apresentei-me na Classe 235 com uma missão e mantive-me reservado
durante a maior parte da Primeira Fase. No primeiro dia, éramos 156
homens. Eu ainda era um líder, mas desta vez não queria fazer de guardião
de ninguém durante a Semana Infernal. O joelho continuava inflamado e
precisava de concentrar todas as energias em concluir as provas BUD/S.
Tinha pela frente seis meses em que tudo ia acontecer e não tinha ilusões
sobre como ia ser difícil chegar ao fim do treino.
Um bom exemplo: o Shawn Dobbs.
Dobbs cresceu na pobreza, em Jacksonville, na Flórida. Teve de
combater alguns dos mesmos demónios que eu e chegou ao curso com uma
atitude de ressentimento para com o mundo. Eu percebi imediatamente que
ele era um atleta de elite natural. Era o primeiro em todas as corridas, ou
andava lá perto, fez o percurso de obstáculos nuns incríveis oito minutos e
meio ao fim de umas poucas tentativas e era um gajo que sabia que era um
cabrão duro. Mas, lá está, é como dizem os taoistas: os que sabem, não
falam, e os que falam, bom, não sabem nada de nada.
Na noite anterior ao começo da Semana Infernal, ele disse muita coisa
sobre os tipos da Classe 235. Já havia 55 capacetes alinhados na Trituradora
e ele tinha certeza de que ia ser um da meia dúzia a chegar ao fim. Referiu
os nomes dos tipos que sabia que iam chegar ao fim e também disse muitos
disparates sobre os tipos que sabia que iam desistir.
Ele não fazia ideia de que estava a cometer o erro clássico de se
comparar com outros do curso. Quando os vencia num exercício ou os
superava no treino físico, ficava muito orgulhoso disso. Era uma coisa que
lhe aumentava a autoconfiança e o desempenho. Nas provas BUD/S é
comum e natural que isto aconteça. Faz tudo parte da natureza competitiva
dos machos alfa que são atraídos para se tornar SEAL, mas ele não
percebeu que, na Semana Infernal, é precisa uma tripulação sólida para
sobreviver, o que significa depender dos companheiros e não vencê-los. Eu
reparei nisso enquanto ele falava e falava. Ele não fazia ideia do que o
esperava e até que ponto a privação de sono e o frio nos podem lixar a
cabeça. Ia descobrir sozinho. Nos primeiros momentos da Semana Infernal,
teve um bom desempenho, mas esse impulso para derrotar os companheiros
nos exercícios e nas corridas cronometradas acabou por se revelar na praia.
Com 1,64 metros e 85 quilos, o Dobbs tinha a estrutura física de uma
boca de incêndio, mas por ser baixo foi colocado numa tripulação de tipos
mais pequenos – a quem os instrutores tratavam por Smurfs. Na verdade, o
Pete Psicopata obrigou-os a fazer um desenho do Papá Smurf na parte da
frente do barco, só para gozar com eles. Era o género de coisas que os
instrutores faziam. Procuravam qualquer maneira de nos deitar abaixo – e
com o Dobbs funcionou. Ele não gostou de ser posto num grupo com os
tipos que considerava mais baixos e mais fracos – e vingava-se neles. No
dia seguinte, à frente de todos nós, triturou a sua própria equipa. Tomou
posição à frente a carregar o barco ou o tronco e marcou um ritmo de
corrida alucinante. Em vez de se ajustar à equipa e de guardar energia, deu
tudo desde o início. Falei com ele há pouco tempo e disse que se lembrava
do treino BUD/S como se tivesse sido na semana passada.
“Eu estava a desforrar-me na minha própria equipa”, disse-me.
“Desfazia-os de propósito, quase como se fazê-los desistir significasse uma
marca extra no meu capacete.”
Na segunda-feira de manhã, já tinha feito um bom trabalho nesse sentido.
Dois dos companheiros já tinham renunciado – o que significava que quatro
tipos de baixa estatura tinham de carregar o barco e os troncos sozinhos. Ele
admitiu-me que, naquela praia, combatia contra os seus próprios demónios.
Que os seus alicerces estavam cheios de rachas.
“Eu era um tipo inseguro, com baixa autoestima, à procura de me vingar,
e o meu ego, arrogância e insegurança dificultaram a minha própria vida.”
Tradução: a sua mente desmoronou-se de maneiras que ele nunca tinha
sentido antes – nem desde então.
Na segunda-feira à tarde, fomos fazer um percurso de natação na baía e
ele saiu da água em sofrimento. Via-se que mal conseguia caminhar e que a
sua mente balançava sobre o abismo. Olhámos um para o outro e eu vi que
ele colocava a si mesmo aquelas perguntas simples, sem encontrar uma
resposta. Era muito parecido comigo quando passei pelo Para-resgate, à
procura de uma maneira de me safar. A partir daí, o Dobbs foi um dos
recrutas com pior desempenho em toda a praia – e isso deitou-o muito
abaixo.
“Todas as pessoas que eu tinha catalogado como inferiores a vermes
estavam a dar-me dez a zero”, resume. Em breve, a tripulação dele ficou
reduzida a dois homens e ele viu-se transferido para outra equipa, com tipos
mais altos. Quando eles levantavam o barco, ele nem sequer era capaz de
lhe chegar – e todas as inseguranças sobre a sua altura e o seu passado
começaram a fazer-lhe mossa.
“Comecei a ter a convicção de que o meu lugar não era ali”, disse. “De
que era geneticamente inferior. Era como se tivesse tido superpoderes, mas
os tivesse perdido. Encontrava-me num lugar onde a minha mente nunca
tinha estado – e não tinha um mapa para me orientar.”
Imagine por um instante onde é que ele estava nesse momento. Aquele
homem tinha tido um desempenho excecional nas primeiras semanas das
provas BUD/S. Tinha saído do nada e era um atleta fenomenal. Passara no
seu percurso por imensas experiências, nas quais se podia ter apoiado. Tinha
a mente bastante calejada, mas os seus alicerces apresentavam rachas e,
quando as situações se tornaram extremas, perdeu o controlo da mente e
tornou-se escravo das dúvidas sobre si próprio.
Na segunda-feira à noite, o Dobbs apresentou-se aos médicos, a queixar-
se dos pés, afirmando estar seguro de que tinha fraturas de stresse, mas
quando tirou as botas, os pés não estavam inchados, nem com hematomas,
como ele imaginara. Pareciam perfeitamente saudáveis. Eu sei isso porque
estava sentado ao lado dele, a fazer um exame médico. Vi o seu olhar
perdido e soube que o inevitável estava próximo. Era o olhar que aparece na
cara de um homem depois de a sua alma se render. Quando saí do Para-
resgate era esse mesmo olhar que tinha. O que me unirá para sempre ao
Shawn Dobbs é o facto de eu saber que ele ia desistir antes de ele saber.
Os médicos deram-lhe ibuprofeno e mandaram-no de volta ao
sofrimento. Lembro-me de o ver a apertar as botas e de pensar quando é que
ele se iria abaixo de vez. Foi aí que o SBG chegou no seu camião e gritou:
“Esta vai ser a noite mais fria que vocês vão sentir em todas as vossas
vidas!”
Eu e a minha tripulação tínhamos o barco erguido sobre a cabeça e íamos
a caminho do infame Molhe de Aço, quando espreitei para trás e vi o Shawn
no banco traseiro do camião quentinho do SBG. Tinha-se rendido. Daí a
minutos, ele tocaria a sineta três vezes e alinharia o capacete ao lado dos
outros.
Em defesa do Dobbs, é preciso dizer que esta foi uma Semana Infernal
de pesadelo. Choveu dia e noite – o que significa que era impossível secar e
aquecer. Além disso, alguém do comando teve a ideia brilhante de que o
grupo, desta vez, não devia ter um rancho de luxo. Quase todas as refeições
eram rações prontas a comer, frias. Devem ter pensado que o desafio seria
ainda maior. Que tudo se pareceria mais com uma situação num campo de
batalha a sério. Também queria dizer que não havia descanso absolutamente
algum e que, sem calorias abundantes para queimar, era difícil para todos
encontrar a energia para superar a dor e a exaustão, quanto mais para manter
o corpo quente.
Sim, era uma desgraça, mas eu adorava aquilo perdidamente. Adorava a
beleza bárbara de ver a alma de um homem ser destruída, para depois se
reerguer e ultrapassar todos os obstáculos colocados no seu caminho. Era a
minha terceira tentativa e eu já sabia o que o corpo humano conseguia
aguentar. Sabia o que eu aguentava e alimentava-me dessa merda. Mas as
minhas pernas não se sentiam bem e o meu joelho incomodava-me desde o
primeiro dia. Até aí, a dor era de um grau que eu conseguia suportar mais
uns dias, pelo menos, mas a ideia de uma lesão era qualquer coisa que eu
tinha de bloquear da minha mente. Fui para um lugar escuro em que existia
apenas a dor, o sofrimento e eu. Não me focava nos meus companheiros
nem nos instrutores. Entrei em modo integral homem das cavernas. Estava
disposto a morrer para concluir o maldito programa de treino.
Não era o único. Na quarta-feira à noite, já tarde, a 36 horas do final da
Semana Infernal, a tragédia atingiu a Classe 235. Estávamos na piscina para
um exercício designado “nadar à minhoca”, em que cada tripulação nadava
de costas, com as pernas entrelaçadas nos troncos, formando uma cadeia.
Para nadar, era preciso usar as mãos de forma coordenada.
Reunimo-nos na piscina. Só restávamos 26, e um deles chamava-se John
Skop. Era uma figura, com 1,88 metrso e 102 quilos, mas tinha andado
doente desde o início, sempre a entrar e a sair do consultório médico.
Enquanto 25 recrutas estavam de pé, em sentido, na beira da piscina,
inchados, esfolados e a sangrar, ele sentou-se nas escadas ao lado da água, a
tiritar de frio violentamente. Parecia estar a congelar, mas havia ondas de
calor que irradiavam da sua pele. O corpo dele era um radiador em potência
máxima. Eu sentia-o a três metros de distância.
Na minha primeira Semana Infernal, tinha tido uma pneumonia e sabia
identificá-la e qual era a sensação. Ele tinha os alvéolos pulmonares cheios
de fluido. Não conseguia limpá-los, por isso mal conseguia respirar, o que
agravava o seu problema. Quando uma pneumonia se torna descontrolada
pode levar a um edema pulmonar, que pode ser fatal. Ele ia a meio caminho
disso.
Como era de esperar, durante o exercício de nadar à minhoca as pernas
dele ficaram flácidas e afundou-se como se fosse um boneco cheio de
chumbo. Dois instrutores saltaram atrás dele, e a partir daí foi o caos.
Mandaram-nos sair da água e alinharam-nos ao longo da vedação, com as
costas voltadas para a piscina, enquanto os médicos procuravam reanimar o
senhor Skop. Ouvíamos tudo e sabíamos que as suas probabilidades de
sobreviver estavam a esfumar-se. Cinco minutos depois, ele ainda não
respirava e mandaram-nos para os balneários. O senhor Skop foi levado
para o hospital e a nós disseram-nos para regressar à sala de aulas. Ainda
não sabíamos, mas a Semana Infernal já tinha terminado. Minutos mais
tarde, o SBG entrou e deu a notícia com brusquidão.
“O Sr. Skop está morto”, disse. Olhou em volta. As suas palavras foram
como um soco no estômago coletivo, aplicado a homens que já estavam no
fio da navalha, ao fim de quase uma semana sem dormir e sem repouso. O
SBG estava-se a cagar. “É este o mundo em que vocês vivem. Na vossa
linha de trabalho, ele não foi o primeiro a morrer e não será o último.”
Fixou o companheiro de quarto do Sr. Skop e disse: “Sr. Moore, não roubes
nada das merdas dele.” A seguir, saiu da sala como se fosse apenas mais um
dia tramado.
Senti-me dividido entre dor, náusea e alívio. A notícia da morte do Sr.
Skop deixou-me triste e nauseado, mas estávamos todos aliviados por
termos sobrevivido à Semana Infernal, além de que a maneira como o SBG
tinha tratado do assunto fora direta, sem rodeios, e lembro-me de pensar
que, se todos os SEAL fossem como ele, este seria sem dúvida o meu
mundo. Quantas emoções juntas.
A questão que a maioria dos civis não compreende é que é preciso um
certo grau de calejamento para executar o trabalho para o qual somos
treinados. Para viver num mundo brutal, é preciso aceitar verdades com
sangue-frio. Não estou a dizer que seja bom. Não tenho necessariamente
orgulho nisso. Mas as operações especiais são um mundo calejado e exigem
uma mente calejada.
A Semana Infernal terminou 36 horas antes do previsto. Não houve pizas
nem a cerimónia das t-shirts castanhas na Trituradora, mas 25 homens em
156 tinham chegado ao fim. Mais uma vez, eu era uns dos poucos, e mais
uma vez estava tão inchado como o logotipo do pasteleiro da Pillsbury e de
muletas, isto quando ainda faltavam 21 semanas de treinos. Tinha a rótula
intacta, mas as duas tíbias apresentavam pequenas fraturas. Ainda havia
pior. Os instrutores, irritados por terem tido de terminar prematuramente a
Semana Infernal, acabaram com a semana de descanso ao fim de apenas 48
horas. Fosse qual fosse o ângulo de avaliação, as minhas possibilidades de
concluir o curso pareciam outra vez muito baixas. Estava lixado. Quando
mexia os tornozelos, o movimento passava para as tíbias e eu sentia uma
dor abrasadora, o que era um problema monumental, porque uma semana
típica nas provas BUD/S exige correr até cem quilómetros. Imagine fazer
isso com fraturas nas duas tíbias.
A maior parte dos tipos da Classe 235 viviam no Centro de Comando
Naval de Guerra Especial, em Coronado. Eu vivia a cerca de 32
quilómetros, num apartamento de uma só divisão, em Chula Vista, que
custava setecentos dólares por mês e tinha um problema de bolor; estava lá
com a minha mulher grávida e a minha enteada. Depois de a Pam
engravidar, voltámos a casar, comprei um Honda Passport novo – o que me
deixou com uma dívida de cerca de sessenta mil dólares – e fomos os três
de Indiana para San Diego, com a ideia de reconstituir a família. Eu
concluíra a Semana Infernal pela segunda vez no espaço de um ano, e a
previsão era que ela desse à luz exatamente a coincidir com o fim do curso,
mas não havia felicidade nem na minha cabeça nem na minha alma. Como
podia haver? Vivíamos num pardieiro que estava no limite do que
conseguíamos pagar, e eu tinha o corpo outra vez desfeito. Se não
conseguisse completar o programa nem sequer seria capaz de pagar a renda,
teria de recomeçar do zero. Encontrar uma nova linha de trabalho. Não
podia deixar que isso acontecesse – e não deixaria.
Na noite antes de a Primeira Fase voltar a aumentar de intensidade, rapei
a cabeça e olhei para a minha imagem no espelho. Suportava uma dor
extrema há quase dois anos seguidos – e regressava para mais. Tinha tido
momentos de êxito, mas acabava sempre por ser enterrado vivo em
fracasso. Nessa noite, a única coisa que me permitiu seguir em frente foi
saber que tudo aquilo por que tinha passado calejara a minha mente. A
pergunta era: qual a espessura desse calo? Quanta dor poderia um homem
suportar? Tinha em mim aquilo que era necessário para correr com as
pernas partidas?
Acordei às 3h30 da madrugada e conduzi até à base. Fui a coxear até à
jaula onde guardávamos o equipamento BUD/S e deixei-me cair sobre um
banco, largando a mochila aos pés. Estava muito escuro, dentro e fora, e eu
encontrava-me completamente sozinho. À distância, ouvia as ondas
enquanto vasculhava na mochila de mergulho. Havia dois rolos de adesivo
enterrados debaixo do equipamento. Sabendo como o meu plano era louco,
quando peguei neles só abanava a cabeça e sorria.
Calcei cuidadosamente no pé direito uma meia preta grossa. A canela
estava sensível ao tato e até o menor movimento do tornozelo atingia um
registo elevado na minha escala de sofrimento. Apliquei a fita no calcanhar,
à volta do tornozelo, e depois outra vez no calcanhar, movendo o pé para
cima e para baixo até toda a zona inferior da perna e o pé ficarem bem
embrulhados. Isto era só a primeira camada. Depois, pus mais uma meia
grossa e apliquei fita no tornozelo e no pé da mesma maneira. No fim, tinha
duas meias e duas camadas de fita e, quando calcei as botas e apertei os
atacadores, o tornozelo e a tíbia estavam protegidos e imobilizados.
Satisfeito, passei ao pé esquerdo e, uma hora depois, era como se tivesse as
duas pernas envolvidas em gesso macio. Ainda me doía ao andar, mas a
tortura que sentia quando movia o tornozelo era mais tolerável. Ou pelo
menos era o que eu pensava. Descobriria ao certo quando começássemos a
correr.
A primeira corrida de treino nesse dia foi a minha prova de fogo e fiz o
melhor que pude para usar os músculos flexores da anca. Em geral,
deixamos que os pés e a parte inferior das pernas ditem o ritmo. Eu
precisava de mudar isso. Necessitei de uma concentração intensa para isolar
cada movimento e gerar movimento e energia nas pernas da cintura para
baixo. Nos primeiros trinta minutos, a dor foi a pior que jamais sentira na
vida. A fita adesiva cortava-me a pele e cada choque com o chão enviava
ondas de dor pelas minhas tíbias fraturadas.
E esta era só a primeira saída a correr do que prometiam ser cinco meses
de dor contínua. Seria possível sobreviver a isto, dia após dia? Pensei em
desistir. Se o fracasso era o meu futuro e eu teria de repensar completamente
a minha vida, que sentido fazia realizar este exercício? Porquê atrasar o
inevitável? Estava lixado da cabeça? Cada pensamento ia sempre parar à
mesma velha pergunta: porquê?
“A única maneira de garantir o fracasso imediato é desistir, meu grande
cabrão!” Isto era eu a falar comigo. A gritar, em silêncio, por cima do
estrondo da angústia que me esmagava a mente e a alma. “Aguenta a dor ou
não será só o teu fracasso. Será o fracasso da tua família!”
Imaginei o que sentiria se conseguisse realmente chegar ao fim. Se fosse
capaz de suportar a dor necessária para completar esta missão. Isso
conseguiu-me mais um quilómetro e meio, antes de mais dor se abater sobre
mim, como um tufão, dando-me voltas nas entranhas.
“Já é difícil fazer a BUD/S com saúde e tu estás aqui com duas pernas
partidas! Quem é que mais se lembraria de fazer uma coisa destas?”,
perguntei-me. “Quem mais seria capaz de correr um minuto com uma perna
partida, quanto mais dois? Só tu, Goggins! Já estás a fazer isso há vinte
minutos, Goggins! És uma máquina do catano! Cada passada que dês daqui
até ao fim só te vai tornar mais forte!”
Esta última mensagem decifrou o código como se fosse uma palavra-
passe. A minha mente calejada era o meu bilhete para seguir em frente e, à
passagem dos quarenta minutos, aconteceu uma coisa realmente
extraordinária. A dor abrandou para uma maré baixa. A fita adesiva alargara,
por isso já não cortava a pele, e os músculos e ossos tinham aquecido o
suficiente para aguentar o embate dos pés no chão. Ao longo do dia, a dor ia
tornar-se mais forte, e depois diminuir, mas tornou-se mais gerível, e
quando ela aparecia,eu dizia a mim próprio que isso provava como eu era
um tipo rijo – e como estava a tornar-me ainda muito mais duro.
Aquele ritual desenrolou-se dia após dia. Eu chegava cedo, atava os pés,
suportava trinta minutos de dor extrema, conversava comigo e convencia-
me a continuar, e sobrevivia. Isto não era daquelas merdas de “vai fingindo
até conseguires”. Para mim, o facto de estar presente todos os dias, pronto a
sujeitar-me a uma coisa daquelas, era verdadeiramente surpreendente. Os
instrutores também me recompensaram por isso. Ofereceram-se para me
atar as mãos e os pés e para me atirarem para a piscina, a ver se conseguia
nadar quatro malditas voltas. Na verdade, não se ofereceram. Insistiram. Era
uma parte de um exercício a que eles gostavam de chamar “à prova de
afogamento”. Eu preferia chamar-lhe afogamento controlado!
Com mãos e pés atados atrás das costas, só conseguíamos mexer as
pernas como golfinhos. Ao contrário de alguns dos nadadores mais
experientes do grupo, que pareciam ter saído do banco de genes do Michael
Phelps, o meu movimento de golfinho parecia o de um cavalo de baloiço – e
dava mais ou menos o mesmo impulso. Estava continuamente sem fôlego, a
lutar para me manter à tona, erguendo a cabeça para fora da água como uma
galinha, para poder respirar, acabando por afundar-me, bater com os joelhos
e procurar em vão ganhar velocidade. Tinha treinado para isto. Durante
semanas, ia à piscina e até experimentava com calções de neopreno, para
ver se conseguia escondê-los debaixo da farda e se aumentavam a minha
capacidade para boiar. Parecia que usava uma fralda debaixo dos calções
apertados do uniforme, e não ajudava, mas esse treino deu-me o à-vontade
para suportar a sensação de estar a afogar-me e passar o teste.
Havia um outro exercício terrível na Segunda Fase, também conhecida
como fase de mergulho. Implicava outra vez flutuar, o que parece uma coisa
absolutamente básica sempre que o escrevo, mas, neste caso, eram-nos
colocadas duas botijas completamente cheias, de oitenta litros, e um cinto
de peso de sete quilos. Tínhamos barbatanas, mas mexer as pernas com elas
aumentava o grau de dor e stresse nos tornozelos e nas tíbias. Tratando-se
de um exercício na água, não adiantava colocar adesivo. Tinha de aguentar a
dor.
A seguir, tínhamos de nadar cinquenta metros de costas sem ir ao fundo.
Depois, dar a volta e nadar em estilo livre mais cinquenta metros, à
superfície, e carregados com todo aquele peso! Não podíamos usar qualquer
tipo de flutuadores e manter a cabeça à tona causava dores intensas no
pescoço, nos ombros, nas ancas e na zona inferior das costas.
Nunca esquecerei os ruídos que, nesse dia, se elevavam da piscina. As
tentativas desesperadas para ficar à tona e respirar constituíam uma mistura
audível de terror, frustração e exaustão. Engolíamos água, grunhíamos e
aspirávamos ar. Ouvi gritos guturais e guinchos agudos. Vários recrutas
foram ao fundo, tiraram os cinturões com os pesos e libertaram-se das
botijas, deixando-as cair no fundo da piscina, lançando-se rapidamente para
a superfície.
Só um homem passou esse exercício à primeira tentativa. Apenas
tínhamos três hipóteses para passar qualquer um dos exercícios e, para esse,
eu precisei mesmo das três. Na última, apliquei-me a dar pontapés de
tesoura, recorrendo mais uma vez aos meus desenvolvidos músculos da
anca. Consegui, no limite.
Quando chegámos à Terceira Fase, o módulo de exercícios de combate
terrestre na ilha de San Clemente, eu já tinha as pernas curadas e sabia que
ia chegar ao fim, mas só por ser a última volta não significa que seja fácil.
No complexo principal das instalações BUD/S, na praia do istmo arenoso
The Strand, aparecem muitos mirones. Há oficiais de todas as proveniências
que vêm espreitar os treinos, o que significa que há pessoas a olhar por cima
do ombro dos instrutores. Na ilha, somos só nós e eles. Estão
completamente à vontade para serem cruéis e não mostram qualquer tipo de
piedade. E é exatamente por isso que eu adorava essa ilha!
Uma tarde, dividimo-nos em equipas de dois e três elementos para
edificar esconderijos que se confundissem com a vegetação. Estávamos a
chegar ao fim – e todos em superforma e sem medo. O que significa que o
pessoal começava a descuidar-se relativamente aos pormenores – o que
deixava os instrutores furiosos. Por isso, chamaram-nos todos a um vale,
para nos aplicar uma clássica tareia.
Haveria flexões, abdominais, pontapés no ar e flexões em mergulho em
grande quantidade. Mas antes disseram-nos para nos ajoelharmos e
cavarmos buracos com as mãos, buracos suficientemente grandes para
entrarmos lá para dentro e ficarmos só com a cabeça de fora durante um
período de tempo não especificado. Eu sorria e cavava como um louco
quando um dos instrutores se aproximou, com uma nova e criativa maneira
de me torturar.
“Goggins, levanta-te. Tu gostas demais desta merda.” Eu ri-me e
continuei a cavar, mas ele falava a sério. “Disse para te levantares, Goggins.
Estás a ter demasiado prazer com isto.”
Pus-me de pé, dei um passo ao lado e vi os meus companheiros sofrerem
durante os trinta minutos seguintes sem mim. A partir daí, os instrutores
deixaram de me incluir nestas tareias. Quando o grupo recebia ordens para
fazer flexões, elevações ou ficar molhado e areado, eu era sempre excluído.
Assumi com orgulho que tinha finalmente vencido a vontade de todo o
pessoal das BUD/S, mas também sentia a falta das tareias. Porque as via
como ocasiões para calejar a mente. Agora, para mim, tinham acabado.
Considerando que a Trituradora foi a placa central de muito do treino dos
SEAL da Marinha, faz sentido que seja aí que decorre a cerimónia final das
provas BUD/S. Houve famílias que vieram de avião. Pais e irmãos de peito
inchado de orgulho; mães, mulheres e namoradas todas arranjadas e lindas.
Em vez de dor e sofrimento, havia só sorrisos naquele pedaço de asfalto
enquanto os graduados da Classe 235 se juntavam, nos seus uniformes
brancos, debaixo de uma enorme bandeira dos Estados Unidos que
ondulava com a brisa do mar. À direita, estava a infame sineta que 130
companheiros tinham tido de fazer soar para assinalar a sua desistência
daquele que é possivelmente o mais duro treino militar. Cada um de nós foi
apresentado e reconhecido individualmente. Havia lágrimas de alegria nos
olhos da minha mãe quando chamaram o meu nome, mas, estranhamente,
eu não senti grande coisa, a não ser tristeza.
A minha mãe e eu na cerimónia de graduação
Na Trituradora e, mais tarde, no McP, o bar preferido dos SEAL na baixa
de Coronado, os meus companheiros resplandeciam de orgulho, enquanto se
faziam fotografar com as famílias. No bar, havia música aos berros
enquanto todos se embriagavam e faziam uma barulheira, como se tivessem
acabado de ganhar alguma coisa. E, para ser honesto, aquela merda toda
aborreceu-me. Porque eu tinha pena de o treino BUD/S ter acabado.
Quando me interessei pela primeira vez pelos SEAL, procurava uma
arena que me tornasse inquebrável ou me destruísse completamente. A
formação BUD/S deu-me isso. Mostrou-me do que a mente humana é
capaz, e como a usar para suportar mais dor do que alguma vez tinha
sentido, para dessa forma aprender a alcançar coisas que nem sabia que
eram possíveis. Como, por exemplo, correr com as pernas partidas. Depois
da graduação, dependeria de mim continua a perseguir tarefas impossíveis,
porque embora fosse uma proeza tornar-me apenas o trigésimo sexto afro-
americano a concluir o treino BUD/S dos SEAL da Marinha, a minha
demanda para desafiar todas as probabilidades ainda mal tinha começado!
DESAFIO #5
É tempo de visualizar! Repito: a pessoa média tem dois mil a três mil
pensamentos por hora. Em vez de se focar em merdas que não pode mudar,
imagine visualizar aquelas que pode. Escolha um qualquer obstáculo no seu
caminho, ou defina uma nova meta, e visualize como a vai superar ou
alcançar. Eu, antes de iniciar qualquer atividade que constitui um desafio,
começo por visualizar como será o meu êxito e qual a sensação que me
transmitirá. Vou pensar nisso todos os dias e esse sentimento vai
impulsionar-me para a frente quando estiver a treinar, a competir ou a
realizar qualquer tarefa.
Mas a visualização não é simplesmente sonhar acordado com uma
qualquer cerimónia de entrega de prémios – real ou metafórica. É preciso
também visualizar os desafios que provavelmente surgirão e pensar como
lidar com esses problemas quando eles surgirem. Se o fizer, estará o mais
preparado possível para a jornada. Agora, quando vou participar numa
corrida, primeiro percorro de automóvel todo o percurso e visualizo o êxito,
mas também desafios potenciais, o que me ajuda a controlar o processo de
pensamento. É impossível prepararmo-nos para tudo, mas se fizermos um
exercício antecipado de visualização estratégica estaremos o mais
preparados possível.
Isso significa igualmente estar pronto para responder às perguntas
simples. Porque estamos a fazer isto? O que é que nos empurra para esta
meta? De onde vem a escuridão de que estamos a alimentar-nos? O que nos
calejou a mente? Precisará de ter essas respostas na ponta dos dedos no
momento em que chocar contra um muro de dor e de dúvida. Para o
atravessar, terá de canalizar a sua escuridão, alimentar-se dela e apoiar-se na
sua mente calejada.
Lembre-se: a visualização nunca substituirá o trabalho que não foi feito.
É impossível visualizar mentiras. Todas as estratégias que emprego para
responder às perguntas simples e ganhar o jogo mental só são eficazes
porque me esforcei. É precisa uma autodisciplina implacável para
programar o sofrimento no dia a dia, todos os dias, mas se o fizer descobrirá
que, do outro lado desse sofriment, está toda uma outra vida à sua espera.
Este desafio não tem de ser físico – e a vitória nem sempre significa que
se chegou em primeiro lugar. Pode querer dizer que se superou finalmente
um medo que esteve presente toda a vida ou um outro obstáculo qualquer
que, no passado, nos fez desistir. Seja qual for, conte ao mundo a sua
história sobre como criou a sua mente blindada (#armoredmind) e onde ela
o levou.
CAPÍTULO SEIS

O QUE IMPORTA NÃO SÃO OS TROFÉUS


Estava tudo a correr melhor naquela corrida do que eu poderia ter esperado.
Havia no céu nuvens suficientes para atenuar o calor do sol, o meu ritmo era
tão constante como a maré suave que embatia nos cascos dos veleiros
atracados na marina de San Diego, ali ao lado, e embora sentisse as pernas
pesadas, isso era de esperar, tendo em conta o meu plano de “preparação”
da noite anterior. Além disso, pareceram soltar-se quando fiz uma curva
para completar a nona volta – o quilómetro 14 –, uma hora e picos depois
de iniciada uma corrida de 24 horas.
Foi então que vi John Metz, diretor da corrida San Diego One Day (San
Diego Um Dia), na linha da meta, a olhar fixamente para mim. Erguia no ar
um quadro branco, a informar cada concorrente do seu tempo e posição. Eu
ia em quinto lugar, o que evidentemente lhe fazia confusão. Fiz-lhe um
aceno curto, para o tranquilizar e dizer que sabia o que estava a fazer, que
era exatamente ali que queria estar.
E no meio dessa merda toda, ele percebeu exatamente o que se passava.
Metz era um veterano. Sempre educado e de voz calma. Não parecia
haver muita coisa capaz de o perturbar, mas também era um
ultramaratonista experimentado, já com três provas de oitenta quilómetros
no bornal. Já tinha atingido ou ultrapassado os 160 quilómetros em sete
ocasiões e, com 50 anos, alcançara um recorde pessoal de 230 quilómetros
em 24 horas! Foi por isso que o seu olhar preocupado me alertou.
Consultei o meu relógio, que sincronizara com um monitor de ritmo
cardíaco que tinha à volta do peito. A pulsação estava na linha do meu
número mágico: 145. Uns dias antes, tinha encontrado por acaso um antigo
instrutor BUD/S, o SBG, no Comando Naval de Guerra Especial. Entre
missões, a maior parte dos SEAL fazem rotações como instrutores, e o SBG
e eu vimo-nos a trabalhar juntos. Quando lhe falei da corrida de um dia em
San Diego, ele insistiu que eu levasse um monitor do ritmo cardíaco. Em
questões de performance e recuperação, o SBG era um obcecado pelos
pormenores. Pôs-se a rabiscar umas fórmulas antes de se virar para mim e
dizer: “Mantém a pulsação estável entre os 140 e os 145 e vais ver que estás
perfeito.” No dia seguinte, entregou-me um monitor cardíaco; era um
presente para o dia da corrida.
Quem estivesse à procura de um percurso capaz de triturar um SEAL da
Marinha como se fosse uma noz, mastigá-lo e cuspi-lo, então o Hospitality
Point, em San Diego, não passaria por esse crivo. Estamos a falar de um
terreno tão suave que é absolutamente fácil. Grupos de turistas passam por
ali o ano inteiro para espreitar a extraordinária marina de San Diego, que
desemboca em Mission Bay. A estrada é quase toda em asfalto suave e
perfeitamente lisa, com exceção de uma curta encosta de dois metros com a
inclinação de um acesso clássico a uma garagem num bairro suburbano. Há
relvados bem tratados, palmeiras e árvores que dão sombra. Hospitality
Point é tão convidativo que deficientes e convalescente, vão para ali passear
de muletas para uma tarde de reabilitação. Mas, no dia a seguir a John Metz
ter ali traçado a giz o seu percurso fácil de quilómetro e meio, ele tornou-se
o palco da minha destruição total.
Eu devia ter pressentido que se aproximava um colapso. Quando
comecei a prova, às dez horas da manhã de 12 de novembro de 2005, há
seis meses que não corria mais de um quilómetro e meio, mas parecia em
forma porque não tinha deixado de ir ao ginásio. Quando estive estacionado
no Iraque, no início desse ano, na minha segunda comissão de serviço com
a Equipa Cinco dos SEAL, voltara a fazer a sério levantamento de pesos,
mas o meu único exercício de cardio eram vinte minutos na passadeira, uma
vez por semana. Ou seja, a minha forma cardiovascular era uma anedota –
e, apesar disso, pensei que era uma ideia brilhante tentar correr 160
quilómetros em 24 horas.
Pronto, foi sempre uma ideia estúpida, mas ainda assim considerei-a
exequível porque 160 quilómetros em 24 horas exige um ritmo de pouco
menos de 15 minutos por cada quilómetro e meio. Calculei que, se fosse
preciso, poderia caminhar com essa rapidez. Só que não caminhei. Quando
a trombeta soou, saí disparado e pus-me na dianteira do grupo. Exatamente
a estratégia ideal se o objetivo para o dia da corrida for lixares-te todo.
Além disso, não estava propriamente repousado. Na noite anterior à
prova, passei pelo ginásio da Equipa Cinco dos SEAL quando saía da base,
depois do trabalho, e espreitei a ver quem andava por lá, como sempre fazia.
O SBG estava lá, a aquecer, e chamou-me.
“Goggins, vamos foder-nos aqui com uns pesos!” Eu ri. Ele olhou-me em
jeito de desafio. “Sabes, Goggins”, disse, aproximando-se. “Quando os
viquingues se preparavam para atacar o raio de uma aldeia e estavam
acampados na maldita floresta nas suas tendas de merda, feitas de peles de
veado e cenas dessas, sentados à volta de uma fogueira, pensas que diziam
É pá, vamos beber um chazinho de ervas e deitar cedinho? Ou era mais
Porra! Vamos enfiar uns vodcas feitos de cogumelos e apanhar uma grande
bebedeira!, para no dia seguinte, todos ressacados e irritados, estarem com
a disposição ideal para irem chacinar uns cabrões quaisquer?”
Quando queria, o SBG podia ser um sacana divertido – e ele percebeu
que eu fiquei hesitante, a pensar o que devia fazer. Por outro lado, ele seria
sempre o meu instrutor BUD/S e era, aliás, um dos poucos que ainda
continuava a levar tudo com rigor absoluto, a esforçar-se e a viver dia a dia
no espírito dos SEAL. Eu quereria sempre impressioná-lo. Levantar pesos
na noite anterior à minha primeira corrida de 160 quilómetros iria
certamente impressionar aquele cabrão masoquista. Além disso, a lógica
dele fazia algum sentido retorcido para mim. Eu precisava de preparar a
cabeça para ir para a guerra, e levantar uns pesos a sério seria a minha
forma de dizer “Que venha toda a dor e todo o sofrimento que eu estou
pronto!” Mas, agora honestamente, quem é que faz uma merda destas antes
de ir fazer uns cabrões de uns 160 quilómetros?
Abanei a cabeça com incredulidade, atirei a mochila para o chão e
comecei a levantar pesos. Com música de heavy metal a sair aos berros dos
altifalantes, éramos dois gajos das cavernas juntos a montar uma grande
farra. Na maior parte, fizemos trabalho de pernas, incluindo séries extensas
de agachamentos e levantamento de pesos mortos de 144 quilos. Entre
séries, realizámos levantamentos de peito em banco de 103 quilos. Foi uma
sessão a sério e, quando acabou, ficámos sentados um ao lado do outro, a
ver tremer os quadríceps e os isquiotibiais. Teve uma piada do catano – até
que deixou de ter.
Desde então, as ultramaratonas de certa forma popularizaram-se, mas,
em 2005, a maior parte das corridas do género, em especial aquela de um
dia em San Diego, eram bastante desconhecidas – e para mim era tudo
novo. Quando a maior parte das pessoas pensa nestas provas, imagina
percursos desenhados em paisagens selvagens e é raro pensar em pistas em
circuito, mas, nesse dia, a lista de inscritos tinha corredores a sério.
Afinal, disputava-se o Campeonato Nacional dos Estados Unidos de
Corridas de 24 Horas e tinham ido atletas de todo o país na esperança de
conquistar uma taça, um lugar no pódio e o modesto prémio monetário
único de, bom, dois mil dólares, para o vencedor. Pois, não pode dizer-se
que era um acontecimento banhado a ouro e com opulentos patrocínios, mas
travava-se ali uma competição entre uma equipa nacional norte-americana
de grandes distâncias e uma seleção do Japão. Cada uma apresentava
conjuntos de quatro homens e quatro mulheres, que corriam todos as 24
horas. Um dos principais atletas de topo inscritos individualmente na
competição era também do Japão. Chamava-se Inagaki e, desde cedo, eu e
ela seguimos num ritmo idêntico.
A menina Inagaki e eu na prova de San Diego
O SBG apareceu nessa manhã a apoiar-me, na companhia da mulher e do
filho de dois anos. Ficaram ao pé da minha nova mulher, a Kate, com quem
tinha casado meses antes, um pouco mais de dois anos passados sobre a
conclusão do segundo divórcio com a Pam. Quando me viram, não evitaram
começar à gargalhada. Não só porque o SBG ainda estava todo desfeito da
sessão de ginásio da véspera, e eu procurava fazer 160 quilómetros, mas
pelo facto de eu parecer completamente deslocado. Há não muito tempo,
quando falei com o SBG sobre aquele momento, ele ainda tinha vontade de
rir.
“Já sabes que os ultramaratonistas são um bocado estranhos, certo?”,
disse-me o SBG, “e, naquela manhã, lá estavam aqueles tipos muito
magrinhos, com ar de professores de liceu, de quem só come os seus
cereais, e depois aparecia um cabrão enorme negro que parecia um maldito
defesa dos Raiders, a dar voltas à pista, sem camisa, e eu a pensar numa
canção do jardim-escola, tipo ‘há uma destas coisas que não é igual às
outras’. Foi a canção que me veio à cabeça quando te vi, tipo, um sacana de
um defesa do futebol americano, a correr ao lado daqueles cabrões
magrinhos. Quero dizer, também havia uns tipos rijos, mas era tudo pessoal
muito preocupado com a alimentação e com essas merdas e tu limitaste-te a
calçar uns ténis e a dizer ‘vamos lá a isto.’”
Isto que o SBG disse não é disparate nenhum. A verdade é que não
pensei grande coisa no meu plano de corrida. Tracei mais ou menos uma
ideia na véspera à noite, num Walmart, onde eu e a Kate fomos comprar
uma cadeira desdobrável para usarmos durante a corrida e o meu
abastecimento para todo esse dia: uma caixa de bolachas Ritz e dois pacotes
de quatro Myoplex. Não bebi muita água. Nem sequer pensei nos meus
níveis de eletrólitos ou potássio ou comi fruta fresca. Quando apareceu, o
SBG trouxe-me um pacote de donuts de chocolate e devorei-os em
segundos. Ou seja, estava realmente a improvisar. No entanto, chegado o
quilómetro oito ainda ia em quinto, e a acompanhar a japonesa, enquanto o
Metz ia ficando cada vez mais nervoso.
“Deves abrandar, David. Modera a velocidade”, disse-me.
Encolhi os ombros. “Estou a controlar isto.”
É verdade que, nesse momento, me sentia bem, mas a fanfarronice
também era um mecanismo de defesa. Eu sabia que, se começasse a
planificar a minha corrida nesse momento, a magnitude da empreitada
tornar-se-ia demasiado complicada de abranger. Ia ter a sensação de que
precisava de percorrer todo o maldito firmamento. A tarefa ganharia uma
dimensão impossível. Na minha cabeça, a estratégia era o inimigo do
momento – e era no momento que eu precisava de estar. Traduzindo: nisto
das ultramaratonas, eu era verdinho como o catano. O Metz não me
pressionou, mas continuou a vigiar-me.
Passei pelo quilómetro quarenta mais ou menos pela marca das quatro
horas, ainda em quinto e sempre ao lado da minha nova amiga japonesa. O
SBG já se tinha ido embora há muito tempo e a Kate era o meu único apoio.
Via-a a cada quilómetro e meio, junto da cadeira que tínhamos comprado, a
estender-me um golo de Myoplex e a fazer-me um sorriso encorajador.
Antes, eu só tinha corrido uma maratona, quando estava estacionado na
ilha de Guam. Não era uma prova oficial e corri-a com um companheiro dos
SEAL, numa pista que inventámos na ocasião, mas eu encontrava-me então
numa forma cardiovascular excelente. Pela segunda vez na vida,
encontrava-me na marca dos 42 quilómetros, mas agora sem treino, e
quando lá cheguei dei conta de que tinha entrado em território
desconhecido. Tinha pela frente mais vinte horas e quase outras três
maratonas. Eram números incompreensíveis, em relação aos quais eu não
possuía qualquer padrão familiar no qual me focar. Ou seja: corria mesmo
pelo firmamento fora. Foi aí que me pus a pensar que as coisas podiam
acabar mal.
O Metz não deixou de procurar ajudar-me. Mais ou menos a cada
quilómetro, punha-se ao meu lado a correr e tentava perceber se eu estava
bem. E eu, sendo eu, dizia-lhe que tinha tudo controlado e tudo percebido.
O que era verdade. O que eu tinha percebido é que o John Metz sabia de
que merda estava a falar.
Ah, pois, agora a dor ia-se tornando real. Tinha os quadríceps a palpitar,
os pés arranhados e a sangrar e aquelas perguntazinhas simples a
insinuarem-se outra vez na minha cabeça: Porquê? Porquê pôr-me a correr
uns filhos da mãe de uns 160 quilómetros sem treino? Porquê fazer isto a
mim próprio? Eram perguntas válidas, em especial porque eu nunca tinha
ouvido falar da San Diego One Day até três dias antes. Mas, desta vez, a
minha resposta foi diferente. Eu não corria em Hospitality Point para lidar
com os meus próprios demónios nem para provar nada. Fora lá com um
propósito maior do que David Goggins: este combate era pelos meus
antigos e futuros companheiros caídos e pelas famílias que eles deixam para
trás quando vai tudo por água abaixo.
Ou, pelo menos, foi o que disse a mim mesmo ao quilómetro 43.
***
Eu tinha recebido a notícia da Operação Asas Vermelhas, uma
intervenção militar condenada ao fracasso nas montanhas remotas do
Afeganistão, no meu último dia na Escola de Queda Livre do Exército, em
Yuma, no Arizona. A Operação Asas Vermelhas era uma missão de
reconhecimento de quatro homens, encarregada de recolher informações
sobre uma força pró-talibã em crescimento na região, chamada Sawtalo Sar.
Em caso de êxito, as informações recolhidas pela missão ajudariam a definir
a estratégia para uma ofensiva de envergadura nas semanas seguintes. Eu
conhecia os seus quatro membros.
Danny Dietz tinha estado comigo na Classe 231/BUD/S. Tal como eu,
lesionou-se e foi afastado. Michael Murphy, o oficial no comando, tinha
estado comigo na Classe 235, antes de ser colocado. Matthew Axelson era
da minha classe Hooyah, quando me graduei (já voltarei à classe Hooyah), e
Marcus Lutrell foi uma das primeiras pessoas que conheci na primeira
passagem pelas provas BUD/S.
Antes de a instrução começar, cada nova classe BUD/S organiza uma
festa, para a qual estão convidados, por definição, todos os tipos de grupos
anteriores que ainda estão a realizar as provas. A ideia é sacar o máximo de
informação possível aos gajos que já usam as camisas castanhas, porque
nunca se sabe o que é que vai ser útil a meio de um exercício qualquer
fulcral e que pode fazer toda a diferença entre a formatura e o fracasso. O
Marcus era um tipo de 1,90 metros e 102 quilos e, como eu, destacava-se no
meio do grupo. Eu também era grande, pesava então uns 96 quilos, e ele
veio ter comigo. De certa forma, formávamos uma dupla improvável. Ele
era um durão oriundo das pastagens do Texas e eu era um masoquista que
aprendera à minha própria custa e vinha dos milheirais do Indiana, mas ele
ouvira dizer que eu era bom corredor e correr era a sua maior fraqueza.
“Goggins, tens algumas dicas para mim?”, perguntou. “Porque eu a
correr sou uma merda.”
Eu sabia que o Marcus era um durão, mas a sua humildade tornava-o
autêntico. Uns dias mais tarde, quando se formou, nós constituíamos a sua
Classe Hooyah, o que significa que éramos as primeiras pessoas a quem lhe
era permitido dar ordens. Eles adotaram a tradição dos SEAL e ordenaram-
nos para nos “molharmos e arearmos”. Era um ritual de iniciação dos SEAL
e foi uma honra partilhá-lo com ele. Depois disso, fiquei muito tempo sem o
ver.
Pensei tê-lo encontrado de novo quando estava prestes a concluir a
Classe 235, mas afinal era o seu irmão gémeo, Morgan Lutrell, que
pertencia ao meu grupo Hooyah, a Classe 237, juntamente com o Matthew
Axelson. Podíamos ter mantido a tradição, em jeito de justiça poética, mas
depois da graduação, em vez de dizermos à sua classe que se molhasse e
areasse, fomos nós que nos atirámos para as ondas, vestidos com os
uniformes brancos!
Eu tive alguma coisa a ver com isso.
Nos SEAL da Marinha, ou és enviado em missão e operas no terreno,
instruindo outros SEAL, ou estás na escola, a aprender ou a aperfeiçoar
capacidades. Nós passamos por mais escolas militares do que a maioria,
porque somos treinados para fazer tudo, mas quando estive na instrução
BUD/S não tínhamos de aprender queda livre. Saltávamos por linhas
estáticas, que abriam automaticamente os paraquedas. Nesse tempo, era
preciso ser escolhido para ir para a Escola de Queda Livre do Exército.
Depois do meu segundo pelotão, fui escolhido para a Equipa Verde, que é
uma das fases de treino para ser aceite no Grupo de Desenvolvimento de
Guerra Naval Especial (DEVGRU), uma unidade de elite dentro dos SEAL.
Isso implicava ter competências em queda livre. E implicava também
enfrentar o meu medo de alturas da maneira mais frontal possível.
Começámos nas salas de aula e nos túneis de vento de Forte Bragg, na
Carolina do Norte – e foi aí que, em 2005, voltei a encontrar o Morgan. A
flutuar numa cama de ar comprimido num túnel de vento de quatro metros
de altura, aprendemos qual a posição correta do corpo, como ir para a
esquerda e para a direita, a avançar e a recuar. São precisos movimentos
muito pequenos com a palma da mão para efetuar as deslocações – e por
isso é muito fácil começar a girar sem controlo, o que nunca é bom. Nem
todos eram capazes de dominar esses gestos subtis, mas os que conseguiam
eram enviados de Forte Bragg, depois dessa primeira semana de treino, para
uma pista de aterragem entre os campos de catos de Yuma, para começar a
saltar de verdade.
Durante quatro semanas, sob um calor do deserto de 52 graus
centígrados, o Morgan e eu treinámos e passámos tempo juntos. Lançámo-
nos dezenas de vezes de aviões de transporte C-130, de altitudes entre os
quatro mil e os seis mil metros – e não há nada como o pico de adrenalina e
paranoia associado a um voo picado sobre a terra, de grande altura, a
velocidade terminal. De cada vez que saltávamos, não conseguia deixar de
pensar em Scott Gearen, o homem do Para-resgate que sobreviveu a um
salto falhado de grande altitude e me inspirou a seguir este caminho quando
eu andava no liceu e o conheci. Ali, no meio daquele deserto, ele era para
mim uma presença constante – e um sinal de alerta. A prova de que, num
salto, em qualquer salto, tudo pode correr horrivelmente mal.
Quando saltei pela primeira vez de um avião a grande altitude, tudo o
que senti foi um medo extremo – e não consegui tirar os olhos do altímetro.
Não apreciei o salto, porque o medo tomou conta do meu cérebro. Só
conseguia pensar se o paraquedas ia abrir ou não. Perdi a emoção incrível
da queda livre, a beleza das montanhas pintadas contra o horizonte e o céu
aberto. Mas, à medida que me acostumei ao risco, aumentou a minha
tolerância a esse medo. Ele existia sempre, mas eu habituei-me ao
incómodo e, ao fim de pouco tempo, já executava múltiplas tarefas durante
um salto e, em simultâneo, apreciava o momento. Sete anos antes, andava a
fiscalizar cozinhas de restaurantes de fast-food e a fumigar insetos. Agora,
estava a voar, porra!
O exercício final em Yuma foi um salto à meia-noite com todo o
equipamento. Levávamos uma mochila de 22 quilos, uma espingarda e uma
máscara de oxigénio para a queda livre. Também tínhamos luzes químicas,
que eram necessárias porque a escuridão era absoluta quando a rampa
traseira do C-130 era aberta.
Não víamos nada, mas, mesmo assim, saltámos no meio desse céu sem
lua – éramos oito, em linha, uns a seguir aos outros. A ideia era formarmos
a ponta de uma seta e enquanto ia manobrando naquele túnel de vento do
mundo real, para ocupar o meu lugar na grande ordem das coisas, só via
luzes a dançar como cometas num céu da cor de tinta. Os meus óculos
embaciaram-se
quando o vento me soprou em cheio. Caímos durante um minuto inteiro
e quando abrimos os para-quedas, aí pelos 1200 metros, o som passou de
um tornado esmagador a um silêncio de arrepiar. Na realidade, era tanto o
silêncio que eu conseguia ouvir o coração a bater-me no peito. Era um
momento de bênção e, quando todos aterrámos a salvo, tínhamos passado!
Não fazíamos ideia de que, nesse momento, nas montanhas do Afeganistão,
o Marcus e a sua equipa travavam uma batalha decisiva pelas suas vidas, no
coração daquilo que viria a transformar-se no pior incidente na história dos
SEAL.
Uma das melhores coisas de Yuma é o serviço de telemóvel ser péssimo.
Como eu não gosto de falar pelo telefone nem de enviar mensagens de
texto, isto deu-me quatro semanas de paz. Quando se acaba qualquer escola
militar, a última coisa que se faz é limpar todas as áreas que o curso
utilizou, até que pareça que ninguém esteve ali. A minha equipa de limpeza
foi encarregue das casas de banho, que, por acaso, é um dos únicos lugares
em Yuma onde há rede de telemóvel – e, assim que lá entrei, o meu telefone
como que explodiu. Em sucessão, entraram mensagens sobre o falhanço da
Operação Asas Vermelhas – e a minha alma partiu-se quando as li. O
Morgan ainda não sabia de nada, por isso, saí, fui ter com ele e contei-lhe.
Tinha de o fazer. O Marcus e a sua equipa estavam dados como
desaparecidos em combate – e admitia-se que tinham morrido. Ele fez que
sim com a cabeça, pensou um segundo e disse-me: “O meu irmão não
morreu.”
O Morgan é sete minutos mais velho do que o Marcus. Em miúdos eram
inseparáveis, e a primeira vez que se separaram mais do que um dia foi
quando o Marcus foi para a Marinha. O Morgan decidiu fazer o liceu antes
de se alistar e, durante a Semana Infernal de Marcus, procurou manter-se
acordado, num gesto de solidariedade. Queria e precisava de partilhar esse
sentimento, mas não existe um simulacro de Semana Infernal. É preciso
passar por ela para saber como é – e os que lhe sobrevivem mudam para
sempre. Na verdade, o período a seguir ao Marcus ter sobrevivido à Semana
Infernal, e antes de o Morgan se tornar um SEAL, foi o único em que
existiu alguma distância emocional entre os irmãos – o que diz bem do
poder dessas 130 horas e da sua carga emocional. Logo que o Morgan
passou por isso de verdade, tudo voltou a encaixar entre eles. Cada um dos
irmãos tem meio tridente tatuado nas costas. A imagem só fica completa
quando estão um ao lado do outro.
O Morgan pegou imediatamente no carro e foi para San Diego, para
tentar perceber o que se passava. Ainda não tinha ouvido nada sobre a
operação diretamente, mas quando chegou à civilização e apanhou rede, o
telemóvel também foi inundado de mensagens. Carregou no acelerador até
aos 190 quilómetros por hora, e dirigiu-se diretamente para a base de
Coronado.
Ele conhecia bem todos os elementos da unidade do irmão – o Axelson,
por exemplo, tinha sido colega dele na instrução BUD/S. À medida que os
factos foram sendo conhecidos, era evidente para a maioria que o irmão
dele não seria encontrado com vida. Eu também pensei que ele tinha
morrido – mas já se sabe o que dizem dos gémeos.
“Eu sabia que o meu irmão estava vivo, nalgum lugar”, disse-me o
Morgan quando voltámos a falar, em abril de 2018. “Foi sempre o que eu
disse.”
Eu telefonei ao Morgan para falarmos sobre os velhos tempos e fiz-lhe
perguntas sobre aquela que foi a pior semana da sua vida. Em San Diego,
apanhou um avião para o rancho da família em Huntsville, no Texas, onde
recebiam informações dos militares duas vezes por dia. O Morgan contou
que houve dezenas de SEAL que passaram por lá a manifestar apoio e,
durante cinco longos dias, ele e a família adormeceram a chorar. Era uma
tortura saberem que o Marcus podia estar vivo e sozinho em território
hostil. Quando apareceram funcionários do Pentágono, Morgan não pôde
ser mais claro: “[O Marcus] pode estar ferido e todo lixado, mas está vivo –
e ou vocês vão lá e o encontram, ou então vou eu!”
A Operação Asas Vermelhas correu terrivelmente mal porque havia
muito mais elementos pró-talibã ativos naquelas montanhas do que se
calculava, e quando o Marcus e a equipa foram detetados por aldeões, a
situação passou a ser a de quatro tipos contra uma milícia bem armada de
entre trinta a duzentos homens (os relatos sobre a dimensão da força foram
diversos). Os nossos homens levaram com fogo de rockets e metralhadora e
travaram um combate difícil. Quatro SEAL são capazes de montar um
grande espetáculo. Em geral, cada um de nós consegue causar tanto dano
como cinco militares comuns; por isso, eles marcaram bem a sua presença.
A batalha travou-se junto a um desfiladeiro acima dos 2700 metros de
altitude, onde havia problemas com as comunicações. Quando finalmente se
libertaram do cerco e conseguiram comunicar a sua situação com clareza ao
comandante no quartel-general das operações especiais, os militares
reuniram imediatamente uma força de reação rápida composta por SEAL,
fuzileiros e pilotos do Regimento de Aviação 160 de Operações Especiais –
mas a falta de capacidade de transporte atrasou a sua deslocação durante
horas. Um problema com os SEAL é que não temos transporte próprio. No
Afeganistão, apanhamos boleias do Exército, e isso atrasou a ajuda.
A força acabou por embarcar em dois helicópteros de transporte Chinook
e em quatro helicópteros de ataque (dois Black Hawk e dois Apache) e
levantaram voo para Swatalo Sar. Os Chinook foram à frente e, quando se
aproximaram do desfiladeiro, viram-se sob fogo de armas de pequeno
calibre. Apesar do ataque, o primeiro Chinook sobrevoou a área, procurando
um meio de fazer descer oito SEAL no cimo de uma montanha, mas era um
alvo demasiado grande, pairou demasiado tempo e acabou por ser atingido
por uma granada de rocket. O heli girou, chocou com a montanha e
explodiu. Toda a tripulação morreu. Os outros helicópteros retiraram-se e,
quando conseguiram regressar com meios terrestres, todos os que tinham
ficado para trás, incluindo os três camaradas do Marcus na Operação Asas
Vermelhas, foram encontrados mortos. Todos menos o Marcus.
Ele foi atingido várias vezes por fogo inimigo e esteve desaparecido
cinco dias. Foi salvo por aldeões afegãos que cuidaram dele e o
esconderam. Finalmente, a 3 de julho de 2005, foi encontrado vivo por
militares norte-americanos, tornando-se o sobrevivente solitário de uma
missão que custou as vidas de 19 combatentes de operações especiais,
incluindo 11 SEAL.
Sem dúvida que já terá ouvido esta história. Marcus escreveu um
bestseller a contá-la, Lone Survivor [O Sobrevivente], que se tornou um
filme de êxito, com Mark Wahlberg como protagonista. Mas, em 2005, tudo
isso vinha a anos-luz e, na sequência da pior perda num campo de batalha
jamais sofrida pelos SEAL, eu andava à procura de uma forma de contribuir
para as famílias dos homens que tinham sido mortos. É que, depois de uma
tragédia como essa, as contas continuam a chegar. Havia mulheres e filhos
com necessidades básicas para satisfazer e, um dia, também precisariam de
dinheiro para os estudos mais avançados. Eu queria ajudar como fosse
possível.
Umas semanas antes de tudo isto, tinha passado uma noite no Google à
procura das corridas a pé mais difíceis do mundo e deparei com uma
chamada Badwater 135. Nunca tinha ouvido falar em ultramaratonas e a
Badwater era como se fosse a ultramaratona de um ultramaratonista.
Começava no Vale da Morte, abaixo do nível do mar, e acabava no Whitney
Portal, no fim do trilho no cimo do monte Whitney, a 2550 metros. Ah, e
isto acontece no fim de julho, quando o Vale da Morte não é apenas o lugar
mais baixo da Terra. É também o mais quente.
Ver imagens dessa corrida materializarem-se no meu monitor
aterrorizou-me e entusiasmou-me. O terreno dava a impressão de uma
dureza extrema e as expressões nos rostos torturados dos corredores
recordavam-me o género de coisa que eu tinha visto na Semana Infernal.
Até aí, sempre considerara a maratona como o pináculo das corridas de
resistência, e via agora que existiam vários níveis para lá disso. Arquivei a
informação e pensei que voltaria a ela num outro dia.
Aconteceu, então, a Operação Asas Vermelhas e comprometi-me a correr
a Badwater 135 para angariar dinheiro para a Fundação dos Guerreiros das
Operações Especiais, uma organização sem fins lucrativos fundada em
1980, com base numa promessa feita num campo de batalha, quando oito
elementos das operações especiais morreram num acidente de helicóptero
durante a famosa operação de resgate de reféns no Irão, deixando órfãos 17
filhos. Os militares sobreviventes prometeram garantir que cada uma dessas
crianças tivesse dinheiro para ir para a universidade. O seu trabalho
continua. Nos trinta dias seguintes a uma morte, como as que aconteceram
na Operação Asas Vermelhas, o incansável pessoal da fundação entra em
contacto com os familiares sobreviventes.
“Somos como aquelas tias metediças”, diz a diretora executiva, Edie
Rosenthal. “Passamos a fazer parte da vida dos nossos alunos.”
A fundação paga a educação pré-escolar e ensino escolar privado.
Organizam visitas a faculdades e grupos de apoio entre alunos. Ajuda com
requerimentos, compra de livros, computadores e impressoras e paga as
propinas em qualquer universidade em que um dos seus alunos consiga ser
aceite, para não falar do alojamento e da alimentação. Também envia os
seus protegidos para escolas de formação profissional. Tudo depende do que
eles quiserem. Quando escrevo estas linhas, a fundação tem a ser cargo
1280 crianças.
Trata-se de uma organização extraordinária e foi com eles em mente que
telefonei a Christ Kostman, diretor de corrida da Badwater 135, às sete da
manhã de um dia de meados de novembro de 2005. Tentei apresentar-me,
mas ele interrompeu-me de forma seca: “Sabe que horas são?!”
Tirei o telefone do ouvido e olhei um momento para ele. Nesse tempo, às
sete horas da manhã de um dia normal de semana, eu já teria cumprido uma
sessão de duas horas no ginásio e preparado para um dia de trabalho. E este
tipo ainda estava meio a dormir. “Entendido”, respondi. “Volto a telefonar-
lhe às nove.”
O meu segundo contacto não correu muito melhor, mas pelo menos ele já
sabia quem eu era. O SBG e eu já tínhamos falado da Badwater e ele
enviara a Kostman uma carta de recomendação. O SBG já fez triatlos, foi
capitão de uma equipa no Eco-Challenge e viu vários atletas olímpicos
tentarem as provas BUD/S. No seu email a Kostman, escreveu que eu era “o
melhor atleta de resistência com a maior força mental” que ele já vira. O
facto de ele me colocar, um miúdo que veio do nada, no topo da sua lista,
teve um grande significado para mim – e ainda tem.
Já para o Chris Kostman não teve significado nenhum. Ele era, aliás, a
definição de uma pessoa que não se deixa impressionar – e não se
impressiona por causa da sua enorme experiência do mundo real. Quando
tinha vinte anos, participou na prova de bicicletas Race Across America e,
antes de tornar diretor da Badwater, tinha feito três corridas de 160
quilómetros no Alasca, em pleno inverno, e completado um triplo triatlo
Ironman, que acaba com uma corrida de 110 quilómetros. Pelo caminho, viu
dezenas de supostos grandes atletas desmoronarem-se sob o peso das
competições ultra.
Não é invulgar corredores de fim de semana inscreverem-se e
completarem maratonas ao fim de apenas uns meses de treino, mas o fosso
entre correr uma maratona e um atleta de competições ultra é muito maior –
e a Badwater era o ponto culminante absoluto deste universo. Em 2005,
havia aproximadamente 22 corridas de 160 quilómetros nos Estados Unidos
e nenhuma possuía a combinação de subida de nível e calor implacável que
a Badwater 135 apresentava. Só para organizar a prova, Kostman precisou
de reunir autorizações e garantias de assistência de cinco organismos
governamentais, incluindo o serviço das florestas, o serviço dos parques
nacionais e a patrulha das autoestradas da Califórnia, e tinha a perfeita
consciência de que se deixasse algum novato participar na prova mais difícil
jamais concebida, em pleno verão, esse sacana podia muito bem morrer – e
a corrida dele esfumar-se-ia de um dia para o outro. Não, se eu queria
competir na Badwater, ia ter de o conquistar. Porque ganhar o direito de
entrar na prova lhe daria pelo menos a tranquilidade de que eu,
provavelmente, não ia ter um colapso algures entre o Vale da Morte e o
Monte Whitney.
No seu email, o SBG argumentou que, como eu estava ocupado com os
meus deveres de SEAL, devia ficar isento dos pré-requisitos necessários
para competir na Badwater – concluir pelo menos uma prova de 160
quilómetros ou uma corrida de 24 horas. O SBG garantia-lhe que, se a
minha participação fosse autorizada, eu terminaria entre os dez primeiros.
Mas o Kostman não queria aceitar nada disto. Ao longo dos anos, já tinha
visto atletas com provas dadas pedirem-lhe para atenuar as suas normas,
incluindo um campeão da maratona e um campeão de sumo (sim, estou a
falar a sério), e nunca cedeu.
“Uma coisa sobre mim é que sou igual com todos”, disse-me Kostman
quando voltei a telefonar-lhe. “Temos determinados padrões para admissão
na nossa corrida e é assim que as coisas são. Mas olhe, há uma prova de 24
horas, em San Diego, este fim de semana”, continuou, com a voz a destilar
sarcasmo. “Vá lá, faça 160 quilómetros e volte a falar comigo.”
Chris Kostman tinha-me empurrado para isto. Eu estava tão mal
preparado como ele suspeitava. O facto de eu querer correr a Badwater não
era mentira nenhuma, e planeava treinar para isso, mas para ter sequer essa
hipótese precisaria de fazer quase imediatamente 160 quilómetros. Se eu
decidisse não o fazer, depois daquela fanfarronice toda sobre os SEAL, isso
seria uma prova de quê? De que eu não passava de outro aspirante que lhe
tinha telefonado a uma hora imprópria, numa quarta-feira de manhã. E esta
foi a razão pela qual acabei a correr a San Diego One Day três dias depois.
***
Depois de passar a marca dos oitenta quilómetros, já não consegui
acompanhar o ritmo da menina Inagaki, que quase saltitava como um
maldito coelho. Continuei a fugir para a frente. A dor atravessava-me o
corpo em vagas. As minhas coxas pareciam carregadas de chumbo. Quanto
mais pesadas ficavam, mais a passada se distorcia. Forcei as ancas para
manter as pernas em movimento e combati a gravidade para levantar os pés
a um milímetro do solo. Ah, sim, os pés. Os meus ossos ficavam mais
frágeis a cada segundo e os dedos roçavam há dez horas na ponta dos
sapatos. Mesmo assim, corri. Não depressa. Não com muito estilo. Mas
continuei.
As canelas foram a peça de dominó que caiu a seguir. Cada rotação subtil
da articulação do tornozelo funcionava como uma terapia de choque – como
se pusesse veneno a correr através da medula da minha tíbia. Trouxe-me à
memória os dias das pernas ligadas com fita adesiva na Classe 235, mas
desta vez não tinha trazido adesivo. Além disso, se parasse nem que fosse
por uns segundos, recomeçar tornar-se-ia quase impossível.
Uns quilómetros depois, os meus pulmões entraram em convulsão e o
peito sacudiu-se enquanto eu expelia bolas de muco castanho. Começou a
arrefecer. Fiquei sem fôlego. O nevoeiro adensava-se à volta dos candeeiros
da rua, rodeando as lâmpadas de halogéneo com arco-íris elétricos – o que
emprestava a todo o acontecimento uma sensação de outro mundo. Ou
talvez fosse só eu que me encontrava nesse outro mundo. Um mundo em
que a dor era a língua-mãe, um idioma sincronizado com a memória.
De cada vez que a tosse me rasgava os pulmões, eu recordava a primeira
vez que passara na instrução BUD/S. Lá ia outra vez a carregar um maldito
tronco, a cambalear para a frente, com os pulmões a sangrar. Consegui
sentir e ver tudo a acontecer outra vez. Estava a dormir? Estava acordado?
Abri bem os olhos, puxei as orelhas e bati na cara, para acordar. Apalpei os
lábios e o queixo para fazer afluir sangue e descobri que tinha uma mancha
translúcida de saliva, suor e ranho a escorrer do nariz. Tinha agora a toda a
minha volta os tipos esquisitos que o SBG descrevia, a correr em círculos, a
apontar para mim, a fazer troça do único; o único homem negro que andava
por ali. Ou não estavam? Olhei outra vez. Todos os que passavam por mim
iam concentradíssimos. Cada um na sua própria zona de dor. Nem me viam.
Eu ia perdendo o contacto com a realidade em doses pequenas, porque a
minha mente se ia fechando sobre si mesma, somando à tremenda dor o
sinistro lixo emocional que tinha ido buscar às profundezas da minha alma.
Tradução: eu estava a sofrer a um nível infernal, reservado para os imbecis
que acreditam que as leis da física e da fisiologia não se aplicam a eles.
Filhos da mãe convencidos, como eu, que sentem que são capazes de
superar os limites em segurança só porque sobreviveram a um par de
Semanas Infernais.
Bom, vá lá, isto eu não tinha feito. Não tinha corrido 160 quilómetros
com treino zero. Será que alguém na história da humanidade já teria tentado
uma coisa tão estupidamente tonta? Mas será que isto seria sequer possível?
Surgiam-me em sucessão variações dessa simples pergunta, como um
mostrador digital no ecrã do meu cérebro. Malditas bolhas de pensamento
iam emanando a flutuar da minha pele e da minha alma.
Porquê? Porquê? Por que raio ainda estás a fazer isto a ti mesmo?
No quilómetro 111, cheguei à inclinação – uma rampa com dois metros
que parecia a entrada para a garagem de uma casa – que faria rir à
gargalhada qualquer corredor experimentado. Mas foi o suficiente para me
dobrar os joelhos e me fazer andar para trás, como se fosse um camião em
ponto morto. Cambaleei, toquei no chão com as pontas dos dedos e quase
me desmoronei. Levei dez segundos a cobrir a distância. Cada um deles
arrastou-se como um fio elástico, enviando ondas de dor da ponta dos pés
ao espaço entre os meus globos oculares. Engasguei-me e tossi, tudo o que
havia dentro de mim estava retorcido. O colapso era iminente. O colapso era
a merda que eu merecia.
Na marca dos 113 quilómetros, já não era capaz de dar nem mais uma
passada. A Kate tinha posto a cadeira perto da linha da meta e, quando
cambaleei na direção dela, vi-a a triplicar, seis mãos a dirigirem-se para
mim, a agarrarem-me, a guiarem-me para essa cadeira portátil. Estava tonto
e desidratado, ávido de potássio e sódio.
A Kate era enfermeira; eu tinha tido aulas de paramédico e passei em
revista a minha própria avaliação mental. Sabia que, quase de certeza, tinha
a pressão arterial perigosamente baixa. Ela tirou-me os sapatos. A dor nos
pés não era uma ilusão tipo Shawn Dobbs. As meias de cano branco
estavam cobertas de sangue, por causa de unhas partidas e bolhas em ferida.
Pedi à Kate que fosse buscar um pouco de Motrin e qualquer coisa que o
John Metz tivesse e pudesse ser útil. E quando ela foi, o meu corpo
continuou a tombar. O meu estômago fez um ruído e quando olhei para
baixo vi urina ensanguentada a escorrer-me pelas pernas. Também me
caguei todo: diarreia liquefeita surgiu no espaço entre o meu rabo e uma
cadeira de jardim que nunca voltaria a ser o que era. Pior: tinha de o
esconder, porque sabia que se a Kate visse como eu estava mal me havia de
implorar para desistir.
Eu tinha feito 113 quilómetros em 12 horas, sem qualquer treino, e a
minha recompensa era esta. No relvado, à minha esquerda, havia outro
pacote de quatro Myoplex. Só um gajo com músculos na cabeça como eu
escolheria essa proteína espessa para se hidratar. Ao lado, estava meio
pacote de bolachas Ritz; a outra metade misturava-se agora e dava voltas no
meu estômago e intestinos, sob a forma de uma massa cor de laranja.
Fiquei ali sentado vinte minutos com a cabeça entre as mãos. Os outros
corredores passavam por mim a arrastar os pés, a deslizar ou a cambalear,
enquanto eu sentia o tempo a avançar no meu sonho, que imaginara mal e à
pressa. A Kate regressou, ajoelhou-se e ajudou-me a apertar outra vez os
sapatos. Ela não sabia a extensão da minha crise e ainda pensava que eu
seria capaz de prosseguir. Isso pelo menos era qualquer coisa e ela trazia nas
mãos um bem-vindo bálsamo, sob a forma de mais Myoplex e mais
bolachas Ritz. Deu-me Motrin, umas bolachas e duas sanduíches de
manteiga de amendoim e marmelada, que empurrei com Gatorade. A seguir,
ajudou-me a levantar.
O mundo oscilou no seu eixo. A Kate voltou a multiplicar-se por dois, e
depois por três, mas continuou a segurar-me enquanto o meu mundo
estabilizava e eu ensaiava um único e solitário passo. Aí vinha outra vez a
dor dos diabos. Eu ainda não sabia, mas tinha os pés lascados com fraturas
de stresse. No circuito ultra, o preço da arrogância é elevado – e a minha
conta tinha chegado. Dei outro passo. E outro. Estremeci. Tinha os olhos a
chorar. Outro passo. Ela largou-me. Continuei a caminhar.
Lentamente.
Porra, mesmo muito lentamente.
Quando fiz esta paragem, ia bem à frente do ritmo de que precisava para
correr 160 quilómetros em 24 horas, mas agora percorria um quilómetro a
cada 15 minutos, era o melhor que conseguia. A menina Inagaki passou por
mim e olhou-me. Também havia dor nos olhos dela, mas ainda apresentava
a compostura de uma atleta. Eu é que estava feito um cabrão de um zombie,
a esbanjar todo o tempo precioso que tinha armazenado, a ver a minha
margem para erro desfazer-se em cinzas. Porquê? Outra vez esta pergunta
aborrecida. Porquê? Quatro horas depois, quase às duas da madrugada,
atingi a marca de 130 quilómetros e a Kate deu-me uma notícia.
“Não acredito que a este ritmo consigas chegar a tempo”, disse-me,
caminhando ao meu lado e encorajando-me a beber mais Myoplex. Não
usou palavras meigas. Foi muito direta. Eu olhei para ela, com ranho e
Myoplex a escorrerem-me do queixo e com os olhos sem vida. Durante
quatro horas, cada passada agonizante tinha exigido máxima concentração e
esforço, mas não era o suficiente. A menos que fosse capaz de mais, o meu
sonho de filantropia estaria morto. Engasguei-me e tossi. Bebi mais um
sorvo.
“Entendido”, disse em voz baixa. Sabia que ela tinha razão. O meu ritmo
continuava a abrandar e baixava cada vez mais.
Foi então que percebi finalmente que esta luta não era por causa da
Operação Asas Vermelhas ou das famílias dos caídos em combate. Ou seja,
era até certo ponto, mas nada disso me ia ajudar a correr mais trinta
quilómetros antes das dez da manhã. Não. Esta corrida, a Badwater, todo o
meu desejo de me levar ao limiar da destruição, era sobre mim. Tratava-se
de quanto estava disposto a sofrer, de quanto mais conseguia aguentar e de
quanto tinha para dar. Se queria conseguir, esta merda tinha de tornar-se
pessoal.
Olhei para as minhas pernas. Vi um rasto de urina seca e sangue na parte
interior da coxa e pensei: quem é que, neste mundo filho da mãe,
continuaria a travar esta batalha? Só tu, Goggins, Não treinaste, não sabes
porra nenhuma sobre hidratação e rendimento – tudo o que sabes é que te
recusas a desistir.
Porquê?
É engraçado. Nós, humanos, temos tendência a imaginar os nossos
objetivos e sonhos mais desafiadores, aqueles que exigem o máximo
esforço e, no entanto, não prometem absolutamente nada, quando estamos
enfiados nas nossas zonas de conforto. Por exemplo, quando o Kostman me
fez este desafio, eu estava a trabalhar. Tinha acabado de tomar um duche
quente. Estava alimentado e hidratado. Confortável. E, olhando para trás,
sempre que tive a motivação para fazer alguma coisa difícil, encontrava-me
num ambiente acolhedor, porque a verdade é que tudo parece exequível
quando se está a descansar no maldito sofá, com um copo de limonada ou
um batido de chocolate na mão. Quando se está confortável, não se é capaz
de responder às perguntas que surgem no calor da batalha, porque nem
sequer damos conta de que elas vão aparecer.
Mas essas respostas são muito importantes quando já não estamos numa
sala com ar condicionado ou debaixo do cobertor fofo. Quando o corpo está
destroçado e exausto, quando estamos confrontados com uma dor
agonizante e a olhar para o desconhecido, a mente vai entrar em parafuso e
é aí que essas perguntas se tornam tóxicas. Se não estivermos preparados
antecipadamente, se permitirmos que a mente vagueie sem disciplina num
ambiente de sofrimento intenso (pode não parecer que é assim, mas é muito
uma escolha que se faz), a única resposta que provavelmente obteremos é
aquela que nos fará parar o mais depressa possível.
Não sei.
A Semana Infernal mudou tudo para mim. Permitiu-me ter a mentalidade
necessária para me inscrever nessa corrida de 24 horas com menos de uma
semana de antecedência, porque durante a Semana Infernal se vivem todas
as emoções da vida, todos os altos e baixos, em seis dias. Em 130 horas,
ganham-se décadas de sabedoria. É por isso que houve um cisma entre os
gémeos depois de o Marcus ter feito as provas BUD/S. Ele tinha ganho o
tipo de conhecimento que só pode conseguir-se depois de se ser reduzido a
nada – e de encontrar mais qualquer coisa dentro de nós. O Morgan não era
capaz de falar essa linguagem até ele próprio ter passado por isso.
Depois de sobreviver a duas Semanas Infernais e de participar em três,
para mim era como uma língua materna. A Semana Infernal era como estar
em casa. Era o lugar mais justo em que já tinha estado neste mundo. Não
havia exercícios cronometrados. Nada era classificado – e não havia troféus.
Era uma guerra total, um eu contra eu – e foi exatamente nesse ponto que
voltei a encontrar-me em Hospitality Point, quando fui reduzido ao meu
mínimo absoluto.
Porquê? Porque é que ainda estás a fazer isto a ti próprio, Goggins?!
“Porque és um cabrão mesmo rijo!”, gritei.
As vozes na minha cabeça eram tão penetrantes que tive de lhes
responder em voz alta. Eu tinha encontrado qualquer coisa. Senti uma
acumulação imediata de energia, quando percebi que o simples facto de
continuar na luta era, em si, um milagre. Só que não era um milagre. Não
foi Deus que desceu e me abençoou o coiro. Fui eu que cheguei aqui!
Continuei em frente quando devia ter desistido há umas cinco horas. Eu sou
a razão pela qual ainda tenho uma hipótese. E lembrei-me ainda de outra
coisa. Esta não era a primeira vez que eu me tinha lançado numa tarefa
aparentemente impossível. Aumentei o ritmo. Continuava a caminhar, mas
já não parecia um sonâmbulo. Tinha vida! Continuei a remexer no passado,
no meu próprio Frasco das Bolachas imaginário.
Lembrei-me de que, em criança, por muito lixada que a nossa vida
estivesse, a minha mãe arranjava sempre uma maneira de ter o frasco das
bolachas bem composto. Comprava bolachas de baunilha, Oreos,
Pepperidge Farm Milanos e Chips Ahoy! e, sempre que aparecia com uns
biscoitos novos, deitava-os no frasco. Com autorização dela, podíamos tirar
um ou dois de cada vez. Era como uma mini caça ao tesouro. Lembro-me da
alegria de enfiar a mão no frasco, a pensar no que ia encontrar, e antes de a
levar à boca ficava sempre um bocado a olhar para a bolacha, especialmente
quando vivíamos em Brazil e não tínhamos um chavo. Virava-a na mão e
dizia a minha pequena prece de agradecimento. O sentimento de ser essa
criança, encerrado num momento de gratidão por causa de uma dádiva
simples como uma bolacha, voltou a mim. Senti-o de forma visceral e usei-
o para encher um novo tipo de Frasco das Bolachas. Tinha lá dentro todas as
minhas vitórias anteriores.
Como aquela vez que tive de estudar três vezes mais do que os outros
todos, no último ano do liceu, para poder passar. Era uma bolacha. Ou
quando passei no teste ASVAB no último ano, e outra vez para entrar na
instrução BUD/S. Mais duas bolachas. Lembrei-me de quando perdi mais
de 45 quilos em menos de três meses, venci o medo da água, me formei nas
BUD/S como o melhor da classe e fui nomeado Alistado de Honra na
Escola de Rangers do Exército (de que voltarei a falar). Eram tudo bolachas
carregadas de pepitas de chocolate.
Não eram meras recordações. Eu não estava apenas a flutuar através dos
meus ficheiros de memórias, ia realmente à procura do estado emocional
que sentira durante esses triunfos, e, ao fazer isso, acedia de novo ao meu
sistema nervoso simpático. A adrenalina apoderou-se de mim, a dor
começou a esfumar-se o suficiente e o meu ritmo acelerou. Comecei a
mover os braços e a alargar a passada. Os meus pés fraturados ainda eram
um desastre ensanguentado, cheios de bolhas e com as unhas quase todas a
cair, mas continuei a acelerar – e em breve, era eu, a correr contra o relógio,
que ziguezagueava entre corredores com expressões de dor.
A partir desse momento, o Frasco das Bolachas tornou-se um conceito a
que recorro sempre que preciso de me lembrar de quem sou e do que sou
capaz. Todos temos dentro de nós um Frasco das Bolachas, porque a vida,
sendo o que é, sempre nos testou. Ainda que, neste momento, esteja a sentir-
se em baixo e deprimido por causa da vida, asseguro-lhe que é capaz de
pensar num ou dois momentos em que superou a adversidade e alcançou
êxito. Nem precisa de ser uma grande vitória. Pode ser uma coisa pequena.
Sei que todos queremos a vitória total, e já hoje, mas, quando estava a
ensinar-me a mim próprio a ler, ficava feliz se era capaz de compreender
todas as palavras de um parágrafo. Sabia que ainda tinha um longo caminho
a percorrer para passar de um nível de leitura de terceiro ano para o de um
finalista do liceu, mas até uma vitória pequena como essa era suficiente para
me manter interessado em aprender e em descobrir mais dentro de mim.
Não é possível perder 45 quilos em três meses sem primeiro perder dois
quilos numa semana. Esses primeiros dois quilos que perdi constituíram
uma pequena proeza, e, na verdade, nem parece grande coisa, mas, naquele
momento, foi a prova de que conseguia realmente perder peso e de que a
minha meta, sendo improvável, não era impossível!
O motor de um foguetão não se acende sem haver primeiro uma pequena
chispa. Todos necessitamos de pequenas centelhas, de pequenas proezas nas
nossas vidas que alimentem os grandes triunfos. Pense nos seus pequenos
triunfos como pedaços de lenha. Quando se quer fazer uma fogueira, não se
começa por um tronco grande. Vai-se buscar um pequeno monte de erva
seca ou morta, acende-se e vai-se juntando pauzinhos pequenos, e cada vez
maiores, até que, por fim, sim, se coloca um tronco no meio das chamas.
Porque são as pequenas centelhas, que iniciam pequenos fogos, que acabam
finalmente por gerar o calor suficiente para queimar toda a floresta.
Se ainda não tem um grande triunfo como referência, não faz mal. As
suas pequenas vitórias são as bolachas que tem para saborear – e tenha a
certeza de que as saboreia. Sim, eu fui duro comigo quando me olhei no
Espelho da Responsabilidade, mas também me elogiei sempre que era
possível reivindicar uma pequena vitória, porque todos precisamos disso,
mas são muito poucos os que perdem tempo a celebrar os seus êxitos. Claro,
podemos desfrutar deles no momento, mas será que olhamos para trás e
voltamos a ter aquela sensação de triunfo repetidamente? Tudo isto pode
soar narcisista. Mas eu não estou a falar de presunções ou de fanfarronices
pelos dias de glória. Não estou a sugerir que alguém viva dentro do seu
pequeno mundo e aborreça os amigos com aquelas histórias incríveis de
como costumava ser um tipo incrível. Ninguém quer ouvir essa merda. Eu
estou a falar é de usar triunfos antigos como combustível para alcançar
outros novos e maiores. Porque, no calor da batalha, quando as merdas são
de verdade, é preciso procurar motivação para superar a própria exaustão,
depressão, dor e infelicidade. É preciso acender uma quantidade de
pequenos fogos para nos transformarmos num cabrão de um inferno.
Mas escarafunchar no Frasco das Bolachas quando tudo está a correr mal
exige foco e determinação, porque, ao princípio, o cérebro não quer ir para
aí. O que o cérebro quer é lembrar-nos de que estamos a sofrer e de que o
nosso objetivo é inalcançável. Quer deter-nos, para que possamos deter a
dor. Essa noite, em San Diego, foi a mais difícil da minha vida, fisicamente.
Nunca me tinha sentido tão destroçado – e aqui não havia almas para
conquistar. Eu não competia por um prémio. Não havia ninguém no meu
caminho. Tudo o que tinha para prosseguir era eu.
O Frasco das Bolachas converteu-se no meu banco de energia. Sempre
que a dor se tornava excessiva, metia a mão, tirava uma e dava-lhe uma
dentada. A dor nunca desaparecia, mas eu apenas a sentia em vagas porque
tinha o cérebro ocupado com outras coisas, o que me permitia afogar
aquelas perguntas simples e encolher o tempo. Cada volta tornou-se uma
volta de celebração da vitória, de celebração de uma bolacha diferente, de
outro fogo pequeno. O quilómetro 130 transformou-se no 131 e, uma hora e
meia depois, estava nos 145. Tinha corrido 145 quilómetros sem treino!
Quem é que é capaz de uma merda destas? Uma hora depois estava nos 150
e, ao fim de 19 horas a correr quase sem parar, tinha conseguido! Tinha
feito 160 quilómetros! Ou não? Como não tinha bem a certeza, fiz mais
uma volta só para não haver dúvidas.
Depois de fazer 161 quilómetros, com a corrida finalmente concluída,
cambaleei até à minha cadeira desdobrável e a Kate pôs-me sobre o corpo
um poncho camuflado, enquanto eu tremia no meio do nevoeiro. Do meu
corpo, soltava-se vapor. Tinha a visão turva. Lembro-me de ter sentido
qualquer coisa quente na perna e quando olhei vi que estava outra vez a
urinar sangue. Sabia o que vinha aí a seguir, mas as casas de banho portáteis
ficavam a uns 12 metros de distância – o que era a mesmíssima coisa que
sessenta quilómetros, ou sessenta mil. Procurei levantar-me, mas estava
demasiado tonto e caí outra vez em cima daquela cadeira, como um objeto
inamovível disposto a aceitar a verdade inevitável de que me ia cagar todo.
Desta vez, foi muito pior. Fiquei com o rabo todo e a parte de trás das costas
cheios de fezes quentes.
A Kate sabia muito bem identificar uma emergência. Foi a correr para a
nossa Toyota Camry e trouxe o carro em marcha-atrás para o pequeno
relvado ao meu lado. Eu tinha as pernas tão hirtas como fósseis
aprisionados em pedra e encostei-me nela para deslizar para o banco de trás.
Ela ia frenética ao volante e queria levar-me diretamente para as urgências;
eu só queria voltar para casa.
Vivíamos no segundo piso de um complexo de apartamentos em Chula
Vista e eu apoiei-me nas costas dela, com os braços à volta do seu pescoço,
enquanto ela me levava pela escada. Apoiou-me na parede enquanto abria a
porta. Consegui entrar e dar uns passos antes de desmaiar.
Acordei uns minutos depois, no chão da cozinha. Ainda tinha as costas
cheias de merda e as coxas cobertas de sangue e urina. Os pés estavam
cheios de bolhas e sangravam em 12 pontos. Sete das dez unhas dos pés
estavam a cair, presas apenas por pedaços de pele morta. Tínhamos uma
combinação de banheira e duche e ela ligou o chuveiro antes de me ajudar a
arrastar-me para lá e de me meter na banheira. Lembro-me de lá estar, nu,
com a água a cair em cima. Eu tremia, sentia-me morto, parecia morto – e
voltei a urinar. Mas, em vez de sangue ou urina, parecia uma espécie de
bílis castanha espessa.
Petrificada, a Kate foi até ao corredor para telefonar à minha mãe. Ela
tinha passado pela corrida com um amigo que, por acaso, era médico. Ao
ouvir a descrição dos meus sintomas, ele aventou que poderíamos estar a
braços com uma falência renal e, sendo assim, tínhamos de ir
imediatamente às urgências. A Kate desligou, veio ter comigo e encontrou-
me no chão da casa de banho enrolado em posição fetal, caído sobre o lado
esquerdo.
“Temos de ir já para as urgências, David!”
A Kate continuou a falar, a gritar, a chorar, a tentar comunicar comigo
através do atordoamento. Eu ouvi a maior parte das coisas que ela dizia,
mas sabia que se fôssemos ao hospital me dariam analgésicos – e não queria
mascarar esta dor. Eu acabara de realizar a maior proeza de toda a minha
vida. Era mais difícil do que a Semana Infernal, tinha mais significado para
mim do que converter-me num SEAL, e era um desafio maior do que a
minha missão no Iraque, porque, desta vez, eu tinha feito uma coisa que não
tenho a certeza que alguém tivesse feito antes. Tinha corrido 161
quilómetros sem qualquer preparação.
Soube então que tinha andado a menosprezar-me. Que havia todo um
nível de rendimento inteiramente novo para explorar. Que o corpo humano é
capaz de suportar e conseguir muito mais do que a maioria de nós julga
possível – e que tudo começa e acaba na mente. Isto não era uma teoria.
Não era uma coisa que eu tivesse lido num maldito livro. Tinha-a sentido
em primeira mão ao correr em Hospitality Point.
Esta última parte. Esta dor e sofrimento. Esta foi a minha cerimónia de
receber um prémio. Eu tinha conquistado isto. Era a confirmação de que
tinha dominado a minha própria mente – pelo menos durante um período –,
e que tinha conseguido qualquer coisa de realmente especial. Ali, enroscado
na banheira, a tremer, em posição fetal, saboreando a dor, pensei também
noutra coisa. Se era capaz de correr 161 quilómetros sem qualquer
preparação, imagine-se o que conseguiria fazer com algum treino.
DESAFIO #6
Faça o inventário do seu Frasco das Bolachas. Volte a abrir o seu diário.
Escreva tudo. Lembre-se de que não se trata de um passeio pela sua sala de
troféus pessoal. Não se limite a escrever a lista de proezas alcançadas.
Inclua também os obstáculos da vida que superou, como deixar de fumar,
vencer a depressão ou ultrapassar a gaguez. Junte a isso aquelas tarefas
simples da vida em que falhou em algum momento, mas que voltou a tentar
uma segunda ou terceira vez, até ter êxito. Sinta aquilo que significou
vencer essas batalhas, esses adversários, e ganhar. A seguir, ponha-se a
trabalhar.
Estabeleça objetivos ambiciosos antes de cada treino físico e permita que
essas vitórias o conduzam a novos máximos pessoais. No caso de se tratar
de uma corrida a pé ou em bicicleta, inclua algum tempo para fazer
exercício nos intervalos e desafie-se a superar o seu recorde de quilómetros
em cada intervalo. Ou mantenha apenas um ritmo cardíaco máximo durante
um minuto – e a seguir dois minutos. Se estiver em casa, concentre-se em
fazer flexões ou elevações. Faça o máximo possível em dois minutos.
Depois, tente ultrapassar o seu melhor resultado. Quando a dor chegar e
procurar detê-lo antes de chegar ao seu objetivo, enfie a mão no frasco, tire
uma bolacha e deixe que ela o alimente!
Se estiver mais focado no desenvolvimento intelectual, treine-se para
estudar mais e durante mais tempo do que nunca, ou leia um número
recorde de livros num mês. O Frasco das Bolachas também pode ajudá-lo
neste momento. Porque, se enfrentar este desafio da forma correta e se
desafiar de verdade, chegará a um ponto em cada exercício em que a dor, o
aborrecimento ou a dúvida sobre si próprio se instalam, e vai precisar de
resistir para o superar. O Frasco das Bolachas é o seu atalho para assumir o
controlo do seu próprio processo de pensamento. Use-o dessa forma! A
questão não é sentir-se um herói porque sim. Não é uma sessão de “Viva
eu!” É para recordar como é bom, para poder usar essa energia de modo a
voltar a triunfar no calor da batalha!
Publique as suas recordações nas redes sociais, tal como os novos êxitos
que elas impulsionaram. Inclua as hashtags #canthurtme #cookiejar.
CAPÍTULO SETE

A ARMA MAIS PODEROSA


Na segunda-feira de manhã, 27 horas depois de saborear uma dor intensa e
gratificante e de me deleitar com o esplendor da minha maior proeza até à
data, estava de regresso à minha secretária. O SBG era o meu oficial de
comando e tive a autorização dele, e todas as desculpas que existiam, para
tirar uns dias de folga. Mas, em vez disso, inchado, dorido e abatido,
arrastei-me para fora da cama, fui a coxear para o trabalho, e logo nessa
manhã telefonei a Chris Kostman.
Tinha estado a antecipar esse momento. Imaginei que haveria uma ligeira
nota de surpresa na voz dele ao saber que eu tinha aceitado o desafio que
me fizera e corrido 161 quilómetros em menos de 24 horas. Talvez houvesse
até um tom de devido respeito quando ele oficializasse a minha inscrição na
Badwater. Só que a minha chamada foi para o voicemail. Deixei-lhe uma
mensagem de voz educada a que ele nunca respondeu; dois dias depois,
enviei-lhe um email.
Caro senhor, como está? Corri os 160
quilómetros necessários para me qualificar em
18 horas e 56 minutos… Gostaria de saber o que
tenho de fazer agora para entrar na Badwater…
para podermos começar a angariar fundos para a
fundação [Guerreiros de Operações Especiais].
Agradeço-lhe de novo…
A resposta chegou no dia seguinte e deixou-me
bastante confuso.
Parabéns por ter terminado os 160
quilómetros. Mas parou mesmo nesse momento? O
objetivo de uma prova de 24 horas é correr as
24 horas… Seja como for… fique atento ao
anúncio de que pode inscrever-se… A corrida
será de 24 a 26 de julho.
Melhores cumprimentos,
Chris Kostman
Não consegui evitar tomar a peito essa resposta. Numa quarta-feira,
sugeriu-me que eu corresse 160 quilómetros em 24 horas logo nesse sábado.
Eu consegui, em menos tempo do que ele me dissera, e ele nem assim ficara
impressionado? Kostman era um veterano de corridas ultra, por isso sabia
que eu precisara de superar uma dezena de limites de rendimento e barreiras
de dor. É óbvio que nada disso significava muito para ele.
Deixei passar uma semana, para me acalmar, antes de voltar a escrever-
lhe e, entretanto, fui vendo que em que outras provas podia participar para
juntar ao currículo. Nessa altura do ano, já havia muito poucas. Encontrei
uma de oitenta quilómetros em Catalina, mas um tipo como Kostman nunca
ficaria impressionado com um número abaixo de três dígitos. Além disso,
tinha passado uma semana inteira desde a San Diego One Day e o meu
corpo ainda se encontrava monumentalmente lixado. Não tinha corrido nem
um metro depois de passar o quilómetro 161. A minha frustração ia
cintilando em sincronia com o cursor à medida que elaborava a minha
resposta.
Obrigado pelo seu email de resposta. Vejo que
é uma pessoa que gosta tanto de falar como eu.
A única razão pela qual ainda o venho incomodar
é por causa da importância desta corrida e da
causa por trás dela. Se sabe de outras provas
de qualificação que pensa que eu devia fazer,
por favor diga-me… Obrigado pela observação de
que eu devia correr as 24 horas completas. Da
próxima vez, não me esquecerei.
Ele demorou uma semana inteira a responder e
não alimentou muito as minhas esperanças, mas,
pelo menos, temperou-as com sarcasmo.
Olá, David,
Se puder fazer mais algumas ultras entre
agora e 3 a 24 de janeiro, que é o período das
inscrições, fantástico. Se não, apresente a
melhor candidatura possível nessa janela de 3 a
24 e faça figas.
Obrigado pelo seu entusiasmo,
Chris
Nesta fase, o Chris Kostman já me estava a parecer melhor do que as
minhas hipóteses de entrar na Badwater. O que eu não sabia, porque ele
nunca o referiu, é que Kostman era um dos cinco membros do comité de
admissões da prova, que analisa mais de mil candidaturas por ano. Cada
juiz classifica os pedidos e, com base na soma das pontuações, os noventa
melhores são admitidos por mérito. Aparentemente, o meu currículo era
curto e eu não chegaria a esses noventa. Por outro lado, Kostman tinha no
seu bolso dez convites. Podia ter-me já garantido um lugar, mas, por algum
motivo, continuava a espicaçar-me. Mais uma vez, teria de mostrar o meu
valor para lá de um nível mínimo para conseguir um tratamento justo. Para
me tornar SEAL, tive de enfrentar três Semanas Infernais, e agora, se queria
realmente correr a Badwater e angariar dinheiro para famílias necessitadas,
ia ter de encontrar uma maneira de tornar a minha candidatura à prova de
bala.
A partir de um link que ele me enviou com a sua resposta, descobri mais
uma corrida ultra marcada para uma data anterior à do fim das inscrições.
Chamava-se Hurt 100 e o nome não mentia [hurt = sofrer]. Tratava-se de
uma das provas de 160 quilómetros mais duras do mundo, pelo meio de
uma selva tropical na ilha de Oahu, no Havai. Para chegar à linha de meta,
teria de subir e descer 7500 metros. Era a mesma merda que trepar aos
Himalaias. Olhei para o perfil da corrida: subidas íngremes e descidas a
pique. Parecia um eletrocardiograma de uma arritmia. Não podia fazer isto a
frio. Nunca chegaria ao fim sem algum treino, mas, no início de dezembro,
ainda passava por uma agonia tão grande que só subir as escadas do
apartamento era uma tortura.
No fim-de-semana seguinte, subi pela Interstate 15 até Las Vegas para
participar na maratona local. Não foi um impulso do momento. Ainda uns
meses antes de eu ter ouvido falar na San Diego One Day, a Kate, a minha
mãe e eu tínhamos assinalado na agenda a data de 5 de dezembro.
Estávamos em 2005, o primeiro ano em que a Maratona de Las Vegas
começava na Strip e queríamos estar presentes nessa merda. Só que eu
nunca cheguei a treinar para isso, depois aconteceu a corrida em San Diego
e, quando chegámos a Vegas, eu não tinha ilusões sobre a forma em que me
encontrava. Na véspera de manhã, procurei correr, mas ainda tinha fraturas
de stresse nos pés e os tendões mediais frágeis. Tinha descoberto que
conseguia estabilizar os tornozelos apertando-os com ligaduras especiais,
mas não duraria mais de quatrocentos metros. Por isso, no dia da corrida,
quando nos dirigimos ao Mandalay Bay & Casino Resort, eu não tinha a
mínima intenção de participar.
Estava uma bela manhã. A música tocava alto, milhares de rostos
sorridentes enchiam as ruas, o ar limpo do deserto era fresco e o sol
brilhava. Não há condições de corrida muito melhores do que estas e a Kate
ia participar. A meta dela era baixar das cinco horas e, por uma vez, eu
estava conformado por ser o seu apoio. O plano da minha mãe fora sempre
fazer o percurso a pé e eu pensei acompanhá-la até onde pudesse; depois
iria de táxi para a linha de chegada, onde esperaria por elas para as aplaudir.
Estávamos os três amontoados no meio da massa de participantes quando
o relógio marcou as sete da manhã e alguém foi ao microfone iniciar a
contagem decrescente: “Dez… nove… oito…” Quando ele disse “Um!”,
soou uma trombeta e, como um autêntico cão de Pavlov, qualquer coisa
dentro de mim fez um clique. Talvez tenha subestimado o meu espírito
competitivo. Talvez fosse por saber que é suposto os SEAL da Marinha
serem os cabrões mais rijos do mundo. Devíamos ser capazes de correr com
pernas partidas e pés fraturados. Ou, pelo menos, era isso que dizia a lenda
em que eu acreditava há tanto tempo. Fosse o que fosse, houve qualquer
coisa que se acendeu dentro de mim, e a última coisa que me lembro de ver,
quando aquela trombeta ecoou na rua, foram as expressões de choque e
preocupação genuína nas caras de Kate e da minha mãe quando me lancei
pela avenida abaixo e elas me perderam de vista.
Nos primeiros quatrocentos metros, senti uma dor imensa, mas a partir
daí a adrenalina apoderou-se de mim. Cheguei aos 1500 metros em sete
minutos e dez e continuei a correr como se o asfalto estivesse a derreter-se
debaixo dos meus pés. Passei aos dez quilómetros em 43 minutos. É um
tempo bom, mas eu não estava focado no relógio, porque, tendo em conta
como me sentia na véspera, ainda nem acreditava que tivesse de facto
corrido dez quilómetros! Tinha o corpo desfeito. Como era possível isto
estar a acontecer? Num estado como o meu, a maior parte das pessoas
andaria com os pés engessados. E eu estava a fazer uma maratona!
Cheguei ao quilómetro 21, a metade da corrida, e olhei para o relógio
oficial. Indicava “1:35:35”. Fiz as contas e percebi que tinha condições de
me qualificar para a maratona de Boston, ainda que no limite. Para
conseguir o apuramento no meu grupo etário, tinha de realizar um tempo
abaixo de 3:10:59. Incrédulo, ri-me e esmaguei um copo de papel de
Gatorade. Em menos de duas horas, o jogo tinha dado a volta e eu podia
nunca mais voltar a ter esta hipótese. Já tinha visto tanta morte – na minha
vida pessoal e no campo de batalha – que sabia que o amanhã nunca está
garantido. Tinha uma oportunidade à minha frente – e quando me dão uma
oportunidade, claro que a agarro!
Não foi fácil. Nos primeiros vinte quilómetros, tinha andado na crista de
uma onda de adrenalina, mas senti cada centímetro da segunda metade e, no
quilómetro 30, fui contra uma parede. É um momento comum nas
maratonas, porque por volta do quilómetro 30 é quando habitualmente os
níveis de glicogénio dos atletas caem muito; eu senti-me esvaziado e com
os pulmões em convulsão. Tinha as pernas como se estivesse a correr em
areias profundas do deserto do Sara. Precisava de parar e de uma pausa, mas
não o fiz, e dois quilómetros e tal mais à frente sentia-me rejuvenescido. A
segunda vez que olhei para o relógio foi ao quilómetro 35. Ainda perseguia
um tempo que me desse acesso a Boston, embora me tivesse afastado trinta
segundos do ritmo; para me qualificar, os últimos seis quilómetros teriam de
ser os meus melhores.
Fui à procura de tudo o que tinha, levantei as coxas mais alto e aumentei
a passada. Era um homem possuído no momento em que fiz a curva final e
carreguei sobre a meta no Mandalay Bay. Havia milhares de pessoas nos
passeios, a aplaudir. Para mim, enquanto sprintava para a chegada, era tudo
um borrão.
Fiz os últimos três quilómetros num ritmo inferior a sete minutos,
concluí a prova em pouco mais de três horas e oito minutos e qualifiquei-me
para Boston. Algures nas ruas de Las Vegas, a minha mulher e a minha mãe
enfrentavam, e superavam, os seus próprios desafios, para chegar ao fim. Eu
sentei-me num pedaço de relva, a aguardá-las, e fazendo outra pergunta que
era impossível não colocar. Era uma questão nova, e não estava assente no
medo, na dor ou na autolimitação. Era uma pergunta aberta.
De que sou capaz?
O treino dos SEAL tinha-me levado ao limite diversas vezes, mas sempre
que me derrubava, eu reerguia-me para receber outra tareia. A experiência
endureceu-me, mas também me deixou a querer mais do mesmo, e a vida
quotidiana dos SEAL não era assim. Depois aconteceu a corrida em San
Diego, e agora esta. Tinha acabado uma maratona a um ritmo de elite (para
um praticante de fim de semana) num momento em que nem conseguia
caminhar um quilómetro. Eram ambas proezas físicas incríveis, que não
pareciam possíveis. Mas tinham acontecido.
De que sou capaz?
Não conseguia responder a essa pergunta, mas ao olhar em volta, ali,
junto da meta, e ao pensar no que tinha alcançado, tornou-se evidente que,
sem darmos conta, todos estamos a deixar na mesa de jogo muito do
dinheiro que apostamos. Em geral, contentamo-nos com menos do que
aquilo que é o nosso melhor; seja no trabalho, na escola, nas relações e no
campo de jogo ou na corrida. Conformamo-nos como indivíduos e
ensinamos os nossos filhos a conformarem-se com menos do que é o seu
melhor, e tudo isso se espalha, se funde e se multiplica dentro das
comunidades e da sociedade como um todo. Não estamos a falar de um mau
fim-de-semana em Las Vegas, nem de se acabar o dinheiro na máquina de
multibanco. Naquele momento, pareceu-me incalculável o desperdício de
tanta excelência neste mundo eternamente lixado – e ainda parece. Não
parei de pensar nisso desde então.
***
Fisicamente, recuperei da prova em Las Vegas em alguns dias. Isto é,
voltara ao meu novo normal: lidar com a mesma dor grave, mas tolerável,
com que tinha regressado a casa depois da San Diego One Day. No sábado
seguinte, ainda sentia dores, mas, para mim, a convalescença tinha acabado.
Precisava de começar a treinar ou então ia colapsar a meio da Hurt 100 e
depois não haveria Badwater. Tinha estado a ler sobre a preparação para
provas ultra e já sabia que era essencial fazer 160 quilómetros por semana.
Só tinha cerca de um mês para desenvolver a minha força e resistência; a
prova era a 14 de janeiro.
Os meus pés e canelas nem sequer andavam perto de estar bem, por isso
lembrei-me de um novo método para estabilizar tanto os ossos dos pés
como os tendões. Comprei palmilhas de alto rendimento, recortei-as para se
ajustarem à planta do pé e envolvi os tornozelos, calcanhares e a parte
inferior das canelas em fita de compressão. Também introduzi uma pequena
cunha no calcanhar para corrigir a posição de corrida e aliviar a pressão.
Depois do que tinha passado, eram precisos muitos adereços para correr
(quase) sem dor.
Não é fácil correr 160 quilómetros numa semana e ter em simultâneo um
emprego, mas isso não era desculpa. A minha viagem de 25 quilómetros até
ao trabalho, entre Chula Vista e Coronado, tornou-se o meu trajeto favorito.
Chula Vista tinha uma dupla personalidade quando eu lá vivia. Havia uma
zona mais simpática e mais recente de classe média, onde eu vivia, e que era
rodeada por uma selva de cimento de ruas em terra e perigosas. Era por aí
que eu corria ao nascer do dia, por baixo de viadutos e junto dos molhes de
embarque da Home Depot. Ou seja, não era a San Diego cheia de sol que
aparece nos folhetos para turistas.
Apanhava com o ar contaminado dos escapes e com o cheiro do lixo a
apodrecer, via ratazanas em fuga e contornava acampamentos de sem-
abrigo insones antes de chegar a Imperial Beach, onde apanhava a pista para
bicicletas Silver Strand, com os seus dez quilómetros. Ia ter ao hotel
emblemático de Coronado, o Hotel Del Coronado, de finais do século XIX, e
a uma série de torres de apartamentos de luxo que davam para a faixa larga
de areia partilhada pelo Comando de Guerra Especial da Marinha, onde eu
passava o dia a saltar de aviões e a disparar armas. Eu vivia a lenda dos
SEAL da Marinha e procurava manter-me fiel a ela!
Fazia esse troço de 25 quilómetros pelo menos três vezes por semana.
Havia dias em que também ia a correr de regresso a casa e, às sextas-feiras,
carregava uma mochila. Na bolsa para o rádio da minha mochila colocava
dois pesos de dez quilos e corria carregado uns trinta quilómetros, para
fortalecer os quadríceps. Adorava acordar às cinco da manhã e começar a
trabalhar já com três horas de cardio em cima, quando a maior parte dos
meus companheiros ainda nem tinha acabado o café. Dava-me uma
vantagem mental, um maior sentido de autoconsciência e uma tonelada de
confiança em mim, o que me tornava um instrutor SEAL melhor. É o que
faz por nós levantar mal amanhece e começar logo a fazer exercício: torna-
nos melhores em todas as facetas da vida.
Na primeira semana de treino de verdade, corri 120 quilómetros. Na
seguinte, fiz 175, incluindo vinte no dia de Natal. Na terceira, passei para
180 quilómetros, incluindo trinta no dia de Ano Novo, e na outra contive-
me, para fazer recuperação das pernas, mas ainda assim percorri noventa
quilómetros. Eram todos em estrada, mas aquilo que me aguardava era
correr num trilho – e eu nunca tinha corrido num trilho. Já tinha feito muitas
caminhadas, mas nunca tinha feito um percurso em contrarrelógio. A Hurt
100 realizava-se num circuito de 32 quilómetros e eu ouvira dizer que só
uma pequena parte dos que iniciam a prova conseguia concluir as cinco
voltas. Era a última ocasião para preencher o currículo antes da Badwater.
Estava a apostar muito num resultado bem-sucedido, quando havia ainda
tanto sobre a corrida, e sobre as provas ultra, que eu não sabia.
Registo do treino para a Hurt 100, Semana 3
Apanhei o avião para Honolulu uns dias antes da prova e registei-me no
Halekoa, um hotel das forças armadas onde ficam militares no ativo e
veteranos de passagem pela cidade. Tinha estudado os mapas e conhecia os
aspetos básicos do terreno, mas não o tinha visto de perto, por isso, na
véspera da prova, dirigi-me ao Centro de Natureza do Havai e fiquei a olhar
para as montanhas aveludadas cor de jade. Não se via mais do que um
rasgão contrastado de terra vermelha a desaparecer entre o verde denso.
Subi pelo trilho, cerca de meio quilómetro, mas não podia ir mais longe.
Queria poupar energias e o primeiro quilómetro era logo numa subida
pronunciada. Tudo o que ficava para além desse ponto teria de permanecer
um mistério durante um pouco mais.
Ao longo do percurso de trinta quilómetros só existiam três postos de
assistência; os atletas eram, na maior parte, autossuficientes e preparavam o
seu próprio regime nutricional. Eu ainda era um novato e não fazia ideia do
que precisaria neste capítulo. No dia da corrida, encontrei uma mulher no
hotel, às cinco e meia da manhã, quando estávamos para sair. Ela sabia que
eu era inexperiente e perguntou-me o que levava para me alimentar durante
a corrida. Mostrei-lhe a minha escassa reserva de gel energético com
sabores e a minha mochila de hidratação CamelBak.
“Não trouxe pastilhas de sal?”, perguntou, chocada. Encolhi os ombros.
Eu nem sabia que merda era uma pastilha de sal. Ela deitou-me na palma da
mão aí umas cem. “Tome duas destas de hora a hora. Vão impedir que tenha
cãibras.”
“Entendido.” Ela sorriu-me e abanou a cabeça, como se pudesse ver que
eu tinha pela frente um futuro lixado.
Eu comecei forte e senti-me muito bem, mas pouco depois de a corrida
principiar percebi que estava perante um percurso monstruoso. Não estou a
falar da inclinação e das variações de altitude. Isso eu já esperava. Tive a
sorte de não chover desde há uns dias, porque só tinha para calçar os meus
sapatos normais, que tinham pouquíssima tração. E depois, ao quilómetro
dez, a minha mochila CamelBak rompeu-se.
Deitei-a fora e continuei a correr, mas sem uma fonte de água ficava
dependente dos postos de assistência para me hidratar – e havia muitos
quilómetros entre eles. Nem sequer tinha ainda a minha equipa de apoio
(que era composta por uma só pessoa). A Kate ficara a descansar na praia e
só planeava aparecer mais tarde, o que era inteiramente culpa minha. Tinha-
a convencido a vir prometendo-lhe umas férias e, nessa manhã, insisti para
que desfrutasse do Havai e deixasse o sofrimento para mim. Com ou sem
uma CamelBak, concentrei-me em ir de posto de abastecimento em posto
de abastecimento, a ver o que acontecia.
Antes do início da corrida, ouvi pessoas a falar de Karl Meltzer. Tinha-o
visto a fazer alongamentos e a aquecer. A alcunha dele era “Cabra Veloz” e
pretendia tornar-se a primeira pessoa a completar a corrida em menos de 24
horas. Para nós, os outros todos, havia um limite de 36 horas. A minha
primeira volta levou quatro horas e meia, e depois senti-me bem, o que era
de esperar tendo em conta todos os longos dias de preparação que tinha
realizado, mas também ia preocupado, porque cada volta exigia uma subida
e descida de aproximadamente 1500 metros verticais, e uma grande
concentração para prestar atenção a cada passada e ver se não torcia um
tornozelo, o que aumentava a fadiga mental. De cada vez que o meu tendão
medial se retorcia, eu sentia como que um nervo em carne viva exposto ao
ar e sabia que um simples tropeção podia dobrar o meu tornozelo instável e
acabar com a corrida. Senti essa pressão em cada momento e, por causa
disso, queimei mais calorias do que estava à espera. O que era um
problema, porque tinha muito pouco abastecimento e, sem uma fonte de
água, não conseguia hidratar-me eficazmente.
Entre cada volta, engolia água e foi com a barriga a chocalhar que
comecei a segunda, com uma passada lenta até à subida de uns 1500 metros
de extensão e 240 metros de altura, nas montanhas (basicamente uma
corrida pela encosta acima). Foi então que começou a chover. Em poucos
minutos, o trilho de terra vermelha transformou-se em lama. As solas dos
meus sapatos de corrida ficaram cobertas de argila e resvalavam como
esquis. Atravessava charcos que me chegavam a meio das canelas, patinava
nas descidas e escorregava nas subidas. Era um desporto de corpo inteiro.
Mas pelo menos havia água. Sempre que me sentia desidratado, inclinava a
cabeça para trás, abria a boca e saboreava a água da chuva, filtrada através
de uma floresta com três camadas de folhagem que cheirava a folhas podres
e a merda. Um fedor selvagem da fertilidade invadia-me as narinas e eu só
pensava numa coisa: ainda tinha de fazer mais quatro voltas lixadas.
Pelo quilómetro 48, o meu corpo deu-me uma indicação positiva. Ou
seria antes uma manifestação física falsamente positiva? A dor nos tendões
dos tornozelos tinha desaparecido… porque os meus pés tinham inchado o
suficiente para estabilizar esses tendões. A longo prazo, seria isto positivo?
Talvez não, mas no circuito ultra agarramo-nos ao que podemos, temos de ir
fluindo com aquilo que nos leva de quilómetro em quilómetro. Entretanto,
doíam-me os quadríceps e os calcanhares como se tivessem andado a ser
massacrados com um martelo. Sim, é verdade, eu tinha corrido muito, mas
quase sempre – incluindo as saídas com mochila às costas – em terreno
lisinho como uma panqueca, não em trilhos escorregadios no meio da selva.
Quando completei a segunda volta, a Kate já me esperava, depois de ter
passado uma manhã descontraída na praia de Waikiki, e viu horrorizada
como eu me materializava do meio do nevoeiro como se fosse um zombie
do Walking Dead. Sentei-me e engoli toda a água que consegui. Nesse
momento, já se espalhara a informação de que era a minha primeira prova
num trilho.
Já passou por um grande embaraço em público ou teve um
dia/s/semana/mês/ano de merda e, no entanto, as pessoas à sua volta
sentem-se obrigadas a comentar a fonte da sua humilhação? Talvez a
lembrar-lhe, de todas as maneiras possíveis, como poderia ter assegurado
que o desfecho fosse muito diferente? Agora, imagine apanhar com toda
essa carga negativa, mas ter de correr mais 95 quilómetros debaixo de um
calor sufocante e de chuva. Parece-lhe divertido? Sim, todos falavam de
mim. Bom, de mim e do Karl Meltzer. Ninguém acreditava que ele se
propusesse realmente fazer a prova em menos de 24 horas, e era igualmente
desconcertante eu ter-me apresentado a uma das corridas em trilho mais
traiçoeiras do planeta, mal abastecido e mal preparado e sem nenhuma
prova do género já feita. Quando comecei a terceira volta só restavam
quarenta atletas, dos cerca de cem que a tinham iniciado, e eu corria ao lado
de um tipo chamado Luis Escobar. Pela décima vez, ouvi estas palavras:
“Então, é o teu primeiro trilho?”, perguntou-me. Fiz que sim com a
cabeça. “Escolheste mesmo o errado…”
“Eu sei”, respondi.
“É que é tão técnico…”
“Pois é. Sou um idiota de merda. Hoje já ouvi isso muitas vezes.”
“Não tenhas problema”, disse. “Aqui somos todos uma cambada de
idiotas, meu.” E estendeu-me uma garrafa de água. Levava três. “Pega nisto.
Já sei o que aconteceu à tua CamelBak.”
Sendo esta a minha segunda corrida, eu começava a compreender o ritmo
das provas ultra. É uma dança constante entre competição e camaradagem,
o que me fazia lembrar a instrução BUD/S. O Luis e eu estávamos os dois a
correr contra o relógio e um contra o outro, mas queríamos que o outro
chegasse ao fim. Estávamos ali sozinhos, juntos – e ele tinha razão. Éramos
os dois uns idiotas de merda.
A escuridão caiu e deixou-nos no meio do negro absoluto da selva. Ao
corrermos lado a lado, as luzes das lanternas que levávamos na cabeça
uniam-se e iluminavam uma área maior, mas quando nos separámos, eu não
via mais do que uma bola amarela a saltitar no trilho à minha frente.
Ficavam fora do campo de visão um sem-número de obstáculos – troncos
altos, raízes escorregadias, rochas cobertas de líquenes. Escorreguei,
tropecei, caí – e praguejei. Os ruídos da selva estavam por todo o lado. Não
era apenas o mundo dos insetos que captava a minha atenção. No Havai, em
todas as ilhas, caçar porcos selvagens nas montanhas é um passatempo
importante e os grandes caçadores deixam muitas vezes os seus pit bulls
acorrentados na selva, de modo a desenvolverem o seu olfato para os
porcos. Ouvi todos esses cães famintos pelos quais passei cerrarem as
mandíbulas e rosnarem e também ouvi porcos a guinchar. Cheirei o seu
medo e a sua raiva, a sua urina e a sua merda e o fedor do seu hálito.
O meu coração dava um salto sempre que ouvia ladrar ou rosnar – e eu
também dava saltos, num terreno tão escorregadio que lesionar-me era uma
possibilidade real. Um passo errado podia atirar-me para fora da corrida – e
acabar com a possibilidade de entrar na Badwater. Conseguia imaginar o
Kostman a ouvir a notícia e a acenar com a cabeça, como se tivesse a
certeza de que era uma merda que tinha de acontecer. Eu agora conheço-o
bastante bem, e sei que nunca teve nada contra mim, mas era assim que a
minha cabeça funcionava então. E nas montanhas íngremes e escuras de
Oahu, o meu esgotamento ampliava o stresse. Sentia-me próximo do limite
absoluto, mas ainda faltavam mais de sessenta quilómetros.
Na parte de trás da corrida, depois de uma longa descida técnica para a
floresta escura e húmida, vi outra luz de lanterna a mover-se à minha frente
num troço da pista. O corredor andava aos ziguezagues e, quando me
aproximei, vi que era um húngaro que tinha conhecido em San Diego,
chamado Akos Konya. Fora um dos melhores na prova em Hospitality
Point, cumprindo 215 quilómetros em 24 horas. Eu gostava do Akos e tinha
um respeito louco por ele. Parei e vi-o mover-se em círculos, sempre no
mesmo sítio. Estava à procura de alguma coisa? Estava a alucinar?
“Akos? Estás bem, meu? Precisas de ajuda?”
“David, não! Eu… não, estou bem”, respondeu. Tinha os olhos tão
abertos que pareciam luas cheias. Ele delirava, mas eu próprio mal me
aguentava e não tinha a certeza do que podia fazer por ele, para além de
informar o pessoal do próximo posto de abastecimento que ele andava por
ali a vaguear, confuso. Como afirmei, no circuito ultra há camaradagem e há
competição, e como ele não mostrava uma dor evidente e recusara a minha
ajuda, tive de entrar em modo bárbaro. Faltavam-me duas voltas completas
e não tive escolha a não ser avançar.
Cambaleei de regresso à linha da meta e deixei-me cair numa cadeira,
atordoado. Estava escuro como no espaço, a temperatura caía e o céu
continuava a mijar chuva. Encontrava-me de facto no limite das minhas
capacidades e não tinha a certeza de ser capaz de dar mais um passo. Sentia-
me como se tivesse esgotado 99 por cento do meu depósito, pelo menos. A
luz da reserva estava acesa, o meu motor trepidava, mas eu sabia que
precisava de encontrar mais energia se queria acabar esta corrida e entrar na
Badwater.
Mas como é que se consegue um esforço extra quando, a cada passo, se
sente apenas dor? Quando a agonia é a resposta que se recebe de cada célula
do corpo, a pedir-nos para parar? É difícil, porque o limiar do sofrimento é
diferente para cada pessoa. Aquilo que é universal é o impulso para
sucumbir. Para se sentir que se deu tudo o que se tem – e que há justificação
para não terminar uma tarefa.
Tenho a certeza de que já terá percebido que eu não preciso de muito
para me tornar obcecado. Há quem critique o meu grau de paixão, mas eu
não concordo com a mentalidade prevalecente que hoje em dia tende a
dominar a sociedade norte-americana; aquela que nos diz para nos
deixarmos levar pela corrente ou nos convida a aprender a conseguir mais
com menos esforço. Por mim, essa estupidez dos atalhos pode ir à merda. A
razão pela qual abraço as minhas próprias obsessões e pela qual exijo e
desejo mais de mim é porque aprendi que é somente quando me impulsiono
mais além da dor e do sofrimento, mais além das minhas limitações
percebidas, que consigo alcançar mais, física e mentalmente – em provas de
resistência, mas também na vida em geral.
E acredito que isso também é verdade para si.
O corpo humano é como um automóvel de corrida. Podemos parecer
diferentes por fora, mas debaixo do capô temos todos enormes reservas de
potencial e um limitador que nos impede de alcançar a velocidade máxima.
Num carro, o limitador controla o fluxo de combustível e ar, para não
queimar demasiado, o que coloca um teto ao rendimento. É um problema de
hardware; o limitador pode ser retirado com facilidade, e se fizer isso ao seu
automóvel verá como ele dispara para cima dos 210 quilómetros por hora.
No animal humano, o processo é mais subtil.
O nosso limitador está instalado bem no fundo da mente, entrelaçado
com a própria identidade. Sabe o quê e quem amamos e detestamos; leu
toda a história da nossa vida e dá forma à maneira como nos vemos e como
gostamos de ser vistos. É o programa informático que nos proporciona um
feedback personalizado – sob a forma de dor e de exaustão, mas também de
medo e insegurança, e utiliza isso tudo para nos incentivar a parar antes de
pormos tudo em risco. Mas a questão é esta: ele não tem o controlo
absoluto. Ao contrário do limitador num automóvel, o humano não é capaz
de nos deter, a menos que aceitemos as merdas que ele diz e aceitemos
desistir.
Infelizmente, a maioria desiste quando atingiu não mais de 40 por cento
do seu esforço máximo possível. Até quando sentimos que já chegámos ao
limite, ainda temos mais 60 por cento para dar! É o limitador em ação! A
partir do momento em que se sabe que isto funciona assim, é só uma
questão de ampliar a tolerância à dor, de deixar ir a identidade e todas as
narrativas auto limitadoras, para poder chegar aos 60 por cento, e a seguir
aos 80, e mais até, sem desistir. Chamo a isto a Regra dos 40% e a razão
pela qual é tão poderosa é que, se a seguir, ela irá desbloquear a sua mente a
novos níveis de rendimento e excelência, no desporto e na vida – com
recompensas muito mais significativas do que o mero sucesso material.
A Regra dos 40% pode aplicar-se a tudo o que fazemos. Porque, na vida,
quase nada sai exatamente como esperamos. Há sempre desafios, seja no
trabalho, na vida académica ou quando nos sentimos à prova nas relações
mais íntimas ou importantes, e também existe sempre a tentação de, a dado
momento, fugir a esses compromissos, desistir das metas e sonhos e assim
atraiçoar a nossa felicidade. Porque aí nos sentiremos vazios, como se não
tivéssemos mais para dar, quando ainda não aproveitámos nem metade do
tesouro enterrado no mais fundo das nossas mentes, corações e almas.
Sei qual é a sensação de nos estarmos a aproximar de um beco sem saída.
Já estive aí tantas vezes que perdi a conta. Compreendo a tentação de
desistir, mas também sei que esse impulso é conduzido pelo desejo de
conforto da mente e que ela não está a dizer-nos a verdade. É a nossa
identidade à procura de um santuário, em vez de nos ajudar a crescer. Ela
procura manter o status quo e não alcançar a grandeza ou buscar a
plenitude. Mas a atualização de software necessária para apagar o limitador
não funciona como um download instantâneo e supersónico. São precisos
vinte anos para ganhar vinte anos de experiência e a única forma de superar
os 40 por cento é calejar a mente, dia após dia. O que significa que é preciso
ir atrás da dor como se isso fosse um maldito trabalho.
Imagine que é um pugilista e que, no primeiro dia no ringue, leva um
soco no queixo. Vai doer como o diabo, mas ao fim de dez anos como
pugilista não é um soco que o vai deter. Será capaz de aguentar 12 assaltos
sempre a levar porrada e regressar no dia seguinte para voltar a combater.
Não é que os socos tenham perdido força. Os seus adversários até serão
mais fortes. A mudança deu-se dentro do seu cérebro. A sua mente calejou.
Ao longo de um período de tempo, a sua tolerância ao sofrimento mental e
físico ter-se-á expandido, porque o seu software terá aprendido que é capaz
de aguentar muito mais do que um soco, e se continuar a realizar uma
qualquer tarefa que esteja a tentar vencê-lo, colherá disso recompensas.
Não é um pugilista? Digamos que gosta de correr, mas tem o dedo
pequeno do pé partido. Aposto que, se continuar a correr, ao fim de um
tempo, será capaz de correr com pernas partidas. Parece impossível, não é?
Eu sei que é verdade, porque já corri com pernas partidas – e saber isso
ajudou-me a suportar todo o género de sofrimentos no circuito ultra, o que
revelou uma fonte límpida de autoconfiança onde vou beber sempre que o
meu depósito está vazio.
Mas ninguém consegue ir imediatamente aos seus 60 por cento de
reservas. O primeiro passo é ter presente que a explosão inicial de dor e de
fadiga é o limitador a falar. Fazendo isso, terá o controlo do diálogo na sua
mente e pode recordar a si mesmo que não está tão esgotado como crê. Que
ainda não deu tudo o que tem. Nem perto disso. Acreditar verdadeiramente
nisto vai mantê-lo no combate – e isso vale uns cinco por cento extra. Claro
que é mais fácil de ler do que de fazer.
Na Hurt 100 não foi fácil começar a quarta volta, porque eu sabia o
muito que ia doer, e quando nos sentimos mortos e enterrados, desidratados,
espremidos e destroçados aos 40 por cento, parece impossível conseguir
chegar aos tais 60 por cento extra. Eu não queria que o meu sofrimento
continuasse. Ninguém quer! É por isso que a expressão “o cansaço torna-
nos cobardes a todos” é verdadeira como a merda.
Repare numa coisa: naquele dia, eu não sabia nada da Regra dos 40 %.
Foi ao fazer a Hurt 100 que comecei a pensar nela, mas já muitas vezes
antes tinha ido contra uma parede e aprendera a manter-me presente e com a
mente suficientemente aberta para recalibrar os objetivos iniciais, inclusive
nos momentos mais críticos. Sabia que continuar a lutar é sempre o
primeiro passo – o mais difícil e o mais gratificante.
Evidentemente que é fácil ter a mente aberta quando se sai da aula de
ioga e se vai passear na praia, mas quando se está em sofrimento, essa tarefa
de manter a mente aberta é extremamente difícil. E isso também é verdade
quando se enfrenta um desafio tremendo, seja no trabalho ou na vida
escolar. Talvez tenha diante de si um teste com cem perguntas e tenha a
noção de que foi uma lástima nas primeiras cinquenta. Num momento como
esse, é extremamente difícil manter a disciplina necessária para se obrigar a
continuar a encarar esse teste com seriedade. Mas, ao mesmo tempo, é
imperativo encontrar essa disciplina, porque em cada fracasso há qualquer
coisa a ganhar, nem que seja só a experiência para o próximo exame.
Porque esse próximo vai acontecer. Isso está garantido.
Eu não comecei a quarta volta com qualquer tipo de convicção. Fui em
modo de expetativa e, a meio da primeira subida, fiquei tão agoniado que
tive de me sentar um pouco debaixo de uma árvore. Passaram por mim dois
corredores, um de cada vez. Perguntaram-me se estava tudo bem e fiz-lhes
sinal para continuarem. Disse-lhes que estava tudo bem.
Sim, estava tudo bem. Era igualzinho ao Akos Konya.
Conseguia ver o topo do monte lá em cima e incentivei-me a, pelo
menos, caminhar até lá. Se, depois disso, ainda quisesse desistir, disse a
mim próprio que estaria pronto a aceitá-lo e que não haveria vergonha
nenhuma em não terminar a Hurt 100. Repeti isto uma vez, e depois mais
uma, porque o limitador funciona assim. Massaja-te o ego, ainda que te
impeça de alcançar os teus objetivos. Mas, uma vez chegado ao topo, esse
ponto mais alto proporcionou-me uma nova perspetiva; vi, ao longe, outro
lugar, e decidi cobrir esse pequeno troço coberto de barro, rochas e raízes –
ou seja, antes de desistir de vez.
Quando lá cheguei, tinha diante de mim uma extensa descida e, mesmo
que o terreno se revelasse problemático, parecia muito mais fácil do que a
subida. Sem dar conta, tinha chegado a um ponto em que era capaz de traçar
estratégias. Na primeira subida, senti-me tão tonto e tão fraco que me vi
mergulhado num momento de merda, que me bloqueou o cérebro. Aí, não
havia espaço para estratégias. Só queria desistir, mas, ao avançar um pouco
mais, tinha reconfigurado o cérebro. Tinha acalmado e percebido que podia
transformar a prova em algo de realizável; continuar em jogo desta maneira
deu-me esperança – e a esperança é viciante.
Fui assim superando etapas, acumulando fichas de cinco por cento,
desbloqueando mais energia e consumindo-a logo a seguir, à medida que o
tempo ia entrando pelas horas da madrugada. Cansei-me tanto que quase
adormeci de pé – o que é perigoso num trilho com tantas curvas e
precipícios. Qualquer corredor poderia ter adormecido e caído numa dessas
ravinas profundas. A única coisa que me manteve acordado foi o péssimo
estado do trilho. Caí de rabo no chão dezenas de vezes. Os meus ténis
urbanos estavam fora do seu elemento. Era como se corresse em cima de
gelo e a perspetiva de uma queda inevitável pairava sempre sobre mim, mas
isso pelo menos mantinha-me acordado.
Correndo um pouco e a seguir caminhando mais um bocado, fui capaz de
chegar ao quilómetro 120, que coincidia com a mais difícil de todas as
descidas. Foi então que vi Karl Meltzer, a Cabra Veloz, no topo da colina
atrás de mim. Tinha uma lanterna na cabeça e outra no pulso, e levava às
ancas uma mochila com duas grandes garrafas de água. Com a sua silhueta
recortada contra a luz cor-de-rosa da alvorada, Meltzer lançou-se pela
encosta abaixo, passando por um troço em que eu tinha tropeçado e
precisara de me agarrar a ramos para não cair. Ia ganhar-me uma volta, a
três quilómetros da linha da meta, prestes a bater o recorde da prova de 22
horas e 16 minutos, mas aquilo que mais recordo é a sua elegância a correr,
a um ritmo incrível de seis minutos e meio por quilómetro. Era como se
levitasse sobre a lama, num modo zen completamente diferente. Os pés mal
tocavam o chão – era lindo de se ver. A Cabra Veloz era a encarnação
absoluta da pergunta que se tinha apoderado da minha mente depois da
maratona de Las Vegas.
De que sou capaz?
Ver aquele cabrão deslizar pelo terreno mais exigente fez-me
compreender que existe todo um outro nível de atleta – e que eu tinha
qualquer coisa disso dentro de mim. Na verdade, está dentro de todos nós.
Não estou a afirmar que a genética não tenha um papel no rendimento
desportivo, nem que todos possuam uma capacidade oculta para correr 1500
metros em quatro minutos, para lançar ao cesto como Steph Curry ou para
correr a Hurt 100 em 22 horas. Não temos todos o mesmo solo nem o
mesmo teto, mas cada um de nós tem muito mais do que aquilo que sabe, e
quando falamos de desportos de resistência, como as provas ultra, todos
podem alcançar proezas que antes consideravam impossíveis. Para isso,
temos de mudar de mentalidade, estar dispostos a largar a nossa identidade
e fazer o esforço extra de encontrar sempre mais – para sermos sempre
mais.
Temos de desfazer-nos do nosso limitador.
Nesse dia, no circuito Hurt 100, depois de ver Meltzer correr como um
super-herói, acabei a minha quarta volta no meio de todo o tipo de dores e
parei para o ver celebrar, rodeado da sua equipa. Acabava de conseguir uma
proeza que ninguém alcançara antes – e lá estava eu, ainda com uma volta
inteirinha pela frente. Sentia as pernas como se fossem de borracha e tinha
os pés inchados. Não queria continuar, mas também sabia que era a minha
dor a falar por mim. O meu potencial autêntico estava ainda por determinar.
Olhando para trás, direi que tinha dado uns 60 por cento – o que significa
que tinha o depósito quase meio cheio.
Gostava agora de lhe contar que, na quinta volta, dei tudo e arrasei, mas
a verdade é que, neste Planeta Ultra, eu ainda não passava de um simples
turista. Não era senhor da minha mente. Estava no laboratório, ainda em
modo de descoberta, e fiz todos os quilómetros dessa última volta a
caminhar, a passo. Levou-me oito horas, mas a chuva tinha parado, o
esplendor tropical do sol quente do Havai era fenomenal e eu consegui.
Acabei a Hurt 100 em 33 horas e 33 minutos, abaixo do limite máximo de
36 horas, o que me valeu o nono lugar. Só 23 atletas terminaram e eu fui um
deles.
No fim, estava tão destroçado que duas pessoas tiveram de me levar para
o automóvel e a Kate teve de transportar-me para o quarto numa maldita
cadeira de rodas. Quando lá chegámos, havia mais trabalho a fazer. Eu
queria apresentar a inscrição na Badwater o mais depressa possível, e por
isso, sem sequer fazermos uma sesta, demos conta dessa merda.
Em poucos dias, o Kostman enviou-me um email a informar que eu tinha
sido aceite na Badwater. Foi uma sensação incrível. Também queria dizer
que, nos seis meses seguintes, eu iria ter dois empregos a tempo inteiro: era
um SEAL da Marinha e estava em modo de treino para a Badwater. Desta
vez, daria atenção à estratégia e aos pormenores, por saber que, para libertar
a minha melhor prestação – queria superar os 40 por cento, esvaziar o
depósito e aproveitar todo o meu potencial –, tinha antes de mais de me dar
uma hipótese a mim.
Para a Hurt 100, não fiz investigação nem me preparei suficientemente
bem. Não previ a dureza do terreno, não tive uma equipa de apoio para a
primeira parte da corrida e não levei uma fonte de água de reserva. Também
não me equipei com duas lanternas, que teriam sido uma ajuda na noite
longa e escura. Embora sentisse que tinha dado tudo o que tinha, nunca tive
a oportunidade de aceder aos meus reais cem por cento.
A Badwater ia ser diferente. Fiz pesquisa dia e noite. Estudei o percurso,
tomei notas sobre as variações de temperatura e elevação e até fiz gráficos
com isso. Não me interessava só a temperatura do ar. Aprofundei a questão,
ao ponto de saber qual seria a temperatura do sol no Vale da Morte no dia
mais quente de sempre. Procurei na Internet vídeos da corrida e vi-os
durante horas. Li blogues de atletas que a tinham concluído, tomei nota das
suas dificuldades e das suas técnicas de treino. Conduzi até lá, ao Vale da
Morte, e explorei o percurso inteiro.
Ver de perto o terreno revelou-me a sua brutalidade. Os primeiros 67
quilómetros e meio eram completamente planos – era como percorrer as
fornalhas de Deus a arderem a temperatura máxima. Seria a melhor
oportunidade para realizar um grande tempo, mas para sobreviver a este
troço precisaria de ter dois veículos de assistência que se fossem movendo e
estabelecessem postos de abastecimento a cada quinhentos metros.
Entusiasmou-me pensar na prova, mas, lá está, não estava a vivê-la: ia a
ouvir música, com os vidros do carro abertos, numa manhã de primavera,
num deserto que florescia. Era tudo de um conforto tremendo! Ainda era
tudo o raio de uma fantasia!
Assinalei os melhores pontos para instalar as estações para
arrefecimento. Tomei nota dos locais em que a berma era ampla e também
daqueles em que seria de evitar paragens. Anotei igualmente a localização
dos postos de gasolina e de outros lugares para reabastecer de água e
comprar gelo. Não havia muitos, mas marquei-os todos no mapa. Depois de
correr pelo martírio do deserto, o calor abrandaria, mas o preço a pagar seria
cobrado pela altitude. A fase seguinte da corrida era uma subida de trinta
quilómetros até Towne Pass, a 1400 metros. Nesse momento do dia, o Sol
estaria a pôr-se; depois de fazer esse troço, encostei o carro, fechei os olhos
e visualizei tudo.
O reconhecimento do percurso é uma parte da preparação; a visualização
é outra. A seguir a essa subida para Towne Pass, teria de enfrentar uma
descida de 15 quilómetros daquelas de partir ossos. Consegui distingui-la
desde o cimo do desfiladeiro. Uma coisa que tinha aprendido na Hurt 100 é
que correr por uma encosta abaixo dá cabo de nós muito a sério – e, desta
vez, seria em solo asfaltado. Fechei os olhos, abri a mente e tentei sentir a
dor nos quadris e tornozelos, nos joelhos e nas canelas. Sabia que os
quadríceps iam suportar a pior parte dessa descida, por isso tomei nota de
que tinha de ganhar mais músculo. As minhas coxas teriam de estar
revestidas a aço.
A subida de trinta quilómetros pelo Darwin Pass, a partir do quilómetro
115, seria um inferno total. Nessa seção, teria de correr e caminhar, mas,
com o Sol já posto, o frio em Lone Pine seria muito bem-vindo, e a partir
daí poderia recuperar algum tempo, porque é onde o percurso volta a tornar-
se plano, antes da subida final de vinte quilómetros para Whitney Portal
Road, até à linha de chegada, a 2550 metros de altitude.
É fácil escrever no bloco-notas “recuperar algum tempo” e outra coisa é
realizar isso quando estás lá, na vida real, mas pelo menos tinha
apontamentos. Em conjunto com os meus mapas anotados, constituíam o
meu Ficheiro Badwater, que estudei como se estivesse a preparar-me para
mais um teste ASVAB. Sentava-me à mesa da cozinha, lia-os, relia-os e
visualizava cada quilómetro o melhor que conseguia, mas também sabia que
o meu corpo ainda não tinha recuperado do Havai, e isso prejudicava um
outro aspeto, ainda mais importante, da minha preparação: o treino físico.
Precisava desesperadamente deste treino, mas os tendões ainda me doíam
tanto que durante meses não pude correr. As folhas iam voando do
calendário. Eu tinha de ganhar resistência e de me tornar um corredor o
mais forte possível, e o facto de não poder treinar como esperava ia
minando a minha confiança. Além disso, no trabalho já se sabia o que eu
andava a preparar, e embora tivesse algum apoio de companheiros SEAL,
também houve observações negativas, em especial quando se soube que eu
ainda não conseguia correr. Mas isso não era novidade. Quem é que já não
sonhou com uma possibilidade, para si mesmo, e viu amigos, colegas ou
familiares estarem-se nas tintas? Temos uma motivação enorme para
realizar qualquer coisa que vá ao encontro dos nossos sonhos, até que
aqueles que nos rodeiam nos apontem os perigos, os inconvenientes, as
nossas próprias limitações – e mencionem todas as pessoas que tentaram
antes de nós e não conseguiram. Às vezes, os conselhos até são bem-
intencionados. As pessoas acreditam realmente que estão a fazê-lo para o
nosso bem, mas, se as deixarmos, vão convencer-nos-ão a não perseguir os
nossos sonhos. E o limitador que há dentro de nós vai ajudá-las.
Essa é uma das razões pelas quais inventei o Frasco das Bolachas. Temos
de criar um sistema que nos lembre constantemente de quem raio somos
quando estamos no melhor momento, porque a vida não vai erguer-nos
quando cairmos. Haverá bifurcações no caminho, malditas facas espetadas
nas costas, montanhas para escalar – e só seremos capazes de estar à altura
da imagem que criarmos para nós.
Prepare-se!
Sabemos que a vida pode ser dura e, no entanto, temos pena de nós
quando não é justa. A partir de agora, aceite o seguinte como as leis da
natureza de Goggins:
Vão fazer troça de si.
Vai sentir-se inseguro.
Pode não ser sempre o melhor.
Pode ser o único negro, branco, asiático, latino, mulher, homem,
gay, lésbica ou [ponha aqui a sua identidade] numa dada situação.
Haverá momentos em que se sentirá só.
Ultrapasse isso!
A nossa mente é forte como tudo, é a arma mais poderosa que temos,
mas deixámos de a usar. Temos hoje acesso a muito mais recursos do que
nunca e, no entanto, somos muito menos capazes do que os que nos
precederam. Se quer ser um dos poucos a desafiar essas tendências da nossa
sociedade cada vez mais débil, terá de estar disposto a entrar em guerra
consigo e a criar toda uma nova identidade, o que requer uma mente aberta.
Tem piada: ter uma mente aberta é, muitas vezes, apontado como uma coisa
new age ou frouxa. Essa ideia que vá para o diabo! Ser suficientemente
aberto para encontrar um caminho é uma coisa da velha escola. É o que
fazem os grunhos. E foi exatamente o que eu fiz.
Pedi emprestada a bicicleta ao meu amigo Stokes (ele também concluiu a
Classe 235) e, em vez de correr até ao trabalho, fui e vim a pedalar todos os
dias. No ginásio novinho em folha da Equipa Cinco, havia uma elíptica e eu
passava por lá uma vez por dia, às vezes duas, com cinco camadas de roupa
em cima do corpo! O Vale da Morte tinha-me assustado como o catano, por
isso simulava como seria. Punha três ou quatro pares de calças de fato de
treino, algumas sweatshirts, um capuz e um gorro de lã e, por cima, um
blusão em Gore-Tex. Ao fim de dois minutos na elíptica, o meu ritmo
cardíaco estava em 170, e eu continuava duas horas seguidas. Antes ou
depois, passava pela máquina de remo e fazia uns trinta mil metros. Nunca
ficava menos de dez ou vinte minutos em cada aparelho. Toda a minha
mentalidade era ultra. Tinha de ser. Quando acabava, tinha a roupa
encharcada, como se a tivesse mergulhado num rio. A maior parte dos meus
companheiros pensava que eu estava maluco; o SBG, meu antigo instrutor
de BUD/S, adorava.
Nessa primavera, fui colocado como instrutor de guerra terrestre para os
SEAL na base de Niland, na Califórnia. É um miserável pedaço de deserto
no sul da Califórnia, com parques de autocaravanas cheios de
desempregados viciados em metanfetaminas. Os únicos vizinhos eram os
vagabundos drogados que se arrastavam pelos aglomerados em
desintegração de Salton Sea, uma massa de água interior que fica a uns 95
quilómetros da fronteira com o México. Sempre que passava por eles,
quando fazia uma corrida de 15 quilómetros com a mochila às costas,
olhavam-me como se eu fosse um extraterrestre que se materializara a partir
de uma das suas visões psicadélicas. Levava também vestidas três camadas
de roupa e um blusão em Gore-Tex – isto com uma temperatura de 38 graus
Celsius. Claro que parecia uma espécie de mensageiro malvado vindo do
além! As minhas lesões tinham-se tornado geríveis e eu fazia 15
quilómetros de cada vez, para a seguir caminhar durante horas pelos montes
em volta de Niland, com uma mochila de vinte quilos às costas.
Os tipos da equipa a que eu dava instrução também me consideravam um
extraterrestre – e alguns tinham mais medo de mim do que dos viciados em
metanfetaminas. Pensavam que me tinha acontecido qualquer coisa algures
num campo de batalha nesse outro deserto em que a guerra não era um jogo.
Não sabiam era que, para mim, o campo de batalha era a minha própria
mente.
Regressei ao Vale da Morte para treinar e fiz uma corrida de 15
quilómetros com um fato de sauna. Era uma coisa quente como o inferno,
mas eu tinha pela frente a corrida mais difícil do mundo e já tinha feito 160
quilómetros duas vezes. Sabia perfeitamente o que se sentia e a perspetiva
de ter de cumprir mais 85 quilómetros assustava-me. Claro que falava cheio
de convicção, projetava uma confiança imensa e angariava dezenas de
milhares de dólares, mas uma parte de mim não sabia se eu tinha o que era
preciso para terminar a corrida, por isso precisava de inventar treinos físicos
absolutamente bárbaros para dar uma hipótese a mim mesmo.
Quando estamos sozinhos, é precisa muita força de vontade para nos
esforçarmos. Eu odiava levantar-me de manhã sabendo o que o dia me
reservava. Era tudo muito solitário, mas sabia que, no percurso da
Badwater, eu chegaria a um ponto em que a dor se tornaria insuportável e
pareceria inultrapassável. Talvez fosse ao quilómetro cinquenta ou sessenta,
talvez mais tarde, mas haveria um momento em que eu ia querer desistir, e
precisava de eliminar as decisões precipitadas para continuar na batalha e
aceder aos meus 60 por cento por explorar.
Durante todas as horas solitárias de treino de calor, eu tinha começado a
dissecar a mentalidade de desistência e percebi que, se queria ter um
desempenho próximo do meu potencial absoluto e fazer com que a Warrior
Foundation se sentisse orgulhosa de mim, teria de fazer mais do que
responder às perguntas simples à medida que fossem surgindo. Teria de
sufocar a mentalidade de desistência antes de ela ganhar qualquer tração.
Mesmo antes de me perguntar “Porquê?”, precisava do meu Frasco das
Bolachas para me convencer de que, apesar daquilo que o meu corpo me
dizia, eu era imune ao sofrimento.
Porque ninguém abandona uma prova ultra ou uma Semana Infernal
numa fração de segundo. Essa decisão é tomada horas antes de a campainha
soar, por isso eu precisava de estar suficientemente consciente para
reconhecer quando é que o meu corpo e a minha mente estavam a colapsar,
de forma a provocar um curto-circuito no impulso para procurar uma saída,
muito antes de cair nesse precipício fatal. Desta vez, ignorar a dor ou
bloquear a verdade, como fiz na San Diego One Day, não funcionaria.
Quem está à procura de chegar aos seus cem por cento deve catalogar as
suas fraquezas e vulnerabilidades. Não deve ignorá-las. Deve estar
preparado para elas, porque, em qualquer prova de resistência, em qualquer
ambiente de stresse elevado, as fraquezas virão ao de cima como mau
karma, aumentarão de volume e tornar-se-ão esmagadoras. A menos que
nos antecipemos a elas.
Trata-se de um exercício de reconhecimento e visualização. É preciso
reconhecer aquilo que se vai fazer, sublinhar aquilo de que não se gosta na
tarefa e dedicar tempo a visualizar todos e cada um dos obstáculos
possíveis. Eu tinha medo do calor, por isso, na preparação para a Badwater,
imaginei rituais novos e mais medievais para me torturar, disfarçados de
sessões de treino (ou talvez fosse ao contrário). Disse a mim próprio que era
imune ao sofrimento, mas isso não significava que fosse imune à dor. Eu
sentia dor, como qualquer um, mas estava comprometido a trabalhar para a
evitar e superar, para que ela não me fizesse descarrilar. Quando cheguei à
linha de partida da Badwater, às seis da manhã de 22 de julho de 2006, tinha
expandido o meu limitador para os 80 por cento. Em seis meses, tinha
duplicado o meu limite. E sabe o que isso me valeu?
Valeu-me uma merda.
A Badwater tem um começo faseado, por categorias. Os novatos
começam às seis da manhã, os experimentados às oito e os verdadeiros
candidatos às dez, o que os fazia passar pelo Vale da Morte à hora do
máximo calor. O Chris Kostman era um filho da mãe com sentido de humor.
Só não sabia que tinha dado uma grande vantagem tática a um sacana muito
rijo. Não estou a falar de mim. Estou a falar do Akos Konya.
Akos e eu encontrámo-nos na noite anterior, na estalagem Furnace
Creek, onde todos os atletas ficavam. Ele também era estreante na prova e
parecia bastante melhor do que na última vez em que nos tínhamos visto.
Apesar dos seus problemas na Hurt 100 (já agora, ele terminou em 35 horas
e 17 minutos), eu sabia que o Akos era um grande atleta e, já que estávamos
ambos no primeiro grupo, deixei que ele me marcasse o ritmo através do
deserto. Péssima decisão!
Corremos lado a lado nos primeiros 27 quilómetros e fazíamos uma
dupla estranha. Akos é um húngaro de 1,52 metros e 55 quilos. Eu era o tipo
mais robusto da corrida, com 1,82 metros e 88 quilos, e também o único
negro. O Akos tinha um patrocínio e ia vestido com um equipamento
colorido cheio de logótipos de marcas. Eu levava uma camisa de alças
cinzenta rasgada, calções de corrida pretos e óculos de sol Oakley
aerodinâmicos. Tinha os pés e os tornozelos envolvidos em fita de
compressão e enfiados nuns ténis de corrida já rotos, mas ainda com
elasticidade. Não usei nada que mencionasse os SEAL da Marinha ou a
Fundação Warrior. Preferia ir incógnito. Era a figura nas sombras que se
introduzia num novo mundo de dor.
Na minha primeira corrida Badwater
Embora o Akos marcasse um ritmo rápido, o calor não m- incomodava,
em parte porque era cedo e, em parte, porque me tinha preparado tão bem
para o calor. Éramos de longe os dois melhores corredores no grupo das seis
da manhã e, quando passámos pela estalagem Furnace Creek, às 8 horas e
40, andavam cá fora alguns atletas do grupo das dez da manhã, incluindo
Scott Jurek, o campeão em título, detentor do recorde do percurso e uma
lenda do universo ultra. Ele deve ter-se apercebido de que estávamos a fazer
um bom tempo, mas tenho a certeza de que não teve a consciência de que
tinha acabado de ver a sua concorrência mais difícil.
Pouco depois, o Akon adiantou-se e, ao quilómetro quarenta, comecei a
perceber que, mais uma vez, tinha começado demasiado depressa. Sentia-
me enjoado, zonzo e tinha problemas gastrointestinais. Tradução: tive que
cagar ao lado da estrada. Era tudo uma consequência de estar gravemente
desidratado. A minha cabeça andava às voltas com uma sucessão de
prognósticos terríveis. As desculpas para desistir acumulavam-se umas
sobre as outras. Ignorei. A minha resposta foi cuidar do meu problema de
desidratação – bebendo mais água do que queria.
Passei pelo ponto de controlo de Stovepipe Wells, no quilómetro 65, à
uma hora e 31 minutos da tarde, uma hora completa depois do Akos. Estava
em prova há mais de sete horas e meia e, nessa fase, praticamente só
caminhava. Sentia-me orgulhoso só por ter conseguido atravessar o Vale da
Morte. Fiz uma pausa, fui a uma casa de banho decente e troquei de roupa.
Os pés tinham inchado mais do que eu esperava e o dedo grande do pé
direito andava a roçar há horas no sapato, por isso a paragem foi um doce
alívio. Senti uma ampola de sangue aparecer num dos lados do pé esquerdo,
mas sabia que não devia tirar os ténis. Para correr a Badwater, a maior parte
dos atletas usam um calçado maior do que o seu número, e ainda assim
cortam a parte lateral junto do dedo grande para criar espaço para o inchaço
inevitável e para minimizar as roçaduras. Eu não tinha feito isso – e tinha
pela frente mais 145 quilómetros.
Fiz em modo de marcha toda a subida de 25 quilómetros até ao
desfiladeiro Towne, a 1480 metros. Como previra, o Sol pôs-se quando eu
estava a chegar, o ar arrefeceu e eu vesti mais uma camada de roupa. Na
tropa, dizemos sempre que não subimos ao nível das nossas expetativas,
mas sim que descemos ao nível do nosso treino, e quando trepava pela
estrada sinuosa com a bolha no pé a morder-me, encontrei aquele ritmo que
tinha descoberto nas minhas longas caminhadas pelo deserto, perto de
Niland, com a mochila às costas. Não ia a correr, mas mantive um ritmo
forte e cobri muito terreno.
Segui o guião que definira, fui a correr toda a descida de 15 quilómetros
e os meus quadríceps pagaram o preço. E o pé esquerdo também. A bolha
não parava de crescer. Sentia-a como se estivesse do tamanho de um balão.
Se ao menos rebentasse para fora do sapato, como num desenho animado, e
continuasse a aumentar e a aumentar, até me levar às nuvens e me largar
mesmo no cimo do Monte Whitney…
Mas não tive essa sorte. Continuei a andar e, para além da minha equipa,
que incluía, entre outros, a minha mulher (a Kate era a chefe da equipa) e a
minha mãe, não vi mais ninguém. Era como se estivesse no meio de uma
corrida eterna de mochila às costas, a caminhar sob a cúpula negra do céu
onde cintilavam estrelas. Já ia a andar há tanto tempo que esperava que, a
qualquer momento, se materializasse um enxame de corredores que
passariam por mim e me deixariam para trás. Mas não apareceu ninguém.
No planeta dor, o único sinal de vida era o ritmo da minha própria
respiração quente, a queimadura da minha bolha de desenho animado e as
lanternas frontais e as luzes vermelhas traseiras dos corredores que iam
atravessando a noite californiana. Foi assim até que o Sol ficou pronto a
erguer-se. Por fim, ao quilómetro 175, esse enxame apareceu.
Nessa fase, eu seguia exausto e desidratado, coberto de suor, sujidade e
sal, quando grandes moscas começaram a atacar-me uma a uma. Eram duas,
depois quatro, depois dez e quinze. As asas batiam contra a minha pele, elas
mordiam-me as coxas e entravam-me pelos ouvidos. Era uma merda bíblica
– e era a minha prova derradeira. A minha equipa foi-se revezando a enxotar
as moscas de mim com uma toalha. Eu já chegara a um patamar de melhor
marca pessoal. Tinha feito mais de 175 quilómetros a pé e, com “apenas”
quarenta quilómetros pela frente, nem pensar em deixar que estas moscas
dos infernos me impedissem. Conseguiria? Continuei a caminhar – e nos
oito quilómetros seguintes, a minha equipa continuou a matar moscas!
Desde que, ao quilómetro 27, vi o Akos afastar-se de mim, não encontrei
mais nenhum corredor até ao quilómetro 195, quando a Kate se pôs ao meu
lado.
“O Scott Jurek vem dois quilómetros atrás de ti”, disse-me.
Já íamos em 26 horas de corrida, e o Akos já tinha cortado a meta, mas o
facto de o Jurek estar a alcançar-me nesse momento significava que o meu
tempo devia ser bastante bom. Eu não tinha corrido muito, mas todos os
treinos com mochila às costas em Niland deram-me um ritmo rápido e forte.
Consegui fazer quilómetros de 13 minutos e, para ganhar tempo, fui-me
alimentando enquanto caminhava. Depois de tudo ter acabado, quando me
dediquei a examinar os tempos parciais e totais de todos os participantes,
percebi que o maior dos meus medos, o calor, tinha acabado, na verdade,
por me ajudar. Era o grande fator equalizador. Tornava lentos os corredores
velozes.
Com o Jurek a perseguir-me, senti-me motivado a dar tudo o que tinha ao
encaminhar-me para Whitney Portal Road e iniciar a ascensão final de vinte
quilómetros. Recordei a estratégia que definira antes da corrida para
caminhar nas subidas e correr nas zonas planas do percurso, enquanto a
estrada ziguezagueava como uma serpente que desliza para as nuvens. O
Jurek não me perseguia a mim, mas perseguia qualquer coisa. O Akos tinha
cortado a meta em 25 horas e 58 minutos, e o Jurek não estava nos seus
dias. O relógio ia avançando e pondo em perigo a sua demanda para se
tornar bicampeão da Badwater, mas ele tinha a vantagem tática de saber
antecipadamente o tempo do Akos. Também sabia quais tinham sido os seus
tempos parciais. O Akos não tivera esse luxo e, algures a meio caminho,
parou para dormitar uma meia hora.
O Jurek não ia só. Tinha um corredor de apoio, um atleta formidável por
direito próprio chamado Dusty Olson, que lhe pisava os calcanhares. Diz-se
que Olson fazia pelo menos 110 quilómetros. Ouvi-os a aproximarem-se e
sempre que a estrada mudava de direção conseguia vê-los num plano mais
abaixo. Por fim, no quilómetro 205, na parte mais íngreme desta corrida
tremenda, vinham logo atrás de mim. Parei de correr, afastei-me do
caminho e animei-os a continuar.
Nesse momento, Jurek era o atleta mais rápido de sempre de provas ultra,
mas, naquela fase, o seu ritmo não era propriamente elétrico. Era
consistente. Cada passada sua, deliberada, deixava uma marca na montanha.
Vestia calções de corrida pretos, uma camisa azul sem mangas e usava um
boné de beisebol branco. Atrás dele, o Olson tinha o cabelo comprido, pelo
ombro, preso por uma bandana. Mas, de resto, a roupa era igual. Era como
se Olson fosse uma lebre ao contrário.
“Vai, Jurek! Vai, Jurek! Esta corrida é tua”, gritava o Olson quando
passaram por mim. “Não há ninguém melhor do que tu! Ninguém!” O
Olson continuou sempre a falar quando passaram por mim, sempre a dizer
ao Jurek que ele tinha mais para dar. O Jurek seguia essa indicação e corria
montanha acima. Deixava tudo o que tinha no impiedoso asfalto. Era
incrível de se ver.
O Jurek acabou por triunfar nessa edição de 2006 da Badwater, ao acabar
em 25 horas e 41 minutos, 17 minutos menos do que o Akos, que deve ter
lamentado aquela paragem para uma sesta. Mas a minha preocupação não
era essa. Eu tinha uma corrida para acabar.
A estrada que conduz a Whitney Portal serpenteia durante 16 quilómetros
entre escarpas rochosas e queimadas pelo sol antes de chegar a áreas de
sombra entre cedros e pinheiros. Espicaçado por Jurek e por Olson, nos
últimos dez quilómetros fui quase sempre a correr. Usei as ancas para
empurrar as pernas e cada passo era um sofrimento, mas, ao fim de trinta
horas, 18 minutos e 54 segundos a correr, marchar, transpirar e sofrer, cortei
a fita da meta, sob os aplausos de uma pequena multidão. Houve umas trinta
vezes em que quis desistir. Tive de esforçar-me mentalmente, centímetro a
centímetro, para percorrer os 217 quilómetros, mas, nesse dia, éramos
noventa concorrentes e eu fiquei em quinto lugar.
O Akos e eu depois da minha segunda corrida Badwater,
em 2007 – eu fui terceiro e ele voltou a ser segundo
Aproximei-me de uma encosta coberta de relva, na floresta, e deitei-me
num leito de agulhas de pinheiro, enquanto a Kate me desapertava os
sapatos. A bolha tinha colonizado completamente o meu pé esquerdo. Era
tão grande que mais parecia um sexto dedo, com a cor e a textura de um
balão de pastilha elástica de morango. Olhei assombrado para ela enquanto
a minha mulher removia o adesivo de compressão dos pés. A seguir,
cambaleei até ao pódio, para aceitar a medalha das mãos de Kostman. Tinha
concluído uma das corridas mais difíceis do planeta Terra. Tinha visualizado
esse momento pelo menos umas dez vezes e pensei que estaria eufórico.
Mas não.
Dedo do pé com bolha depois da Badwater
Email do SBG para o Chris Kostman. Ele tinha razão: eu
acabei mesmo nos melhores dez por cento!
Kostman entregou-me a medalha, apertou-me a mão e entrevistou-me
para o público – mas era só metade de mim que ali estava. Enquanto falava
com ele, a minha mente regressou à subida final e ao desfiladeiro acima dos
2500 metros, de onde a perspetiva era irreal. Via-se até ao Vale da Morte. E,
quase no fim de outra viagem terrível, eu consegui ver de onde vinha. Era a
metáfora perfeita para a minha vida retorcida. Mais uma vez, estava
desfeito, destruído de vinte maneiras diferentes, mas tinha cumprido outro
exercício, outro calvário, e a minha recompensa era muito mais do que uma
medalha e uns minutos a falar ao microfone do Kostman.
Era uma fasquia muito mais elevada.
Fechei os olhos e vi Jurek e Olson, Akos e Karl Meltzer. Tinham todos
alguma coisa que eu não possuía. Compreendiam como podiam espremer-se
até à última gota e colocarem-se na posição de ganhar as corridas mais
difíceis. Tinha chegado o momento de também eu procurar essa sensação.
Conhecia-me a mim e ao terreno. Antecipei-me à mentalidade de
desistência, respondi às perguntas simples e permaneci na corrida, mas
havia mais a fazer. Uma brisa fresca agitou as árvores, secou a transpiração
que me cobria a pele e aliviou os meus ossos doridos. Sussurrou-me ao
ouvido e partilhou um segredo que ressoou no meu cérebro como um
tambor que nunca mais pararia.
Não há linha da meta, Goggins. Não há linha da meta.
DESAFIO #7
O principal objetivo aqui é começar, lentamente, a eliminar o limitador do
seu cérebro.
Antes do mais, recordemos rapidamente como funciona este processo.
Em 1999, quando eu pesava 135 quilos, a minha primeira corrida foi de
quatrocentos metros. Avancemos para 2007: corri 330 quilómetros em 39
horas, sem parar. Não cheguei a esse ponto de um dia para o outro – e
também não estou à espera de que isso aconteça consigo. A sua tarefa é
superar o seu ponto limite atual.
Quer corra na passadeira, quer esteja a fazer séries de flexões, chega a
um ponto em que está tão cansado e com tantas dores que a sua mente lhe
implora que pare. Aí, exija de si apenas cinco ou dez por cento mais. Por
exemplo, se o máximo de flexões que já fez num treino é cem, então faça
105 ou 110. Se normalmente corre cinquenta quilómetros por semana, na
semana que vem corra mais dez por cento.
Este aumento gradual vai ajudá-lo a prevenir lesões e permitir que o seu
corpo e a sua mente se adaptem gradualmente à nova carga de trabalho.
Também redefine o ponto de partida, o que é importante porque está prestes
a aumentar a sua carga de trabalho em mais cinco ou dez por cento na
semana seguinte, e na outra.
Há tanta dor e sofrimento nos desafios físicos que esse é o melhor treino
para assumir o comando do seu diálogo interior – e a nova força e confiança
mental que ganhará ao continuar a ir além dos limites vai refletir-se noutros
aspetos da sua vida. Vai perceber que, se estava a render menos do que era
possível nos seus desafios físicos, então há uma boa hipótese de estar
também a render pouco na escola e no trabalho.
A conclusão é que a vida é um grande jogo mental. Há uma única pessoa
contra a qual jogamos: nós mesmos. Siga este processo e, em breve, aquilo
que pensava ser impossível será qualquer coisa que vai fazer todos os dias
da sua vida. Quero ouvir as suas histórias. Publique-as nas redes sociais.
Hashtags: #canthurtme #The40PercentRule #dontgetcomfortable.
CAPÍTULO OITO

NÃO É PRECISO TALENTO


Na noite anterior ao primeiro triatlo de longa distância da minha vida,
encontrava-me com a minha mãe no terraço de uma grande casa de praia de
sete milhões de dólares, em Kona, a ver a luz do luar a brincar com a água.
A maior parte das pessoas sabe da existência desta maravilhosa localidade,
na costa ocidental da ilha de Havai – e até da existência dos triatlos em
geral –, graças aos Campeonatos do Mundo Ironman. Embora se realizem
em todo o mundo muito mais triatlos de distância olímpica e triatlos sprint
do que provas Ironman, foi o Ironman original de Kona que pôs a
modalidade no radar internacional. Começa com um percurso de natação de
três quilómetros e meio, seguem-se 180 quilómetros em bicicleta e tudo
culmina com uma maratona. Se juntarmos a isto ventos fortes de orientação
variável e zonas de um calor abrasador refletido por desolados campos de
lava, temos que a corrida reduz a maior parte dos participantes a autênticas
bolhas abertas de angústia crua. Mas não era por isso que eu lá estava. Fui
para competir numa forma menos celebrada de um masoquismo ainda mais
intenso: para lutar pelo título de Ultraman.
Nos três dias seguintes, nadaria dez quilómetros, faria 417 quilómetros
em bicicleta e correria uma dupla maratona, cobrindo todo o perímetro da
Grande Ilha de Havai. Mais uma vez, angariava verbas para a Fundação de
Guerreiros das Operações Especiais. Depois da Badwater, tinham escrito
sobre mim e eu fora entrevistado, por isso um multimilionário que eu não
conhecia de lado nenhum convidou-me a ficar no seu absurdo palácio em
cima do areal, no período anterior aos Campeonatos do Mundo Ultraman,
em novembro de 2006.
Foi um gesto generoso, mas eu estava tão focado em converter-me na
melhor versão de mim mesmo que o luxo não me impressionou. Na minha
cabeça, eu ainda não tinha conseguido merda nenhuma. A única coisa que
ficar em casa dele pode ter provocado foi ampliar a minha determinação.
Noutros tempos, ele nunca teria convidado para sua casa um tipo com pinta
de mau como eu, para estar um bocado a conviver e descontrair com ele. Só
tinha entrado em contacto comigo porque eu me tornara alguém que um
gajo rico gostava de conhecer. Seja como for, agradava-me poder mostrar à
minha mãe uma vida melhor – e sempre que recebia uma oferta do género
convida-a para a vir comigo. Ela tinha engolido mais dor do que qualquer
outra pessoa que eu conhecesse e queria recordar-lhe que nos tínhamos
erguido a custo dessa sarjeta, ainda que eu mantivesse o olhar fixo ao nível
do esgoto. Já não vivíamos naquele sítio em Brazil que custava sete dólares
por mês, mas, de certa forma, eu ainda estava a pagar o aluguer dessa
porcaria, e continuaria a fazê-lo para o resto da vida.
A corrida partiu da praia junto ao molhe, na baixa da cidade – no preciso
local dos campeonatos do mundo Ironman, mas não havia muito público
para nos ver. Éramos só trinta atletas, em comparação com os 1200 da prova
Ironman. O grupo era, na verdade, tão pequeno que eu podia olhar nos
olhos cada um dos meus competidores e avaliá-los; foi assim que reparei no
tipo mais duro que ali se encontrava. Nunca cheguei a saber o seu nome,
mas vou lembrar-me sempre dele, porque estava numa cadeira de rodas.
Vamos falar de coragem: esse homem tinha uma presença para lá da sua
estatura.
Era um gigante!
Desde que comecei as BUD/S que andava à procura de pessoas assim.
Homens e mulheres com uma maneira de pensar invulgar. Uma coisa que
me surpreendeu nas operações especiais era que muitos dos homens viviam
de uma maneira muito normal. Não tentavam superar os limites todos os
dias e eu queria estar perto de pessoas que pensassem e se treinassem de
uma forma invulgar 24 horas por dia e sete dias por semana, e não apenas
quando o dever as chamasse. Aquele homem ali tinha todas as desculpas do
mundo para estar em casa, mas dispunha-se a cumprir uma das corridas por
etapas mais difíceis do mundo, algo que 99,9 por cento das pessoas nem
pensaria em fazer – e apenas com os seus dois braços! Para mim, as provas
ultra eram isso mesmo –, e foi por isso que depois da Badwater fiquei
agarrado a este mundo. Não era necessário talento para esta modalidade.
Tinha tudo que ver com coragem e com trabalho árduo e ela apresentava um
desafio implacável a seguir a outro desafio implacável, exigindo sempre
mais.
Isto tudo não significa que eu estivesse bem preparado para esta corrida.
Ainda não tinha uma bicicleta própria. Três semanas antes, pedi uma
emprestada a outro amigo. Era uma Griffin, uma máquina topo de gama
feita à medida para esse meu amigo, que era ainda maior do que eu.
Também lhe pedi os ténis de ciclista, que eram quase do tamanho de sapatos
de palhaço. Enchi o espaço vazio com meias grossas e adesivo de
compressão e não me dei ao trabalho de aprender nada sobre mecânica de
bicicletas antes de partir para o Havai. Ainda não tinha aprendido a mudar
pneus, a consertar correias e raios partidos, tudo coisas que sei agora fazer.
Limitei-me a pedir emprestada a bicicleta e fiz com ela mais de 1600
quilómetros nas três semanas anteriores ao Ultraman. Acordava pelas quatro
da madrugada e fazia percursos de 160 quilómetros antes de ir trabalhar.
Aos fins de semana, pedalava uns 200 quilómetros, descia da bicicleta e
corria uma maratona, mas só realizei seis treinos de natação, e apenas dois
em águas abertas – e no octógono do ultra todas as debilidades que temos
vêm ao de cima.
O percurso de natação de dez quilómetros devia ter-me levado umas duas
horas e meia a completar, mas levou-me mais de três – e foi um sofrimento.
Tinha um fato de neopreno sem mangas para me ajudar a flutuar, mas estava
muito apertado debaixo dos braços e, ao fim de meia hora, começou a roçar-
me nas axilas. Uma hora mais tarde, a borda do fato, cheia de água salgada,
tinha-se tornado uma lixa autêntica que me rasgava a pele a cada braçada.
Mudei de estilo livre para nadar de lado, e depois de costas, em desespero
para encontrar uma posição de alívio que nunca chegou. Cada movimento
dos braços cortava a pele e fazia sangue dos dois lados.
A sair da água, na prova Ultraman
Além disso, o mar estava picado como tudo. Bebi muita água, tinha o
estômago às voltas como um peixe a ser sufocado por ar e vomitei pelo
menos umas dez vezes. Por causa das dores, da minha má técnica e das
correntes fortes, andei numa linha serpenteante, o que significa que terei
feito uns 12 quilómetros – para cumprir um percurso que deveria ter dez.
Quando cheguei a terra, a cambalear, as pernas pareciam feitas de gelatina e
eu via tudo a andar para cima e para baixo, como se estivesse no meio de
um terramoto. Precisei de me deitar e, depois, arrastei-me para trás das
casas de banho, onde vomitei de novo. Os outros nadadores foram para a
zona de transição, montaram no selim e pedalaram na direção dos campos
de lava num abrir e fechar de olhos. Faltavam 145 quilómetros em bicicleta
antes de o dia acabar, e eles lançavam-se estrada fora enquanto eu ainda
estava de joelhos. Mesmo na altura certa, aquelas perguntas simples abriram
caminho até à superfície.
Mas por que raio estou aqui?
Não sou triatleta!
Estou todo assado, estou doente como a merda e, agora, a primeira
parte disto é sempre a subir!
Porque é que continuas a fazer isto a ti mesmo, Goggins?
Parecia um maldito queixinhas, mas sabia que encontrar algum conforto
iria ajudar-me a cerrar os dentes, por isso não prestei atenção aos outros
atletas que fizeram facilmente a transição entre percursos. Tinha de
concentrar-me em manter firmes as pernas e em abrandar a minha cabeça
descontrolada. Primeiro, comi qualquer coisa, em pedaços de cada vez.
Depois, tratei dos cortes que tinha debaixo dos braços. A maior parte dos
triatletas não muda de roupa, mas eu troquei. Vesti uns calções de ciclismo
confortáveis e uma camisola de licra, e 15 minutos depois estava direito, no
selim, a trepar para os campos de lava. Nos primeiros vinte minutos, ainda
me senti agoniado. Pedalei e vomitei, repus os fluidos e voltei a vomitar. No
meio disso tudo, impus a mim próprio uma tarefa: continuar na luta!
Aguentar o tempo suficiente para encontrar um ponto de apoio.
Dezasseis quilómetros depois, com a estrada a inclinar-se cada vez mais
para as encostas de um vulcão gigante, descartei finalmente as pernas com
que viera do mar e ganhei ritmo. À minha frente, apareciam corredores,
como objetos num radar, e eu ia passando por eles, um a um. A vitória
curava tudo. Sempre que passava por mais um cabrão ficava menos
enjoado. Ia em décimo quarto lugar quando montei na bicicleta, mas ao
aproximar-me do fim dessa etapa de 145 quilómetros só havia um homem à
minha frente: Gary Wang, o favorito.
Na reta da meta, vi um jornalista e fotógrafo da revista Triathlete a
entrevistá-lo. Nenhum deles estava à espera de dar de caras comigo e
olharam-me com atenção. Nos quatro meses passados desde a Badwater,
sonhara muitas vezes ver-me na posição de ganhar uma corrida ultra. Ao
passar por Gary e pelos jornalistas, sabia que esse momento tinha chegado –
e as minhas expetativas eram intergalácticas.
Na manhã seguinte, alinhámo-nos para a segunda etapa, um percurso de
273 quilómetros de bicicleta através das montanhas e de volta à costa oeste.
O Gary Wang tinha um companheiro na corrida, Jeff Landauer, também
conhecido como Tubarão Terrestre, e correram juntos. O Gary já tinha feito
esta prova e conhecia o terreno. Eu não, e pelo quilómetro 160 seguia a uns
seis minutos da frente.
Como habitualmente, a minha mãe e a Kate eram a minha dupla de
apoio. Na berma da estrada, passavam-me garrafas de água, embalagens de
gel energético e bebidas proteicas, que eu consumia em movimento para
manter os níveis de glicogénio e eletrólitos. Tinha passado a ter uma
abordagem muito mais científica em relação à nutrição, desde o desastre do
Myoplex e das bolachas Ritz, em San Diego e, ao aproximar-se a maior
subida do dia, precisava de estar preparado para atacar. Montado numa
bicicleta, as montanhas causam dor – e a dor era a minha cena. À medida
que a estrada ia empinando, baixei a cabeça e pedalei o mais forte possível.
Os pulmões agitaram-se até parecer que saíam do peito e voltavam a entrar.
O coração batia com a frequência de um baixo. Quando cheguei ao topo, a
minha mãe pôs-se ao meu lado no carro e gritou-me: “David, estás a dois
minutos da frente!”
Entendido!
Enrolei-me numa posição aerodinâmica e saí disparado encosta abaixo, a
mais de 65 quilómetros por hora. A minha Griffin emprestada possuía barras
aerodinâmicas e inclinei-me sobre elas, concentrando-me somente na linha
branca tracejada e em aperfeiçoar a minha posição. Quando a estrada se
endireitou, dei tudo e mantive um ritmo elevado, próximo dos 43 km/h. O
Tubarão Terrestre e o seu companheiro estavam presos no meu anzol – e eu,
aos poucos, puxava-os.
Até que o pneu da frente rebentou.
Antes de ter tempo de reagir, já estava fora da bicicleta, a dar uma
cambalhota no espaço, por cima do guiador. Vi tudo em câmara lenta, mas o
tempo acelerou quando aterrei em cima do meu lado direito e o ombro
levou uma pancada forte. Um lado da cara raspou no asfalto até me
imobilizar e, em choque, rodei sobre as costas. A minha mãe travou a fundo,
saltou do carro e correu para mim. Estava a sangrar de cinco feridas, mas
não sentia nada partido. Exceto o capacete, que ficou aberto em dois, os
óculos de sol, desfeitos, e a bicicleta.
Tinha passado por cima de um parafuso que rasgou o pneu, a câmara e a
jante. Não prestei atenção aos meus rasgões, à dor no ombro ou ao sangue
que escorria pelo cotovelo e na cara. Só pensava na bicicleta. Mais uma vez,
fui mal preparado. Não tinha sobresselentes, nem fazia ideia de como mudar
uma jante ou um pneu. Tinha alugado uma bicicleta de substituição, que
estava no carro da minha mãe, mas era uma merda, muito pesada e lenta em
comparação com a Griffin. Nem sequer tinha clips para os sapatos, por isso
pedi aos mecânicos oficiais da corrida que inspecionassem a Griffin.
Enquanto esperávamos, os segundos foram-se acumulando e transformando
em minutos preciosos; quando os mecânicos chegaram, perceberam que
também não tinham peças para arranjar a minha roda da frente, por isso subi
à tosca bicicleta de substituição e lá continuei.
Tentei não pensar em coisas como azar e ocasiões perdidas. Precisava de
acabar com força e procurar chegar ao fim da etapa a uma distância possível
de superar, porque, no terceiro dia, teríamos uma dupla maratona e eu
estava convencido de que era o melhor corredor entre todos os presentes. A
25 quilómetros da linha da meta, o mecânico da bicicleta localizou-me.
Tinha reparado a Griffin! Fiz a troca de bicicletas pela segunda vez e
recuperei oito minutos para a frente da corrida, acabando a 22 minutos do
líder.
Para o terceiro dia, projetei uma estratégia simples. Dar tudo à partida e
acumular uma grande vantagem sobre o Gary e o Tubarão Terrestre, para,
quando chegasse ao inevitável limite, ter uma distância suficiente para
manter a liderança geral até à linha de meta. Por outras palavras, não tinha
estratégia nenhuma.
Comecei a corrida a um ritmo que daria a qualificação para a maratona
de Boston. Parti forte, porque queria que os meus concorrentes soubessem
dos meus tempos parciais e ficassem aterrados, à medida que eu ia
construindo a grande vantagem que planeara. Sabia que ia haver um
momento em que eu ia rebentar. A vida é assim no circuito ultra. Só
esperava que acontecesse suficientemente tarde para que o Gary e o
Tubarão Terrestre se contentassem em disputar um com o outro o segundo
lugar e abandonassem toda a esperança de conquistar o título.
Mas não aconteceu bem assim.
No quilómetro 56, já ia numa agonia; caminhava mais do que corria. No
quilómetro 65, vi os carros de apoio dos meus principais rivais pararem
junto à berma, para os seus chefes de equipa observarem em que forma me
encontrava. Estava a mostrar uma enorme fraqueza, o que dava munições a
Gary e ao Tubarão Terrestre. As milhas iam-se acumulando muito
lentamente. Estava a ter uma hemorragia de tempo. Por sorte, ao quilómetro
72, o Gary já tinha também rebentado, mas o Tubarão Terrestre continuava
sólido como uma rocha, sempre a perseguir-me, e a mim já nada me restava
para lutar contra ele. A minha vantagem evaporou-se enquanto sofria e
cambaleava a caminho do centro da cidade.
No final, o Tubarão Terrestre ensinou-me uma lição vital. Desde o
primeiro dia, ele tinha feito a sua corrida. O meu arranque impulsivo no
terceiro dia não o perturbou. Tomou-o como a estratégia mal concebida que
realmente era, concentrou-se no seu próprio ritmo, esperou-me e conquistou
a minha alma. Nesse ano, eu fui o primeiro atleta a cortar a linha de chegada
no Ultraman, mas, segundo o relógio não fui eu o vencedor. Embora tenha
chegado em primeiro na corrida a pé, perdi na geral por cerca de dez
minutos e fiquei em segundo. O Tubarão Terrestre foi coroado Ultraman!
Vi-o celebrar, sabendo exatamente como é que eu tinha desperdiçado
uma hipótese de ganhar. Tinha perdido a minha posição de vantagem.
Nunca tinha avaliado a corrida de uma forma estratégica e não tinha
backstops. Estes pontos de referência são uma ferramenta versátil que
emprego em todas as áreas da minha vida. Fui orientador principal no
Iraque com equipas SEAL – e backstop é um termo de orientação. É a
marca que fazia nos meus mapas. Um alerta de que tínhamos falhado uma
curva ou nos tínhamos desviado do rumo.
Imagine que vai a percorrer uma floresta e tem de fazer um quilómetro
até chegar a um desfiladeiro e depois mudar de direção. Na tropa, fazemos
um estudo cartográfico antecipado e marcamos essa mudança de direção
nos mapas, e mais um ponto cerca de 200 metros depois, e um terceiro uns
150 metros depois do segundo. Essas duas últimas marcas são backstops.
Em geral, eu usava caraterísticas do terreno, como estradas, riachos, um
desfiladeiro gigante, no campo ou, em paisagem urbana, edifícios
marcantes, de modo que, se chegássemos a eles, soubéssemos que nos
tínhamos desviado da rota. É para isso que estes pontos de referência
servem: para indicar que devemos voltar para trás, reavaliar e tomar um
caminho alternativo para realizar a missão. No Iraque, nunca saí da base
sem ter definidas três vias estratégicas. Uma estrada primária e outras duas,
referenciadas por backstops, às quais poderíamos regressar se o percurso
principal fosse, entretanto, ameaçado.
No terceiro dia da corrida Ultraman, o que eu tentei foi vencer com base
na pura vontade. Tudo em mim era força, nada de intelecto. Não avaliei a
minha condição, não respeitei a determinação dos meus adversários, nem
geri o relógio suficientemente bem. Em retrospetiva, devia ter dado mais
atenção ao meu próprio relógio e devia ter colocado as minhas backstops
nos tempos parciais. Ou seja: ao reparar na rapidez com que estava a correr
essa primeira maratona, devia ter feito soar um sinal de alarme para baixar o
ritmo. Uma primeira maratona mais tranquila podia ter-me deixado energia
suficiente para dar tudo quando regressássemos aos campos de lava do
percurso do Ironman, em direção à meta. É aí que se conquista a alma a
alguém: no fim da corrida, não no princípio. Eu tinha corrido com grande
esforço, mas se tivesse sido mais inteligente e gerido melhor a questão da
bicicleta, teria dado a mim mesmo mais possibilidades de ganhar.
Mesmo assim, não foi desastre nenhum ficar em segundo na corrida
Ultraman. Angariei uma bela quantia para as famílias necessitadas e
surgiram mais artigos positivos para os SEAL nas revistas Triathlete e
Competitor. Os comandos da Marinha repararam nisso. Uma manhã, fui
convocado para uma reunião com o almirante de duas estrelas Ed Winters, o
homem mais importante do Comando de Guerra Especial. Se és um soldado
comum e te dizem que um almirante quer falar contigo, ficas com o cu bem
apertadinho. Não havia motivo para ele querer conhecer-me. Existia uma
cadeia de comando especificamente para impedir conversas entre almirantes
e soldados rasos como eu. Sem aviso, mandaram isso tudo às urtigas – e eu
fiquei com a sensação de que era culpa minha.
Por causa da impressão positiva que eu gerara nos media, recebi ordens
para me apresentar na divisão de recrutamento, em 2007, e quando me
encaminharam para o escritório do almirante, eu já tinha feito muitas
declarações públicas em nome dos SEAL. Mas eu era diferente da maioria
dos outros recrutadores. Não me limitava a papaguear o guião oficial.
Incluía sempre, de improviso, a minha história de vida. Enquanto
aguardava, à porta do gabinete do almirante, fechei os olhos e passei em
revista algumas recordações, para tentar perceber se e como poderia ter
exagerado e envergonhado os SEAL. Quando ele abriu a porta, eu era a
imagem da tensão, sentado muito direito e atento, a transpirar debaixo da
farda.
“Goggins”, disse-me, “é bom vê-lo, entre.” Abri os olhos, entrei atrás
dele e fiquei direito como uma seta, com a máxima atenção. “Sente-se”,
disse a sorrir, apontando para uma cadeira em frente à secretária. Sentei-me,
mas mantive-me hirto e a evitar todo o contacto visual. O almirante Winters
avaliou-me.
Era um homem na casa dos cinquenta e muitos anos e, embora parecesse
descontraído, mantinha uma postura perfeita. Chegar a almirante significa
ascender entre fileiras de dezenas de milhares. Ele era SEAL desde 1981,
oficial de operações no DEVGRU [Grupo de Desenvolvimento Naval de
Guerra Especial, nas iniciais em inglês], e fora comandante no Afeganistão
e Iraque. Em cada uma destas etapas destacara-se dos restantes e era um dos
homens mais fortes, inteligentes, astutos e carismáticos que já tinham
passado pela Marinha. Também se ajustava a um determinado padrão: era,
em definitivo, um homem do sistema – e eu era o mais fora da norma que se
pode encontrar na Marinha dos EUA.
“Ouve, põe-te à vontade, não estás metido em nenhum problema”, disse-
me. “Estás a fazer um grande trabalho de recrutamento.” Fez um gesto a
apontar para um dossiê pousado na sua secretária completamente limpa.
Tinha lá dentro alguns dos meus recortes. “Estás a representar-nos
realmente bem. Mas há alguns homens a que poderíamos chegar se
fizéssemos um trabalho melhor, e espero que possas ajudar.”
Foi então que finalmente percebi: havia um almirante de duas estrelas a
precisar da minha ajuda.
O nosso problema enquanto organização, disse-me, é que somos
péssimos a recrutar afroamericanos para as equipas SEAL. Isso eu já sabia.
Os negros constituem 13 por cento da população e são apenas um por cento
de todas as forças especiais. Eu fui apenas o trigésimo sexto norte-
americano negro a concluir a formação BUD/S, e uma das razões para esta
situação é que não estavam a ir aos melhores sítios para recrutar negros para
as equipas SEAL, além de que não tínhamos os melhores recrutadores. A
instituição militar gosta de pensar em si mesma como uma meritocracia
(que não é), e é por isso que a questão foi ignorada durante décadas. Falei
há pouco tempo pelo telefone com o almirante Winters e ele tinha isto a
dizer sobre o problema, que foi referenciado originalmente pelo Pentágono
durante a segunda administração Bush e atirado para a secretária do
almirante, para ele o resolver:
“Estamos a desperdiçar a oportunidade de incorporar grandes atletas nas
nossas equipas e torná-las melhores e tínhamos de enviar pessoas a lugares
onde, se fossem parecidas comigo, estariam comprometidas.”
O almirante Winters fez nome no Iraque a formar forças antiterroristas de
elite. Essa é uma das missões primárias das forças especiais: treinar
unidades militares aliadas para controlarem cancros sociais, como o
terrorismo e o tráfico de droga, e manterem a estabilidade dentro das
fronteiras. Em 2007, a Al Qaeda tinha penetrado em África, em alianças
com redes extremistas já existentes, como o Boko Haram e a al Shabaab, e
discutia-se a formação de forças contraterroristas na Somália, Chade,
Nigéria, Mali, Camarões, Burkina Faso e Níger. As nossas atividades no
Níger foram notícia em todo o mundo, em 2018, quando quatro soldados
norte-americanos das operações especiais foram mortos numa emboscada, o
que atraiu as atenções públicas sobre a missão. Mas, em 2007, quase
ninguém sabia que estávamos prontos a envolver-nos na África Ocidental
ou que não tínhamos o pessoal necessário para o fazer. No gabinete do
almirante, o que eu ouvi foi que tinha finalmente chegado o momento em
que precisávamos de negros nas forças especiais e que os chefes militares
não tinham ideia de como satisfazer essa necessidade e atrair mais.
Para mim, era tudo informação nova. Eu não sabia nada sobre a ameaça
em África. O único terreno hostil que eu conhecia ficava no Afeganistão e
no Iraque. Isto é, até o almirante Winters descarregar sobre mim toda uma
quantidade de novas informações – e, aí, o problema dos militares tornou-se
oficialmente o meu problema. Disse-me que eu devia reportar ao meu
comandante e a ele próprio; a missão era ir para a estrada, visitando de cada
vez dez a doze cidades, com o propósito de aumentar de forma acentuada os
números de recrutamento na categoria POC [pessoas de cor, na sigla
inglesa].
Fizemos juntos a primeira paragem nesta nova missão. Foi na
Universidade Howard, em Washington D.C., provavelmente a universidade
historicamente negra mais conhecida nos Estados Unidos. Tínhamos
marcada uma sessão com a equipa de futebol, e embora eu quase nada
soubesse sobre liceus e faculdades historicamente negros, tinha a
consciência de que os seus alunos não olham habitualmente para as forças
armadas como uma escolha de carreira ótima. Graças à história do nosso
país e ao racismo descontrolado que permanece até hoje, nestas instituições
o pensamento político negro situa-se à esquerda, e quando se está a recrutar
para os SEAL da Marinha há definitivamente melhores opções do que o
campo de treinos da Universidade Howard para encontrar quem esteja
disposto a ouvir-nos. Mas este novo foco exigia trabalhar em território
hostil, não um entusiasmo de massas. Estávamos à procura, em cada escala,
de um ou dois homens muito bons.
O almirante e eu entrámos no campo de jogo, fardados, e reparei que
havia suspeita e desrespeito no grupo que nos olhava. O almirante Winters
tinha planeado apresentar-me, mas a receção gélida disse-me que
precisávamos de fazer as coisas de outra maneira.
“Ao princípio, estavas tímido”, recordou o almirante Winters, “mas
quando chegou o momento de falar, olhaste para mim e disseste ‘Eu tomo
conta disto, senhor.’”
Fui direto à história da minha vida. Contei àqueles atletas o que já aqui
escrevi, e disse-lhes que estávamos à procura de homens com coração.
Homens que soubessem que o dia de amanhã ia ser difícil, e que o dia de
depois de amanhã também, e aceitassem todos os desafios de braços
abertos. Homens que quisessem tornar-se melhores atletas, e mais
inteligentes e capazes em todas as facetas da sua vida. Queríamos tipos que
ansiassem por honra e propósito e tivessem uma mente suficientemente
aberta para enfrentarem os seus medos mais profundos.
“Quando acabaste de falar, teria sido possível ouvir um alfinete a cair no
chão”, lembrou o almirante Winters.
A partir desse dia, deixaram que fosse eu a definir a minha própria
agenda e orçamento, e deram-me liberdade de ação, desde que atingisse
determinados objetivos de recrutamento. Tive de conceber o meu próprio
material e como sabia que a maior parte das pessoas não acreditava que
pudessem chegar a ser um SEAL, decidi ampliar a mensagem. Queria que
todos os que me ouviam soubessem que, mesmo que não seguissem o nosso
caminho, podiam ainda assim tornar-se mais do que aquilo que tinham
sonhado. Tive o cuidado de falar sobre a minha vida na sua totalidade, para
garantir que, se alguém tivesse alguma desculpa, a minha história a anularia.
O objetivo principal era transmitir a esperança de que, nas forças armadas
ou fora, qualquer um poderia mudar a sua vida, desde que mantivesse a
mente aberta, abandonasse o caminho do menor esforço e procurasse as
tarefas mais difíceis e desafiantes. Tentava encontrar diamantes em bruto
como eu.
Entre 2007 e 2009, estive em digressão 250 dias por ano e falei para
quinhentas mil pessoas em institutos e universidades. Falei em escolas
marginais de bairros pobres, em dezenas de liceus e universidades
historicamente negros e em escolas onde estavam bem representadas todas
as culturas, formas e tonalidades. Tinha percorrido um longo caminho desde
o quarto ano, quando não conseguia estar à frente de uma turma de vinte
alunos e dizer o meu nome sem gaguejar.
Os adolescentes são detetores de mentiras ambulantes e falantes, mas os
miúdos que me ouviam compravam a minha mensagem, porque onde quer
que parasse fazia uma corrida ultra e integrava as minhas corridas e treinos
na estratégia geral de recrutamento. Em geral, chegava a meio da semana,
fazia os meus discursos, e corria no sábado e no domingo. Houve uma parte
de 2007 em que fiz uma corrida ultra quase todos os fins de semana. Havia
provas de oitenta quilómetros, de cem quilómetros, de 160 e até mais
longas. Tratava-se de espalhar a mensagem dos SEAL da Marinha, que eu
adorava, e queria ser autêntico e viver segundo o nosso espírito.
No essencial, tinha dois trabalhos a tempo inteiro. Tinha a agenda cheia,
e embora saiba que a flexibilidade para gerir o meu próprio tempo
contribuiu para a minha capacidade para treinar e competir no circuito ultra,
a verdade é que trabalhava cinquenta horas por semana, todos os dias, entre
as sete e meia da manhã e as cinco e meia da tarde. As horas dedicadas ao
treino eram à parte, não se sobrepunham aos meus compromissos de
trabalho.
Ia todos os meses a mais de 45 escolas e, depois de cada sessão, tinha de
apresentar um relatório de ação posterior, a detalhar quantos eventos
distintos (um discurso num auditório, um treino, etc.) organizara, com
quantos miúdos falara e quantos estavam realmente interessados. Os
relatórios seguiam diretamente para o meu comandante e para o almirante.
Depressa aprendi que eu próprio era o meu melhor material de apoio. Às
vezes, apresentava-me com a t-shirt dos SEAL, com o logo do tridente,
corria oitenta quilómetros até ao local onde devia pronunciar uma palavras e
aparecia encharcado em suor. Ou então, nos primeiros cinco minutos, fazia
flexões, ou levava para o palco uma barra com pesos e fazia levantamentos
enquanto falava. É verdade, as merdas que me vêm agora a fazer nas redes
sociais não são novas. Já levo essa vida há 11 anos!
Onde quer que parasse, convidava os miúdos interessados a virem treinar
comigo, antes ou depois da escola, ou para integrarem a minha equipa de
apoio numa das minhas ultramaratonas. A informação corria e os media
eram rápidos a aparecer – a televisão, a rádio e os jornais locais –, em
especial se eu fosse realizar um percurso entre cidades para chegar ao local
do compromisso seguinte. Tinha de ser eloquente, ter boa apresentação – e
fazer boa figura nas corridas em que participava.
Lembro-me de chegar ao Colorado na semana da lendária prova de trilho
Leadville 100. O ano letivo tinha começado e, na primeira noite em Denver,
tracei um mapa das cinco escolas que figuravam na minha lista em relação
aos trilhos por onde queria caminhar e correr. Em cada paragem, convidava
os miúdos para treinarem comigo, mas avisava-os de que o dia começava
cedo. Às três da manhã, ia de carro para junto de um trilho, encontrava-me
com todos os alunos que se atreviam a aparecer e, pelas quatro,
começávamos uma caminhada por uma das 58 montanhas do Colorado
acima dos 4250 metros. A seguir, descíamos a montanha a correr a toda a
velocidade, para fortalecer os quadríceps. Às nove, ia a mais uma escola – e
a seguir a outra. Depois de a campainha tocar, treinava com as equipas de
futebol, atletismo ou natação nas escolas que visitava e, a seguir, regressava
às montanhas para treinar até ao pôr do Sol. Tudo isso para recrutar atletas
de topo – e aclimatar-me para a ultramaratona corrida à altitude mais
elevada em todo o mundo.
A corrida começou às quatro da madrugada de um sábado, com partida
em Leadville, uma cidade de esqui, de classe operária e com raízes antigas,
nos tempos da conquista do Oeste. Atravessava uma rede de trilhos bonitos
e difíceis nas montanhas Rochosas, que iam dos 2800 aos 3800 metros de
altitude. Ao cortar a linha de chegada, pelas duas da madrugada de
domingo, tinha à espera um adolescente de Denver que andava numa escola
que eu visitara uns dias antes. Não fiz uma grande corrida (acabei em
décimo quarto, em vez de ficar entre os primeiros cinco, como era habitual),
mas fazia sempre questão de terminar de uma forma vigorosa, e quando
sprintei para a meta ele veio ter comigo com um grande sorriso e disse-me:
“Fiz duas horas de carro só para o ver chegar!”
Lição: nunca sabemos quem influenciamos. O meu fraco resultado não
tinha importância alguma para aquele jovem, porque eu o ajudara a abrir os
olhos para um mundo novo de possibilidades e capacidades que ele sentia
existirem em si. Tinha-me seguido, do auditório do liceu até Leadville,
porque estava à procura de uma prova absoluta – eu a terminar a corrida –
de que era possível transcender o comum e chegar a mais. Enquanto eu
arrefecia e me limpava, ele pediu-me dicas para, um dia, ser capaz de correr
dia e noite pelas montanhas que eram o seu quintal.
Tenho várias histórias como esta. Na McNaughton Park Trail Race, uma
prova de 240 quilómetros, realizada nos arredores de Peoria, no Illinois,
mais de uma dezena de jovens apareceram para seguir o meu ritmo e me
acompanharem. Duas dezenas de alunos treinaram comigo em Minot, no
Dacota do Norte. Juntos, corremos pela tundra gelada antes do nascer do
Sol, em janeiro, sob uma temperatura de 29 graus Celsius negativos! Uma
vez, falei numa escola de um bairro maioritariamente negro em Atlanta e,
quando me ia embora, apareceu-me uma mãe com dois filhos que sonhavam
há muito tempo ser SEAL da Marinha, mas não diziam nada porque ir para
a tropa não era bem visto no bairro. Nas férias de verão, levei-os para San
Diego para viverem e treinarem comigo. Fazia-os levantar o cu da cama às
quatro da manhã e dava-lhes grandes tareias de exercício na praia, como se
estivessem numa versão júnior da Primeira Fase. Não se divertiram nada,
mas aprenderam a verdade sobre o que é preciso para viver no espírito
SEAL. Onde quer que fosse, estivessem os alunos interessados ou não numa
carreira militar, perguntavam-me sempre se tinham a mesma capacidade que
eu. Conseguiriam correr 160 quilómetros num dia? O que seria preciso para
alcançarem o seu potencial máximo? O que lhes dizia era isto:
A nossa cultura viciou-se nas soluções rápidas, nos atalhos, na eficiência.
Andam todos à procura daquele algoritmo de ação simples que consegue o
máximo lucro com o mínimo esforço. É impossível negar que, com sorte,
esta atitude pode trazer algum êxito superficial, mas não conduzirá a uma
mente calejada nem ao domínio de si mesmo. Para dominar a mente e
eliminar o limitador, é preciso ficar viciado no trabalho árduo. Porque a
paixão e a obsessão, até o talento, só são ferramentas úteis se possuirmos a
ética de trabalho que as sustenta.
A minha ética de trabalho é o fator mais importante em tudo o que
consegui. Tudo o resto é secundário e, quando falamos de um esforço árduo,
seja no ginásio ou na vida profissional, aplica-se a Regra dos 40%. Para
mim, uma semana de trabalho de quarenta horas representa um esforço de
quarenta por cento. Pode ser satisfatório, mas esta é outra palavra para
mediocridade. Não se conforme com uma semana laboral de quarenta horas.
Uma semana tem 168 horas! Isso significa que tem ao seu dispor as horas
suficientes para dedicar ao trabalho um tempo extra, sem o tirar ao
exercício. Significa melhorar a alimentação, passar tempo de qualidade com
a mulher e os filhos. Significa programar a vida como se todos os dias
estivesse a realizar uma missão de 24 horas.
A principal desculpa que oiço das pessoas para não fazerem tanto
exercício como deviam é que não têm tempo. Oiça, todos nós temos
obrigações profissionais, ninguém quer perder horas de sono, e é preciso
dedicar tempo à família, ou então ela vai queixar-se. Eu percebo isso e, se
esse for o seu caso, tem de aproveitar a manhã.
Quando eu estava nos SEAL a tempo inteiro aproveitava ao máximo as
horas antes da alvorada. A minha mulher ficava a dormir e eu ia dar uma
corrida de dez a dezasseis quilómetros. Preparava o equipamento na véspera
à noite, deixava o almoço já embalado e a roupa de trabalho pronta no
cacifo no quartel, onde tomava um duche antes de o meu dia começar, às
sete e meia da manhã. Num dia comum, saía para correr pelas quatro da
manhã e regressava às cinco e 15. Como isso não era suficiente para mim, e
porque só tínhamos um carro, ia de bicicleta (acabei finalmente por comprar
uma!) para o trabalho, a quarenta quilómetros. Trabalhava das sete e meia
ao meio-dia e comia sentado à secretária antes ou depois da pausa para
almoço. Nessa hora de almoço, ia para o ginásio ou fazia uma corrida na
praia de seis a dez quilómetros, cumpria o turno da tarde e saltava para cima
da bicicleta para fazer os quarenta quilómetros até casa. Ao regressar a casa,
pelas sete, já tinha corrido uns 25 quilómetros, feito oitenta na bicicleta e
cumprido um dia inteiro de trabalho. Estava sempre em casa antes do jantar,
e na cama pelas dez horas, para poder repetir tudo no dia seguinte. Aos
sábados, dormia até às sete, fazia três horas de exercício e passava o resto
do fim de semana com a Kate. Quando não tinha uma corrida, os domingos
eram os meus dias de recuperação ativa. Fazia um percurso fácil a um ritmo
cardíaco baixo, mantendo-o abaixo das 110 pulsações por minuto para
estimular um fluxo sanguíneo saudável.
Talvez pense que eu sou um caso especial ou um maníaco obsessivo.
Bom, não vou discutir consigo. Mas, e o meu amigo Mike? Ele é um
assessor financeiro importante em Nova Iorque. Tem um emprego de alta
pressão e a sua jornada laboral é muito superior a oito horas. Tem mulher e
dois filhos e é corredor de provas ultra. É assim que ele faz: acorda todos os
dias às quatro da manhã, corre sessenta a noventa minutos enquanto a
família ainda dorme, vai para o trabalho e regressa de bicicleta e, depois de
chegar a casa, ainda faz um pouco de passadeira. Aos fins de semana,
realiza percursos mais longos, mas minimiza o impacto disso nas suas
obrigações familiares.
É um tipo muito importante, rico como a merda, e podia facilmente
manter o estatuto com menos esforço e gozar os doces frutos do seu
trabalho, mas encontra uma maneira para se manter firme porque o seu
esforço é o seu fruto mais doce. E arranja tempo para fazer tudo reduzindo
ao mínimo a quantidade de merdas que vão parar à sua agenda. Tem as
prioridades muito bem definidas – e continua dedicado a elas. Também não
estou a falar de prioridades gerais. Cada hora da semana dele é dedicada a
uma tarefa particular e, nessa hora, ele dedica-se a ela a cem por cento. É
também o que eu faço, pois é a única maneira de reduzir as horas
desperdiçadas.
Avalie a sua vida na totalidade! Todos nós desperdiçamos demasiado
tempo a fazer merdas desnecessárias. Queimamos horas nas redes sociais e
a ver televisão e, ao fim de um ano, esse tempo somado equivaleria a dias e
semanas inteiros, se acaso calculássemos o tempo como fazemos com os
impostos. E era exatamente isso que devíamos fazer, porque se
soubéssemos a verdade desativávamos o Facebook imediatamente e
desistíamos da televisão por cabo. Se der por si no meio de conversas
frívolas ou aprisionado em atividades que não lhe trazem absolutamente
nada, ande para a frente, porra!
Tenho vivido como um monge há muitos anos. Não vejo nem passo
tempo com muitas pessoas. O meu círculo é muito restrito. Publico nas
redes sociais uma ou duas vezes por semana e nunca vejo as contas de
outras pessoas – porque não sigo ninguém. Sou assim. Não digo que tenha
de ser tão radical, porque provavelmente não partilhamos objetivos
idênticos. Mas eu sei que também tem metas, e tem espaço para melhorar –
ou então não estaria a ler o meu livro; e garanto-lhe que, se analisar bem a
sua agenda, encontrará tempo para mais trabalho e menos distrações.
Depende de si a maneira de eliminar essas distrações. Quanto tempo
passa à mesa de jantar a falar de coisa nenhuma depois de a refeição ter
acabado? Quantos telefonemas faz e quantas mensagens envia, por razão
absolutamente nenhuma? Olhe para toda a sua vida, faça uma lista das
obrigações e tarefas. Coloque-lhes uma marca a indicar o tempo. De
quantas horas precisa para fazer compras, comer e limpar? De quanto sono
precisa? Quanto tempo gasta entre a casa e o trabalho? Pode fazer esse
trajeto sem ser de automóvel ou transportes públicos? Organize tudo em
janelas de tempo e, depois de ter o dia programado, saberá de quanta
flexibilidade dispõe para fazer exercício num determinado dia e como
aumentar o tempo que lhe dedica.
Talvez não esteja à procura de ficar em forma, mas sonhe criar o seu
próprio negócio ou tenha sempre querido aprender uma língua ou a tocar
um instrumento que adora. Ótimo: aplica-se a mesma regra. Analise a
agenda, elimine os hábitos sem sentido, erradique as perdas de tempo e veja
o que fica. É uma hora por dia? São três? Agora, tire o máximo dessa
merda. Isso significa fazer uma lista das tarefas prioritárias em cada hora do
dia. Até pode compartimentar tudo em janelas de quinze minutos e não se
esqueça de incluir backstops nesse programa diário. Lembra-se de como me
esqueci de incluir backstops no meu plano de corrida na Ultraman? Pois
também precisa deles na sua agenda diária. Se uma tarefa se prolongar para
além da hora, assegure-se de que tem a noção disso e comece
imediatamente a fazer a transição para a tarefa prioritária seguinte. Use o
smartphone para ver dicas de produtividade e não apenas para ir atrás dos
clickbaits fáceis. Use os alarmes da agenda. Ative-os.
Se fizer uma auditoria à sua vida, acabar com as perdas de tempo e usar
backstops, encontrará tempo para fazer tudo o que precisa e quer fazer. Mas
lembre-se: também precisa de descansar, por isso não se esqueça de o
incluir. Oiça o seu corpo, arranje uma maneira de guardar tempo para sestas
de recuperação de dez a vinte minutos sempre que necessário, e tire um dia
inteiro de descanso por semana. Sendo um dia de descanso, permita
verdadeiramente que a sua mente e o seu corpo relaxem. Desligue o
telefone. E o computador. Um dia de descanso significa que deve estar com
amigos ou familiares, a comer e beber bem, para recarregar baterias e voltar
a trabalhar. Não é um dia para se perder em cenas de tecnologia ou para
ficar enfiado no escritório, sentado à secretária na posição de um maldito
ponto de interrogação.
Todo o objetivo da missão de 24 horas é manter-nos em ritmo de
campeonato, não durante uma época ou um ano, mas por toda a vida! Isso
exige descanso de qualidade e tempo de recuperação. Porque não há linha
da meta. Há sempre mais para aprender e existirão sempre fraquezas para
reforçar, se queremos ficar tão fortes como o bico de um pica-pau.
Suficientemente fortes para fazermos quilómetros uns atrás dos outros – e
acabarmos cheios de força!
***
Em 2008, regressei ao Havai, a Kona, para os Campeonatos do Mundo
Ironman. Estava em modo de visibilidade máxima para os SEAL da
Marinha, e o comandante Keith Davids, um dos melhores atletas que já vi
em equipas SEAL, e eu inscrevemo-nos na corrida. A transmissão da NBC
Sports seguiu cada gesto que fazíamos e transformou a nossa corrida dentro
da corrida num acontecimento ao qual os comentadores podiam dedicar-se
sempre que deixavam de seguir os principais candidatos.
A nossa entrada em cena pareceu sair diretamente de uma qualquer
proposta delirante feita a um produtor de Hollywood. Enquanto a maior
parte dos atletas seguia os seus rituais anteriores à corrida e se preparava
mentalmente para o dia mais longo das suas vidas de corredores, nós
sobrevoámos o local num avião de transporte C-130, saltámos de uma altura
de 460 metros e caímos de paraquedas sobre a água, onde uma lancha
Zodiac nos apanhou e nos levou à costa apenas quatro minutos antes do tiro
de partida. Foi o tempo suficiente para tomar um gel energético, beber um
gole de água e vestir os fatos de triatlo dos SEAL.
Como já sabe, sou lento na água, e o Davids destruiu-me nos 3800
metros da prova de natação. Em bicicleta sou tão forte como ele, mas, nesse
dia, sentia uma enorme tensão nos lombares, e a meio do percurso tive de
parar e fazer alongamentos. Quando cheguei à área de transição, ao fim de
180 quilómetros de bicicleta, o Davids levava trinta minutos de vantagem
sobre mim, e no início da maratona, a tentativa para recuperar não me
correu muito bem. O meu corpo estava em revolta e eu tive de caminhar os
primeiros quilómetros, mas continuei na luta, e pelo quilómetro 16 consegui
encontrar um ritmo e comecei a ganhar tempo. Algures mais à frente, o
Davids rebentou e eu aproximei-me. Durante uns quilómetros, vi-o, à
distância, a sofrer no meio daqueles campos de lava, com ondas de calor a
libertarem-se do asfalto. Sabia que ele queria vencer-me porque era um tipo
orgulhoso. Era um oficial, um grande operacional e um atleta de exceção.
Eu também queria vencê-lo. Os SEAL estão programados desta maneira e
eu podia tê-lo atropelado, mas à medida que me aproximava fui dizendo a
mim próprio que devia ser humilde. Cheguei junto dele a menos de quatro
quilómetros do fim. Ele olhou-me com um misto de respeito e exaspero
divertido.
“Goggins, meu cabrão”, disse com um sorriso. Tínhamos saltado juntos
para a água, iniciado juntos a prova, e íamos acabar a corrida juntos.
Fizemos lado a lado esses quilómetros finais, cruzámos a linha da meta a
abraçámo-nos. Foi um momento do catano para a televisão.
Na meta da corrida Ironman, em Kona, com Keith Davids
***
Tudo me corria bem na vida. A minha carreira estava a brilhar tanto
como os meus sapatos, tinha construído um nome no mundo do desporto e
fizera planos para regressar ao campo de batalha, como era próprio de um
SEAL da Marinha. Mas, às vezes, até quando se faz tudo certinho na vida,
as tempestades de merda surgem e multiplicam-se. O caos pode e vai
abater-se sem aviso prévio e, quando isso acontece (não é “se”), nada
haverá que possamos fazer para o evitar.
Com sorte, os problemas e as lesões serão relativamente pequenos, e se
acontecerem compete-nos fazer os ajustamentos necessários e seguir em
frente. Se surgirem lesões ou outras complicações que nos impedem de
trabalhar na nossa paixão principal, há que concentrar a energia noutro lado.
As atividades a que nos dedicamos tendem a ser as nossas forças, porque é
divertido fazer aquilo em que somos bons. São muito poucos os que gostam
de trabalhar em áreas onde têm fragilidades, por isso, se é um ótimo
corredor e sofre uma lesão no joelho que o impedirá de correr durante 12
semanas, esse é o momento ideal para se dedicar ao ioga, aumentar a
flexibilidade e a força geral, o que o tornará um atleta melhor e mais imune
a lesões. Se é um guitarrista e partiu a mão, sente-se ao teclado e use a mão
boa para se tornar um músico mais versátil. A questão é não permitir que
um revés nos desconcentre, nem que os desvios ao rumo determinem a
nossa mentalidade. Esteja sempre pronto a ajustar-se, a recalibrar – e
mantenha-se focado nisso para, de algum modo, se tornar melhor.
A única razão pela qual treino como treino é preparar-me para participar
em corridas ultra – e para as ganhar. Não tenho qualquer motivo atlético.
Trata-se de preparar a minha mente para a própria vida. A vida será sempre
o mais esgotante desporto de resistência e, se treinarmos de forma árdua,
sairmos da zona de conforto e calejarmos a mente, vamos tornar-nos
competidores mais versáteis, treinados para encontrar uma maneira de
avançar, aconteça o que acontecer. Porque haverá momentos em que a vida
vem para nós como se fosse uma bola de demolição. E, às vezes, a vida
atinge-nos mesmo no meio do coração.
O meu período de dois anos no serviço de recrutamento devia terminar
em 2009 e, embora tivesse apreciado o tempo que passei a inspirar a
próxima geração, ansiava por regressar ao terreno e às operações. Mas,
antes de sair, planeei mais um grande momento. Iria de bicicleta desde a
praia de San Diego até Annapolis, no Maryland, numa corrida lendária de
resistência por estrada, a Race Across America. A prova era em junho, por
isso, entre janeiro e maio, passei todo o tempo livre em cima da bicicleta.
Acordava às quatro da manhã e fazia 175 quilómetros antes de ir trabalhar,
e depois mais trinta ou quarenta quilómetros para casa no fim de um longo
dia de trabalho. Ao fim de semana, percorria pelo menos 320 quilómetros
num dia; em média, chegava aos 1120 quilómetros por semana. A corrida
levaria cerca de duas semanas a concluir, com muito pouco tempo para
dormir, e eu queria estar pronto para o maior desafio atlético de toda a
minha vida.
O meu registo de treino para a Race Across America
Até que, no início de maio, tudo desabou. Como se fosse um aparelho
que se avariou, o meu coração deixou de funcionar, quase de um dia para o
outro. Durante anos, a minha pulsação em descanso andava nas trinta por
minuto. De repente, estava nos setenta e oitenta e disparava com qualquer
atividade, levando-me à beira do colapso. Era como se tivesse uma fuga e
toda a energia fosse sugada do meu corpo. Um simples percurso de cinco
minutos na bicicleta levava o meu coração às 150 pulsações por minuto.
Bastava subir a passo um só lance de escadas para ele bater descontrolado.
Comecei por pensar que o problema seria excesso de treino. Fui ao
médico e ele concordou com a hipótese, mas, por precaução, mandou-me
fazer um ecocardiograma no hospital Balboa. O técnico aplicou gel na
varinha que tudo vê e passou-a pelo meu peito para apanhar todos os
ângulos necessários, comigo deitado do lado esquerdo, com a cabeça longe
do ecrã. Era um tipo falador e pôs-se a conversar sobre coisas sem
importância nenhuma, enquanto ia verificando todas as minhas câmaras e
válvulas. Ia-me dizendo que parecia estar tudo bem até que, já passados uns
45 minutos, o sacana conversador cala-se de repente. Em vez da voz dele,
ouvia uma série de cliques e ruídos, como se fizesse ampliações. Saiu da
sala e voltou minutos depois com outro técnico. Outra vez mais cliques,
ampliações e murmúrios. Mas não partilharam comigo o grande segredo.
Quando pessoas de bata branca começam a tratar o nosso coração, à
nossa frente, como se fosse um puzzle que tem de ser resolvido, é difícil não
pensar que, provavelmente, estamos bastante lixados. Uma parte de mim
queria respostas imediatamente, porque estava assustado como a merda,
mas não queria fazer de fraco e mostrar pelo que passava, por isso optei por
ficar calmo e deixar os profissionais fazerem o seu trabalho. Um deles era
cardiologista. Pegou na varinha, passou-a pelo meu peito e espreitou o ecrã,
fazendo um aceno curto. Depois, deu-me uma pancadinha no ombro como
seu eu fosse o seu maldito estagiário e disse-me: “Muito bem, vamos
conversar.”
“Tens uma Comunicação Interauricular”, disse-me, já no corredor, com
técnicos e enfermeiras a andarem de um lado para o outro, a entrarem e a
saírem de portas dos dois lados. Eu fiquei parado, a olhar em frente, sem
dizer nada, até que ele percebeu que eu não fazia ideia nenhuma de que raio
é que ele estava a falar. “Tens um buraco no coração.” Coçou a testa e
acariciou o queixo. “E olha que é um grande buraco.”
“Mas não se abrem assim buracos no coração, pois não?”
“Não, não”, disse a rir. “Nasceste com ele.”
Continuou a explicação: o buraco era na parede entre as aurículas direita
e esquerda, o que era um problema, porque se há um buraco entre as
câmaras do coração, então o sangue oxigenado mistura-se com o não
oxigenado. O oxigénio é um elemento essencial de que cada uma das
células necessita para sobreviver. Segundo o médico, eu só estava a fornecer
aos meus músculos e órgãos metade do oxigénio necessário para um
rendimento ótimo.
Isso provoca inchaços nos pés e na barriga, palpitações cardíacas e
ataques ocasionais de falta de ar. Era certamente uma explicação para a
fadiga que andava a sentir nos últimos tempos. O médico explicou-me que
também afeta os pulmões, porque inunda os vasos sanguíneos pulmonares
com mais sangue do que aquele com que podem lidar, o que faz com que
seja muito mais difícil recuperar de esforço excessivo e de doença. Recordei
todos os problemas que tive para recuperar depois de contrair uma
pneumonia dupla, na primeira Semana Infernal. O fluido nos pulmões
nunca desapareceu de todo. Nas Semanas Infernais seguintes, e já nas
provas ultra, cuspia sempre muco pulmonar durante e depois das corridas.
Havia noites em que o muco era tanto que não conseguia dormir. Sentava-
me na cama e cuspia para dentro de garrafas vazias de Gatorade, a pensar
quando é que aquele ritual aborrecido chegaria ao fim. A maior parte das
pessoas que ficam obcecadas pelas ultramaratonas pode sofrer lesões por
sobrecarga de esforço, mas têm o sistema cardiovascular em perfeitas
condições. Eu, embora fosse capaz de competir e de conseguir muito com o
meu corpo avariado, nunca me senti muito bem. Tinha aprendido a resistir e
a suplantar as dificuldades e, enquanto o médico continuava a dar-me conta
dos aspetos essenciais do meu problema, percebi, pela primeira vez em toda
a vida, que também tinha sido um cabrão cheio de sorte. Está a ver, aquele
género de sorte irónica em que se tem um buraco no coração, mas se
agradece a Deus por não nos ter matado – ainda.
Porque quando se tem uma comunicação interauricular como a minha e
se mergulha em profundidade, as bolhas de gás, que supostamente viajam
pelos vasos sanguíneos pulmonares para serem filtradas pelos pulmões,
podem passar por esse orifício ao ascenderem, e voltar a circular, como
embolias capazes de entupir vasos sanguíneos no cérebro e provocar um
AVC ou bloquear uma artéria no coração e causar uma paragem cardíaca. É
como mergulhar com uma bomba a flutuar no interior: nunca se sabe se vai
rebentar, ou quando.
Não estava sozinho. Uma em cada dez crianças nasce com esse defeito,
mas, na maior parte dos casos, o buraco fecha-se sozinho e não é necessária
cirurgia. Todos os anos, precisam de ser operadas não mais de duas mil
crianças norte-americanas, o que, em geral, acontece antes de chegarem à
idade escolar, porque os métodos de diagnóstico são hoje melhores. A maior
parte das pessoas da minha idade que nasceram com este problema saíram
do hospital ao colo das mães e viveram com um problema potencialmente
letal sem fazerem ideia disso. Até que, como eu, por volta dos trinta anos, o
coração lhes começou a dar problemas. Se eu tivesse ignorado os sinais de
aviso, podia ter caído morto a meio de uma corrida de seis quilómetros.
É por isso que, se estás na tropa e és diagnosticado com este problema,
não podes saltar de paraquedas ou fazer mergulho; se alguém soubesse que
eu sofria disso, nunca a Marinha me teria deixado ser um SEAL. É
extraordinário eu ter sequer participado na Semana Infernal, na Badwater ou
em qualquer dessas outras provas.
“Estou realmente espantado com tudo aquilo que tens feito sofrendo
deste problema”, disse-me o médico.
Fiz que sim com a cabeça. Ele pensava que eu era uma maravilha da
ciência, uma espécie de ser atípico, ou simplesmente um atleta abençoado
com uma sorte inacreditável. Para mim, era apenas mais uma prova de que
eu não devia as minhas proezas a qualquer talento dado por Deus ou a uma
genética incrível. Eu tinha um cabrão de um buraco no coração! Andava a
correr com um depósito perpetuamente meio cheio – e isso queria dizer que
a minha vida era uma prova absoluta do que é possível quando alguém se
dedica a aproveitar todo o poder da mente humana.
Fui operado três dias depois.
E não é que o médico fez merda? Primeiro, a anestesia não fez efeito
completo, o que significa que estava meio acordado no momento em que o
cirurgião fez uma incisão no interior da minha coxa, inseriu um cateter na
artéria femoral e, uma vez chegado ao coração, colocou um penso helicoidal
através desse cateter e ajeitou-o no lugar, supostamente fechando o buraco
no coração. Entretanto, introduziram-me uma câmara na garganta, que eu
consegui sentir, enquanto asfixiava e lutava para suportar a intervenção de
duas horas. No fim, os meus problemas deviam estar terminados. O médico
observou que seria preciso tempo para crescer tecido cardíaco à volta do
penso, e selá-lo, mas, ao fim de uma semana, autorizou-me a fazer exercício
ligeiro.
Entendido, pensei – e assim que cheguei a casa atirei-me ao chão para
fazer uma série de flexões. Quase imediatamente o coração entrou em
fibrilação auricular – também conhecida por arritmia. A pulsação saltou de
120 para 250. Senti-me tonto e tive de sentar-me, a olhar para o monitor de
frequência cardíaca, à espera que a respiração voltasse ao normal. A
frequência cardíaca em repouso estava outra vez nos oitenta. Por outras
palavras, nada tinha mudado. Telefonei ao cardiologista, que me disse
tratar-se de um efeito secundário menor e me pediu paciência. Acreditei e
descansei mais uns dias. Depois, saltei para cima da bicicleta para fazer o
percurso fácil entre o trabalho e casa. Ao princípio correu tudo bem, mas
passados uns vinte e tal quilómetros, o meu coração voltou a entrar em
arritmia. A pulsação passou de 120 para 230, e vice-versa, no gráfico
imaginário da minha mente, sem qualquer ritmo. A Kate levou-me
imediatamente ao hospital Balboa. Depois dessa visita, e de uma segunda e
terceira opiniões, era evidente que o penso não tinha funcionado ou então
era insuficiente para tapar todo o buraco, e que precisava de uma segunda
operação ao coração.
A Marinha não queria estar envolvida em nada disto. Receavam mais
problemas e sugeriram que reduzisse a intensidade do meu estilo de vida,
que aceitasse o meu novo normal – e uma proposta de reforma. Pois sim.
Em vez disso, encontrei no hospital Balboa um médico melhor que me disse
que teríamos de esperar vários meses antes de podermos sequer pensar em
realizar uma nova cirurgia cardíaca. Até lá, não podia saltar de paraquedas
nem fazer mergulho, e obviamente não podia participar em operações no
terreno, por isso fiquei no gabinete de recrutamento. Era, sem dúvida, uma
vida diferente – e eu fui tentado a sentir pena de mim. No fim de contas,
isto que me atingira de repente mudara todo o panorama da minha carreira
militar, mas eu estivera a treinar-me para a vida, não para provas ultra, e por
isso recusei-me a baixar a cabeça.
Sabia que, se mantivesse uma mentalidade de vítima não ia tirar
absolutamente nada desta situação tão lixada, e não queria ficar todo o dia
em casa a sentir-me derrotado. Por isso, usei o tempo para aperfeiçoar a
minha apresentação de recrutamento. Elaborei excelentes relatórios de
atividades e tornei-me muito mais perfecionista no trabalho administrativo.
Parece-lhe aborrecido? Porra, era realmente aborrecido! Mas era um
trabalho honesto e necessário e utilizei-o para manter a mente forte, para
quando chegasse o momento de regressar à luta a sério.
Pelo menos era o que eu esperava.
Catorze meses exatos após a primeira cirurgia, vi-me outra vez deitado
numa maca, a ser levado pelos corredores de um hospital e a olhar para as
luzes fluorescentes no teto, a caminho do pré-operatório, sem garantias de
coisa nenhuma. Enquanto os técnicos e as enfermeiras me raspavam os
pelos e me preparavam, pensei em tudo o que tinha conseguido nas forças
armadas e perguntei-me se era o suficiente. Se os médicos desta vez não
conseguissem resolver o problema, estaria eu pronto a reformar-me,
satisfeito? A pergunta andou a pairar na minha cabeça até o anestesista me
pôr na cara uma máscara de oxigénio e, em voz baixa, ao meu ouvido,
contar até zero. Imediatamente antes de as luzes se apagarem, ouvi a
resposta brotar do abismo da minha alma escura.
Porra, não!
Depois da segunda operação ao coração
DESAFIO #8
Planifique! Chegou o momento de compartimentar o dia. Muitas pessoas
começaram a fazer demasiadas coisas ao mesmo tempo – e isso criou uma
sociedade que deixa tudo a meio. Este desafio será de três semanas. Na
primeira, faça tudo como costuma fazer, mas tome notas. Quando é que
trabalha? Está a trabalhar sem pausas ou às vezes olha para o telefone (há
aplicações que dizem quanto tempo)? Quanto demoram as interrupções para
comer? Quando é que faz exercício, vê televisão ou conversa com amigos?
Que tempo leva de casa ao trabalho? Vai de automóvel? Quero que seja
muitíssimo pormenorizado e indique tudo com horas. Esse será o seu ponto
de partida – e encontrará muitas gorduras para perder. A maior parte das
pessoas desperdiçam quatro a cinco horas por dia; se as identificar e usar,
estará a caminho de se tornar mais produtivo.
Na segunda semana, elabore um calendário perfeito. Fixe tudo em blocos
de quinze a trinta minutos. Algumas tarefas precisarão de blocos múltiplos,
ou de dias inteiros. Ótimo. Quando estiver a trabalhar, faça só uma coisa de
cada vez, pense na tarefa que tem diante de si e dedique-se a ela sem
descanso. Quando chegar o momento da tarefa seguinte na agenda, coloque
de lado essa primeira e aplique a mesma concentração à outra.
Assegure-se de que os intervalos para as refeições sejam os adequados,
mas não prolongados, e defina também os tempos para exercício e
descanso. Mas, ao chegar a hora de descansar, descanse. Não ande a ver o
email ou a entreter-se com futilidades nas redes sociais. Se vai trabalhar
arduamente, precisa também de descansar o cérebro.
Tome notas com indicações de tempo nesta segunda semana. Pode ser
que encontre ainda espaços mortos residuais. Pela terceira semana, deverá
ter um horário de trabalho que potencia ao máximo o seu esforço sem
sacrificar sono. Publique fotos do seu horário, com as hashtags #canthurtme
#talentnotrequired.
CAPÍTULO NOVE

INVULGAR ENTRE INVULGARES


A anestesia fez efeito – e eu senti-me a recuar no tempo até regressar a um
momento do passado. Atravessávamos a selva em plena noite. Movíamo-
nos com gestos contidos e em silêncio, mas rapidamente. Tinha de ser. Na
maior parte das vezes, ganha aquele que desfere o primeiro golpe.
Atingimos um cume, abrigámo-nos sob um bosque espesso de mognos
numa selva com três copas e procurámos os objetivos com óculos de visão
noturna. Mesmo sem sol, o calor tropical era intenso e escorriam-me pelo
rosto gotas de suor, como gotas de orvalho num para-brisas. Eu tinha 27
anos e os meus sonhos febris de filmes como Platoon ou Rambo tinham-se
tornado reais como o catano. Pisquei os olhos duas vezes, expeli o ar nos
pulmões e, ao sinal do oficial de comando, disparei.
Todo o meu corpo trepidou com as sacudidelas da M60, uma
metralhadora alimentada por cinturão de balas que disparava 500 a 650
projéteis por minuto. À medida que o cinturão alimentava a máquina,
fazendo-a rugir e disparar chamas pelo cano, a adrenalina enchia a minha
corrente sanguínea e saturava o meu cérebro. A minha atenção focou-se.
Não havia mais nada para além de mim, da minha arma e do alvo que eu
destruía sem qualquer remorso.
Foi em 2002, acabava de sair da instrução BUD/S e, como SEAL da
Marinha a tempo inteiro, era agora, oficialmente, um dos combatentes mais
letais e em melhor forma do mundo. Pelo menos era o que eu pensava, mas
isto foi anos antes de eu entrar no universo dos ultras. O 11 de setembro era
ainda uma ferida recente e aberta na consciência coletiva dos norte-
americanos, e os seus efeitos em cascata mudaram tudo para tipos como
nós. O combate já não era um estado mental mítico a que aspirávamos. Era
real e travava-se nas montanhas, aldeias e cidades do Afeganistão.
Entretanto, nós estávamos enterrados na maldita Malásia, a aguardar ordens,
desejosos de entrar em ação.
E treinávamos como tal.
Depois de concluir as BUD/S, passei ao Treino de Qualificação SEAL,
onde consegui oficialmente o meu tridente, antes de ser destacado para o
meu primeiro pelotão. O treino prosseguiu com exercícios de guerra na
selva, na Malásia. Fazíamos rappel e subíamos e descíamos rapidamente de
helicópteros suspensos no ar. Alguns homens receberam treino como
snipers, e como eu era o maior tipo da unidade – voltara a subir de peso,
para 113 quilos –, deram-me o trabalho de carregar com o Porco, que era a
alcunha da M60, porque fazia um barulho que era igual ao grunhir de um
porco.
A maioria receava ter o Porco a seu cargo, mas a mim a arma fascinava-
me. Só ela pesava dez quilos e cada cinturão com cem projéteis cerca de
três quilos. Eu transportava para todo o lado seis ou sete desses (um na
arma, quatro à cintura e outro numa bolsa presa à mochila), além da arma e
da minha mochila de 22 quilos – e era esperado que andasse tão depressa
como os outros. Não tinha escolha. Nós treinamos como lutamos e são
precisas munições reais para imitar um combate real e assim aperfeiçoar a
máxima de combate dos SEAL: disparar, mover, comunicar.
Isso significa um cuidado máximo no momento de apontar. Uma arma
não pode disparar para qualquer lado. É assim que acontecem os acidentes
causados pelo chamado “fogo amigo”, e é precisa uma grande disciplina
muscular e atenção ao pormenor para saber apontar, tendo em conta onde se
encontram os companheiros, em todos os momentos, especialmente quando
a arma que se empunha é o Porco. Manter um nível de segurança elevado e
aplicar uma força letal sobre o alvo, quando o dever o exige, é o que
transforma um SEAL médio num bom operacional.
Graduação do Treino de Qualificação SEAL (as manchas
de sangue na camisol são do tridente que me cravaram
no peito)
A maioria pensa que, a partir do momento em que te tornas um SEAL,
fazes parte, automaticamente e para sempre, do círculo, mas isso não é
verdade. Eu depressa aprendi que estávamos constantemente a ser julgados,
e que estavas fora logo que não mostrasses segurança, quer fosses um
novato ou um tipo experimentado! No meu primeiro pelotão, eu era um dos
três maçaricos, e um deles mostrou um comportamento tão inseguro que lhe
tiraram a arma. Percorremos a selva da Malásia durante dez dias, a dormir
em redes, a remar em canoas, a carregar com as armas dia e noite, e ele
andou sempre a arrastar um filho da mãe de um pau de vassoura, como se
fosse a Bruxa Malvada do Oeste. Acabou por não suportar a situação e foi
corrido de vez. Os oficiais desse pelotão avaliavam todos de uma forma
muito honesta e eu respeitava-os por isso.
“Em combate, ninguém se transforma simplesmente em Rambo”,
afirmou-me, há pouco tempo, Dana De Coster. Ele era o segundo-
comandante do meu primeiro pelotão com a Equipa Cinco dos SEAL. Hoje,
é diretor de operações das BUD/S. “Esforçamo-nos muito para que, quando
as balas começarem mesmo a voar, possamos apoiar-nos num treino
realmente bom, e é importante que esse nível de apoio seja tão elevado que
saibamos que vamos suplantar o inimigo. Talvez não nos transformemos em
Rambos, mas andaremos lá muito perto.”
Há muitas pessoas fascinadas pelo armamento que os SEAL usam e
pelos tiroteios em que se envolvem, mas essa nunca foi a minha parte
favorita do trabalho. Eu era estupidamente bom nisso, mas preferia estar em
guerra comigo. Refiro-me a um treino físico muito exigente – o que esse
meu primeiro pelotão também me proporcionava. Quase todas as manhãs,
antes do trabalho, fazíamos percursos de corrida, natação e corrida. Não era
só fazer quilómetros. Estávamos em competição e os oficiais iam connosco
e à nossa frente. O comandante principal e o Dana, o segundo, eram dois
dos melhores atletas do pelotão, e o meu chefe de pelotão, o Chris Beck
(que agora se faz chamar Kristin Beck e é uma das mulheres trans mais
famosas do Twitter; se isto não é também ser o único!), também era um
filho da puta mesmo rijo.
“É curioso”, observou Dana, “[o comandante e eu] nunca falámos
realmente da nossa filosofia sobre o treino físico. Só competíamos. Eu
queria ganhar-lhe e ele queria ganhar-me e isso pôs as pessoas a falar sobre
o empenho com que perseguíamos o nosso objetivo.”
Nunca tive a menor dúvida de que o Dana estava todo lixado da cabeça.
Lembro-me de que, antes de embarcarmos para a Indonésia, com escalas em
Guam, Malásia, Tailândia e Coreia, realizámos treinos de mergulho ao largo
da ilha de San Clemente. O Dana fazia dupla comigo e, uma manhã,
desafiou-me para um treino sem fato de mergulho em águas a 13 graus
Celsius, porque foi assim que os antecessores dos SEAL fizeram ao
preparar-se para as operações nas praias da Normandia na invasão do Dia-
D, na Segunda Guerra Mundial.
“Vamos fazer isto à antiga e mergulhar de calções com as nossas facas”,
disse.
Ele tinha uma mentalidade meio animal que me encantava e eu não ia
recusar aquele desafio. Nadámos e mergulhámos juntos em todo o Sueste
Asiático, onde treinámos unidades militares de elite na Malásia e
aperfeiçoámos as capacidades dos SEAL da Marinha da Tailândia – as
equipas de homens-rã que, no verão de 2018, salvaram aqueles meninos
futebolistas numa gruta. As tropas de elite tailandesas combatiam então uma
insurgência islamista no sul da Tailândia. Onde quer que nos colocassem, do
que eu gostava mais era das manhãs de treino físico. Em pouco tempo,
tínhamos os tipos todos do pelotão a competir uns com os outros, e eu, por
muito que tentasse, parecia não chegar ao nível daqueles dois oficiais; em
geral, era o terceiro. Não fazia mal. Não importava quem ganhava, porque
todos estavam a melhorar máximos pessoais quase todos os dias e foi isso
que me ficou gravado. A capacidade que um ambiente competitivo tem para
aumentar o grau de envolvimento e a prestação de todo um pelotão!
Este era precisamente o ambiente com que sonhara ao inscrever-me na
instrução BUD/S. Vivíamos todos no espírito dos SEAL e eu ansiava saber
onde é que isso nos levaria, individualmente e enquanto unidade, ao chegar
a hora de entrar em combate. A guerra continuava com toda a intensidade no
Afeganistão, mas nós não podíamos fazer mais do esperar sentados e
aguardar que chamassem o nosso número.
Assistimos à invasão do Iraque quando estávamos num salão de bowling
na Coreia. Foi deprimente como tudo. Tínhamos treinado arduamente para
uma ocasião como aquela. As nossas bases tinham sido reforçadas com todo
o treino físico realizado e solidificadas com manobras com armas e táticas.
Tínhamo-nos tornado uma unidade letal que ansiava por ação e o facto de
não terem outra vez contado connosco irritou-nos a todos. Por isso, todas as
manhãs descarregávamos uns nos outros.
Os SEAL eram tratados como estrelas de rock nas bases por onde
passavam em todo o mundo – e alguns comportavam-se como tal. Na
verdade, a maior parte dos SEAL desfrutava de uma boa dose de grandes
noites de festa. Mas eu não. Eu chegara aos SEAL por levar uma vida
espartana e sentia que, à noite, o meu trabalho era descansar, recarregar e
preparar o corpo e a mente para nova batalha no dia seguinte. Estava sempre
pronto para partir em missão e esta atitude conquistou-me o respeito de
alguns, mas o nosso comandante procurou influenciar-me a descontrair um
pouco e a tornar-me “um dos rapazes”.
Eu respeitava imensamente o nosso oficial de comando. Tinha-se
formado na Academia Naval e na Universidade de Cambridge. Era
obviamente inteligente, um atleta de exceção e um grande líder, que ia a
caminho de reivindicar um desejado lugar no DEVGRU, por isso a opinião
dele contava para mim. Era, aliás, importante para todos, porque ele era
responsável por nos avaliar – e essas avaliações têm tendência a seguir-nos
e a afetar a carreira militar futura.
No papel, a minha primeira avaliação foi sólida. As minhas capacidades
e o meu esforço máximo impressionaram-no, mas também me transmitiu
algumas reflexões não-oficiais. “Sabes, Goggins”, disse-me, “tu perceberias
este trabalho um pouco melhor se saísses mais com os rapazes. É aí que eu
aprendo mais a operar no terreno, quando estou com os rapazes, a ouvir as
histórias deles. É importante fazer parte do grupo.”
As palavras dele foram um choque com a realidade – e doeu-me. Era
óbvio que o oficial de comando – e provavelmente alguns companheiros –
pensava que eu era um pouco diferente. Claro que era! Eu vinha de lado
nenhum, porra! Não me recrutaram para a Academia Naval. Nem sabia
onde ficava a merda de Cambridge. Não fui educado em volta de piscinas.
Tive de aprender a nadar sozinho. Porra, nem sequer devia ter sido SEAL,
mas tinha lá chegado e pensava que isso me incluía no grupo. E agora
percebia tudo: eu pertencia às Equipas, mas não à irmandade.
Tinha de sair e relacionar-me com os outros depois das horas de trabalho
para demonstrar o meu valor? Era pedir muito a um gajo introvertido como
eu.
Quero é que se lixe.
Eu tinha chegado ao pelotão por causa da minha dedicação intensa e não
queria abrandar. Enquanto outros saíam à noite, eu ficava a ler sobre tática,
armas e guerra. Era um aluno perpétuo! Na minha cabeça, treinava para
ocasiões que ainda nem existiam. Naquele tempo, nem era possível uma
candidatura ao DEVGRU até concluir o segundo pelotão, mas eu já me
preparava para essa ocasião e recusava-me a comprometer quem era para
me ajustar às regras não escritas que eles seguiam.
O DEVGRU (e a Força Delta do Exército) são considerados o melhor do
melhor entre as operações especiais. Recebem as missões mais
extraordinárias, como o raide para capturar Osama Bin Laden, e, a partir
desse momento, decidi que não me conformaria, e não podia conformar-me,
em ser apenas um SEAL comum. Sim, todos nós éramos uns filhos da puta
invulgares em comparação com os civis, mas eu via agora que era invulgar,
até entre os invulgares – e, se era assim, então que se lixasse, teria de ser.
Talvez até me afastasse mais deles. Não muito tempo depois dessa
avaliação, ganhei pela primeira vez a corrida da manhã. Nos últimos
oitocentos metros, ultrapassei o Dana e o oficial de comando – e nunca
olhei para trás.
As missões de pelotão duram dois anos e, quando a nossa acabou, a
maioria ansiava por uma pausa antes de seguir para o próximo pelotão –
que, a julgar pelas guerras em que estávamos envolvidos, envolveria quase
de certeza situações de combate. Eu não queria uma pausa nem precisava
dela: os invulgares entre os invulgares não fazem pausas!
Depois daquela minha primeira avaliação, comecei a analisar os outros
ramos dos militares (excluindo a Guarda Costeira) e a ler sobre as suas
forças especiais. Os SEAL gostam de pensar que são os melhores de todos,
mas eu queria ver por mim. Suspeitava que em todos os ramos havia
indivíduos com a capacidade de se destacar nos ambientes mais adversos. E
eu estava à caça desses tipos. Queria encontrá-los e treinar com eles, por
saber que me podiam tornar melhor. Li que os Rangers do Exército eram
considerados das melhores, se não a melhor, escolas de liderança de todas
as forças armadas. Por isso, no meu primeiro pelotão, apresentei sete
solicitações especiais ao oficial de comando para que me fosse autorizado,
entre comissões de serviço, frequentar a Escola de Rangers do Exército.
Disse-lhe que queria absorver mais conhecimento e tornar-me mais
qualificado em operações especiais.
As primeiras seis solicitações especiais foram ignoradas. No fim de
contas, eu era um novato e alguns oficiais pensavam que eu tinha era de me
focar na Guerra Naval Especial, em vez perder tempo no exército, que
desprezavam. Mas, ao fim de dois anos no primeiro pelotão, conquistara já
uma certa reputação e a sétima solicitação fez o seu caminho até chegar ao
comandante encarregado da Equipa Cinco dos SEAL. A partir do momento
em que ele a assinou, estava feito.
“Goggins”, disse o meu oficial de comando depois de me dar a boa
notícia, “tu és aquele género de cabrão que deseja ser prisioneiro de guerra
só para ver se é capaz de aguentar.”
Ele tinha-me topado. Sabia perfeitamente em quem eu estava a tornar-me
– um gajo disposto a desafiar-se até ao último grau. Demos um aperto de
mão. O oficial de comando ia para o DEVGRU e até era possível que lá nos
encontrássemos em breve. Ele disse-me que, com duas guerras em curso, o
DEVGRU tinha pela primeira vez aberto um processo de recrutamento que
admitia tipos que só tivessem cumprido o primeiro pelotão. Como eu
procurava sempre mais e preparava a mente e o corpo para oportunidades
que ainda nem existiam, fui um dos poucos homens aprovados pelos
chefões da Equipa Cinco dos Seal para serem selecionados para a Equipa
Verde, o programa de treino para o DEVGRU, imediatamente antes de ir
para a Escola de Rangers do Exército.
O processo de seleção da Equipa Verde tem dois dias. O primeiro é
dedicado à condição física e inclui uma corrida de cinco quilómetros, 1200
metros de natação, três minutos de flexões e agachamentos e uma série
máxima de abdominais. Pulverizei os outros todos, porque o meu primeiro
pelotão me tinha transformado num nadador e num corredor muito melhor.
O segundo dia era dedicado à entrevista – e isso era muito mais um
interrogatório. De um conjunto de 18 homens, só três foram aprovados para
a Equipa Verde. Eu fui um deles, o que, em teoria, queria dizer que, depois
do meu segundo pelotão, estaria mais perto de integrar o DEVGRU. Mal
podia esperar. Estávamos em dezembro de 2003 e, como seria de imaginar,
a minha carreira nas forças especiais estava a entrar em modo de propulsão
para o espaço, pois eu continuava a provar que era o mais invulgar dos
filhos da mãe – e continuava a caminho de me tornar esse Guerreiro Único.
Umas semanas mais tarde, cheguei a Fort Benning, na Geórgia, para
frequentar a Escola de Rangers do Exército. Estávamos no início de
dezembro. Era o único tipo da Marinha entre 308 homens, e os instrutores
receberam-me com ceticismo, porque, uns cursos antes, tinham aparecido
dois SEAL da Marinha que desistiram a meio. Naquele tempo, era hábito
enviarem SEAL para a escola dos Rangers como castigo, por isso talvez não
tenham sido os melhores representantes possíveis. Eu fizera tudo para estar
ali, mas os instrutores ainda não sabiam isso. Pensaram que eu era só mais
um gajo das operações especiais armado em bom. Em poucas horas,
despiram-nos, a mim e aos outros todos, das fardas e das reputações, até
parecermos todos iguais. Os oficiais perderam a patente e os combatentes de
forças especiais bem treinados como eu transformaram-se em zés-ninguém
que tinham muita coisa a provar.
No primeiro dia, dividiram-nos em três companhias e eu fui designado
primeiro-sargento da companhia Bravo. Fiquei com o posto porque pediram
ao tipo que era para ser primeiro-sargento que recitasse o Credo dos
Rangers depois de levar uma tareia a fazer elevações na barra, e ele ficou
tão cansado que não conseguiu. Para os Rangers, este Credo é tudo. O
instrutor ficou furioso e fez questão de nos dizer, com todos nós na
companhia Bravo em sentido.
“Não sei onde é que vocês pensam que estão, mas se estão à espera de
ser Rangers, então eu estou à espera que conheçam o nosso Credo.” Os seus
olhos cruzaram-se com os meus. “E tenho a certeza de que aqui o tipo da
Marinha não o conhece.”
O problema é que eu andava a estudar há meses e, nem que me tivessem
pendurado de cabeça para baixo, conseguia dizê-lo de cor. Para obter mais
efeito dramático, limpei a garganta e comecei a recitar em voz alta.
“Reconhecendo que me fiz voluntário como Ranger, completamente
consciente dos perigos da minha profissão escolhida, irei sempre esforçar-
me para manter o prestígio, honra e alto espírito de corpo dos Rangers!”
“Muito surpre…”. Ele tentou interromper-me, mas eu não tinha acabado.
“Reconhecendo o facto de que um Ranger é um soldado mais de elite
que chega no momento crítico da batalha, seja por terra, ar ou mar, eu aceito
o facto de que, como Ranger, o meu país espera que eu avance mais e mais
depressa e combata mais arduamente do que qualquer outro soldado!”
O instrutor acenou com a cabeça, a sorrir, mas desta vez não tentou
interromper-me.
“Nunca irei falhar aos meus camaradas! Manter-me-ei sempre
mentalmente alerta, fisicamente forte e moralmente reto, e assumirei mais
do que a minha parte da tarefa, seja ela qual for, cem por cento – e ainda um
pouco mais!
“Com educação, mostrarei ao mundo que sou um soldado especialmente
selecionado e bem treinado! A minha cortesia para com os oficiais
superiores, o cuidado com o uniforme e com o equipamento deverão dar o
exemplo para outros seguirem!
“Com energia, enfrentarei os inimigos do meu país! Derrotá-los-ei no
campo de batalha, pois fui melhor treinado e irei lutar com todas as minhas
forças! Rendição não é uma palavra dos Rangers! Nunca deixarei um
camarada caído à mercê das mãos do inimigo, e em nenhuma circunstância
envergonharei o meu país!
“Mostrarei prontamente a força de espírito exigida para lutar dentro dos
objetivos dos Rangers e completar a missão, mesmo que seja o único
sobrevivente!
“Os Rangers vão à frente!”
Enunciei os seis pontos e ele abanou a cabeça como se não acreditasse,
enquanto congeminava a maneira ideal de ser o último a rir. “Parabéns,
Goggins”, disse. “Agora, és primeiro-sargento.”
E deixou-me ali, sem palavras, em frente do meu pelotão. Agora, o meu
trabalho era fazer marchar o pelotão e garantir que todos os homens
estavam preparados para o que nos esperava. Tornei-me em parte chefe, em
parte irmão mais velho – e quase-instrutor a tempo inteiro. Na Escola de
Rangers já é bastante difícil conseguir a preparação suficiente para chegar
ao fim. Agora, tinha de olhar por uma centena de homens e garantir que eles
também estivessem prontos.
Além disso, ainda tinha de realizar a mesma instrução dos outros todos,
mas essa era a parte fácil – e, na verdade, era um momento para relaxar.
Para mim, a punição física era mais do que suportável, mas tinha mudado a
maneira como desempenhava essas tarefas físicas. Na instrução BUD/S, eu
liderara sempre as minhas tripulações, às vezes com um misto de amor e
exigência, mas, em geral, não me importava se os tipos das outras
tripulações conseguiam ou se desistiam. Desta vez, não me limitava a dar
tudo, também tinha de olhar por todos. Se via alguém com problemas com a
orientação, a patrulha, o ritmo de uma corrida ou insónias noturnas,
assegurava-me de que todos nos uníamos para ajudar. Nem todos queriam
fazer isso. O treino era tão difícil que alguns tipos, quando não estavam sob
avaliação, aproveitavam para fazer o mínimo possível e arranjavam sempre
maneira de descansar e se esconder. Nos meus 69 dias na Escola de
Rangers, não estive um único segundo de braços cruzados. Estava a
transformar-me num líder a sério.
O objetivo da Escola de Rangers é mostrar a todos o que é preciso para
liderar uma equipa de alto nível. Os exercícios de campo eram uma mistura
de caça ao tesouro entre operacionais e corrida de resistência. Em seis fases
de teste, éramos avaliados em orientação, armas, técnicas com corda,
reconhecimento e liderança geral. As provas no terreno eram famosas pela
brutalidade espartana e culminavam três fases diferentes de treino.
Primeiro, na fase de Forte Benning, dividiam-nos em grupos de 12 e
passávamos juntos, nas encostas, cinco dias e quatro noites. Tínhamos
muito pouco para comer – uma ou duas rações de combate por dia – e
permitiam-nos dormir apenas umas duas horas por noite, enquanto
corríamos contrarrelógio fazendo percursos entre estações, nas quais
realizávamos uma série de tarefas para provar a destreza numa capacidade
específica. A liderança do grupo ia rodando.
A fase na montanha era exponencialmente mais difícil do que a de Forte
Benning. Éramos agrupados em grupos de 24 para percorrer montanhas do
norte da Geórgia – e digo-lhe desde já que os Apalaches são frios como a
merda, no inverno. Já tinha lido histórias de soldados negros com a
caraterística de células falciformes que morriam nesta fase na montanha e o
exército quis que eu usasse uma placa especial com o meu nome, com uma
cercadura vermelha, para servir de alerta aos médicos, caso alguma coisa
corresse mal. Mas eu era um condutor de homens e não queria que a minha
equipa me visse como uma criança doente; por isso, a cercadura vermelha
nunca chegou à minha placa.
Praticámos rappel e escalada, entre outras especialidades do
montanhismo, e tornámo-nos peritos em técnicas de emboscada e patrulha
na montanha. Para o demonstrar, realizámos dois exercícios de treino de
campo de quatro noites, denominados FTX. No segundo FTX, abateu-se
sobre nós uma tempestade, com ventos de cinquenta quilómetros por hora
que nos fustigavam com gelo e neve. Não levávamos sacos-cama nem
roupas quentes e a comida continuava a ser muito escassa. Para nos
mantermos quentes, só podíamos recorrer a um poncho, e uns aos outros, o
que era um problema, porque o cheiro nauseabundo que se sentia no ar era o
nosso. Tínhamos queimado tantas calorias sem a nutrição adequada que
perdêramos toda a gordura e estávamos a incinerar a própria massa
muscular para servir de combustível. O fedor pútrido era tal que fazia
chorar. Provocava náuseas por reflexo. A visibilidade era de poucos metros.
O pessoal espirrava, tossia e tiritava violentamente, de olhos esbugalhados
de terror. Cheguei a ter a certeza de que, nessa noite, alguém ia morrer
congelado, com hipotermia ou pneumonia.
Nos exercícios no terreno, sempre que há uma paragem para dormir, o
descanso é breve e exige-se que a segurança seja assegurada em todos os
pontos cardeais, mas perante uma tempestade daquelas dimensões, o
pelotão Bravo fraquejou. Falamos, por norma, de homens muito duros e
cheios de orgulho, mas estavam concentrados na sobrevivência acima de
tudo. Eu compreendi esse impulso e os instrutores não se importaram,
porque estávamos em modo de emergência meteorológica, mas para mim
esse momento constituiu uma oportunidade para me distinguir e liderar pelo
exemplo. Vi nessa tempestade de inverno um trampolim para me tornar
invulgar entre homens invulgares.
Independentemente de quem somos, a vida vai apresentar-nos a todos
oportunidades para provarmos que somos invulgares. Em todas as áreas da
vida, há pessoas que adoram esses momentos – e, se as vir, reconheço-as
imediatamente. Em geral, é aquele cabrão que está sozinho. É o gajo de fato
completo que continua no escritório à meia-noite quando os outros todos
estão no bar, ou o sacana que vai diretamente fazer exercício depois de uma
operação de 48 horas. É a bombeira florestal que, em vez de se ir deitar na
camarata, vai afiar a motosserra depois de passar 24 horas no terreno. É
uma mentalidade que qualquer um pode ter: homem, mulher, heterossexual,
gay, negro, branco ou às pintinhas. Todos podemos ser aquela pessoa que
anda de avião todo o dia e toda a noite, chega a casa e encontra tudo sujo –
e, em vez de culpar a família ou os companheiros de quarto, limpa tudo
imediatamente, porque se recusa a ignorar os deveres incumpridos.
Existem, em todo o mundo, seres humanos assim. Não têm de andar de
farda. Nem tem a ver com todas as escolas de prestígio em que se
formaram, nem com as distinções e medalhas. Trata-se, sim, de querer uma
coisa como se não houvesse amanhã – porque talvez não haja. Trata-se de
pensar nos outros todos antes de pensar em si mesmo e de desenvolver um
código ético próprio que o distinga. Um desses elementos éticos é o impulso
para transformar tudo o que é negativo em positivo e, depois, quando os
problemas começam, estar pronto para liderar tudo na primeira linha.
Naquele pico montanhoso da Geórgia, o meu pensamento era que, num
cenário real, uma tempestade como aquelas constituiria a cobertura perfeita
para um ataque inimigo – e por isso não me juntei aos outros em grupo nem
procurei calor. Concentrei-me ainda mais profundamente, abri os braços à
carnificina de neve e gelo e vigiei o perímetro oeste como era meu dever –
porque era mesmo! E adorei cada segundo. Semicerrei os olhos contra o
vento e, quando o granizo me picou o rosto, gritei à noite desde as
profundezas da minha alma incompreendida.
Houve uns quantos tipos que me ouviram, saíram da linha de arvoredo ao
Norte e permaneceram de pé, firmes. Depois, a leste, outro tipo destacou-se,
e mais um na encosta orientada para sul. Todos tremiam de frio,
embrulhados nos seus ponchos finos. Nenhum queria ali estar, mas
ergueram-se e cumpriram o seu dever. Apesar de fustigados por uma das
mais tremendas tempestades na história da Escola de Rangers, mantivemos
a segurança do perímetro até os instrutores nos dizerem pela rádio para
voltarmos do frio. Literalmente. Ergueram uma tenda de circo. Entrámos
em fila e enroscámo-nos até a tempestade passar.
As semanas finais na Escola de Rangers são designadas Fase Flórida: um
FTX de dez dias, em que cinquenta homens, numa só unidade, percorrem a
zona do estado conhecida como Panhandle [Pega da Frigideira, por causa da
sua forma], indo de ponto em ponto, seguindo coordenadas. A nossa
começou com um salto de linha estática de um avião a 450 metros de altura
sobre os pântanos frígidos, junto da praia de Forte Walton. Andámos e
nadámos por rios, montámos pontes em corda e, com a ajuda das mãos e
dos pés, passámos para a outra margem. Não havia maneira de nos
mantermos secos e a água estava a uma temperatura entre os zero e os dez
graus Celsius. Já todos tínhamos ouvido a história de que o inverno de 1994
fora tão frio que quatro candidatos a Rangers tinham morrido de hipotermia
durante esta Fase Flórida. Estar perto da praia, e com os tomates gelados,
fez-me lembrar a Semana Infernal. Sempre que parávamos, os homens
espremiam-se uns contra os outros, as pilas encostadas aos rabos uns dos
outros, a tiritar, mas, como habitualmente, concentrei-me ao máximo e
recusei mostrar qualquer fragilidade. Desta vez não se tratava de conquistar
as almas dos instrutores. Tratava-se de dar coragem aos homens que
passavam por dificuldades. Se fosse preciso, eu atravessaria um rio seis
vezes para ajudar um dos meus homens a amarrar a sua ponte de corda.
Guiava-os passo a passo até conseguirem provar o seu valor aos comandos
dos Rangers.
Dormimos muito pouco, comemos ainda menos, e estávamos
permanentemente em missões de reconhecimento, a alcançar pontos de
paragem definidos, a montar pontes e armas e a preparar-nos para
emboscadas, fazendo turnos a liderar um grupo de cinquenta homens. Eram
soldados cansados, famintos, gelados, frustrados, e que não queriam mais
estar ali. A maior parte ia no limite do limite, nos cem por cento. Eu
também estava a chegar a esse ponto, mas ajudava sempre, até quando não
era a minha vez de liderar, porque nesses 69 dias na Escola de Rangers
aprendi que, se queres chamar a ti próprio líder, é isso que é preciso fazer.
Um verdadeiro líder mantém-se esgotado, odeia a arrogância e nunca
olha com superioridade para o elo mais fraco. Luta pelos seus homens e
lidera pelo exemplo. É isso que significa ser invulgar entre invulgares. Quer
dizer ser um dos melhores e ajudar os seus homens a encontrarem também o
seu melhor. Era uma lição que eu gostaria de ter interiorizado muito mais,
porque em poucas semanas iria ver-me perante um novo desafio neste
capítulo da liderança – e não chegaria lá.
A Escola de Rangers era tão exigente, e os padrões tão elevados, que,
num grupo de 308 candidatos, só 96 homens obtiveram a graduação – e a
maioria era do pelotão Bravo. Atribuíram-me o título de Alistado de Honra
e os meus pares deram-me uma avaliação de cem por cento. Para mim, isso
significava ainda mais, porque os meus companheiros de turma, os grunhos
como eu, tinham avaliado a minha liderança sob condições duras; um olhar
para o espelho revelou bem a dureza dessas condições.
Certificado de Alistado de Honra na Escola de Rangers
Perdi 25 quilos na Escola de Rangers. A minha aparência era uma
desgraça, parecia a morte ambulante: covas na cara, olhos esbugalhados,
sem massa muscular nos bíceps. Estávamos todos macilentos. Correr umas
centenas de metros era um problema. Tipos que faziam quarenta flexões de
uma vez tinham dificuldade em realizar apenas uma. O Exército já esperava
que isso acontecesse e reservou três dias entre o fim da Fase Flórida e a
formatura para nos engordar, antes que as famílias aparecessem para
celebrar.
Assim que terminou o último FTX, apressámo-nos a ir para a messe. No
meu tabuleiro, empilhei donuts, batatas fritas e cheeseburgers e fui à
procura da máquina do leite. Depois de ter bebido todos os malditos batidos
de chocolate na fase em que estava deprimido, o meu corpo tornara-se
intolerante à lactose, e eu há muitos anos que não tocava em lacticínios.
Mas, naquele dia, era um como um miúdo pequeno, incapaz de controlar o
desejo primordial de um copo de leite.
Encontrei a máquina, puxei a alavanca para baixo e, um tanto confuso, vi
o líquido a sair num jorro espesso como queijo. Encolhi os ombros e
cheirei. Cheirava muito mal, em todos os sentidos, mas lembro-me de
emborcar esse leite estragado como se fosse um copo de chá doce fresco –
por obra e graça de outra escola infernal de forças especiais que nos fez
passar por tanta coisa que, no fim, qualquer um que tivesse sobrevivido
agradeceria um copo frio de leite estragado.
***
A maior parte das pessoas tira duas semanas de folga para recuperar da
Escola de Rangers e voltar a ganhar peso. É isso que a maioria faz, mas no
dia da formatura, que foi num Dia de São Valentim, eu apanhei um avião
para Coronado, ao encontro do meu segundo pelotão. Olhei de novo para
essa ausência de um intervalo como uma oportunidade para ser invulgar.
Não é que alguém estivesse a reparar, mas quando se trata de mentalidade
não importa onde é que os outros têm a atenção focada. Eu precisava de
estar à altura dos meus próprios padrões invulgares.
Em todas as etapas que tinha cumprido nos SEAL, das provas BUD/S ao
primeiro pelotão e depois na Escola de Rangers, eu era conhecido como um
filho da mãe rijo como tudo, e quando o oficial de comando no meu
segundo pelotão me encarregou do treino físico, isso agradou-me, porque
me dizia que tinha ido outra vez parar a um grupo de homens determinados
a dar tudo e a melhorar. Motivado, pus-me a pensar em maldades que
podíamos fazer para nos prepararmos para o combate. Desta vez, sabíamos
todos que iríamos parar ao Iraque, e eu propus-me tornar-nos o pelotão
SEAL mais bem preparado. Era uma fasquia elevada, ditada pela lenda
original dos SEAL, que continuava presa como uma âncora no mais fundo
do meu cérebro. Essa lenda sugeria que éramos o género de homens capazes
de nadar oito quilómetros à segunda-feira, correr mais de trinta à terça e
escalar a uma montanha de 4200 metros à quarta – e as minhas expetativas
eram quase ilimitadas.
Na primeira semana, os recrutas reuniam-se às cinco da manhã para um
circuito de corrida-natação-corrida ou para uma corrida de vinte
quilómetros com peso às costas, seguida de uma volta pela pista de
obstáculos. Levávamos troncos pela berma e fazíamos centenas de flexões.
Pus-nos a fazer merdas mesmo pesadas, treinos que nos tornavam SEAL.
Os exercícios eram todos os dias mais duros e, ao longo de uma semana ou
duas, isso foi desgastando os homens. Todos os machos alfa nas operações
especiais querem ser os melhores em tudo o que fazem, mas comigo a
dirigir o treino físico nem sempre podiam ser os melhores. Porque eu nunca
lhes dava uma pausa. Estávamos todos a fraquejar e a mostrar debilidade. A
minha ideia era essa, mas eles não queriam ser desafiados dessa forma todos
os dias. Na segunda semana, houve uma queda nas presenças e fui chamado
pelo oficial de comando e pelo chefe do pelotão.
“Ouve lá, meu”, disse o oficial de comando, “isto é estúpido. O que é que
andamos a fazer?”
“Já não estamos nas BUD/S, Goggins”, disse o chefe.
Para mim, não se tratava de estar ou não nas BUD/S, mas de viver no
espírito dos SEAL e de merecer o tridente todos os dias. Estes tipos queriam
fazer o seu próprio treino físico, o que normalmente queria dizer ir ao
ginásio e aumentar a musculatura. Não estavam interessados em ser
castigados fisicamente – e não queriam de todo ser pressionados para atingir
os meus padrões. A reação deles não me devia ter surpreendido, mas
desapontou-me como o diabo e fez-me perder todo o respeito pela sua
liderança.
Eu percebia que nem todos quisessem fazer exercício físico como
animais durante o resto da carreira, porque eu também não queria essa
merda! Mas o que me separava de quase todos os outros nesse pelotão é que
eu não me permitia que o meu desejo de conforto me governasse. Estava
determinado a entrar em guerra comigo, para chegar a mais, porque
considerava que era nosso dever manter uma mentalidade BUD/S e testar-
nos todos os dias. Os SEAL são respeitados no mundo inteiro e
considerados os tipos mais duros que Deus criou, mas aquela conversa fez-
me perceber que isso nem sempre era verdade.
Eu tinha acabado de vir da Escola de Rangers, um lugar onde ninguém
tem patente. Até um general que estivesse no curso teria de vestir a mesma
roupa dos outros todos, a de um soldado raso no primeiro dia da maldita
formação. Éramos todos larvas renascidas, sem passado nem futuro, a
começar do zero. Eu adorava esse conceito, por enviar a mensagem de que,
fosse o que fosse que tivéssemos alcançado no mundo “lá fora”, ali dentro,
nos Rangers, não éramos porra nenhuma. E fiz meu esse princípio, porque é
verdadeiro e sempre será. Seja o que for que alcançarmos, no desporto, nos
negócios ou na vida, não podemos, nem eu nem você, dar-nos por
satisfeitos. A vida é um jogo demasiado dinâmico. Ou melhoramos ou
pioramos. Sim, é claro que precisamos de festejar as vitórias. A vitória
possui um poder transformador, mas depois dessa celebração devemos
baixar o tom, congeminar novos regimes de treino, imaginar novas metas e
começar do zero logo no dia seguinte. Eu todos os dias acordo como se
estivesse de volta ao primeiro dia da primeira semana das BUD/S.
Começar do zero é uma mentalidade que me diz que o meu frigorífico
não está cheio – nem nunca estará. Podemos sempre tornar-nos mais fortes
e mais ágeis, mental e fisicamente. Podemos sempre tornar-nos mais
capazes e fiáveis. Já que é assim, nunca devemos sentir que o nosso
trabalho está feito. Há sempre mais a fazer.
É um mergulhador experimentado? Ótimo, tire o equipamento, respire
fundo e torne-se um mergulhador capaz de descer a trinta metros em estilo
livre. É um atleta de triatlo de primeira? Excelente, aprenda a fazer
escalada. Está a ter uma carreira de tremendo sucesso? Maravilhoso,
aprenda um idioma novo ou uma nova competência. Obtenha um segundo
doutoramento. Esteja sempre disposto a aceitar a ignorância e a voltar a ser
o ignorante da aula, porque essa é a única maneira de expandir o seu corpo
de conhecimentos e o seu corpo de trabalho. É a única maneira de expandir
a sua mente.
Na segunda semana do meu segundo pelotão, o meu chefe e o oficial de
comando mostraram o seu jogo. Foi devastador ouvir que eles não
acreditavam que tivéssemos de ganhar o nosso estatuto todos os dias. Claro,
todos os tipos com que trabalhei ao longo dos anos eram duros e com
enormes capacidades. Gostavam dos desafios do trabalho, do espírito de
irmandade e de serem tratados como superestrelas. Todos adoravam ser um
SEAL, mas alguns não queriam começar do zero, porque já os satisfazia o
mero facto de terem o direito de respirar um ar diferente. Ora, esta é uma
maneira de pensar muito comum. A maior parte das pessoas só está disposta
a esforçar-se até certo ponto, se é que se esforça sequer. Assim que atingem
um planalto de conforto, relaxam e gozam as suas recompensas, mas há
outro termo para designar esta mentalidade: é ficar macio. E isso eu não
podia tolerar.
Pelo meu lado, eu tinha uma reputação a manter, e o meu ressentimento
aumentou quando o resto do pelotão optou por sair do meu programa
infernal, que eu talhara à medida para eles. Aumentei a dificuldade dos
treinos e fiz a promessa de me esforçar tanto que acabaria por ferir os
malditos sentimentos deles. Era qualquer coisa que não fazia parte da minha
descrição de trabalho como responsável pelo treino físico. A ideia era que
eu motivasse os rapazes para darem mais; em vez disso, vi o que
considerava ser uma fraqueza evidente – e mostrei-lhes que não me
impressionavam.
No espaço de uma curta semana, a minha liderança regrediu anos-luz em
relação ao ponto onde tinha chegado na Escola de Rangers. Perdi o contacto
com a minha consciência situacional e não respeitei o suficiente os homens
do meu pelotão. Como líder, tentei abrir caminho à força – e eles resistiram.
Ninguém, incluindo os oficiais, cedeu um centímetro. Suponho que todos
enveredámos pelo caminho do menor esforço. Mas não me dei conta,
porque fisicamente estava a esforçar-me como nunca.
E tinha um tipo ao meu lado. O Sledge era um cabrão rijo como tudo,
criado em San Bernardino, filho de um bombeiro e de uma secretária, e,
como eu, aprendera a nadar sozinho para passar no teste de natação e aceder
às provas BUD/S. Só era um ano mais velho do que eu, mas já ia no quarto
pelotão. Também bebia muito, tinha peso a mais e andava à procura de
mudar a sua vida. Logo no dia a seguir a eu ter trocado palavras azedas com
o chefe e o oficial de comando, o Sledge apareceu às cinco da manhã pronto
para começar a treinar. Eu tinha chegado às quatro e meia e já estava
alagado em suor.
“Gosto daquilo que fazes nos treinos e quero continuar com eles”, disse-
me.
“Entendido.”
A partir de então, onde quer que estivéssemos estacionados, fosse em
Coronado, em Niland ou no Iraque, todas as manhãs nos lançávamos ao
treino com um empenho máximo. Levantávamo-nos às quatro e lá íamos.
Às vezes, isso queria dizer subir a correr uma encosta de montanha antes de
entrarmos a alta velocidade na pista de obstáculos, levarmos troncos aos
ombros pela berma da estrada e até à praia. Na instrução BUD/S, em geral,
os troncos são carregados por seis homens. Nós fazíamos isso, mas só os
dois. Noutro dia, realizávamos flexões em pirâmide, isto é, a começar em
séries de um e a acabar em vinte, e depois regressando a um. Entre séries,
subíamos a uma corda com 12 metros de altura. Mil flexões antes do
pequeno-almoço tornou-se o novo mantra. Ao princípio, o Sledge tinha
dificuldade em fazer uma série de dez. Ao fim de dez meses, tinha perdido
16 quilos e fazia cem séries de dez.
No Iraque, era impossível sair para percursos longos, por isso vivíamos
na sala de levantamento de pesos. Fazíamos centenas de levantamentos
mortos e treinávamos nas máquinas. Fomos muito para lá do que podia ser
considerado excessivo. Não nos importávamos com a fadiga muscular nem
com ter um colapso, porque a partir de certo ponto estávamos a treinar a
mente e não o corpo. O objetivo dos treinos que eu concebia não era tornar-
nos mais rápidos a correr ou os tipos mais fortes da missão. Era para
podermos suportar a tortura, estarmos à vontade em ambientes de um
desconforto extraordinário. E, às vezes, as coisas eram desconfortáveis
como a merda.
Apesar da clara divisão no pelotão (o Sledge e eu contra os outros todos),
no Iraque funcionámos bem em conjunto. Mas, se não estávamos de
serviço, notava-se a cisão profunda entre quem nós os dois nos estávamos a
tornar e quem eu pensava que os homens do meu pelotão eram – e a minha
desilusão era notória. Eu ostentava essa minha atitude de merda como se
fosse uma bandeira – o que me valeu a alcunha de David “Deixa-me em
paz” Goggins; nunca despertei para a realidade de que a minha desilusão era
um problema meu. Não era culpa dos meus companheiros.
Deixando de lado a dinâmica entre o pelotão, ainda
havia trabalho a fazer no Iraque
Essa é a desvantagem de ser invulgar entre os invulgares: podes levar-te
a um lugar que fica para lá da capacidade ou da mentalidade presente das
pessoas com quem se trabalha – e isso não tem mal. Mas é preciso saber
que essa suposta superioridade é um produto do próprio ego. Por isso, não
há que mostrar superioridade em relação aos outros, porque isso não
favorecerá nem o progresso da equipa nem o próprio avanço como
individuo. Em vez de se enfurecer por os seus colegas não conseguirem
acompanhá-lo, ajude-os a erguerem-se e leve-os consigo!
Todos travamos a mesma batalha. Todos estamos divididos entre
comodismo e rendimento, entre o conformismo com a mediocridade e a
disponibilidade para sofrer de modo a tornarmo-nos a nossa melhor versão
– e isso acontece sempre, em todo o maldito tempo. Tomamos este género
de decisões uma dezena de vezes ao dia ou mais. O meu trabalho, como
responsável pelo treino físico, não era exigir que os meus homens vivessem
de acordo com a lenda dos SEAL que eu adorava, era ajudá-los a tornarem-
se a melhor versão de si mesmos. Mas eu nunca os escutei – e nunca liderei.
Em vez disso, irritei-me e apontei o dedo aos meus companheiros. Durante
dois anos, fiz o papel do duro e nunca recuei, de cabeça fria, para avaliar o
meu erro original. Tive inúmeras ocasiões para cruzar essa ponte que tinha
ajudado a criar, mas nunca o fiz, e isso teve um preço.
Não percebi imediatamente nada disso, porque a seguir ao segundo
pelotão ordenaram-me que fosse para a escola de queda livre e depois
nomearam-me instrutor de assalto. Eram ambos destacamentos
programados, no âmbito da minha preparação para a Equipa Verde. Os
assaltos eram uma área crítica. A verdade é que a maioria dos eliminados da
Equipa Verde é afastada por descurar pormenores em operações de tomada
de casas. Ou seja, em operações de limpeza de edifícios movem-se
demasiado devagar e ficam muito expostos, ou então andam apressados,
carregam no gatilho com facilidade excessiva e acabam por atingir alvos
amigos. Ensinar essas movimentações e capacidades tornou-me frio,
silencioso e calmo em ambientes fechados e, todos os dias, esperava receber
uma ordem para ir treinar com o DEVGRU, em Dam Neck, na Virgínia – só
que esse dia nunca chegou. Os outros dois tipos que tinham realizado
comigo os exercícios de seleção receberam as ordens para se apresentarem.
A minha ausentou-se sem permissão.
Telefonei para os comandantes de Dam Neck. Disseram-me para voltar a
submeter-me ao processo de seleção – e foi aí que soube que qualquer coisa
não estava bem. Pensei no processo pelo qual tinha passado. Podia tê-lo
feito melhor? Eu despachei aquela merda em três tempos… Mas depois
lembrei-me da entrevista em si, que mais parecera um interrogatório, com
dois tipos a fazerem os papéis de polícia bom e polícia mau. Não quiseram
saber nada sobre as minhas capacidades ou os meus conhecimentos da
Marinha. Uns 85 por cento das perguntas que me fizeram não estavam
relacionadas com a minha capacidade operacional. O essencial da entrevista
foi sobre a minha origem étnica.
“Nós aqui somos pessoal da velha guarda”, disse um, “e precisamos de
saber como é que te vais aguentar a ouvir piadas de negros, mano.”
A maior parte das perguntas foi uma variação sobre esse tema e eu sorri o
tempo todo, a pensar Como é que vocês brancos se vão sentir ao verem que
eu sou o filho da mãe mais cabrão que vão ter por aqui? Mas não lhes disse
nada disso, e não foi por me sentir intimidado ou incomodado. Nessa
entrevista, senti-me mais à vontade do que nunca na tropa, porque, pela
primeira vez, estavam a ser diretos. Não faziam de conta que ser um de
apenas uma mão cheia de tipos negros naquela que é talvez a mais
respeitada organização militar do mundo não implicava desafios muito
específicos. Um dos entrevistadores desafiava-me com a agressividade da
atitude e do tom e o outro mantinha-se frio, mas eram os dois autênticos. Já
havia no DEVGRU dois ou três negros e diziam-me desde logo que entrar
no círculo interior exigia que eu abdicasse de certos termos e condições. E,
de uma forma doentia, eu adorava essa mensagem e o desafio que ela
implicava.
O DEVGRU era uma divisão dura e autónoma dentro dos SEAL – e eles
queriam que se mantivesse assim. Não queriam civilizar ninguém. Não
queriam evoluir nem mudar, e eu sabia perfeitamente onde estava e para
onde ia. Este grupo era responsável pelas missões mais perigosas, era a
ponta da lança. Era um mundo subterrâneo de homens brancos e estes tipos
precisavam de saber como me comportaria se alguém começasse a lixar-me
a cabeça. Precisavam de garantias de que eu conseguia controlar as
emoções. Assim que percebi o propósito maior, para lá das suas palavras, o
comportamento deles não podia ofender-me.
“Olhem, eu tenho sentido racismo toda a vida”, respondi, “e não há nada
que filhos da puta como vocês possam dizer-me que eu já não tenha ouvido
vinte vezes, mas estejam preparados. Porque eu vou responder de volta!”
Naquele momento, pareceram gostar do que ouviram. O problema é que, se
é um tipo negro a responder, as coisas em geral não correm assim tão bem.
Nunca saberei porque não recebi a ordem para ingressar na Equipa
Verde. E não importa. Não podemos controlar todas as variáveis da nossa
vida. O que determina como uma história acaba é aquilo que fazemos com
as oportunidades anuladas ou que nos são apresentadas. Eu, em vez de
pensar Se consegui limpar o processo de seleção uma vez, posso fazê-lo de
novo, decidi começar do zero e tentar as provas de seleção para a Força
Delta – a versão do Exército do DEVGRU.
A seleção para a Delta é rigorosa e a natureza meio secreta do grupo
sempre me intrigara. Ao contrário dos SEAL, nunca se ouve falar da Delta.
O processo de seleção inclui um teste de QI, a necessidade de um currículo
militar completo que as minhas qualificações e experiência em combate
preenchiam e as minhas avaliações. Consegui reunir tudo isso em poucos
dias, sabendo que competia com os melhores de cada ramo das forças
armadas e que só é convidada a nata da nata. A ordem para me apresentar na
Delta chegou em poucas semanas. Não muito tempo depois, cheguei às
montanhas da Virgínia Ocidental para competir por um lugar entre os
melhores soldados do exército.
Curiosamente, no vácuo Delta não havia gritos e berros. Não houve
passagem em revista nem oficial de comando. Os homens que apareceram
eram todos autodidatas e as ordens eram apontadas a giz num quadro na
camarata. Não nos autorizaram a sair do complexo durante três dias. O foco
era descansar e ambientarmo-nos, mas ao quarto dia, começou o treino
físico com uma prova de seleção básica, que incluía dois minutos de
flexões, dois de abdominais e uma corrida cronometrada de três
quilómetros. A expetativa é que todos apresentassem resultados mínimos – e
os que não conseguiram foram logo mandados para casa. A partir daí, as
coisas tornaram-se imediatamente e progressivamente mais difíceis. Na
verdade, logo nessa noite, tivemos a primeira caminhada em estrada. Como
tudo o que acontecia na Força Delta, a distância é oficialmente
desconhecida, mas creio que foi um percurso de uns trinta quilómetros.
Estava frio e muito escuro quando saímos, carregados com mochilas de
cerca de vinte quilos. Éramos 160, e a maior parte começou em marcha
lenta, contentando-se com um ritmo de caminhada. Eu saí em passo forte e,
ao fim de quatrocentos metros, já todos estavam para trás. Vi aqui uma
oportunidade para ser invulgar e aproveitei-a; acabei cerca de meia hora
antes dos outros.
A seleção para a Delta Team é o melhor curso de orientação do mundo.
Nos dez dias seguintes, fizemos treino físico de manhã e dedicámo-nos até à
noite a aperfeiçoar capacidades avançadas de orientação em terra.
Ensinaram-nos a ir de A a B lendo o terreno, em vez de ver as estradas e
linhas férreas assinaladas num mapa. Aprendemos a ler sinais de dedos e
cortes em árvores e que, uma vez chegados a um ponto elevado é nessa cota
que há que ficar. Ensinaram-nos a seguir a água. Quando se começa a ler o
terreno desta maneira, o mapa torna-se vivo e, pela primeira vez na vida,
tornei-me muito bom em orientação. Aprendemos a avaliar distâncias e a
desenhar os nossos próprios mapas topográficos. Ao princípio, atribuíram-
nos um instrutor, que devíamos seguir pela floresta, e eles andavam
depressa como tudo. Nas semanas seguintes, estivemos sozinhos.
Tecnicamente, ainda estávamos a treinar, mas observavam-nos e avaliavam-
nos para garantir que íamos a corta-mato e não metíamos por estradas.
Tudo culminou com um prolongado exame final, no terreno, que podia
durar sete dias e sete noites, se nós resistíssemos tanto. Não era um trabalho
de equipa. Cada um estava entregue a si próprio para usar mapa e bússola
para ir de um ponto ao outro. Em cada paragem, havia um Humvee e os
quadros (os instrutores e avaliadores) que lá estavam tomavam nota dos
tempos e davam-nos as coordenadas seguintes. Cada dia encerrava um
desafio muito próprio e nunca sabíamos quantos pontos teríamos de
encontrar antes de o teste ficar concluído. Além disso, havia um limite de
tempo desconhecido, que só os orientadores sabiam. Na linha de meta não
nos diziam se tínhamos passado ou chumbado. Encaminhavam-nos para um
de dois Humvee cobertos. Havia um veículo bom, que nos levava ao
acampamento seguinte, e um mau, que regressava à base, onde devíamos
fazer as malas e voltar para casa. Na maior parte das vezes, eu não sabia se
tinha conseguido ou não até o camião parar.
Pelo quinto dia, eu era um dos cerca de trinta tipos que continuavam na
seleção para a Força Delta. Faltavam só três dias e eu arrasava em todas as
provas, chegando pelo menos uma hora e meia antes do tempo limite. O
teste final seria um percurso lixado de sessenta quilómetros com orientação
pelo terreno e eu ansiava por esse momento, mas era preciso trabalhar.
Chapinhei pela água, subi a correr encostas cheias de árvores e deambulei
pelo topo de montanhas, ponto a ponto, até que aconteceu o impensável.
Perdi-me. Estava no cimo da montanha errada. Voltei a verificar o mapa e a
bússola e olhei para o outro lado de um vale, para o cimo da montanha
correto, que estava a sul.
Entendido!
Pela primeira vez, o tempo tornou-se um fator. Eu não sabia qual era a
hora-limite, mas tinha a certeza de que me restava pouco tempo, por isso fiz
um sprint a descer uma ravina íngreme. Perdi o equilíbrio. O meu pé
esquerdo ficou preso entre duas pedras, rodei sobre o tornozelo e senti-o
estalar. A dor foi imediata. Olhei para o relógio, cerrei os dentes e apertei a
bota com toda a força o mais depressa que consegui, subindo a coxear uma
encosta empinada até ao ponto zero.
No troço final até à meta, o tornozelo inchou tanto que tive de desapertar
a bota para aliviar a dor. Movi-me devagar, convencido de que iam mandar-
me para casa. Enganei-me. O meu Humvee largou-nos no penúltimo
acampamento-base da Seleção Delta, onde estive toda a noite com gelo no
tornozelo, sabendo que, por causa da lesão, o teste de orientação do dia
seguinte estaria provavelmente fora das minhas capacidades. Mas não
desisti. Apresentei-me, lutei para me manter no grupo, mas falhei o tempo
num dos primeiros postos de controlo e foi o suficiente. Não desanimei,
porque as lesões acontecem. Tinha dado tudo e, quando é assim, o esforço
não passa despercebido.
Os quadros da Delta são como robôs. Ao longo das provas de seleção
nunca mostraram qualquer proximidade pessoal, mas quando me preparava
para abandonar o complexo, um dos oficiais chamou-me ao gabinete.
“Goggins”, disse-me, estendendo a mão, “és um atleta! Queremos que
recuperes, regresses e voltes a tentar. Acreditamos que, um dia, serás uma
grande aquisição para a Força Delta.”
“Um dia”. Mas quando? Voltei a mim da segunda operação ao coração
por entre uma nuvem da anestesia. Olhei por cima do ombro direito e vi um
saco intravenoso cujo tubo vinha até às minhas veias. Estava ligado ao
cérebro médico. Monitores cardíacos apitavam e registavam dados para
contar uma história numa língua que ficava para lá do meu entendimento.
Se ao menos fosse fluente, talvez soubesse se o meu coração estava
finalmente inteiro, se haveria esse “um dia”. Coloquei a mão sobre o
coração, fechei os olhos e escutei, em busca de sinais.
Depois de deixar a Delta, voltei às equipas SEAL e colocaram-me na
guerra terrestre como instrutor, em vez de combatente. Ao princípio, a
minha moral foi-se abaixo. Havia homens sem os meus conhecimentos, o
meu empenho e as minhas capacidades atléticas a combater no terreno, em
dois países, e eu estava atascado numa terra de ninguém a perguntar como é
que tudo se tinha perdido tão depressa. Senti que tinha embatido num teto
de vidro, mas será que ele tinha sempre lá estado ou fora eu a colocá-lo? A
verdade encontrava-se algures no meio.
No tempo em que vivi em Brazil, Indiana, percebi que há preconceito em
toda a parte – há um pouco em todas as pessoas e em todas as instituições.
Quando se é o único numa dada situação, a decisão de como a gerir é nossa,
porque não é possível fazer desaparecer o preconceito. Durante anos,
utilizei-o como combustível, porque há muito poder em ser o único. Obriga-
nos a aproveitar a totalidade dos recursos que temos e a acreditar em nós
face a um escrutínio injusto. Aumenta o grau de dificuldade, o que torna
cada êxito muito mais doce. É por isso que eu me colocava continuamente
em situações onde sabia que o encontraria. Alimentei-me de ser o único
numa sala. Entrei em guerra com as pessoas e vi como a minha excelência
fazia explodir mentes pequenas. Não me sentei a chorar por ser o único.
Passei à ação, mandei-os pastar e usei todo o preconceito que sentia como
se fosse dinamite para rebentar essas paredes.
Mas este tipo de matéria-prima só nos leva até certo ponto. Eu era uma
pessoa tão conflituosa que, pelo caminho, fui fazendo inimigos
desnecessários e acredito que foi isso que limitou o meu acesso às equipas
de topo dos SEAL. Com a minha carreira numa encruzilhada, não tinha
tempo para pensar nesses erros. Precisava de encontrar um patamar mais
elevado e de transformar o negativo que tinha criado em qualquer coisa
positiva. Não me limitei a aceitar o trabalho de instrutor de guerra terrestre.
Fui o melhor instrutor que podia ser e, no meu tempo livre, criei novas
oportunidades para mim ao lançar a minha missão ultra, que reanimou a
minha carreira estagnada. Voltei a estar no bom caminho, até saber que
tinha nascido com um coração partido.
Mas isso tinha igualmente um lado positivo. Depois da operação, deitado
na cama do hospital, com a sensação de estar a adormecer e a acordar, as
conversas entre os médicos, enfermeiros, a minha mulher e a minha mãe
misturaram-se umas com as outras, como ruído branco. Não faziam ideia de
que estive acordado o tempo todo, a ouvir os batimentos do meu coração
ferido e a sorrir interiormente. Sabia que tinha finalmente uma prova
definitiva e científica de que era tão invulgar como o cabrão mais invulgar
que já tivesse vivido.
DESAFIO #9
Este é para os cabrões invulgares que há neste mundo. Muitos pensam que,
assim que atingem um certo grau de estatuto, respeito ou êxito, já fizeram
tudo na vida. Eu quero dizer-vos que é preciso ir sempre à procura de mais.
A grandeza não é uma coisa que se consegue uma vez e fica connosco para
sempre. É uma merda que se evapora como azeite numa frigideira quente.
Quem quer realmente ser invulgar entre invulgares vai ter de manter essa
grandeza durante um longo período. Isso exige uma busca constante e um
esforço interminável. Pode soar atrativo, mas exigirá tudo o que houver para
dar – e mais outro tanto. Acredite: isto não é para todos, porque exigirá uma
concentração singular e pode perturbar o equilíbrio da sua vida.
É isso que é necessário para se tornar um verdadeiro caçador de
objetivos, e se já está rodeado de pessoas que são as melhores na sua área, o
que é que vai fazer de diferente para se destacar? É fácil sobressair entre as
pessoas comuns, ser um peixe graúdo num lago pequeno. É muito mais
difícil consegui-lo se estivermos rodeados por lobos.
Isto significa não só entrar na Wharton Business School, mas ser o
número um da turma. Não significa apenas concluir as provas BUD/S, mas
ganhar o diploma de Aliado de Honra na Escola de Rangers do Exército e
depois ir correr a Badwater.
Reduza a cinzas a complacência que sente formar-se à sua volta, à volta
dos seus colegas de trabalho e companheiros nesse patamar de excelência.
Continue a colocar obstáculos à sua frente, porque é aí que encontrará o
atrito que o ajudará a ficar ainda mais forte. Antes de dar conta, estará
sozinho, destacado.
#canthurtme #uncommonamongstuncommon.
CAPÍTULO DEZ

COMO OS ERROS DÃO PODER


Em 27 de setembro de 2012, encontrava-me num ginásio improvisado, no
segundo andar do Rockefeller Center 30, preparado para bater o recorde
mundial de elevações em barra fixa num período de 24 horas. Pelo menos o
plano era esse. A apresentadora Savannah Guthrie estava lá, com um
funcionário do Livro Guinness de Recordes do Mundo e com Matt Lauer
(sim, esse grande sacana)1. Uma vez mais, o meu objetivo era angariar
dinheiro – desta vez, tratava-se de muito dinheiro – para a Fundação de
Guerreiros das Operações Especiais, mas também queria o recorde. Para o
conseguir, teria de atuar sob os holofotes do programa de televisão Today
Show.
Na minha cabeça, tinha um número: 4200 elevações. Parece coisa de
super-homem, certo? A mim também parecia, até que me pus a fazer contas
e percebi que chegaria lá se conseguisse fazer seis elevações por minuto,
todos os minutos, durante 24 horas. São sensivelmente dez segundos de
esforço e cinquenta segundos de descanso em cada minuto. Não seria fácil,
mas pensei que seria exequível dado o trabalho que tinha feito nesse
sentido. Nos últimos cinco a seis meses, realizara mais de quarenta mil
elevações e entusiasmava-me estar à beira de mais um enorme desafio.
Precisava disto depois de todos os altos e baixos por que passara a seguir à
segunda operação ao coração.
A boa notícia é que a cirurgia resultou. Pela primeira vez na vida, tinha
um músculo cardíaco a funcionar plenamente e não me apressei para correr
ou andar de bicicleta. Fui paciente com a minha recuperação. De qualquer
modo, a Marinha não me autorizaria a participar em operações e, para
continuar nos SEAL, tinha de aceitar um posto que não envolvia
destacamentos nem combate. O almirante Winters manteve-me mais dois
anos em funções de recrutamento e eu continuei em digressão, a partilhar a
minha história com quem se dispunha a ouvir-me, trabalhando para
conquistar corações e mentes. Mas o que eu queria mesmo fazer era aquilo
para que tinha sido treinado – e isso era combater! Procurei curar essa ferida
com algumas idas ao campo de tiro, mas atirar sobre alvos só me fazia
sentir pior.
Em 2011, depois de estar em funções de recrutamento há mais de quatro
anos e de passar dois e meio na lista de incapacitados por causa dos meus
problemas cardíacos, recebi finalmente autorização do médico para
desempenhar funções operacionais. O almirante Winters propôs-se enviar-
me para onde eu quisesse. Ele conhecia os sacrifícios que eu fizera e os
meus sonhos e eu disse-lhe que tinha uma questão por resolver com a Força
Delta. Ele assinou-me os papéis e, ao fim de uma espera de cinco anos,
chegou então esse “um dia”.
Uma vez mais, fui para os Apalaches para realizar as provas de seleção
Delta. Em 2006, depois de ter concluído com facilidade o percurso de trinta
quilómetros com carga no primeiro dia de trabalho a sério, ouvi algumas
reações bem-intencionadas de alguns dos outros tipos que estavam muito
atentos à central de boatos. Na Seleção Delta, tudo é um segredo. Sim, há
tarefas e treinos bem claros, mas ninguém diz qual será a duração dessas
tarefas (até os tais trinta quilómetros com peso eram uma estimativa feita na
minha cabeça e baseada na minha experiência), e só os quadros conhecem
os critérios de avaliação dos candidatos. Ora, segundo a central de boatos,
eles usam esse primeiro teste com carga para calcular a duração de cada
tarefa de orientação. Isto é, quem der tudo vai diminuir a sua própria
margem de erro. Desta vez, possuía essa informação antes de começar e
podia ter feito as coisas pelo seguro e ir com mais calma, mas não
tencionava estar ali, entre aqueles grandes homens, e contentar-me com
meios esforços. Esforcei-me ainda mais para garantir que lhes mostrava o
melhor de mim e bati o meu próprio recorde do percurso em nove minutos
(isto de acordo com a tal central de boatos fiável).

1 O apresentador do Today Show foi afastado em 2017, ao fim de 11


anos, acusado de comportamento sexual impróprio. (N. do T.)
Pelo meu trabalho de recrutamento, recebi a Medalha
por Serviço Meritório
Eleito Marinheiro do Trimestre (janeiro a março), em
2010
Em vez de ouvirem de mim o relato, pedi a um dos tipos que estava
comigo na Seleção Delta que fizesse a descrição de como correu esse
percurso com carga. Isto foi o que ele disse:
Antes de falar sobre a marcha por estrada,
tenho de dar um pouco de contexto sobre os dias
que a antecederam. Quando nos apresentamos na
Seleção, não fazemos ideia do que esperar,
todos ouvem histórias, mas não há uma noção
completa daquilo por que se vai passar… Lembro-
me de chegar ao aeroporto e estar à espera de
um autocarro e de estarmos todos ali a
conversar e a dizer disparates. Para muitas
pessoas, é uma reunião de amigos que não vemos
há anos. É também aí que se começam a medir os
outros. Lembro-me de que, enquanto a maioria
conversava ou descansava, havia uma pessoa
sentada na sua mala, com um olhar intenso.
Descobriria mais tarde que essa pessoa era o
David Goggins, e era possível dizer desde o
início que ele era um dos tipos que aguentaria
até ao fim. Como sou corredor, reconheci-o, mas
só ao fim dos primeiros dias é que associei o
rosto ao nome.
Há várias provas que sabes que tens de fazer
só para começar o curso; uma delas é a marcha
por estrada. Sem especificar distâncias, sabia
que ia ser bastante longa, mas sentia-me à
vontade para correr a maior parte dela. Cheguei
à Seleção depois de estar nas Forças Especiais
durante a maior parte da carreira e era raro
alguém acabar à minha frente numa marcha por
estrada. Sentia-me à vontade com uma mochila às
costas. Ao princípio, fazia um pouco de frio e
estava muito escuro. No arranque, fiquei onde
gostava de estar: à frente. Ainda nos primeiros
quatrocentos metros, um tipo passou por mim a
voar e pensei: “É impossível ele conseguir
manter este ritmo.” Mas continuei a ver a luz
da lanterna que ele levava na cabeça a afastar-
se; imaginei que o apanharia daí a uns
quilómetros, quando o percurso o esgotasse.
Este percurso de marcha por estrada tem a
reputação de ser brutal; havia uma colina que
era tão íngreme que, ao subi-la, quase tocava
com as mãos no chão. Nessa fase, só havia um
tipo à minha frente e vi pegadas que eram duas
vezes maiores do que o comprimento da minha
passada. Fiquei espantado e pensei exatamente
isto: “Isto é a merda mais louca que já vi;
este gajo correu por esta encosta acima.” Nas
duas horas seguintes, fiquei à espera de dar
uma curva e de o encontrar caído a um lado da
estrada, mas isso nunca aconteceu. Quando
acabei, estava a arrumar o meu equipamento e vi
o David descontraído. Já tinha terminado há um
bom bocado. Embora a Seleção seja uma prova
individual, ele foi o primeiro a saudar-me,
batendo as mãos e dizendo “Bom trabalho”.
T, email datado de 25 de junho de 2018
A impressão deixada por essa performance espalhou-se para além dos
tipos da minha classe na Seleção. O Hank, outro SEAL, contou-me, ainda
há pouco tempo, que alguns militares do Exército com quem esteve numa
missão ainda falavam desse percurso, quase como se fosse um mito urbano.
A partir desse ponto, continuei a arrasar na Seleção Delta; era sempre o
primeiro da turma ou andava lá perto. As minhas capacidades de orientação
no terreno estavam melhores do que nunca, mas isso não significa que fosse
fácil. Era proibido seguir por estradas, não havia solo plano, e andávamos
durante dias por entre árvores e arbustos, para cima e para baixo em
encostas íngremes, sob temperaturas abaixo de zero, a chegar a pontos de
referência, a ler mapas e a passar por inúmeros picos, ravinas e desfiladeiros
que pareciam todos iguais. Atravessámos matagais espessos e bancos de
neve profundo, cruzámos riachos quase gelados e corremos em slalom entre
os esqueletos invernais de árvores enormes. Era doloroso, desafiante e lindo
para cacete – e eu devorava todos os percursos, arrasando todos os testes
que eles pudessem imaginar.
No penúltimo dia da Seleção Delta, encontrei os primeiros quatro pontos
de referência com a rapidez do costume. Na maior parte dos dias, os pontos
eram cinco, por isso estava mais do que confiante ao receber as coordenadas
do quinto. Na minha cabeça, era uma espécie de Daniel Boone negro. Tracei
a rota e desci calmamente outra encosta íngreme. Uma maneira de nos
orientarmos em terreno desconhecido é seguir os cabos de eletricidade e vi
que um deles, à distância, levava diretamente ao quinto e último ponto de
referência. Apressei-me pela descida, segui os cabos, desliguei a minha
mente consciente e comecei a sonhar com o que viria a seguir. Sabia que ia
estar perfeitamente à vontade no exame final – o percurso de orientação de
65 quilómetros que, da última vez, nem tinha tentado, por ter torcido o
tornozelo dois dias antes. Para mim, a formatura estava garantida – e a
seguir estaria de novo a correr e a disparar numa unidade de elite. À medida
que ia visualizando esse momento, ele ia-se tornando mais real, e a minha
imaginação levou-me para longe dos Montes Apalaches.
O problema de seguir as linhas de abastecimento de energia é que é
melhor ter a certeza de que se está a seguir a maldita da linha certa! Na
instrução, aprendera que devia estar constantemente a verificar o mapa,
para, no caso de um engano, poder fazer um ajustamento e seguir na direção
certa sem perder muito tempo. Mas a minha confiança era tão grande que
me esqueci de fazer isso – e também não assinalei pontos de referência.
Quando acordei da terra da fantasia, estava muito longe de onde queria – e
quase fora dos limites da prova!
Entrei em modo pânico, descobri no mapa onde me encontrava, tracei
um percurso até ao cabo de energia certo, corri a toda a velocidade até ao
cimo da montanha e continuei nesse ritmo até ao quinto ponto. Ainda tinha
noventa minutos até se escoar o tempo, mas ao aproximar-me do Humvee
seguinte, vi outro tipo a vir na minha direção!
“Para onde é que vais?”, perguntei ao passar por ele.
“Vou para o meu sexto ponto”, respondeu.
“Merda, então hoje não são cinco pontos?!”
“Não, mano, hoje são seis.”
Olhei para o relógio. Tinha um pouco mais de quarenta minutos antes de
o tempo expirar. Cheguei ao Humvee, tomei nota das coordenadas do ponto
de controlo seis e estudei o mapa. Por causa do meu maldito engano, tinha
duas opções claras: ou jogava segundo as regras e falhava o tempo de
chegada ou ignorava as regras, usava as estradas à minha disposição e tinha
uma hipótese. A única coisa a meu favor é que nas operações especiais se dá
valor a um atirador que pensa, a um soldado disposto a fazer o que é preciso
para concretizar um objetivo. Só podia esperar que tivessem piedade de
mim. Calculei a melhor rota possível e saí disparado. Contornei os bosques,
usei estradas e, sempre que ouvia um camião a roncar por perto, escondia-
me. Meia hora depois, no cimo de mais uma montanha, divisei o sexto
ponto, a linha da meta. O meu relógio dizia-me que tinha cinco minutos.
Voei pela encosta abaixo, a toda a velocidade e cheguei um minuto antes
do tempo limite. Ainda recuperava o fôlego quando nos dividiram por dois
Humvee cobertos. À primeira vista, os tipos que iam comigo pareciam
bastante calmos, mas tendo em conta a hora e o local em que eu recebera as
indicações para chegar ao sexto ponto, não havia maneira de os instrutores
não saberem que eu tinha contornado o protocolo. Não sabia o que pensar.
Ainda estava dentro ou já estava fora?
Na Seleção Delta, uma maneira de ter a certeza de que se está fora é
quando, ao fim do dia, se sentem na estrada lombas redutoras de velocidade.
Isso significa que se está de regresso à base e se vai para casa mais cedo.
Nesse dia, ao sentirmos a primeira lomba, que nos arrancou às nossas
esperanças e sonhos, alguns tipos começaram a praguejar e outros ficaram
com lágrimas nos olhos. Eu só abanava a cabeça.
“Goggins, que raio é que estás a fazer aqui?”, perguntou-me um tipo.
Ficou chocado por me ver ao seu lado, mas eu estava resignado à minha
realidade, porque me tinha posto a sonhar que acabava o curso e entrava na
Força Delta quando nem sequer tinha concluído ainda a Seleção!
“Não fiz o que me disseram”, respondi. “Mereço que me mandem para a
puta da minha casa.”
“Tá calado! Tu és um dos melhores. Estão a cometer um grande erro.”
Apreciei a indignação dele. Eu também esperava ter chegado ao fim, mas
não havia maneira de contestar a decisão que tinham tomado. Os chefes da
Delta não procuravam homens que passassem com uma nota má, medíocre
ou sequer suficiente. Só aceitavam alunos de Muito Bom e mandavam-nos
fazer as malas quando lixávamos tudo e conseguíamos um resultado inferior
às nossas capacidades. Afinal, se no campo de batalha um gajo se põe a
sonhar acordado, isso pode custar-lhe a vida – e custar a vida a
companheiros de armas. Eu percebia.
“Não. O erro foi meu”, disse. “Cheguei até aqui por estar focado e a dar
o melhor e, agora, vou para casa porque perdi esse foco.”
***
Era o momento de voltar a ser um SEAL. Nos dois anos seguintes, a
minha base foi Honolulu, integrado numa unidade de transportes
clandestina designada SDV (iniciais em inglês de Seal Delivery
Vehicles/Veículos de Entrega dos SEAL). A Operação Asas Vermelhas é a
missão mais conhecida da unidade SDV e só se ouviu falar dela porque foi
uma notícia importante. A maior parte do trabalho da SDV acontece na
sombra, bem longe dos olhares. Eu encaixei bem na unidade e foi excelente
voltar a ser operacional. Vivia na ilha de Ford e a janela da sala de estar
dava mesmo para Pearl Harbor. A Kate e eu tínhamo-nos separado, por isso
agora fazia realmente um estilo de vida espartano e ainda acordava às cinco
da manhã para ir a correr para o trabalho. Tinha dois percursos, um de 12
quilómetros e outro de 16, mas fosse qual fosse que seguisse, o meu corpo
não reagia muito bem. Ao fim de poucos quilómetros, sentia uma dor
intensa no pescoço e tinha tonturas. Por diversas vezes, durante essas
saídas, tive de me sentar por causa de vertigens.
Há anos que alimentava a suspeita de que todos temos um limite aos
quilómetros que conseguimos correr antes de sofrer um colapso total do
corpo – e pensei se esse momento não estaria a aproximar-se. Nunca tinha
sentido o corpo tão tenso. No final da instrução BUD/S, reparei pela
primeira vez que tinha um nó na base do crânio. Uma década depois, ele
tinha o dobro do tamanho. Também tinha nós por cima dos músculos
flexores das ancas. Fui ao médico para um exame completo, mas nem
sequer eram tumores – e muito menos malignos. Quando os médicos
descartaram um perigo de morte, percebi que teria de viver com eles e
esquecer por um tempo as corridas de longa distância.
Se nos tiram uma atividade ou um exercício em que sempre nos
refugiámos, como era para mim a corrida, é fácil cair na rotina mental e
deixar de fazer qualquer tipo de exercício, mas eu não tinha a mentalidade
de um desistente. Orientei-me para a barra e comecei a replicar os treinos
que costumava fazer com o Sledge. Era um exercício que me permitia puxar
pelo corpo e não me causava tonturas, porque podia fazer pausas entre
séries. Ao fim de um tempo, fiz uma busca no Google para ver se havia
algum recorde de exercícios em barra que estivesse ao alcance. Foi então
que li sobre os muitos recordes de Stephen Hyland, incluindo o recorde de
420 elevações em 24 horas.
Eu era conhecido como corredor de provas ultra – e não queria ser
conhecido só por uma coisa. Alguém quer? Ninguém me considerava um
atleta completo e este recorde poderia mudar essa perspetiva. Quantas
pessoas conseguem correr 160, 240, 320 quilómetros até, e também fazer
mais de quatro mil elevações em barra num dia? Contactei a Fundação de
Guerreiros de Operações Especiais e perguntei-lhes se podia ajudar a
angariar algum dinheiro. Ficaram encantados e, quase logo a seguir, um
contacto meu usou as suas ligações para me levar ao maldito Today Show.
Na preparação para a tentativa, fazia quatrocentas elevações por dia
durante a semana, o que me demorava cerca de setenta minutos. Ao sábado
fazia 1500, em séries de cinco a dez, ao longo de três horas, e aos domingos
reduzia para 750. Todo esse trabalho fortaleceu-me os músculos dorsais,
tríceps, bíceps e as costas, preparou as articulações dos ombros e cotovelos
para suportar uma punição extrema, ajudou-me a desenvolver uma
capacidade de agarrar a barra digna de um gorila e aumentou a minha
tolerância ao ácido lático para que os meus músculos continuassem a
funcionar muito depois de os ter carregado em excesso. À medida que o dia
decisivo se aproximava, encurtei os períodos de recuperação e comecei a
fazer cinco elevações a cada trinta segundos durante duas horas. A seguir, os
meus braços caíam ao lado do corpo, flácidos como tiras de borrachas
demasiado esticadas.
Na véspera da tentativa de recorde, a minha mãe e o meu tio viajaram de
avião para Nova Iorque para me servirem de equipa de apoio e tínhamos
tudo pronto, até que à última hora os SEAL quase inviabilizaram a minha
presença no Today Show. Tinha acabado de sair o livro No Easy Day, um
relato em primeira mão sobre a operação que apanhou Osama Bin Laden.
Foi escrito por um dos operacionais da unidade do DEVGRU que realizara
a missão, e os chefes da Guerra Naval Espacial não estavam nada contentes.
Por princípio, os elementos das Operações Especiais não devem partilhar
com o público pormenores do seu trabalho no terreno, e houve muitas
pessoas nas Equipas dos SEAL que levaram a mal o livro. Eu recebi uma
ordem direta para cancelar a presença na televisão, o que não fazia sentido.
Eu não ia falar sobre operações nem ia numa missão de autopromoção.
Queria angariar um milhão de dólares para as famílias dos companheiros
caídos e o Today Show era o maior programa televisivo da manhã.
Eu já levava quase vinte anos de serviço militar, sem uma única infração
no registo, e nos quatro anos anteriores, a Marinha tinha usado a minha
imagem como rosto da instituição. Puseram-me em cartazes, fui
entrevistado na CNN e tinha saltado de um avião para as câmaras da NBC.
Colocaram-me em dezenas de artigos de revistas e jornais, o que ajudou a
missão de recrutamento, como pretendiam. E agora, sem motivo, tentavam
esconder-me. Que raio, se alguém conhecia os regulamentos sobre o que se
podia e não podia dizer, era eu. No último instante, os serviços jurídicos da
Marinha deram-me luz verde.
Cartaz dos meus tempos no serviço de recrutamento
A minha entrevista televisiva foi breve. Contei uma versão resumida da
história da minha vida e observei que, até bater o recorde, ia fazer uma dieta
líquida, tendo como única nutrição uma bebida desportiva saturada de
hidratos de carbono.
“E então, amanhã, no fim de tudo isto, o que devemos cozinhar para si?”,
retorquiu Savannah Guthrie. Ri-me e entrei no jogo. Fui simpático como
tudo, mas que não haja equívocos: andava muito longe da minha zona de
conforto. Estava prestes a entrar em guerra comigo, embora não o parecesse
nem agisse como tal. Com o relógio a avançar, tirei a camisa; só levava uns
calções leves, pretos, e sapatos de corrida.
“É pá, parece mesmo que estou a ver-me ao espelho”, brincou o Matt
Lauer, a apontar na minha direção.
“Esta rubrica do programa tornou-se de repente muito mais interessante”,
disse a Savannah. “Muito bem, David, desejo-lhe a melhor das sortes.
Estaremos a segui-lo.”
Alguém pôs em música de fundo, «Going the Distance», a canção-tema
de Rocky, e eu aproximei-me da barra. Estava pintada de negro mate e
envolvida em adesivo branco, com a frase SHOW NO WEAKNESS [Não
mostres fraqueza], escrita à mão, em branco. Tive direito a umas últimas
palavras enquanto calçava as luvas cinzentas.
“Por favor, façam donativos no site specialops.org”, disse. “Estamos a
tentar angariar um milhão de dólares.”
“Muito bem, está pronto?”, perguntou Lauer. “Três… dois… um…
David, força!”
E assim o relógio pôs-se em marcha e eu fiz uma série de oito
levantamentos. As regras definidas pelo Livro Guinness de Recordes eram
claras: tinha de começar cada levantamento a partir de um ponto morto,
com os braços totalmente estendidos, e era preciso erguer o queixo acima da
barra.
“E assim começa…”, disse Savannah.
Sorri para a câmara, com um ar descontraído, mas logo as primeiras
elevações não me transmitiram uma boa sensação. Em parte, era por causa
do que me rodeava. Eu era um peixe solitário num aquário que era uma
caixa de vidro que atraía a luz solar e a refletia como se fosse um espetáculo
de projetores. A outra questão era técnica. Logo no primeiro levantamento,
reparei que a barra tinha uma folga muito maior do que aquela a que eu
estava acostumado. Não conseguia empregar toda a minha potência habitual
e percebi logo que tinha pela frente um dia tramado. Ao princípio, consegui
varrer essa merda da cabeça. Tinha de ser. Pensei: uma barra com mais
folga significava que eu tinha de realizar um esforço maior – e isso dava-me
outra possibilidade de ser invulgar.
Ao longo do dia, as pessoas iam passando lá em baixo na rua, acenavam
e aplaudiam. Eu acenava-lhes, mantinha o meu plano e fazia seis elevações
por minuto, a todos os malditos minutos, mas não era fácil, por causa
daquela barra com folga. Sentia a força a dissipar-se e, ao fim de centenas
de elevações, essa dissipação cobrou o seu preço. Cada elevação seguinte
exigia um esforço monumental, uma pega mais forte, e às 1500, os braços já
me doíam de uma maneira infernal. O meu massagista esfregava-os entre
séries, mas estavam cheios de ácido láctico que se filtrava por todos os
músculos da parte superior do corpo.
Depois de mais de seis longas horas, e com duas mil elevações já
acumuladas, fiz a primeira pausa de dez minutos. Seguia bem à frente do
ritmo definido para as 24 horas, e o Sol já ia mais baixo, o que reduziu a
temperatura na sala e a tornou mais suportável. Já era razoavelmente tarde e
o estúdio estava quase vazio. Era só eu, uns amigos, um massagista e a
minha mãe. As câmaras do Today Show estavam montadas e a filmar, para
me cronometrar e garantir que cumpria as normas. Ainda me restavam mais
de duas mil elevações e, pela primeira vez nesse dia, a dúvida insinuou-se
no meu cérebro.
Não verbalizei os pensamentos negativos e tentei reiniciar a minha mente
para a segunda metade do desafio, mas a verdade era que todo o meu plano
tinha ido para o inferno. A bebida energética não me fornecia a energia de
que precisava e não tinha um Plano B, por isso encomendei um
cheeseburger e devorei-o. A minha equipa tentava, entretanto, estabilizar a
barra, amarrando-a às vigas do teto, mas essa pausa mais longa, em vez de
recarregar o meu sistema, como eu esperava, teve um efeito adverso.
Durante a primeira tentativa de recorde de elevações em
barra
O meu corpo estava a apagar-se, enquanto a minha mente girava numa
espiral de pânico, porque me tinha comprometido a angariar dinheiro,
jogava a minha reputação a tentar bater um recorde e já sabia que não havia
forma alguma de conseguir atingir esse objetivo. Levei cinco horas a fazer
mais quinhentas elevações – o que é menos de duas por minuto.
Encontrava-me à beira de um colapso muscular total depois de realizar
apenas mais mil elevações do que aquelas que faria em três horas no
ginásio,num sábado à tarde típico, e sem sentir qualquer efeito nefasto.
Como era isto possível?
Tentei ir em frente e ultrapassar os meus limites, mas a tensão e o ácido
láctico tinham saturado o sistema e sentia a parte superior do corpo como se
fosse um bocado de massa. Nunca tinha atingido antes um ponto de colapso
muscular. Na instrução BUD/S correra com as pernas partidas, fizera quase
160 quilómetros com fraturas nos pés e realizara dezenas de proezas físicas
com um buraco no coração. Mas ao fim da noite, naquele segundo andar da
torre da NBC, dei-me por vencido. Ao fim de 2500 elevações, já mal
conseguia levantar os braços à altura suficiente para chegar à barra, quanto
mais elevar o queixo acima dela – e, assim, de repente, acabou tudo. Não
haveria pequeno-almoço para celebrar com Savannah e Lauer. Não haveria
celebração, ponto final. Fracassei – e fracassei em frente a milhões de
pessoas.
E então, deixei cair a cabeça, cheio de vergonha e tristeza? Claro que
não, porra! Para mim, um fracasso não passa de uma alavanca para um
futuro êxito. Na manhã seguinte, o meu telefone estava a explodir com
mensagens e chamadas, por isso deixei-o no quarto do hotel, e fui correr por
Central Park. Precisava de zero distrações e de tempo suficiente para passar
em revista o que tinha feito bem e onde é que falhara. Na tropa, depois de
cada missão real ou exercício, temos de elaborar relatórios pós-ação, que
funcionam como autópsias em tempo real. Fazemos isso independentemente
do resultado, e quando se trata de analisar um fracasso, então o relatório é
absolutamente crucial. Porque, se nos dirigimos para território
desconhecido, não há livros para estudar, nem há tutoriais do YouTube para
ver. Tudo o que eu tinha para avaliar eram os meus erros – e considerei
todas as variáveis.
Em primeiro lugar, nunca devia ter ido a um programa daqueles. A minha
motivação era sólida. Tentar despertar consciências e angariar dinheiro para
a fundação era uma boa ideia, e embora fosse necessária a exposição para
chegar à quantia que tinha imaginado, ao pensar em primeiro lugar no
dinheiro (o que é sempre uma má ideia), não estava focado na tarefa
propriamente dita. Para bater este recorde, eu precisava de um ambiente
ótimo – e perceber isso foi para mim um choque, como se tivesse sofrido
um ataque de surpresa. O que se passou foi que eu, para começar, não
respeitei o suficiente o recorde. Pensei que até o ultrapassaria com uma
barra ferrugenta presa à parte de trás de uma carrinha com os amortecedores
desfeitos, por isso, mesmo tendo testado a barra duas vezes antes do dia
decisivo, aquilo que senti nunca me incomodou o suficiente para fazer
mudanças; essa falta de foco e de atenção ao pormenor custaram-me uma
oportunidade para alcançar a imortalidade. Também havia demasiadas
personagens a entrar e a sair da sala com grandes sorrisos, a pedirem para
tirar fotografias entre séries. Estávamos no princípio da era da selfie e essa
doença invadiu definitivamente a minha maldita zona segura.
Também é evidente que o tempo de pausa foi demasiado longo. Pensei
que as massagens iriam contrariar os inchaços e a acumulação de ácido
láctico, mas também me enganei sobre isso, e devia ter ingerido mais
pastilhas de sal para evitar cãibras. Antes da tentativa de recorde, houve
críticos que me atacaram online e previram que eu iria falhar, mas ignorei-
os e não assimilei completamente as duras verdades contidas no seu
pensamento negativo. Pensei que, desde que treinasse arduamente, o
recorde seria meu e, em consequência disso, não ia tão bem preparado como
devia.
Não há preparação possível para fatores desconhecidos, mas, com uma
concentração melhor antes do desafio, é provável que surjam apenas um ou
dois, em vez de dez. Em Nova Iorque, apareceram demasiados – e os fatores
desconhecidos, em geral, costumam semear a dúvida. A seguir, avaliei o que
os meus críticos diziam e reconheci que tinha uma margem de erro pequena.
Pesava 95 quilos, muito mais do que qualquer outra pessoa que antes tivesse
tentado bater aquele recorde, e a minha probabilidade de falhar era elevada.
Não toquei numa barra de elevações durante duas semanas, mas, no
regresso a Honolulu, pus-me a fazer séries no ginásio de casa e reparei logo
na diferença entre as barras. Tive de resistir à tentação de lançar todas as
culpas sobre a outra barra com folga, porque o mais provável é que, ainda
que ela fosse mais firme, eu não conseguisse fazer mais 1521 elevações.
Pus-me a investigar giz de ginásio, luvas e sistemas de aplicação de
adesivo. Testei e experimentei. Da próxima vez, queria uma ventoinha
colocada debaixo da barra para me arrefecer entre séries. Também mudei a
alimentação; em vez de consumir só hidratos de carbono, juntei proteínas e
bananas para impedir as cãibras. Na hora de escolher um lugar para tentar
bater o recorde, soube que tinha de regressar à minha essência. Isso queria
dizer prescindir do brilho das luzes e instalar-me numa masmorra. E, numa
deslocação a Nashville, encontrei esse lugar, um ginásio de CrossFit a um
quilómetro de casa da minha mãe, propriedade de um ex-fuzileiro chamado
Nandor Tamaska.
Depois de uma troca de emails, fui conhecê-lo ao CrossFit de Brentwood
Hills. Ficava num centro comercial, umas portas à frente de uma loja Target,
e era um lugar sem nada de glamoroso. O chão era de esteiras negras, havia
baldes de giz espalhados, estantes de ferro e um monte de filhos da mãe a
fazer exercício. A primeira coisa que fiz foi agarrar a barra de elevações e
dar-lhe uns abanões. Estava presa ao chão, tal como eu esperava. Mesmo
que houvesse uma folga apenas muito ligeira, isso iria obrigar-me a ajustar
a forma de agarrar a barra a meio das séries. Quando a meta são 4021
elevações, todos os movimentos minúsculos se acumulam e transformam
num reservatório de energia desperdiçada, o que tem um preço.
“Isto é exatamente o que preciso”, disse-lhe, agarrando a barra.
“Yep”, respondeu o Nandor. “Têm de ser sólidas, porque também servem
de suporte para os pesos.”
Além de forte e estável, a barra encontrava-se à altura certa. Eu não
queria uma barra baixa, porque dobrar as pernas pode provocar cãibras nos
músculos isquiotibiais. Precisava dela suficientemente alta para a agarrar
estando em bicos de pés.
Percebi imediatamente que o Nandor era um cúmplice perfeito para esta
missão. Tinha sido soldado raso, envolveu-se no CrossFit e mudou-se de
Atlanta para Nashville, com a mulher e a família, para abrir o primeiro
ginásio. Não há muitas pessoas dispostas a abrir as portas a um estranho e a
permitir que ele tome conta do seu ginásio, mas o Nandor estava com a
causa da Fundação.
Marquei a segunda tentativa de recorde para novembro, e ao longo de
cinco semanas seguidas fiz 500 a 1300 elevações por dia, no ginásio de
casa, no Havai. Na última sessão, cheguei às duas mil elevações em cinco
horas; a seguir, apanhei um voo para Nashville, onde cheguei seis dias antes
da tentativa.
O Nandor reuniu frequentadores do ginásio para servirem de
testemunhas e funcionarem como equipa de apoio. Encarregou-se da música
de fundo, de conseguir o giz e preparou uma sala de descanso, se fosse
necessária. Também fez um comunicado para a imprensa. Eu treinei no
ginásio até à véspera do dia, e apareceu um canal de notícias local para
fazer a reportagem. O jornal local também publicou uma história. Era tudo
em pequena escala, mas em Nashville a curiosidade crescia, especialmente
entre os viciados em CrossFit. Apareceram vários, para verem o que se
passava. Há pouco tempo, falei com Nandor e gostei da explicação dele:
“Há décadas que as pessoas correm, e correm distâncias grandes, mas
quatro mil elevações… o corpo humano não está desenhado para fazer isso.
Portanto, é muito fixe ter a hipótese de assistir a uma coisa do género.”
Na véspera da tentativa, descansei o dia inteiro e apareci no ginásio a
sentir-me forte e preparado para o campo minado que tinha pela frente. O
Nandor e a minha mãe colaboraram para que tudo estivesse a postos. Numa
parede, um cronómetro digital elegante também registava o número de
elevações e havia ainda dois relógios de parede a pilhas que funcionavam
como sobresselentes. Um cartaz do Livro Guinness de Recordes estava
suspenso por cima da barra e havia também uma equipa de vídeo, porque
cada série tinha de ser gravada para potencial revisão. O adesivo era o certo.
As luvas perfeitas. A barra estava presa com solidez. Comecei com um
rendimento explosivo.
As contas eram iguais. Eu apontava para seis elevações por minuto,
todos os minutos, e nas primeiras dez séries elevei o peito acima da barra.
Aí lembrei-me da estratégia para reduzir ao mínimo os movimentos
desnecessários e o desperdício de energia. Na primeira tentativa, sentira-me
pressionado a elevar o queixo bem acima da barra, mas embora toda essa
altura extra fosse boa para o espetáculo, não me ajudava, nem ajudaria, a
bater o maldito recorde. Desta vez, decidi que só devia subir um pouco
acima da barra e não usar as mãos e os braços para mais nada a não ser
elevações. Em vez de me baixar para pegar na garrafa de água, como
acontecera em Nova Iorque, agora tinha-a em cima de uma pilha de caixas
de madeira (das que se usam para os saltos), por isso bastava-me virar a
cabeça e sugar a nutrição por uma palhinha. O primeiro sorvo levou-me a
travar o movimento de flexão e, a partir daí, mantive-me disciplinado,
enquanto os números iam subindo. Seguia no meu ritmo e confiante como o
diabo. Não pensava só em 4020 elevações. Queria fazer as 24 horas
completas. Se conseguisse, era possível chegar às 5000 ou até às 6000!
Mantive-me hipervigilante, atento a qualquer problema físico que
pudesse surgir e deitar por terra a tentativa. Tudo correu bem até que, ao fim
de quase quatro horas e 1300 elevações, comecei a ficar com bolhas nas
mãos. Entre séries, a minha mãe aplicava-me creme Second Skin, para
poder continuar apesar dos cortes. Para mim, era um problema novo, e
lembrei-me de todos os comentários a manifestar dúvidas que lera nas redes
sociais antes da tentativa. Diziam, por exemplo, que eu tinha os braços
demasiado compridos. Que era muito pesado. Que a minha forma não era a
ideal, que punha pressão em excesso sobre as mãos. Ignorei esse último
comentário porque, na tentativa anterior, não me tinham surgido quaisquer
problemas nas palmas das mãos, mas a meio desta segunda percebi que isso
se devia à folga da barra. Agora havia mais estabilidade e potência, mas
com o tempo essa barra sólida fazia danos.
Ainda assim, continuei. Ao fim de 1700 elevações, os antebraços
começaram a doer; quando dobrava os braços, os bíceps também doíam.
Lembrei-me dessas sensações na primeira tentativa. Eram o princípio das
cãibras, e, por isso, entre séries, fui tomando pastilhas de sal e comi duas
bananas, o que aliviou o desconforto muscular. Mas as palmas das mãos
pioravam.
Cento e cinquenta elevações depois, sentia-as abrirem-se ao meio, por
baixo das luvas. Sabia que devia parar e tentar resolver o problema, mas
também sabia que isso podia fazer o corpo entrar em tensão e apagar-se.
Combatia dois incêndios em simultâneo e não sabia a qual acorrer primeiro.
Decidi manter o ritmo por minuto, enquanto fui experimentando soluções
diferentes. Calcei dois pares de luvas e depois três. Recorri à minha velha
amiga, a fita adesiva. Não ajudou. Não podia acolchoar a barra, porque isso
ia contra as regras do Guinness. Só podia ir tentando arranjar maneiras de
continuar na luta.
Dez horas passadas sobre o início da tentativa, fui contra uma parede.
Não conseguia mais do que três elevações por minuto. A dor era
insuportável e precisava de um pouco de alívio. Tirei a luva direita. Com
ela, saíram camadas de pele. A palma da mão parecia um hambúrguer cru. A
minha mãe telefonou a uma médica amiga, chamada Regina, que vivia ao
pé, e sentámo-nos os dois na sala de descanso à espera dela, para procurar
salvar a tentativa de recorde. A médica apareceu, avaliou a situação, pegou
numa seringa, encheu-a de uma anestesia local e enfiou a agulha na ferida
aberta na minha mão direita.
A minha mão durante a segunda tentativa de recorde de
elevações
A médica observou-me. O coração batia com força e tinha cada
centímetro de pele coberto de suor. Sentia os músculos a arrefecerem e a
ficarem tensos, mas fiz que sim com a cabeça, virei os olhos e ela enfiou a
agulha. Doeu como tudo, mas contive o grito. O meu lema continuava a ser
Não mostres fraqueza, mas isso não quer dizer que me sentisse forte. A
minha mãe tirou a luva da mão esquerda, antecipando uma segunda injeção,
mas a médica estava ocupada a examinar o inchaço que eu tinha nos bíceps
e os espasmos visíveis nos antebraços.
“Pareces estar em rabdomiólise, David”, disse-me. “Não deves continuar.
É perigoso.” Como eu não fazia ideia de que merda é que ela estava a falar,
a médica explicou-me.
Se um grupo muscular trabalha demasiado, e durante demasiado tempo,
dá-se um fenómeno: os músculos ficam sem glicose e rompem-se, perdendo
para a corrente sanguínea a mioglobina, uma proteína fibrosa que armazena
oxigénio no músculo. Aí, recai sobre os rins a tarefa de filtrar todas essas
proteínas e eles deixam de funcionar se a carga se revelar excessiva. “As
pessoas podem morrer de rabdo”, disse-me.
As mãos palpitavam-me de sofrimento. Os músculos estavam a bloquear
e o risco não podia ser maior. Qualquer pessoa racional teria atirado a toalha
ao chão, mas eu ouvia o Going the Distance a sair aos gritos dos altifalantes
e sabia que este era o meu décimo quarto assalto, o meu momento, como
quando Rocky disse a Mick para o cortar.
A racionalidade que se lixe! Ergui a palma da mão esquerda e a médica
enterrou a agulha. Fui percorrido por vagas de dor, enquanto na minha
mente as dúvidas floresciam em quantidade. Ela envolveu-me as mãos em
camadas de gaze e calçou-me um par de luvas novas. Regressei ao ginásio e
voltei à tentativa. Ia em 2900 e, enquanto continuasse na luta, acreditaria
que tudo era possível.
Fiz séries de duas e três elevações por minuto durante duas horas, mas
tinha a sensação de estar a agarrar um ferro em brasa, prestes a derreter-se,
o que queria dizer que tinha de usar as pontas dos dedos para agarrar a
barra. Primeiro usei quatro dedos, e depois três. Consegui fazer mais cem
elevações – e depois outras cem. As horas iam passando. Aproximava-me
do objetivo, mas, com o corpo em rabdo, o colapso estava iminente. Fiz
várias séries com os pulsos assentes na barra. Parece impossível, mas
consegui, até que os anestésicos deixaram de funcionar. A partir daí, até
dobrar os dedos era como se me estivessem a cravar nas mãos uma faca
afiada.
Ao passar as 3200 elevações, pus-me a fazer contas e percebi que, se
fizesse oitocentas séries de uma elevação, precisaria de 13 horas e picos
para bater o recorde, o que seria à justa dentro do limite de tempo. Aguentei
45 minutos. A dor era demasiada e a atmosfera na sala passou de otimista a
sombria. Ainda procurava mostrar a menor fraqueza possível, mas os
voluntários viam-me a mexer nas luvas e a agarrar a barra e sabiam que
havia qualquer coisa terrivelmente errada. Ao encaminhar-me pela segunda
vez para a sala de descanso, ouvi um suspiro coletivo que soava a
fatalidade.
A minha mãe e Regina tiraram-me o adesivo das mãos e senti a carne a
descascar-se como uma banana. Tinha as palmas abertas até à derme, onde
se encontram os nervos. Aquiles tinha o seu calcanhar e eu, em relação às
elevações, tinha nas mãos o meu dom e a minha perdição. Os que
duvidavam de mim tinham razão. Eu não era um daqueles tipos leves e
elegantes que fazem elevações. Era um tipo poderoso e esse poder vinha da
maneira como agarrava a barra. Mas, agora, as minhas mãos pareciam mais
as de um modelo de uma aula de anatomia do que qualquer coisa de
humano.
Emocionalmente, estava desfeito. Não só por causa da pura exaustão
física, ou por não ter conseguido ficar com o recorde, mas porque tantas
pessoas tinham vindo ajudar. Eu tomara de assalto o ginásio do Nandor e
sentia que tinha dececionado todos. Sem uma palavra, a minha mãe e eu
saímos pela porta das traseiras, como se fugíssemos do local de um crime.
Enquanto ela me conduzia ao hospital, eu só pensava uma coisa: Sou
melhor do que isto!
Enquanto Nandor e a equipa desmontavam os relógios, removiam as
tarjas, varriam o giz e retiravam da barra adesivo ensanguentado, eu e a
minha mãe afundámo-nos nas cadeiras das urgências. Eu ainda segurava
aquilo que restava da minha luva esquerda. Parecia tirada da cena do crime
de O.J. Simpson, como se tivesse estado a marinar em sangue. Ela olhou-
me e abanou a cabeça.
“Bem”, disse, “há uma coisa que eu sei…”
Depois de uma longa pausa, virei-me para ela.
“E é o quê?”
“Vais tentar isto outra vez.”
Ela leu o que ia na minha maldita cabeça. Eu já estava a fazer a autópsia
do que sucedera e faria um relatório completo em papel logo que as minhas
mãos ensanguentadas mo permitissem. Sabia que havia um tesouro algures
no meio deste naufrágio e alguma coisa para aproveitar em meu benefício.
Só tinha de juntar as peças, como um puzzle. O facto de ela ter percebido
isso sem eu dizer ainda me incentivou mais.
Muitos de nós rodeamo-nos de pessoas que respondem ao nosso desejo
de comodidade. Pessoas que preferem tratar a dor das nossas feridas e
impedir que nos magoemos, mais do que nos ajudar a calejá-las e a voltar a
tentar. Precisamos de rodear-nos de pessoas que nos digam o que
precisamos de ouvir, e não o que queremos ouvir, mas que também não nos
façam sentir que estamos perante uma missão impossível. A minha mãe era
a minha maior fã. Sempre que eu tinha um fracasso na vida, perguntava-me
quando e onde iria tentar outra vez. Nunca dizia Bom, talvez o destino não
queira que seja assim.
A maior parte das guerras são ganhas e perdidas na nossa cabeça. Em
geral, numa trincheira, não estamos sós, e temos de confiar na qualidade do
coração, da mente e do discurso da pessoa que lá se encontra acocorada
connosco. Porque, a certo ponto, vamos precisar de palavras de
encorajamento para nos mantermos concentrados e letais. Naquele hospital,
a minha trincheira pessoal, eu estava a nadar num mar de dúvidas. Ficara a
oitocentas elevações do objetivo – e eu conhecia muito bem a sensação de
fazer oitocentas elevações. Fora um dia comprido para cacete! Mas não
haveria outra pessoa com quem preferisse estar nessa trincheira.
“Não te preocupes”, disse-me. “Vou começar a telefonar àquelas
testemunhas assim que chegarmos a casa.”
“Entendido”, respondi. “Diz-lhes que daqui a dois meses estou de
regresso àquela barra.”
***
Não há na vida uma dádiva mais ignorada ou inevitável do que o
fracasso. Eu tive uns quantos e aprendi a apreciá-los, porque ao fazer-lhes a
autópsia se encontram pistas sobre onde devemos fazer ajustamentos e
como acabaremos por conseguir concluir a tarefa. Não estou a falar de uma
lista mental. Depois da segunda tentativa, passei tudo a escrito, mas não
comecei com a questão óbvia: o agarrar a barra. Inicialmente, passei em
revista tudo o que correu bem, porque em todos os falhanços há coisas boas
e é preciso identificá-las.
O melhor da tentativa de Nashville foi o ginásio do Nandor. O local, uma
espécie de masmorra, era perfeito para mim. Sim, é verdade, ando pelas
redes sociais e, de vez em quando, sou o centro de atenções, mas não sou
uma pessoa de Hollywood. Vou buscar as minhas forças a um local bem
sombrio, e aquele ginásio não era uma fábrica de falsa felicidade. Era
escuro, a cheirar a transpiração, doloroso e real. Telefonei-lhe logo no dia
seguinte e perguntei-lhe se podia lá voltar para treinar e para tentar de novo
bater o recorde. Eu consumira-lhe muito tempo e energia e deixara para trás
um autêntico caos, por isso não fazia ideia de qual seria a resposta.
“Sim, meu cabrão. Vamos lá!”, respondeu-me. Significou muito para
mim voltar a contar com o apoio dele.
Outro fator positivo foi a maneira como lidei com a minha segunda crise.
Ainda o médico das urgências não me tinha examinado e já eu me tinha
levantado do tapete e traçava o caminho do regresso. É neste ponto que se
quer estar. Não podemos deixar que um simples fracasso nos desvie da
nossa missão, nem que se enfie tanto pelo cu acima que tome conta do
cérebro e sabote as relações com as pessoas próximas de nós. Todos falham
alguma vez e não é suposto que a vida seja justa, quanto mais que ceda a
todos os nossos caprichos.
A sorte é uma cadela caprichosa. As coisas nem sempre vão correr como
queremos, por isso não podemos ficar agarrados à ideia de que merecemos
uma coisa só porque imaginámos essa possibilidade para nós. Essa
mentalidade de ser merecedor é um peso morto, não a carregue. Não se
foque naquilo que pensa que merece. Aponte àquilo que está disposto a
ganhar! Eu nunca culpei ninguém pelos meus falhanços e não baixei a
cabeça em Nashville. Mantive-me humilde e fugi a essa mentalidade de que
era merecedor, porque sabia muitíssimo bem que não tinha alcançado o
recorde. O marcador não mente e não me iludi com o contrário. Acredite: a
maior parte das pessoas prefere o engano. Culpam os outros, ou a pouca
sorte, ou circunstâncias caóticas. Eu não fiz isso, o que foi positivo.
A maior parte do equipamento que utilizámos também figura na coluna
de aspetos positivos do relatório. A fita adesiva e o giz funcionaram e
embora a barra me tivesse liquidado, também me permitiu realizar mais
setecentas elevações, o que mostra que ia na direção certa. Outro elemento
positivo foi o apoio da comunidade que girava em torno do CrossFit do
Nandor. Senti-me muito bem rodeado de pessoas tão intensas e
respeitadoras, mas, para a próxima, precisava de reduzir a metade o número
de voluntários. Queria o menor ruído possível na sala.
Depois de enunciar todos os pontos positivos, era o momento de analisar
a minha mentalidade – e é essencial fazer isso ao realizar a autópsia de uma
situação em que se foi ao tapete. Isso significa avaliar como e o quê se
estava a pensar nas fases de preparação e execução do fracasso. O meu
empenho na preparação e a determinação na luta estiveram sempre
presentes. Não fraquejaram, mas a minha convicção era mais vacilante do
que eu conseguia admitir e, ao preparar a terceira tentativa, era imperativo
afastar-me de todas as dúvidas.
Isso não era fácil, porque depois do segundo falhanço noutras tantas
tentativas, havia céticos por toda a parte nas redes sociais. O detentor do
recorde, Stephen Hyland, era um tipo leve e com a força de uma aranha,
com palmas das mãos grossas e musculadas. Tinha a constituição perfeita
para um empreendimento deste tipo e todos me diziam que eu era
demasiado grande, que a minha compleição era demasiado brutal e que o
melhor era parar antes de me magoar mais. Apontaram para o marcador, que
nunca mente. Ainda estava a oitocentas elevações de distância do recorde.
Era mais do que a progressão que eu fizera entre a primeira e a segunda
tentativas. Desde o início que alguns tinham previsto que as minhas mãos
iriam ceder e quando a verdade se revelou, em Nashville, isso representou
uma grande barreira mental. Uma parte de mim pôs-se a pensar se esses
cabrões não teriam razão. Se eu não estaria a tentar alcançar o impossível.
Pensei, então, num antigo corredor inglês de meia distância, chamado
Roger Bannister. Na década de 1950, ele tentava correr uma milha em
menos de quatro minutos e os especialistas diziam que era impossível, mas
isso não o impediu de tentar. Falhou repetidamente, mas perseverou, e, no
dia 6 de maio de 1954, cometeu a proeza histórica de fazer uma milha em
três minutos e 59,4 segundos. Não se limitou a bater um recorde:
escancarou as comportas do dique, só por provar que era possível. O seu
recorde foi eclipsado logo seis semanas depois, e hoje já são mais de mil os
atletas que realizaram aquilo que, em tempos, se pensava estar para além da
capacidade humana.
Todos temos a culpa por permitir que os chamados peritos, ou apenas
pessoas com mais experiência do que nós numa determinada área,
coloquem limites ao nosso potencial. Uma das razões para adorarmos o
desporto é porque também adoramos ver estilhaçados os tetos de vidro. Se
eu ia ser o próximo atleta a vencer a perceção popular, precisava de deixar
de dar ouvidos às dúvidas, viessem elas do exterior ou surgissem de dentro,
e a melhor maneira de o fazer era decidir que o recorde de elevações já me
pertencia. Podia ser dentro de dois meses ou daí a vinte anos, mas a partir
do momento em que decidi que era meu e o assinalei no calendário, enchi-
me de confiança e fiquei aliviado de toda e qualquer pressão. A minha tarefa
deixou de ser tentar conseguir o impossível e transformou-se em trabalhar
no sentido de alcançar o que era inevitável. Mas, para lá chegar, precisava
de encontrar a vantagem técnica que me tinha estado a faltar.
Uma revisão tática é a peça final de qualquer autópsia de uma missão. E
embora eu tivesse melhorado taticamente em relação à primeira tentativa –
ao trabalhar com uma barra mais estável e ao minimizar a energia
desperdiçada –, ainda me faltavam oitocentas elevações, por isso era preciso
olhar melhor para os números. Seis elevações por minuto a cada minuto não
me tinham servido, por duas vezes. Sim, faziam-me apontar para as 4020,
mas nunca lá cheguei. Desta vez, decidi começar mais devagar, para ir mais
longe. Também sabia, por experiência, que ao fim de mais ou menos dez
horas havia de ir contra uma parede e que a minha resposta a esse momento
não podia ser fazer uma pausa mais longa. Esse momento por volta das dez
horas deu-me uma bofetada na cara por duas vezes, e dessas duas vezes
parei cinco minutos ou mais, o que precipitou muito rapidamente o falhanço
final. Precisava de manter-me fiel à estratégia e limitar as pausas maiores a
um máximo de quatro minutos.
Agora, quanto à barra… Bom, provavelmente ela iria destroçar-me de
novo, por isso precisava de encontrar uma solução. De acordo com as
regras, não me seria permitido mudar a distância entre as mãos a meio da
tentativa: teria de ser igual desde a primeira elevação. A única coisa que eu
podia mudar seria a forma de proteger as mãos. Na preparação para a
terceira tentativa, experimentei todo o género de luvas. Também fui
autorizado a usar almofadas de espuma à medida para proteger as palmas
das mãos. Lembrei-me de ver uns camaradas dos SEAL usarem pedaços de
espuma para proteger as mãos ao levantarem grandes pesos e entrei em
contato com uma empresa fabricante de colchões para que produzisse
almofadas à medida para as minhas mãos. O Livro Guinness aprovou o
equipamento e, às dez horas da manhã do dia 19 de janeiro de 2013, dois
meses depois de cair pela segunda vez, eu regressei à barra do CrossFit de
Brentwood Hills.
Comecei de uma forma lenta e fácil, com cinco elevações por minuto.
Não fixei com adesivo as minhas almofadas de espuma. Apenas as prendi à
volta da barra e isso pareceu funcionar. No espaço de uma hora, a espuma
tinha-se moldado às minhas mãos, protegendo-as daquele inferno de ferro
incandescente. Ou pelo menos era o que esperava. Por volta das duas horas,
e da marca de seiscentas elevações, pedi ao Nandor para pôr a tocar, em
loop, Going the Distance. Senti um clique interior – e entrei em modo
ciborgue.
Encontrei um ritmo para as elevações e, entre séries, sentei-me num
banco de pesos e observei o chão coberto de giz. O meu ponto de vista
estreitou-se, até se transformar numa visão de túnel, enquanto preparava a
minha mente para o inferno que estava para chegar. No momento em que
uma primeira bolha se abriu na palma da mão, sabia que todas as merdas
iam tornar-se reais. Mas, desta vez, graças aos meus fracassos e às autópsias
que fiz deles, ia preparado.
Isso não quer dizer que estivesse a divertir-me. Nada disso. Estava farto.
Já não queria fazer mais elevações, mas atingir metas ou superar obstáculos
não tem de ser divertido. As sementes explodem de dentro para fora num
ritual de nova vida que é auto destruidor. Isso porventura parece divertido?
Parece que sabe bem? Eu não estava ali, naquele ginásio, para ser feliz ou
para fazer uma coisa de que gostasse. Estava ali para me partir ao meio, se
isso fosse preciso para atravessar todas e cada uma das barreiras mentais,
emocionais e físicas.
Ao fim de 12 horas, cheguei finalmente às três mil elevações, um ponto
de controlo importante para mim – e sentia-me como se tivesse chocado de
frente contra um muro. Estava exasperado, em sofrimento, e as mãos
começavam outra vez a desfazer-se. Ainda faltava muito para o recorde e
sentia todos os olhares naquela sala fixados de mim. E, com eles, vinha o
peso esmagador do falhanço e da humilhação. De repente, vi-me de
regresso à jaula durante a minha terceira Semana Infernal, a atar as canelas
e os tornozelos com adesivo antes de me reunir a um novo grupo de BUD/S
que tinha ouvido dizer que aquela era a minha derradeira hipótese.
É preciso muita força para ser suficientemente vulnerável para arriscar o
couro em público e lutar por um sonho que parece escapar das mãos. Todos
temos olhos postos em nós. A família e os amigos estão a ver-nos e, mesmo
que estejamos rodeados por pessoas positivas, elas hão de ter ideias sobre
quem somos, em que somos bons e onde devemos concentrar a energia. São
merdas que fazem parte da natureza humana e, se tentarmos romper essa
perceção, ouviremos alguns conselhos, que nunca pedimos, que de alguma
maneira, e se o permitirmos, encontrarão uma maneira de asfixiar as
aspirações que temos. Muitas vezes, as pessoas não fazem isso por mal.
Ninguém que se importe connosco quer que saiamos magoados. Querem
que estejamos seguros, cómodos e felizes, e que não tenhamos de estar a
olhar para o chão de uma espécie de masmorra a esquadrinhar fragmentos
dos nossos sonhos desfeitos. É uma pena. Há um imenso potencial nesses
momentos de dor. E se descobrirmos como voltar a unir essa imagem
também encontraremos aí muito poder!
Mantive o período de descanso em apenas quatro minutos, como
planeado. O tempo suficiente para enfiar as mãos, e as almofadas de
espuma, em luvas também almofadadas. Mas senti-me lento e fraco ao
regressar à barra. O Nandor, a mulher dele e os outros voluntários deram
conta do meu sofrimento, mas deixaram-me em paz para pôr os
auscultadores, sintonizar-me com Rocky Balboa e continuar o esforço: uma
elevação de cada vez. Passei de quatro elevações por minuto para três – e
voltei a entrar em modo ciborgue. Fiquei mau, sombrio. Imaginei que a
minha dor era a obra de um cientista louco chamado Stephen Hyland, o
génio do mal que estava na posse temporária do meu recorde e da minha
alma. Era ele! Esse cabrão estava a torturar-me, algures do outro lado do
mundo, e era comigo, e só comigo, continuar a acumular números e avançar
para cima dele, se queria conquistar a sua alma!
Quero ser claro: eu não estava zangado com Hyland – nem o conheço!
Fui àquele ponto para encontrar a vantagem de que precisava para
continuar. Fiz da situação uma questão pessoal com ele, na minha cabeça,
não por excesso de confiança ou por inveja, mas para afogar as minhas
próprias dúvidas. A vida é um jogo mental. E este era apenas o último
recurso a que eu lançava mão para ganhar um jogo dentro desse jogo. Tinha
de encontrar um ponto de vantagem – e se ele for a figura da pessoa que se
interpõe no nosso caminho isso é ainda mais forte.
À medida que as horas passavam, depois da meia-noite, comecei a
encurtar a distância entre nós, mas as elevações não surgiam com rapidez –
nem com facilidade. Eu estava cansado, mental e fisicamente, em plena
rabdomiólise, e não era capaz de mais do que três elevações por minuto. Ao
chegar às 3800, senti que conseguia ver o alto da montanha. Mas também
sabia que, num ápice, podia passar de um ponto em que realizava três
elevações num minuto a outro em que não conseguia fazer nenhuma. Na
corrida Badwater, há histórias de corredores que chegaram ao quilómetro
205 e não conseguiram concluir os 215 quilómetros! Nunca se sabe quando
se chega aos cem por cento e se atinge o ponto de fadiga muscular total.
Continuei à espera de que esse momento chegasse, aquele ponto em que
seria já incapaz de erguer os braços. A dúvida perseguia-me como uma
sombra. Dei o meu melhor para a conter ou silenciar, e, no entanto, ela
reaparecia, seguia-me, empurrava-me.
Ao fim de 17 horas de dor, cerca das três da manhã de 20 de janeiro de
2013, fiz a elevação 4020 e a seguir a 4021. O recorde era meu. No ginásio,
todos começaram a celebrar, mas eu mantive a compostura. Ao fim de mais
duas séries e um total de 4030 elevações, tirei os auscultadores, olhei
diretamente para a câmara, e disse: “Apanhei-te, Stephen Hyland!”
Num só dia, tinha levantado o equivalente a 384 560 quilos, quase três
vezes o peso do vaivém espacial! Os aplausos transformaram-se em risos
quando tirei as luvas e desapareci na sala de descanso, mas eu, para surpresa
de quase todos, não tinha disposição para festejos.
Isso também o surpreende? Já sabe que o meu frigorífico nunca está
cheio, e que nunca estará, porque eu vivo impulsionado por uma missão: a
caça ao desafio que se segue. Essa mentalidade é a razão pela qual bati o
recorde, concluí a Badwater, me tornei um SEAL, arrasei na Escola de
Rangers e assim por diante. Na minha cabeça, sou o cavalo de corrida que
persegue uma cenoura que nunca apanhará, a tentar sucessivamente provar-
me perante mim mesmo. E quando se vive dessa maneira e se alcança uma
meta, o sucesso assemelha-se a um anticlímax.
Ao contrário da minha tentativa inicial para chegar ao recorde, o facto de
ter conseguido a proeza mal mereceu uma referência nos media. E não
havia problema nenhum nisso. Eu não fazia aquilo por vaidade. Angariei
algum dinheiro e aprendi tudo o que podia com aquela barra de elevações.
Depois de efetuar mais de 67 mil elevações ao longo de nove meses, era
tempo de as guardar no meu Frasco das Bolachas e de avançar. Porque a
vida é um maldito e comprido jogo imaginário, sem marcador e sem árbitro,
e que não acaba até estarmos mortos e enterrados.
E tudo o que eu sempre quis dela foi ter êxito aos meus próprios olhos.
Isso não significava riqueza nem celebridade, uma garagem cheia de
automóveis espetaculares, nem um harém de mulheres lindas atrás de mim.
Significava tornar-me o filho da puta mais rijo que jamais existiu. Claro
que, pelo caminho, fui colecionando alguns fracassos, mas, na minha
cabeça, o recorde mostrava que eu estava perto disso. Só que o jogo ainda
não tinha terminado. Ser um tipo duro incluía o requisito de espremer a
última gota de capacidade da minha mente, do meu corpo e da minha alma,
até o apito soar.
Continuaria numa busca permanente. Não deixaria nada em cima da
mesa. Queria ganhar o meu lugar de descanso final. Pelo menos era assim
que então pensava. Porque não fazia ideia de como já estava perto do fim.
DESAFIO #10
Pense nos seus fracassos mais recentes e mais devastadores. Abra o diário
uma última vez. Deixe a versão digital e escreva à mão. Quero que sinta
este processo, porque chegou o momento de fazer o seu próprio relatório de
missão.
Em primeiro lugar, passe ao papel todas as coisas boas, tudo o que correu
bem, nos seus falhanços. Seja pormenorizado e generoso consigo. Muitas
coisas boas terão acontecido. Raramente é tudo mau. A seguir, escreva com
detalhe como é que geriu o fracasso. Isso afetou a sua vida e as suas
relações? De que forma?
De que forma pensava durante as etapas de preparação e execução dessa
tarefa falhada? É preciso ter a noção do que estava a pensar em cada fase,
porque tem tudo a ver com a mentalidade – e é aí que a maior parte das
pessoas não chega.
Agora, passe tudo em revista e faça uma lista das coisas que pode
corrigir. Não é o momento para ser brando nem generoso. Seja brutalmente
honesto, escreva-as todas. Estude-as. Depois olhe para a sua agenda e
marque outra tentativa, o mais rápido que for possível. Se o fracasso
aconteceu na juventude e já não consegue recriar aquele jogo muito
importante em que não deu uma para a caixa, quero ainda assim que escreva
esse relatório, porque é provável que consiga usar essa informação para
alcançar qualquer outra meta que tenha por diante.
Enquanto se prepara, mantenha à mão o relatório de missão, consulte o
Espelho da Responsabilidade e faça todos os ajustamentos necessários.
Quando chegar o momento de voltar a tentar, tenha bem presente tudo o que
aprendemos sobre a mente calejada, o Frasco das Bolachas e a Regra dos
40%. Controle o seu estado de espírito. Domine o seu processo de
pensamento. Esta vida é toda ela um maldito jogo mental. Perceba isso.
Controle isso!
E, se voltar a falhar, pois então que seja assim, porra. Aceite a dor. Repita
estes passos e continue a lutar. É disso que se trata. Partilhe as suas histórias
de preparação, treino e execução nas redes sociais com as hashtags
#canthurtme #empowermentoffailure.
CAPÍTULO ONZE

E SE?
Eu já sabia que estava lixado e a corrida nem tinha começado. Em 2014, o
Serviço Nacional de Parques não aprovou o percurso tradicional da
Badwater, por isso Chris Kostman redesenhou-o. Em vez de ter início no
Parque Nacional do Vale da Morte e de percorrer 64 quilómetros através do
deserto mais escaldante do planeta, começaria ainda mais para o interior, no
sopé de uma subida de 35 quilómetros. O meu problema não era esse. O
meu problema é que me apresentei na linha de partida com cinco quilos
acima do peso habitual para correr – e tinha ganho quatro e meio desses
cinco quilos nos últimos sete dias. Não era gordo. Um espetador comum
olharia para mim e veria alguém em forma. Mas a Badwater não era uma
corrida comum. Para a percorrer e acabar com força tinha de estar na
melhor condição – e eu não podia estar mais longe disso. A situação era
uma grande surpresa para mim, porque, depois de dois anos a correr abaixo
dos meus padrões. pensei que tinha recuperado os meus poderes.
Em janeiro, tinha ganho uma prova de cem quilómetros em trilho glacial
chamada Frozen Otter [Lontra Congelada]. Não era tão dura como a Hurt
100, mas andava lá perto. O percurso traçado no Wisconsin, às portas de
Milwaukeee, estendia-se como um 8 assimétrico, com a partida e a chegada
no centro. Passávamos por esse ponto entre as duas voltas, o que permitia às
equipas de apoio o reabastecimento com alimentos e outros bens
necessários, que guardávamos em mochilas com o material para
emergências. As condições meteorológicas podem tornar-se muito adversas
e os organizadores elaboram uma lista de produtos que os atletas devem ter
sempre consigo, para não morrerem de desidratação, hipotermia ou
exposição ao frio.
A primeira volta era a parte maior do 8 e partimos com uma temperatura
de 18 graus Celsius negativos. Aqueles trilhos nunca eram limpos de neve e
havia pontos em que ela se acumulava em montes. Noutros, o trilho parecia
ter sido coberto de propósito com uma camada de gelo escorregadio. O que
constituía um problema, porque eu, ao contrário da maioria dos meus
adversários, não usava botas ou ténis próprios para correr naquele terreno.
Tinha os meus ténis de corrida normais e amarrei-os a uns pitons baratos,
que, em teoria, deviam enfiar-se no gelo e manter-me firme. A verdade é
que o gelo ganhou esta guerra e, antes de ter passado uma hora, já os pitons
tinham desaparecido. De qualquer modo, eu seguia na frente e a abrir
caminho por entre a neve com uma altura média de quinze a vinte
centímetros. Em certos pontos, os montículos eram muito mais altos. Tinha
os pés frios e húmidos desde o início e ao fim de duas horas encontravam-se
completamente gelados, em especial os dedos. A parte superior do corpo
não estava muito melhor. Transpirar sob temperaturas negativas faz com
que o sal no corpo queime a pele. Nas axilas e no peito iam-se abrindo
feridas cor de framboesa. Tinha o corpo coberto de erupções cutâneas, os
pés doíam com cada passo, mas na minha escala de dor nada disso tinha um
registo muito alto, porque estava a correr à vontade.
Pela primeira vez desde a segunda cirurgia ao coração, o meu corpo
começava a recompor-se. Tinha cem por cento de oxigenação, como todos
os outros, uma resistência e uma força a um grande nível, e, embora aquele
trilho fosse um grande desastre escorregadio, uma técnica bem apurada.
Seguia na dianteira e parei no meu carro de apoio para recolher uma
sanduíche antes do último troço de 35 quilómetros. Os dedos dos pés
palpitavam de dor. Suspeitava que podiam estar congelados, o que que
significava que podia estar em risco de perder alguns, mas não quis
descalçar-me para ver. Uma vez mais, surgiam no meu cérebro a dúvida e o
medo, a lembrarem-me de que só uma mão cheia de pessoas tinha
terminado a Frozen Otter e de que, naquele frio, nenhum avanço era seguro.
O clima, mais do que outra variável qualquer, pode derrubar muito depressa
qualquer cabrão. Mas não dei ouvidos a nada disso. Criei um novo diálogo e
disse a mim mesmo que devia acabar a corrida com força e só me preocupar
com dedos amputados mais tarde, no hospital, depois de ser sagrado
campeão.
Voltei ao percurso. Umas horas antes, um pouco de sol tinha derretido
alguma da neve, mas o vento frio encarregou-se de congelar o caminho na
perfeição. Enquanto corria, regressei ao meu primeiro ano na Hurt 100 e ao
grande Karl Meltzer. Nesse tempo, corria de uma maneira em que o
calcanhar batia primeiro no chão e eu depois arrastava toda a superfície do
pé pelo trilho enlameado, o que aumentava as probabilidades de escorregar
e cair. O Karl não corria assim. Movia-se como uma cabra, ganhando
impulso com os dedos e correndo pelas bermas. Quando os dedos tocavam
no chão, ele atirava as pernas para o ar. Era por isso que parecia flutuar. Por
opção, mal tocava o chão, enquanto a sua cabeça e o centro do corpo
permaneciam estáveis e equilibrados. Esses seus movimentos ficaram
permanentemente gravados no meu cérebro, como uma pintura nas
cavernas. Estava sempre a visualizá-los e pus em prática essas técnicas nas
sessões de treino.
Dizem que são precisos 66 dias para construir um hábito. Eu,
infelizmente, preciso de um período muito mais longo, mas acabo por lá
chegar, e em todos os anos de provas ultra e de competição fui melhorando
a minha técnica. Um corredor autêntico analisa a sua forma. Não
aprendemos a fazer isso com os SEAL, mas conviver tantos anos com
competidores em provas ultra tornou-me capaz de assimilar e treinar
capacidades que ao princípio não pareciam naturais. Na Frozen Otter, o meu
foco principal era tocar no chão com suavidade; só o suficiente para me
impulsionar. Na minha terceira instrução BUD/S e depois no primeiro
pelotão, quando era considerado um dos melhores em corrida, a minha
cabeça balançava para todo o lado. O meu corpo não estava equilibrado e
quando um pé tocava no chão todo o peso era suportado só por essa perna, o
que provocava quedas desajeitadas em terreno escorregadio. Por tentativa e
erro, e milhares de horas de treino, aprendi a manter o equilíbrio.
Na Frozen Otter, tudo isso se uniu para fazer sentido. Com velocidade e
elegância, atravessei trilhos íngremes e escorregadios. Mantive a cabeça
quieta e no mesmo plano, os movimentos suaves, e dava passadas
silenciosas; corria apoiando primeiro a parte da frente dos pés. Ganhava
velocidade e era como se desaparecesse num vento branco, elevado a um
estado meditativo. Transformei-me no Karl Meltzer. Agora, era eu que
parecia levitar sobre um trilho impossível e acabei a corrida em 16 horas,
pulverizando o recorde da prova e ganhando o título sem perder qualquer
dedo do pé.
Os dedos dos meus pés depois da Frozen Otter
Dois anos antes, a fazer corridas fáceis de dez quilómetros, sentira
tonturas. Em 2013, na Badwater, vi-me obrigado a caminhar mais de 160
quilómetros e acabei em décimo sétimo lugar. Tinha atravessado um mau
momento e pensei que os meus dias em que podia discutir títulos tinham
passado. Depois da Frozen Otter, fui tentado a acreditar que regressara ao
nível anterior, que talvez até estivesse melhor e tivesse pela frente os
melhores anos nas provas ultra. Levei essa energia para os preparativos para
a Badwater 2014.
Eu vivia então em Chicago e trabalhava como instrutor numa
preparatória BUD/S, uma escola que formava candidatos para lidarem com
a realidade difícil que encontrariam na instrução BUD/S. Ao cabo de mais
de vinte anos, encontrava-me no último ano de serviço militar e, ao ser
colocado numa posição de onde me era possível transmitir conhecimento
aos aspirantes – e também aos farsantes –, senti que tinha completado um
ciclo. Como era habitual, fazia a correr os 16 quilómetros entre casa e o
trabalho, mais o caminho de regresso, e à hora de almoço, sempre que
podia, arranjava tempo para fazer mais uns 12 quilómetros. Aos fins de
semana, corria pelo menos uma vez entre cinquenta e 64 quilómetros. Tudo
se ia juntando numa sucessão de semanas de 210 quilómetros – e eu sentia-
me forte. Ao chegar a primavera, adicionei uma componente de treino para
o calor e antes de ir correr vestia quatro ou cinco camadas de sweatshirts,
um capuz e um blusão em Gore-Tex. Quando chegava ao trabalho, os meus
companheiros instrutores SEAL olhavam para mim espantados enquanto eu
descascava as camadas de roupa e as metia em sacos de lixo pretos que,
juntos, pesavam quase sete quilos.
Comecei o processo de redução de exercício com quatro semanas de
antecedência. Passei das semanas de 210 quilómetros para 128, cem,
sessenta e trinta. Supõe-se que a diminuição propositada de exercício gere
uma abundância de energia enquanto se come e descansa, permitindo ao
corpo reparar todo o dano feito e preparar-se para a competição. Mas, em
vez disso, eu nunca me senti pior. Não tinha fome e não conseguia dormir.
Algumas pessoas disseram-me que o meu corpo estava ávido de calorias.
Outras sugeriram que os valores de sódio podiam estar baixos. O meu
médico avaliou-me a tiroide e estava, na verdade, um pouco descontrolada,
mas os resultados não eram assim tão maus que explicassem como me
sentia mal. Talvez a explicação fosse simples. Era excesso de treino.
Duas semanas antes da corrida, pensei não participar. Preocupava-me
que fosse outra vez o coração, porque em saídas fáceis para correr sentia
uma onda de adrenalina que não conseguia descarregar. Até num ritmo
lento, a pulsação acelerava até ao ponto de arritmia. Dez dias antes da
corrida, viajei de avião para Las Vegas. Tinha programado fazer cinco
saídas a correr, mas em nenhuma delas consegui ir além dos cinco
quilómetros. Não estava a comer assim tanto, mas continuava a ganhar
peso. Era tudo água. Fui ver outro médico, que confirmou que não havia
nada de fisicamente errado comigo; ao ouvi-lo dizer isso, decidi que não ia
armar-me em fraco.
Nos primeiros quilómetros, e na subida inicial da Badwater, a minha
pulsação cardíaca era elevada, mas em parte isso devia-se à altitude, e 35
quilómetros depois cheguei ao cimo em sexto ou sétimo lugar. Surpreendido
e orgulhoso, pensei: vamos lá a ver se consigo fazer a descida. Nunca gostei
da brutalidade que é descer uma encosta a correr, porque isso desfaz os
quadris, mas também pensei que me permitiria recompor e acalmar a
respiração. O meu corpo recusou-se. Não conseguia recuperar o fôlego.
Cheguei à parte plana cá em baixo, abrandei o ritmo e comecei a caminhar.
Os outros concorrentes passaram por mim enquanto os músculos das
minhas pernas se sacudiam de forma descontrolada. Os espasmos eram de
tal ordem que parecia que eu tinha um alien dentro de mim a mexer-me as
ancas.
E, apesar disso tudo, não parei! Caminhei seis quilómetros completos
antes de procurar abrigo num quarto do motel Lone Pine, onde se tinha
instalado a equipa médica da Badwater. Observaram-me e viram que tinha a
pressão sanguínea um pouco baixa, mas que isso era facilmente corrigível.
Não encontraram um único valor que conseguisse explicar porque me sentia
tão lixado.
Comi alimentos sólidos, descansei e decidi tentar mais uma vez. Havia
uma secção plana que saía do Lone Pine e pensei que se conseguisse
superá-la talvez encontrasse um segundo fôlego, mas uns nove ou 11
quilómetros depois o vento já não soprava nas minhas velas e eu dera tudo o
que tinha. Os músculos tremiam e contorciam-se e o coração andava aos
saltos. Olhei para o tipo que me acompanhava e disse: “É isto, meu. Estou
acabado.”
O meu carro de apoio parou atrás de nós e entrei nele. Uns minutos
depois, estava deitado na cama do motel, com o rabo entre as pernas. Não
aguentara mais de oitenta quilómetros, mas qualquer humilhação associada
à desistência – coisa a que eu não estava habituado – foi afogada pela
intuição de que havia qualquer coisa que estava tremendamente mal. Aquilo
não eram os meus medos a falar, nem o meu desejo de conforto. Desta vez,
tinha a certeza de que não teria saído com vida daquelas montanhas se não
tivesse desistido de tentar ultrapassar aquela barreira.
Saímos do Lone Pine para Las Vegas, na noite seguinte, e durante dois
dias fiz tudo para descansar e recuperar, esperando que o meu corpo
atingisse um ponto próximo do equilíbrio. Estávamos hospedados no hotel
Wynn e, nessa manhã, saí para dar uma corrida, para ver se ainda me
restava algum combustível no depósito. Menos de dois quilómetros depois
já estava com o coração na boca e parei imediatamente. Caminhei de volta
ao hotel, sabendo que, apesar de tudo o que os médicos tinham dito, estava
doente; suspeitava que, fosse o que fosse, era grave.
Nessa noite, depois de ir ver um filme numa sala nos subúrbios de Las
Vegas, senti-me fraco enquanto caminhávamos para um restaurante
próximo, o Elephant Bar. A minha mãe seguia uns passos à minha frente e
eu via-a a triplicar. Fechei os olhos, voltei a abri-los – e ainda havia três
dela. A minha mãe abriu-me a porta e, ao entrar na sala refrigerada, senti-me
um pouco melhor. Ficámos numa cabine, um à frente do outro. Eu nem
conseguia ler o menu e pedi-lhe que encomendasse para mim. A partir desse
ponto, tudo piorou, e quando o empregado trouxe o que tínhamos pedido, a
visão voltou a ficar turva. Esforcei-me por manter os olhos abertos e senti-
me tonto, enquanto a minha mãe parecia flutuar sobre a mesa.
“Vais ter de chamar uma ambulância”, disse-lhe, “porque vou desmaiar.”
Desesperado por encontrar alguma estabilidade, pousei a cabeça sobre a
mesa, mas a minha mãe não telefonou a chamar uma ambulância. Deu a
volta à mesa e veio sentar-se ao meu lado; apoiei-me nela e caminhámos até
à porta e de regresso ao carro. No caminho, falei-lhe de tudo do que me
recordava do meu historial clínico, em apontamentos curtos, para o caso de
desmaiar e de ela ter de pedir ajuda. Felizmente, a minha visão e a minha
energia melhoraram o suficiente para ela me conseguir levar às urgências.
Já no passado tinha tido problemas com a tiroide, por isso foi a primeira
coisa que os médicos exploraram. Muitos SEAL têm problemas de tiroide
na casa dos trinta anos. Quando se põe um filho da mãe qualquer em
ambientes extremos, como Semanas Infernais e guerras, o seu nível
hormonal vai ficar descontrolado. Se o funcionamento da glândula tiroide
for abaixo de ótimo, fadiga, dores musculares e debilidade podem surgir
entre mais de uma dezena de efeitos secundários consideráveis, mas os
meus indicadores da tiroide estavam próximos do normal. O coração
também estava bem. Os médicos das urgências em Las Vegas disseram-me
que eu só precisava de descansar.
Regressei a Chicago e fui ao meu médico, que me mandou fazer uma
quantidade de análises ao sangue. Examinaram-me o sistema endócrino e
procuraram sinais de doença de Lyme, hepatite, artrite reumatoide e uma
mão-cheia de outras doenças autoimunes. Os resultados vieram todos sem
nada a assinalar, com exceção da tiroide, ligeiramente abaixo do nível de
funcionamento desejável, mas isso não explicava por que razão tinha eu
passado tão depressa da condição de atleta de elite, capaz de correr centenas
de quilómetros, para a de alguém que mal conseguia ter energia para apertar
os sapatos, quanto mais correr um quilómetro sem ficar à beira do colapso.
Encontrava-me numa terra de ninguém da medicina. Saí do consultório com
mais perguntas do que respostas e uma receita de medicamentos para a
tiroide.
Sentia-me pior a cada dia. Tudo desabava sobre mim. Tinha dificuldade
em sair da cama, com problemas intestinais e dores. Fizeram-me mais
análises ao sangue e decidiram que tinha Addison, uma doença autoimune
que ocorre quando as glândulas suprarrenais estão secas e o corpo não
produz suficiente cortisol – o que é comum entre os SEAL, porque somos
preparados para funcionar à base de adrenalina. Entre outros medicamentos,
o médico receitou-me o esteroide hidrocortisona, DHEA e Arimidez, mas os
comprimidos só aceleraram o meu declínio. Ele e outros médicos que
consultei não tinham pistas. Na cabeça deles, ou eu era um louco
hipocondríaco ou estava a morrer e eles não sabiam nem o que me estava a
matar nem como me tratar.
Nesta situação, lutei o melhor que pude. Os meus colegas nada sabiam
sobre este meu declínio porque eu continuei a não mostrar fraqueza. Toda a
vida tinha andado a esconder inseguranças e trauma. Mantive as
vulnerabilidades encerradas sob uma capa de aço, mas as dores acabaram
por tornar-se tão más que já não conseguia levantar-me. Telefonei a dizer
que estava doente e fiquei deitado, a olhar para o teto, e a pensar: será isto o
fim?
Espreitar para o abismo pôs a minha mente a dar voltas pelos dias,
semanas e anos passados, como dedos a passarem ficheiros. Encontrei todas
as melhores partes e uni-as numa amálgama de coisas a destacar,
transmitida em repetição contínua. Cresci a levar pancada e abusado,
atravessei sem educação um sistema que me rejeitou em cada ocasião, até
que assumi o controlo e comecei a mudar. Já tinha sido obeso. Casei e
divorciei-me. Passei por duas cirurgias ao coração, aprendi sozinho a nadar
e também a correr com as pernas partidas. Tinha pânico de alturas e lancei-
me a fazer saltos de paraquedas de grande altitude. Tinha um pavor terrível
da água e, no entanto, tornei-me técnico de mergulho e especialista em
orientação submarina, o que está uns furos de dificuldade acima de fazer
mergulho. Competi em mais de sessenta provas ultra, ganhando várias, e
estabeleci um recorde de elevações em barra. Nos primeiros anos da
primária, gaguejava e acabei por tornar-me o orador público em que os
SEAL mais confiavam. Servi o meu país no campo de batalha. Pelo
caminho, ganhei a determinação de não ser definido pelo abuso em que
nasci ou pela perseguição em que cresci. Também não seria definido pelo
talento, não tinha muito; nem pelos meus próprios medos ou debilidades.
Eu era a soma total dos obstáculos que tinha ultrapassado. E embora
tivesse contado a minha história a estudantes de todo o país, nunca me
detive o suficiente para apreciar esse relato em que narrava a vida que tinha
construído. Na minha cabeça, não tinha tempo a perder. Nunca carreguei no
botão de pausa do relógio da minha vida, porque havia sempre outra coisa
qualquer para fazer. Se tivesse um dia de vinte horas de trabalho, ainda fazia
uma de exercício e dormia três, mas de maneira a não falhar nunca. O meu
cérebro não estava programado para apreciar e sim para trabalhar, perscrutar
o horizonte, perguntar o que vinha a seguir e fazê-lo. É por isso que
acumulei tantas proezas invulgares. Estava sempre em busca da próxima
coisa importante, mas nesse momento, ali na minha cama, com o corpo em
tensão extrema e a palpitar de dor, tinha uma ideia clara do que vinha a
seguir. O cemitério. Ao fim de anos no limite, tinha finalmente despedaçado
o meu corpo físico, levando-o para lá de um ponto em que não havia
conserto.
Estava a morrer.
Durante semanas, meses, procurei uma cura para o meu mistério médico,
mas, nesse momento de catarse, não me senti triste e também não me senti
defraudado. Só tinha 38 anos, mas era como se tivesse vivido dez vidas e
experimentado muito mais do que a maior parte das pessoas com oitenta.
Não tinha pena de mim. Fazia sentido que, a certo ponto, o desgaste
cobrasse um preço. Passei horas a refletir sobre a minha jornada. Desta vez,
não estava a vasculhar o Frasco das Bolachas no meio do calor da batalha à
procura de encontrar um bilhete para a vitória. Não estava a usar os recursos
da minha vida com vista a um novo objetivo. Não, tinha terminado de lutar,
e só sentia gratidão.
Eu não estava destinado a ser esta pessoa! Tive sempre de lutar contra
mim, e agora o meu maior troféu era o meu corpo destruído. Nesse
momento, sabia que não importava se voltaria a correr outra vez, se já não
poderia mexer-me mais, ou se iria viver ou morrer; e, com essa aceitação,
veio um profundo agradecimento.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas. Não porque tivesse medo, mas
porque naquele momento, no ponto mais baixo, encontrei lucidez. A criança
que sempre julguei com tanta dureza não mentia nem enganava para ferir os
sentimentos de ninguém. Fazia-o para ser aceite. Violava as regras porque
não possuía as ferramentas para competir e tinha vergonha de ser burro. Fez
isso porque precisava de amigos. Eu tinha medo de dizer aos professores
que não sabia ler. Aterrorizava-me o estigma associado à educação especial
e, em vez de condenar essa criança por um segundo mais, em vez de
castigar o meu eu mais jovem, compreendi-o pela primeira vez.
Foi uma travessia solitária de lá até aqui. Tinha perdido muita coisa. Não
me divertira muito. A felicidade não era o meu cocktail preferido. O meu
cérebro mantinha-me em alerta permanente. Vivi no medo e na dúvida,
aterrado pela perspetiva de ser um zé-ninguém e não contribuir com nada.
Tinha-me julgado constantemente – e também tinha julgado todos à minha
volta.
A fúria é uma coisa poderosa. Durante anos, tinha sentido fúria contra o
mundo, canalizado toda a dor que vinha do meu passado usando-a como
combustível para me disparar para a puta da estratosfera, mas nem sempre
conseguia controlar o raio da explosão. Às vezes, a minha raiva abrasou
pessoas que não eram tão fortes como eu me tinha tornado, ou que não
trabalhavam com tanto esforço, e eu não mordia a língua nem escondia a
minha opinião. Dizia-a – e isso magoou algumas das pessoas à minha volta
e permitiu a outras que não gostavam de mim prejudicarem a minha carreira
militar. Mas deitado na cama, em Chicago, naquela manhã do outono de
2014, larguei todo esse julgamento.
Libertei-me, e a todos os que tinha conhecido, de qualquer culpa e
amargura. Era longa a lista dos críticos, incrédulos, racistas e abusadores
que povoavam o meu passado, mas já não era mais capaz de os odiar.
Mereciam o meu reconhecimento, porque tinham contribuído para me criar.
E, à medida que esse sentimento alastrava, a minha mente aquietou-se. Há
38 anos que andava a travar uma guerra e agora, no que parecia e dava a
sensação de ser o final absoluto, encontrava paz.
Existem na vida inúmeros caminhos para a autossuperação, embora a
maioria exija uma disciplina intensa – e por isso são tão poucos os que os
seguem. Na África Austral, o povo San dança trinta horas seguidas como
forma de entrar em comunhão com o divino. No Tibete, os peregrinos
erguem-se, ajoelham-se e depois estendem-se ao comprido, de rosto no
chão, antes de se erguerem de novo, num ritual de prostração que dura
semanas e meses, enquanto percorrem milhares de quilómetros antes de
chegarem a um templo sagrado e se dedicarem a uma meditação profunda.
No Japão, há um grupo de monges zen que corre mil maratonas em mil
dias, numa demanda para encontrar iluminação através da dor e do
sofrimento. Não sei se pode chamar-se “iluminação” àquilo que me
aconteceu naquela cama, mas sei que a dor desbloqueia uma passagem
secreta na mente. Uma passagem que conduz tanto a um rendimento
máximo como a um silêncio belo.
Ao princípio, se vamos para lá da capacidade que percebemos em nós, a
mente não se cala com isso. Quer que paremos, e por isso lança-nos num
círculo vicioso de pânico e dúvida, que só amplifica a autotortura. Mas se
persistimos para lá desse ponto, até a dor saturar completamente a mente,
passamos a ter um único foco. O mundo exterior desaparece. As fronteiras
dissolvem-se e sentimo-nos ligados a nós mesmos, e a todas as coisas, no
fundo da alma. Era isso que eu procurava. Esses momentos de ligação total
e poder, aos quais acedia de novo, e de uma maneira ainda mais profunda,
enquanto refletia sobre de onde vinha e tudo pelo que tinha passado.
Durante horas, flutuei nesse espaço tranquilo, rodeado por luz, sentindo
tanta gratidão como dor, tanto reconhecimento como desconforto. A certo
ponto, esse estado de sonho revelou-se como uma febre. Sorri, coloquei as
palmas das mãos sobre os olhos húmidos e esfreguei a parte de cima e de
trás da cabeça. Senti um nó familiar na base do pescoço. Estava maior do
que nunca. Atirei os lençóis para trás e examinei também os nós sobre os
músculos flexores das ancas. Também tinham aumentado de tamanho.
Poderia ser assim tão básico? Poderia o meu sofrimento estar ligado
àqueles nós? Lembrei-me imediatamente de uma sessão com um
especialista em alongamentos e em métodos avançados de treino físico e
mental que os SEAL levaram, em 2010, à base de Coronado, chamado Joe
Hippensteel. Na universidade, fora um praticante de decatlo. Era demasiado
baixo, mas estava determinado em chegar à equipa olímpica. Só que isso
não é fácil quando se tem 1,64 metros e se enfrentam decatlonistas de classe
mundial com uma média de 1,78. Ele decidiu fortalecer os membros
inferiores de modo a conseguir suplantar a genética e a saltar mais alto e a
correr mais depressa do que os adversários maiores e mais fortes. Houve um
momento em que já levantava o dobro do seu peso em dez séries de dez
repetições numa sessão, mas esse aumento de massa corporal trouxe
também muita tensão, e a tensão convida a lesões. Quanto mais treinava,
mais lesões fazia e mais fisioterapeutas consultava. Ao saber, imediatamente
antes das qualificações olímpicas, que tinha feito uma rotura nos músculos
isquiotibiais, o sonho de ir aos jogos morreu – e ele percebeu que precisava
de mudar a forma como treinava. Começou a equilibrar o trabalho de força
com alongamentos prolongados e reparou que sempre que chegava a um
certo grau de movimento numa articulação ou grupo muscular específico,
desaparecia qualquer dor que existisse nessa zona.
Tornou-se o seu próprio porquinho-da-índia e desenvolveu amplitudes
ótimas de movimento para cada músculo e articulação do corpo humano.
Nunca mais voltou a médicos ou a fisioterapeutas, porque a sua própria
metodologia se revelou muito mais eficaz. Se surgisse uma lesão, ele
tratava-a com um regime de alongamentos. Com os anos, criou uma
clientela e uma reputação entre atletas de elite na região, e, em 2010, foi
apresentado a alguns SEAL. A informação correu no Centro de Comando
Naval de Guerra Especial e ele acabou por ser convidado a apresentar o seu
programa de amplitude de movimentos a cerca de duas dezenas de SEAL.
Eu era um deles.
Enquanto dava a sua palestra, ia-nos examinando e fazendo
alongamentos. O problema com a maior parte de nós, observou, era o uso
excessivo dos músculos sem o equilíbrio adequado de flexibilidade, e esses
problemas remontavam à Semana Infernal, quando nos pediram para fazer
milhares de levantamentos de pernas e a seguir ficar deitados de costas na
água gelada, com as ondas a passarem-nos por cima. Ele calculou que
seriam necessárias vinte horas de alongamentos intensivos, usando a sua
rotina, para conseguir que a maior parte de nós voltasse a ter uma amplitude
de movimento normal nas ancas, que a partir daí poderia ser mantida,
segundo o seu cálculo, com apenas vinte minutos de alongamentos diários.
Conseguir uma amplitude de movimento ótima exigia um compromisso
maior. Chegou junto a mim, avaliou-me bem e abanou a cabeça. Como é
sabido, eu tinha passado por três Semanas Infernais. Começou a alongar-me
e disse que eu estava tão tenso que era como tentar esticar cabos de aço.
“Tu vais precisar de centenas de horas”, disse.
Eu não lhe prestei então muita atenção, porque não tinha planos para
fazer alongamentos nenhuns. A força e a potência obcecavam-me, e tudo o
que lera sugeria que um aumento de flexibilidade equivalia a uma
diminuição igual e oposta em velocidade e em força. A minha perspetiva no
leito de morte alterou essa ideia.
Ergui-me, cambaleei até ao espelho da casa de banho, virei-me e
examinei o nó na cabeça. Estiquei-me o mais alto que pude. Parecia-me que
não tinha perdido uns dois, mas sim uns quatro centímetros de altura. A
minha amplitude de movimentos nunca fora pior. E se Joe Hippensteel
tivesse razão?
E se?
Um dos meus lemas, hoje, é em paz, mas nunca satisfeito. Uma coisa era
desfrutar da paz da autoaceitação, e a minha aceitação do maldito mundo tal
como ele é, mas isso não significava ficar deitado e à espera de morrer sem
pelo menos tentar salvar-me. Não queria dizer então, e continua a não
querer dizer hoje, que aceitarei o que é imperfeito ou está errado sem lutar
para mudar as coisas para melhor. Procurara seguir a corrente dominante em
busca de uma cura, mas os médicos e os seus medicamentos não fizeram
porra nenhuma, a não ser deixarem-me a sentir muito pior. Já não tinha mais
cartas para jogar. Só me restava uma coisa: alongar-me para recuperar a
saúde.
A primeira posição foi simples. Sentei-me no chão e procurei cruzar as
pernas, ao estilo índio, mas as ancas estavam tão rígidas que os joelhos
ficavam à altura do pescoço. Desequilibrei-me e caí de costas. Precisei de
toda a força para me endireitar e tentar outra vez. Fiquei na posição dez
segundos, talvez 15, antes de esticar as pernas, porque a dor era absurda.
Sentia cãibras a apertar e a beliscar todos os músculos da parte de baixo
do corpo. Transpirava por todos os poros, mas, depois de uma curta pausa,
voltei a dobrar as pernas – e a sentir mais dor. Repeti esse ciclo, com
pausas, durante uma hora, e lentamente o meu corpo começou a abrir-se. A
seguir, fiz um alongamento simples dos quadris, aquele que todos
aprendemos a fazer na secundária. Assente na perna esquerda, dobrei a
direita e agarrei o pé com a mão direita. Joe tinha razão. Os meus quadris
estavam tão volumosos e tensos que era realmente como alongar cabos de
aço. Fiquei nessa posição até a dor crescer até um nível de sete numa escala
de dez. Depois, parei um pouco e repeti os gestos, do outro lado do corpo.
Essa posição ajudou-me a soltar os quadris e a esticar o psoas. O psoas é
o único músculo que une a coluna à parte inferior das pernas. Enrola-se pela
parte interior da pélvis, governa as ancas e é conhecido como o músculo de
lutar ou fugir. Como já percebeu, toda a minha vida foi lutar ou fugir. Em
miúdo, afogado em stresse tóxico, fiz esse músculo trabalhar horas
extraordinárias. O mesmo aconteceu nas três Semanas Infernais, na Escola
de Rangers e na Seleção Delta. Para não falar da guerra. E, no entanto,
nunca fiz nada para o descontrair; enquanto atleta, continuei a recorrer ao
meu sistema nervoso simpático e a esforçar tanto o psoas que este acabou
por endurecer. Especialmente em corridas longas, onde também entravam
em jogo a privação de sono e o clima frio. Agora, ele tentava asfixiar-me a
partir de dentro. Saberia, mais tarde, que ele tinha inclinado a pélvis,
comprimido a coluna e envolvido e apertado o tecido conjuntivo. Cortou-
me quatro centímetros na altura. Falei há pouco tempo com o Joe sobre isto.
“O que estava a acontecer contigo era um caso extremo daquilo que se
passa com 90 por cento da população”, disse-me. “Tinhas os músculos tão
contraídos que o sangue não circulava devidamente. Eram como um bife
congelado. Não é possível injetar sangue num bife congelado e por isso é
que o corpo estava a deixar de funcionar.”
E o problema não ia desaparecer sem dar luta. Cada alongamento era
como mergulhar em fogo. A inflamação e a rigidez interior eram de tal
ordem que o mais pequeno dos movimentos causava dor, para não falar de
posições que era preciso manter durante mais tempo, com o objetivo de
soltar os quadríceps e o psoas. A tortura intensificou-se quando, a seguir, me
sentei e fiz o alongamento da mariposa.
Nesse dia, fiz alongamentos durante duas horas, acordei inchado como
tudo e voltei a insistir. No segundo dia, fiz seis horas completas. Repetia
sem parar as mesmas três posições e, depois, procurava sentar-me sobre os
calcanhares, num duplo alongamento dos quadríceps que era sofrimento
puro. Também experimentei um alongamento do calcanhar. Cada sessão
começava com dificuldade, mas ao fim de uma hora ou duas, o meu corpo
já se tinha soltado o suficiente para a dor abrandar.
Não demorou muito até chegar a um ponto em que fazia alongamentos
até 12 horas por dia. Acordava às seis da manhã, alongava até às nove e,
depois, ia intercalando os exercícios com os períodos passados à secretária a
trabalhar, em especial se estava ao telefone. Na hora de almoço também
fazia alongamentos e, ao chegar a casa, pelas cinco da tarde, fazia várias
posições até ir para a cama.
Inventei uma rotina, começando pelo pescoço e ombros antes de
continuar para as ancas, psoas, glúteos, quadríceps, isquiotibiais e
calcanhares. Os alongamentos tornaram-se a minha nova obsessão. Comprei
uma bola de massagem para tentar suavizar o psoas. Fixei uma tábua contra
uma porta fechada num ângulo de setenta graus e usei-a para alongar os
calcanhares. Há quase dois anos inteiros que estava a sofrer e, depois de
meses de alongamentos continuados, dei conta de que o alto na base do
crânio começara a diminuir, tal como os nós em volta dos flexores das
ancas; a minha saúde geral e energia também tinham melhorado. Ainda não
estava sequer perto de ser flexível, e não tinha voltado a ser completamente
eu, mas largara todos os medicamentos, exceto os da tiroide, e quanto mais
alongamentos fazia, mais o meu estado melhorava. Continuei a fazê-los
pelo menos seis horas por dia, durante semanas. E depois, durante meses. E
anos. Ainda os faço.
***
Reformei-me da tropa como suboficial chefe da Marinha em novembro
de 2015; era o único militar que alguma vez fizera parte da TAC-P da Força
Aérea, passara por três Semanas Infernais nos SEAL da Marinha no espaço
de um ano (concluindo duas) e se formara na instrução BUD/S e na Escola
de Rangers. Foi um momento agridoce, porque ser militar era uma parte
muito grande da minha identidade. Ajudou a formar-me e fez de mim um
homem melhor; e eu dei tudo o que tinha.
O Bill Brown também já tinha então seguido com a sua vida. Cresceu
marginalizado como eu, não deveria ter alcançado grande coisa e até foi
afastado da sua primeira instrução BUD/S por instrutores que puseram em
causa a sua inteligência. Hoje, é advogado num escritório importante de
Filadélfia. O Freak Brown mostrou-se ao mundo e continua a mostrar-se.
O Sledge ainda está nas Equipas Seal. Era um grande bêbedo quando o
conheci, mas depois dos nossos exercícios, a sua mentalidade mudou. Ele,
que nunca corria de todo, passou a fazer maratonas. Ele, que nem bicicleta
tinha, tornou-se um dos ciclistas mais velozes de San Diego. Concluiu
vários triatlos Ironman. Dizem que “aço afia-se com aço” – e nós
demonstrámos isso.
O Shawn Dobbs nunca se tornou SEAL, mas chegou a oficial. Tem a
patente de tenente comandante e ainda é um atleta tremendo. É um Ironman,
um ciclista exímio, foi eleito Alistado de Honra na Escola de Mergulho
Avançado da Marinha e, mais tarde, fez uma licenciatura. Uma razão para
todo este êxito é o facto de ter conseguido apropriar-se do seu fracasso na
Semana Infernal – o que significa que esse fracasso deixou de ser dono dele.
O SBG também ainda está na Marinha, mas já não anda a implicar com
os candidatos BUD/S. É analista de dados e procura garantir que a guerra
especial naval continue a tornar-se mais inteligente, mais forte e mais eficaz
do que nunca. Agora, é um tipo estudioso. Um intelectual com atitude. Mas
eu conheci-o no seu auge físico e era um atleta do catano.
Desde os dias sombrios em Buffalo e Brazil, a minha mãe também
transformou completamente a sua vida. Fez um mestrado em educação e é
voluntária num grupo de ação para casos de violência doméstica, além de
vice-presidente associada sénior numa escola médica de Nashville.
Quanto a mim, os alongamentos ajudaram-me a recuperar os meus
poderes. Quando o meu tempo nas forças armadas chegava ao fim, e ainda
estava em modo de reabilitação, estudei para obter uma certificação como
técnico de emergências médicas. Uma vez mais, utilizei as minhas
capacidades de memorização, que aperfeiçoava desde a preparatória, para
terminar como o melhor da turma. Também frequentei a academia de treino
contra incêndios TEEX, onde me formei como Alistado de Honra no meu
grupo. Também recomecei a correr, desta vez com zero efeitos secundários,
e, depois de regressar a uma forma suficientemente decente, entrei numas
quantas ultramaratonas e voltei a ganhar várias, incluindo os 160
quilómetros Strolling Jim, no Tennessee, e a Infinitus, de 88 quilómetros, no
Vermont. Mas isso não era suficiente, pelo que me tornei bombeiro florestal
no Montana.
Depois de concluir a primeira temporada nas linhas da frente dos
incêndios, no verão de 2015, passei por casa da minha mãe em Nashville,
para a visitar. O telefone dela tocou à meia-noite. A minha mãe é como eu,
no sentido em que não tem um círculo de amigos alargado e não recebe
muitos telefonemas, nem sequer a horas decentes, por isso ou era engano ou
era uma emergência.
Consegui ouvir Trunnis Jr. do outro lado. Há 15 anos que não o via ou
falava com ele. A nossa relação interrompeu-se no momento em que ele
escolheu ficar com o pai, em vez de suportar dificuldades connosco.
Durante a maior parte da vida, considerei que era impossível perdoar ou
aceitar essa decisão, mas, como já disse, eu tinha mudado. Ao longo dos
anos, a minha mãe foi-me mantendo a par das informações essenciais. Ele
acabara por se afastar do pai e dos seus negócios obscuros, fizera um
doutoramento e era administrador universitário. É também um grande pai
para os seus filhos.
Pela voz da minha mãe, percebi que qualquer coisa não estava bem. Só
me lembro de a ouvir perguntar “Tens a certeza de que é a Kayla?” Ela
desligou e contou-me que a Kayla, a filha de 18 anos do meu irmão, saíra
com amigos em Indianápolis. Apareceram conhecidos distantes, surgiram
rancores, alguém puxou de uma arma, houve tiros e uma bala perdida
atingiu um dos adolescentes.
A ex-mulher ligou-lhe, em pânico, ele meteu-se no automóvel e foi
imediatamente para o local do crime, mas a polícia tinha vedado tudo com
fita e ninguém dizia nada. Distinguiu o automóvel de Kayla e um corpo
coberto por um oleado, mas ninguém lhe disse se a filha estava viva ou
morta.
Eu e a minha mãe pusemo-nos imediatamente a caminho. Conduzi a 130
quilómetros por hora debaixo de cortinas de chuva, durante cinco horas, até
chegarmos a Indianápolis. Estacionámos em casa dele pouco depois de ele
ter regressado do local do crime, onde, fora do perímetro da fita amarela,
lhe pediram para identificar a filha a partir de uma fotografia do corpo
tirada pelo telemóvel de um detetive. Não lhe deram a dignidade, nem a
privacidade, nem o tempo para se despedir ou lhe prestar um tributo. Teria
de fazer tudo isso mais tarde. Abriu a porta, caminhou uns quantos passos
para nós e desfez-se em lágrimas. A minha mãe abraçou-o primeiro. Depois,
eu puxei-o para mim, também para um abraço, e os nossos problemas de
merda deixaram de importar mais.
***
Buda terá afirmado, numa citação muito reproduzida, que vida é
sofrimento. Eu não sou budista, mas sei o que ele queria dizer, e o leitor
também. Para existir neste mundo, temos de enfrentar humilhação, sonhos
desfeitos, tristeza e perda. A natureza é mesmo assim. Cada vida específica
vem com a sua própria dose de dor, personalizada. Há de chegar a si. Não
pode detê-la. E sabe isso muito bem.
Como resposta, a maioria das pessoas está programada para procurar o
conforto, como forma de tudo anestesiar e de suavizar os golpes.
Construímos espaços seguros. Consumimos meios de comunicação que
confirmam aquilo em que acreditamos, escolhemos passatempos alinhados
com os nossos talentos, passamos a menor quantidade de tempo possível a
realizar tarefas que detestamos – e isso torna-nos brandos. Levamos uma
vida definida pelos limites que imaginamos e desejamos para estamos
confortáveis como o diabo dentro dessa caixa. Não só para nós, mas para a
família mais próxima e amigos. Os limites que criamos e aceitamos tornam-
se a lente pela qual nos veem. Através da qual nos amam e nos apreciam.
Mas, para alguns, esses limites começam a ser sentidos como uma prisão.
Quando menos esperamos, a imaginação galga esses muros e parte na
perseguição de sonhos que, no imediato, parecem alcançáveis. Porque a
maior parte dos sonhos são de facto alcançáveis. Somos motivados a fazer
mudanças pouco a pouco – e isso custa. Quebrar as grilhetas e estendermo-
nos para lá dos nossos limites percebidos dá um trabalho do catano – muitas
vezes, um esforço físico –, e ao corrermos riscos seremos recebidos pela
dúvida e pela dor, uma combinação poderosa, capaz de nos deixar de
joelhos.
A maior parte das pessoas com uma inspiração ou motivação apenas
ligeira desistirão logo aqui. Quando regressarem ao ponto de partida,
sentirão que as suas celas são muito mais pequenas e que as suas grilhetas
estão mais apertadas. Os poucos que ficam do outro lado do muro depararão
ainda com mais dor e muito mais dúvidas, por obra e graça daqueles que
pensavam que eram os seus maiores admiradores. No momento em que
devia perder cinquenta quilos em menos de três meses, todos aqueles com
quem falei me disseram que não haveria maneira de o conseguir. “Não
tenhas expetativas muito altas”, diziam-me. Essas observações frouxas só
serviram para alimentar as dúvidas que eu tinha sobre mim.
Mas não são as vozes externas que nos derrubarão. Aquilo que importa é
o que dizemos a nós mesmos. As conversas mais importantes que teremos
são as conversas que teremos connosco. Acordamos com elas, caminhamos
com elas, deitamo-nos com elas e, eventualmente, agimos em função delas.
Sejam boas ou más.
Nós somos os piores críticos e quem mais duvida de nós, porque a
dúvida é uma reação natural a qualquer tentativa ousada para mudar a vida
para melhor. É impossível não deixar que ela floresça no cérebro, mas é
possível neutralizá-la, e a toda a conversa exterior, fazendo uma pergunta
simples: E se?
“E se?” equivale a um “vai à merda” sofisticado, dirigido a quem quer
que tenha duvidado da sua grandeza ou se tenha atravessado no seu
caminho. Silencia as abordagens negativas. Recorda que ninguém sabe
realmente do que é capaz até ter dado absolutamente tudo. Transmite a
sensação de que o impossível é, pelo menos, um pouco mais possível. “E
se?” é o poder e a autorização para enfrentar os demónios interiores mais
sombrios e as piores recordações e aceitá-las como parte da nossa história
pessoal. Quando o fizer, e sempre que o fizer, conseguirá usar a sua história
como combustível para imaginar o objetivo mais audacioso e incrível – e ir
atrás dele.
Vivemos num mundo com muitas pessoas inseguras e invejosas.
Algumas até são os nossos melhores amigos. Ou familiares próximos. O
fracasso aterroriza-os. O nosso êxito também. Porque, ao transcendermos
aquilo que julgávamos possível, alargarmos os nossos limites e nos
tornarmos mais, a nossa luz vai incidir sobre os muros que ergueram à volta
deles. E essa nossa luz vai permitir-lhes que vejam os contornos da sua
própria prisão, os seus próprios limites. Mas se eles forem realmente as
pessoas fantásticas que sempre julgámos que eram, então a sua inveja vai
evoluir e, em breve, também a sua imaginação pode dar o salto; será a vez
de eles mudarem para melhor.
Espero que este livro tenha feito isto por si. Espero que, neste preciso
momento, esteja a visualizar perfeitamente os muros idiotas que o limitam a
si e que nem sabia que existiam. Espero que esteja disposto a trabalhar para
os derrubar. Espero que esteja com vontade de mudar. Vai sentir dor, mas se
a aceitar, a suportar e calejar a sua mente, atingirá um ponto em que nem
sequer a dor o consegue magoar. Há, no entanto, um problema: quando se
vive desta forma, esta prática não tem fim.
Graças a todos os alongamentos, estou em melhor forma aos 43 anos do
que estava aos vinte. Nesse tempo, andava sempre doente, tenso e stressado.
Nunca analisei a fundo porque sempre sofri de fraturas de stresse. Só lhes
punha adesivo por cima. E usava essa solução para tudo o que estivesse a
fazer mal ao corpo ou ao espírito: punha adesivo e seguia em frente. Agora,
sou mais inteligente do que nunca. E continuo a aprender.
Em 2018, regressei às montanhas para voltar a ser bombeiro florestal. Há
três anos que não estava no terreno, e tinha-me habituado a treinar em
ginásios bonitos e a viver com comodidade. Alguns poderiam chamar-lhe
luxo. Encontrava-me num hotel de topo, em Vegas, quando o incêndio 416
começou e eu recebi o telefonema. Aquilo que começou por ser um fogo em
800 hectares de terreno de pastagens nas montanhas de San Juan, na
cordilheira das Rochosas do Colorado, estava a crescer para se tornar um
monstro nunca visto, a queimar 22 mil hectares. Desliguei o telefone,
apanhei um avião a hélice para chegar a Grand Junction, saltei para uma
camioneta do Serviço Nacional Florestal dos Estados Unidos e andei três
horas até aos arredores de Durango, no Colorado, onde me equipei com as
calças verdes de Nomex, uma camisa amarela de manga comprida, o
capacete, óculos protetores e luvas e peguei no meu super Pulaski, o
machado que é a arma em que um bombeiro florestal mais confia. A
empunhar aquela coisa consigo remover terra durante horas – e é
precisamente isso que fazemos. Não lançamos água. Somos especializados
em contenção, e isso significa escavar valas e limpar mato, para não haver
material combustível na rota do fogo infernal. Cavamos e corremos,
cavamos e corremos, até todos os músculos estarem exaustos. E depois
voltamos a repetir tudo outra vez.
No primeiro dia e noite, cavámos linhas corta-fogo em redor de casas
vulneráveis, enquanto muralhas de chamas avançavam, a menos de um
quilómetro. Víamos o incêndio através das árvores e sentíamos o calor no
meio da floresta ressequida pela seca. Daí levaram-nos para uma altitude de
três mil metros e trabalhámos numa encosta com uma inclinação de 45
graus, cavando o mais fundo possível e tentando chegar ao solo mineral,
que não arde. Houve um momento em que uma árvore caiu e falhou por
poucos centímetros um dos meus companheiros. Se o apanhasse, tinha-o
matado. Sentíamos no ar o cheiro do fumo. Os nossos serradores – os
especialistas em serra elétrica – continuavam a cortar árvores mortas ou
moribundas. Arrastávamos esse material combustível para o outro lado do
leito de um ribeiro. Havia pilhas espalhadas de 15 em 15 metros, ao longo
de quase cinco quilómetros. Cada uma media aproximadamente dois metros
e meio de altura.
Trabalhámos assim durante uma semana, em turnos de 18 horas, com um
salário de 12 dólares por hora, antes de impostos. A temperatura durante o
dia era de vinte graus e, à noite, não ultrapassava os dois. No fim do turno,
estendíamos os colchões e dormíamos ao relento, onde quer que
estivéssemos. Depois, acordávamos e voltávamos ao trabalho. Não mudei
de roupa durante seis dias. A maior parte dos membros da minha equipa
tinham aí uns 15 anos menos do que eu. Eram todos tipos duros e dos mais
trabalhadores que já vi. Incluindo, e especialmente, as mulheres. Nunca
ninguém se queixou. No fim, tínhamos aberto uma clareira com mais de
cinco quilómetros, suficientemente larga para impedir que um monstro
queimasse completamente uma montanha.
Aos 43 anos, a minha carreira como bombeiro florestal está só a
começar. Adoro pertencer a uma equipa de cabrões rijos como eles são. A
minha carreira ultra também está prestes a renascer. Ainda sou
suficientemente jovem para continuar a competir e a perseguir os meus
objetivos. Estou a correr mais depressa do que nunca e não preciso de
adesivo nem de proteções para os pés. Com 33 anos, corria ao ritmo de oito
minutos e 35 segundos por 1,6 quilómetros. Agora faço 1,6 quilómetros em
sete minutos e 15 com muito à-vontade. Ainda estou a habituar-me a este
corpo novo, flexível, totalmente funcional – e a acostumar-me ao meu novo
eu.
A minha paixão ainda arde, mas, para ser honesto, demoro um pouco
mais a canalizar a minha fúria. Já não ocupa a primeira linha, à distância de
uma única contração nervosa de tomar conta do meu coração e da minha
cabeça. Agora, tenho de aceder a ela conscientemente. Mas, quando o faço,
ainda sinto todos os desafios e obstáculos, a angústia e o trabalho árduo,
como se tivessem acontecido ontem. É por isso que nos meus podcasts e
vídeos se consegue sentir a minha paixão. É uma merda que continua aí,
cauterizada no meu cérebro como tecido cicatrizado. A perseguir-me como
uma sombra que procura apanhar-me e devorar-me inteiro, mas que me vai
sempre empurrando para a frente.
Sejam quais forem os fracassos ou os triunfos que se acumulem nos anos
que estão por diante – e tenho a certeza de que haverá bastantes, de ambos
–, não tenho dúvidas de que continuarei a dar o meu máximo e a fixar-me
metas que parecem impossíveis para a maioria. E quando esses cabrões
disserem que é impossível, vou olhá-los fixamente nos olhos e responder-
lhe-ei com uma simples pergunta.
E se?
AGRADECIMENTOS
Este livro demorou sete anos a ser elaborado, com seis tentativas falhadas
pelo caminho, antes me terem apresentado ao primeiro, e único, autor que
compreendeu realmente a minha paixão e captou a minha voz. Quero
agradecer a Adam Skolnick pelas inúmeras horas que passou a aprender
tudo o que havia a aprender sobre mim e a minha vida lixada, para me
ajudar a juntar todas as peças e a passar a escrito a minha história. Não há
palavras para mostrar o orgulho que sinto pela verdade, vulnerabilidade e
candura crua deste livro.
Para Jennifer Kish, não tenho palavras. Muitas pessoas dizem isto, mas é
verdade. Só tu sabes como foi difícil para mim levar a cabo este processo;
sem ti ao meu lado não haveria livro em absoluto. É graças a ti que
encontrei tempo livre para interromper a escrita enquanto tu tomavas conta
de todos os assuntos por trás do livro. Saber que tinha a “Kish” ao meu lado
deu-me a segurança para tomar a ousada decisão de publicar uma edição de
autor! É por causa da tua ética de trabalho que tive a confiança necessária
para rejeitar um pagamento antecipado considerável por este livro – por
saber que tu sozinha aguentas aquilo que uma editora inteira faz. Só posso
dizer “obrigado”; e que te adoro.
À minha mãe, Jackie Gardner. Temos tido uma vida difícil e lixada. Mas
podemos orgulhar-nos dela, porque muitas vezes nos atiraram ao tapete e
não tínhamos ninguém à volta para nos erguer. E, de algum modo,
arranjámos sempre maneira de nos levantar. Sei que, em muitos momentos,
estavas preocupada comigo e desejaste que eu parasse; obrigado por nunca
fazeres o que os teus sentimentos te ditavam, porque isso me permitiu
descobrir mais sobre mim. A maior parte das pessoas não diria isto à mãe
para lhe agradecer, mas só tu sabes como esta mensagem realmente conta.
Mantém a força; amo-te, Mamã.
Ao meu irmão, Trunnis. A nossa vida e a maneira como crescemos
tornou-nos por vezes inimigos, mas quando houve problemas sérios
estávamos lá um para o outro. Para mim, feitas as contas, é isso a verdadeira
irmandade.
Para as pessoas que seguem, e que autorizaram que eu e o Adam as
entrevistássemos para este livro, vão o meu maior apreço e agradecimento.
As recordações que têm dos acontecimentos ajudaram-me a criar uma
descrição precisa e honesta da minha vida e da forma como ocorreram
acontecimentos específicos.
Ao meu primo, Damien. Foste sempre o meu favorito enquanto
crescíamos e passei algum dos melhores momentos da minha vida contigo,
só a fazermos disparates.
A Johnny Nichols. A nossa amizade, enquanto crescíamos em Brazil, foi,
por vezes, a única coisa positiva que tinha na vida. Não há muitas pessoas
que saibam como tu dos momentos sombrios por que passei em criança.
Obrigado por estares presente quando verdadeiramente precisava mais de ti.
Kirk Freeman: quero agradecer-te pela honestidade. Eras um dos poucos
dispostos a contar a dolorosa verdade sobre alguns dos meus problemas em
Brazil. Vou agradecer-te sempre por isso.
Scott Gearen, até hoje não fazes ideia de quanto a tua história e a tua
pessoa me ajudaram numa fase da vida em que não via mais do que
escuridão. Não sabes o impacto que tiveste num miúdo de 14 anos. É
verdade o que se diz: nunca sabes quem está a olhar para ti. Aconteceu que
eu estava a olhar para ti naquele dia, na escola de saltos para-resgate.
Agradeço a tua amizade ao longo destes anos todos.
Victor Peña, tenho muitas histórias para contar sobre ti, mas só vou dizer
uma coisa: estiveste sempre nas boas e nas más – e sempre me deste o
máximo. Por isso, meu irmão, tenho um respeito louco por ti.
Steven Schaljo, se não fosses tu, podia nem sequer haver livro. Foste o
melhor recrutador da Marinha. Obrigado, mais uma vez, por acreditares em
mim.
Kenny Bigbee, obrigado por seres o outro “único tipo negro” na
instrução BUD/S. O teu sentido de humor surgia sempre no momento certo.
Mantém-te firme, irmão.
Para o David Goggins branco, o Bill Brown, a tua disposição para chegar
ao fim nos momentos mais difíceis tornou-me melhor nos tempos mais
difíceis. Da última vez que te vi, estávamos em missão no Iraque, tu com
uma de calibre 60 e eu a operar uma M60. Espero ver-te nos Estados
Unidos, num futuro próximo!
Drew Sheets, obrigado por teres a coragem de estar na parte da frente do
barco comigo, na minha terceira Semana Infernal. Muito poucos sabem
quanto pesa realmente aquela merda! Quem ia pensar que um campónio do
Sul e um negro se tornariam tão próximos? O que se diz é verdade: os
opostos atraem-se!
Shawn Dobbs, é preciso muita coragem para fazer o que fizeste neste
livro. Eu expus-me aos leitores, mas tu não precisavas! Só posso agradecer-
te por me permitires que partilhe uma parte da tua história. Vai modificar
vidas!
A Brent Gleeson, um dos poucos tipos que conheço e a quem se aplica
realmente a expressão “como a primeira vez, de todas as vezes”. Muito
poucos saberão sequer o que isto significa. Força, Brent!
SBG, tu foste um dos primeiros SEAL que eu conheci e colocaste a
fasquia bem alto. Obrigado pelos empurrões que me deste nas três
formações BUD/S – e pelas aulas de treino e monitorização rápida do
coração!
A Dana de Coster, o melhor companheiro de treino de natação que se
pode ter. A tua liderança no meu primeiro pelotão foi inexcedível!
Sledge, tudo o que posso dizer é que o aço afia mesmo o aço! Obrigado
por seres um dos poucos tipos que todos os dias veio sempre comigo, a dar
o máximo, e se dispôs a ir contra a corrente e a ser incompreendido na
vontade de ser sempre melhor.
Morgan Lutrell, 2-5! Estaremos sempre ligados pelo nosso momento em
Uma.
Chris Kostman, sem o saberes, obrigaste-me a alcançar todo um novo
nível de mim.
John Metz, obrigado por autorizares um tipo inexperiente a entrar na tua
corrida. Isso mudou a minha vida para sempre.
Chris Roman, sempre me espantaram o teu profissionalismo e atenção ao
pormenor. És uma razão muito importante para eu ter conseguido chegar em
terceiro numa das corridas mais difíceis do planeta.
Edie Rosenthal, obrigado por todo o teu apoio e pelo trabalho
extraordinário que realizas na Special Operations Warrior Foundation.
Ao almirante Ed Winters: foi uma honra ter servido tantos anos com o
senhor. Trabalhar para um almirante pressionou-me realmente para dar o
melhor de mim em todos os momentos. Obrigado pelo seu apoio
continuado.
Steve “Wiz” Wisotzki: foi feita justiça – e obrigado por isso.
Hawk, quando me enviaste aquele mail sobre “os 13 por cento” soube
que tínhamos mentes semelhantes. És um dos poucos neste mundo que me
compreende, e à maneira como penso, sem ter de explicar nada.
Doutor Schreckengaust, obrigado por me mandar fazer aquele
eletrocardiograma. Essa merda pode muito bem ter-me salvado a vida!
T., obrigado por me empurrares naquela caminhada com pesos. Carrega
sempre!
Ronald Cabarles, continua a liderar pelo exemplo e cheio de força.
Classe 03-04 Rangers Lead The Way!
Joe Hippensteel, obrigado por me mostrares as maneiras corretas de fazer
alongamentos. Isso mudou-me realmente a vida!
Ryan Dexter, obrigado por caminhares comigo 120 quilómetros e me
teres ajudado a chegar aos 330!
Keith Kirby, obrigado pelo apoio constante ao longo dos anos.
Nandor Tamaska, obrigado por me abrires o teu ginásio, a mim e à minha
equipa, para o recorde de elevações. Nunca esquecerei a tua hospitalidade,
bondade e apoio.
Dan Cottrell, é raro encontrar alguém que dá sem esperar nada em troca.
Obrigado por permitir que se tornasse realidade um dos meus sonhos de
saltar aos quarenta anos!
Fred Thompson, obrigado por me permitires trabalhar contigo e com a
tua equipa extraordinária este ano. Aprendi imenso com vocês. Respeito-vos
loucamente!
Marc Adelman, obrigado por fazeres parte da equipa desde o primeiro
dia e pelos teus conselhos a cada passo. Que maneira de ir além da perceção
dos teus limites este ano. Sinto orgulho de cada uma das tuas realizações!
BrandFire, obrigado pelo vosso génio criativo e pela criação do site
davidgoggins.com.
Por fim, a minha gratidão mais sincera, e agradecimento, à fantástica
equipa da Scribe Media. A partir do primeiro contacto com Ticker Max até
ao derradeiro, e em cada pormenor pelo meio, tu e cada um dos membros da
tua equipa superaram as minhas expetativas – tal como tu disseste que ia
acontecer! Um agradecimento profissional à enormíssima profissional Ellie
Cole, minha diretora de publicações; a Zach Obront, por ter ajudado a
delinear um fantástico plano de marketing; a Hal Clifford, o meu editor; e a
Erin Tyler, a mais talentosa autora de capas que eu podia ter imaginado, que
ajudou a criar a capa mais bizarra de todos os tempos!

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