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O empoderamento espacial dos jovens da periferia ao direito do lazer na

cidade: capital espacial, escalas, territorialidades e visibilidades na noite

The spacial empowerment of the youth from the outskirts to the right to
leisure in the city: spatial capital, scales, territorialities and visibilities in the
night
DOI: 10.55905/revconv.17n.1-496

Recebimento dos originais: 29/12/2023


Aceitação para publicação: 29/01/2024

Élvis Christian Madureira Ramos


Doutor em Geografia
Instituição: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
Endereço: Corumbá - Mato Grosso do Sul, Brasil
E-mail: elvis.ramos@ufms.br

RESUMO
À noite, nas cidades, emergem outras práticas espaciais, centralidades e consumos que se
desdobram em diferentes usos dos espaços e sociabilidades em relação ao período diurno. Neste
contexto socioespacial é que se destacam neste estudo as etnogeografias das juventudes das
periferias que, segregadas em seus espaços de origem e/ou estigmatizadas territorialmente,
elaboram por meio de suas proxemias e capital espacial suas transposições de escalas na cidade,
territorializando suas microculturas e constituindo suas visibilidades corporais, identitárias e
culturais na noite.

Palavras-chave: juventudes, cidade, periferia urbana, territorialidades, lazer.

ABSTRACT
In the cities, during the evening, different spatial practices surface, centralities and consumptions
that unfold in distinct uses of the spaces and sociabilities compared to the day. In this sociospatial
context, the ethnogeographies of the youth from the outskirts are highlighted; segregated in their
original spaces and/or territorially stigmatized, the youth creates by means of their proxemics
and spatial capital transposals of scales in the city, territorializing their microcultures and creating
corporeal, identitary and cultural visibilities of their own in the night.

Keywords: youths, city, urban outskirts, territorialities, leisure.

1 INTRODUÇÃO
O estudo da juventude apresenta um grande arco de temas que percorrem a condição
socioeconômica, seus direitos e garantias, o trabalho, a educação e o lazer. Porém, de uns tempos
para cá, começou a se discutir a juventude em sua pluralidade: daí, a expressão juventudes

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(DAYRELL, 2007, TURRA NETO, 2015), buscando-se sinalizar o protagonismo e diversidade
de ser jovem. Indo além das questões geracionais, e entrando na experiência juvenil vivenciada
sob as diversas circunstâncias e interfaces como de classe, étnico-racial, gênero, sexualidade e
cultura.
Essa virada, a bem da verdade, não é tão atual se considerar os primeiros estudos
etnográficos sobre as juventudes, como o trabalho de Margaret Mead (1968) em torno das jovens
das ilhas Samoa, o que veio a contribuir na crítica do determinismo biológico e universalidade
da condição adolescente e juvenil. Seja como for, o foco nas experiências de vida sob diversas
relações e esferas sociais logrou superar o modo caricatural da juventude, descrita tão somente
como fase de transição entre etapas da vida e/ou um estrato social heterônomo.
Contudo, viver a juventude como um direito e gozar de garantias e proteções é uma outra
história. Uma enorme parcela está inserida em contextos de guerras, conflitos e perseguições
políticas e étnicas, ou ainda na presença de ambientes violentos, explorados diariamente em
trabalhos extenuantes, privados de relações socioafetivas saudáveis e na pobreza extrema.
Ainda que desamparados e vivendo em regime de escassez e exclusão, lutam pelos seus
espaços-tempos, sobretudo, pelos seus lazeres e tempo livre. Tempos e espaços construídos nas
mais diversas práticas e sociabilidades. Coordenando diferentes recursos, moldando suas
personalidades e identidades na fruição do lazer. Lazer que não apenas gozo hedonista ou
passivo, mas diversão que diverge de estatutos impostos, como exercício da diferença que se faz
desnaturalizando padrões culturais, dissimilando-se a partir de suas corporeidades e visibilidades.
É desse ponto que a contribuição desse trabalho se faz importante, ao destacar a dimensão
espacial a partir das práticas de lazer noturno dos jovens pobres da periferia. Não é um destaque
que está acima ou abaixo das próprias esferas sociais e da situação geracional, mas uma apreensão
da realidade de suas condições e recursos espaciais, que, por sua vez, têm efeito sobre àquelas e
são desdobrados em espacialidades relacionadas às suas escolhas de lugar, movimentos, escalas
e territorialidades.
E nada mais emblemático que focar a relação que os jovens das periferias têm com o lazer
noturno e com a cidade. Lazer e juventudes que são parte da realização da cidade. Anelado a isso,
o de pensar o direito à cidade, que imbrica simultaneamente as necessidades de habitar, se
divertir, viver a arte e a cultura, o desporto etc. (LEFEBVRE, 2001). Decorre disso, a
problemática em revelar aquilo que restringe ou viabiliza a fruição dessas práticas na cidade.

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Duas vertentes de uma mesma montanha integram o problema dos jovens e a cidade: o
de conferir uma importância distintiva à produção espacial do lazer noturno, o retrato da sua
economia noturna e de sua morfoestrutura espacial, e a vertente oposta, revelando os próprios
praticantes da cidade, cujas sociabilidades e espacialidades nas suas diferenças e recursos
produzem e dão vida social a essas estruturas espaciais.
Vertentes de análise que, por sua vez, partem de dois pressupostos iniciais que dão forma
ao tratamento desse trabalho, que são a afirmação da produção social do espaço (LEFEBVRE ,
2013 e MASSEY, 2008) e o outro, a vida cotidiana como repetição e diferença de coexistentes
sujeitos sociais e espaços-tempos (LEFEBVRE, 2004, p.6). Isso quer dizer que a vida cotidiana
não é entendida apenas como uma rotina de tempos-espaços, mas inclui a diferença que se
desprende da repetição, como escapismos, lazeres, tempos livres, festas, ou ainda, dos eventos
imprevistos e que interrompem a ordem, mas que são absorvidos na continuidade durável dos
ciclos da vida social comum e normativa. E diferença que também se torna repetível e se choca
ou fricciona com práticas e costumes preexistentes e coexistentes.
É nessa trama cotidiana entre repetição e diferença, que encontramos o sentido de práticas
dos sujeitos sociais que formam a vida na cidade. Ao destacar as juventudes das periferias
urbanas, busca-se revelar como esses praticantes encontram, para além de suas rotinas, os lazeres
que se inscrevem na noite e compõem espaços-tempos de diferenças, visibilidades e
territorialidade às suas microculturas e consumos.
As juventudes que aqui são destacadas são os jovens do wheeling 1(empinadores de moto)
e jovens do low (carros rebaixados), os jovens dos rolezinhos com suas multidões nos espaços de
consumo e aqueles que compõem a festas dos fluxos, que mostram que a periferia urbana é muita
mais dinâmica e múltipla que as narrativas que apenas batem naquelas mesmas teclas de espaços
disfuncionais e desintegrados. O que não quer dizer que a pobreza, exclusões e violências foram
eliminadas; em realidade elas persistem tanto para aqueles que moram nas bordas da cidade,
como nos seus enclaves ou dispersados no tecido urbano.
Contudo, esses espaços proscritos a princípio são vivos em resistência, criatividade e
movimento. As juventudes aqui focadas conseguem mediar, importar e exportar códigos entre as
periferias de outras cidades, estabelecendo um espaço de trocas e solidariedade transperiférica.

1
As palavras em itálico indicam conceitos êmicos ou nativos, oriundos dos próprios praticantes.

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Jovens pobres e periféricos que também não estão fixos na segregação que lhes é imposta
no intraurbano, mas que por meio de capitais espaciais, transpõem e se desencaixam das escalas
da cidade, se tornando presentes e visíveis onde a paisagem é a repetição do consumo
estandardizado das marcas globais, do luxo ou shoppings centers; pré-elegem suas classes e
grupos de consumo. E sem serem esperados ou convidados, aparecem como nômades intrusos
nas suas praças, diante das fachadas e ambientes internos, produzindo seus espaços-tempos de
diferença, dissimilação e diversão.
Seja encaixando ou se desencaixando, essas etnogeografias juvenis emergem numa
paisagem noturna que se diferencia das décadas anteriores, em que as cidades não-metropolitanas
regiam-se por poucas centralidades noturnas (aglomeração de casas noturnas, lanchonetes e
cinemas), espaço onde todos se cruzavam e viviam a mesma esfera de lazer. Atualmente, essas
cidades se fragmentam em diversas centralidades noturnas, espraiando-se também nas periferias
urbanas e redefinindo uma geografia do lazer noturno.
As descrições etnogeográficas de trabalhos anteriores deste autor em torno das
microculturas juvenis sustentam a base para discussão analítica dos mecanismos e processos
gerais que dão forma e conteúdo às espacialidades juvenis na noite. Práticas juvenis tecidas e
plasmadas em relação com as estruturas espaciais e sob um novo sentido de periferia urbana, que
emergem de abordagens menos fixas e mais receptivas, atentas aos diversos sujeitos sociais nas
suas interfaces que lhe dão dinâmica e vida social.
A estrutura do trabalho se articula na descrição do método que serviu de base informativa
para análise socioespacial, na sequência uma discussão da importância da esfera do lazer no uso
do tempo livre e outras sociabilidades na vida juvenil. Nas demais partes, o foco está dirigido
para a importância do capital espacial e das práticas espaciais juvenis que explicam suas
territorialidades fluidas, reticulares e difusas no âmbito do lazer noturno.

2 ETNOGEOGRAFIA E ANÁLISE SOCIOESPACIAL


Os jovens constroem suas personalidades e identidades em uma sociedade dividida e
estratificada por diferentes frações de classes e segmentos (religioso, geracional, cultural, étnico,
racial e de gênero). E é nas esferas de vida social (escola, lazer, trabalho, família) onde de fato
vão socializar e se posicionar no âmbito das estruturas objetivas e paradigmas da sociedade em
que estão inscritos. São nessas esferas que passam a valer suas capacidades cognitivas,

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emocionais e corporais, os capitais que acumulam e cuja habilidade em manejá-los torna-se
fundamental para lidar com as diversas escolhas, dilemas, limitações e oportunidades na
trajetória de suas vidas.
Isto posto, jovens das periferias neste trabalho têm como condição socioeconômica de
partida o de pertencerem às frações da classe trabalhadora e pobre, que espacialmente se
assentam em bairros separados das áreas que historicamente atingiram maior desenvolvimento
urbanizado e de maior afluência econômica e bens coletivos (escolas, cinemas, hospitais, lazeres,
etc.).
Com efeito, são jovens que vivem sob limitações/privações econômicas e espaciais. Por
mais que habitem em uma cidade com amplo espectro de serviços e consumos, ainda assim, se
encontram posicionados marginalmente em relação aos polos de maior afluência socioeconômica
e cultural do espaço urbano. Todavia, essa definição de situação socioeconômica e espacial dada
a esses jovens é um tanto unidirecional que serve de pressuposto, embora seja concreta e real.
Contudo, os resultados post factum de trabalhos de campo anteriores2, já evidenciavam que estes
jovens não estavam fixos e conformados a esse contexto socioespacial.
Há ao menos dois fatores que fazem diluir essa visão mais estática da vida desses jovens:
primeiro, as suas experiências do lazer que se baseia na constante busca em superar as constrições
econômicas e espaciais que lhes são impostas, isto é, eles não estão esperando a diversão chegar
até eles, estão criando seus próprios circuitos de lazer. O segundo fator está no papel da estrutura
e dinâmica dos objetos espaciais de consumo e lazer na cidade, cuja distribuição e modos de
acessibilidade exercem um peso considerável no movimento e estratégias espaciais dos jovens
na cidade.
A questão central é revelar e compreender os mecanismos que libertam ou constrangem
as práticas juvenis no espaço urbano em relação aos seus lazeres, visibilidades e territorialidades.
O que logra um problema de base, uma vez que estes jovens não criam e operam suas práticas
num espaço neutro, equitativo e isomórfico, em termos de oportunidades e estruturas espaciais.
Portanto, é sempre importante integrar dois níveis de abordagens sociogeográficas -
quase sempre analisados separadamente - que são a realidade objetiva da produção das formas
e arranjos espaciais que refletem diferentes tipos de agenciamentos (econômico, institucional,

2
A descrição pormenorizada dessas etnogeografias podem ser encontradas em RAMOS, E.C.M. As etnogeografias
dos rolês dos jovens das periferias: o capital espacial 2021 e a luta por visibilidade na cidade. Curitiba: Appris, 2021.

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tecnológico, etc.) em nível macro e/ou meso e o tratamento das práticas dos sujeitos sociais e
suas redes nas esferas da vida social e cotidiana, este em nível micro.
Bauru (SP) e Marília (SP) foram as cidades alvo dos estudos etnogeográficos desses
jovens. Bauru possui uma população aproximada de 379 mil habitantes e Marília 240 mil,
também aproximadamente. Cidades que estão relativamente distantes da cidade metropolitana
de São Paulo, 380 km a primeira e 430 km a segunda. Porém, há um elemento que diferencia
essas cidades de outras de porte semelhante, que diz respeito ao papel que elas exercem na rede
urbana, que deriva da condição de cidades médias ou intermediárias (GOULART; TERCI;
OTERO, 2013).
O que define as cidades médias em termos funcionais e estruturais é palco de muitas
discussões; contudo, sem esgotar esse assunto, quando se considera Bauru e Marília com essa
tipologia espacial, o que se está afirmando é que inerentes a outros diversos aspectos que as
incluem nessa classificação, sobressaltam os significativos graus de polarização que essas
cidades exercem nos seus entornos regionais e o papel que elas têm na intermediação econômica
e cultural entre as metrópoles e suas regiões polarizadas.
E, intrinsecamente, como apontou Sanfeliu e Torné (2004), são cidades que se
diferenciam de outras de portes semelhantes, uma vez que apresentam uma ampla gama de
serviços especializados, bem como variadas conexões institucionais e corporativas
interescalares, ou seja, cidades que entremeiam comandos e negociações em diversas escalas
(local, regional, estaduais, nacionais e até transnacionais).
Esse é um aspecto assaz importante: a eficiência das estrutura técnicas da cidade, a fluidez
dos sistemas de comunicação e transporte, assim como instâncias de receptividade de conteúdo
simbólico, como música, artes, imagens, filmes (ver THOMPSON, 2011) são condições
indispensáveis para as conectividades dos jovens para além dos seus lugares de origem, bem
como no gradiente de referências culturais que chegam até eles, aspectos discutidos e
demonstrados em Turra Neto (2012a) e Ramos (2021).
Para gerar os resultados da pesquisa em sentido empírico, foram usadas algumas
categorias de análise de mediação e classificação que ordenam a natureza e sentido das práticas.
Derivam tanto do repertório conceitual geográfico como da própria etnogeografia.
Todavia, as descrições etnogeográficas não serão alvo de exposição nesse trabalho, pois
se encontram em outros trabalhos, como o leitor poderá consultar na bibliografia. O que aqui se

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fez de diferente foi uma comparação dessas etnogeografias em que se visa sobressaltar
analiticamente os mecanismos que explicam como jovens em situação periférica e de privações
realizam suas lazeres, tendo vistas a importância do espaço urbano e as maneiras como
desenvolvem suas interações para esse propósito.
Os aspectos analíticos ao qual derivam as categorias e ordenam a análise são: a situação
locacional; construção das escalas produzidas; sistemas de mediação comunicacional e
simbólica; territórios e territorialidades. Tanto essas categorias de referência que compõem a
discussão e os resultados, como as microculturas juvenis alvo da pesquisa, são descritas e
conceituadas ao longo do trabalho, porém o Quadro 1 visa mostrar esquematicamente os
elementos analíticos e êmicos que compõem a base conceitual das práticas juvenis de lazer.

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Quadro 1 - dos sinóptico dos conceitos geográficos e êmicos
Categorias de análise Elementos de análise Elementos êmicos

Escala Direções Rolês


Trajetórias Esquenta
Circuitos Baladas
Rotas
Paradas
Fronteiras
Ações móveis
Embarque/desembarque
Atravessamentos
Transposições
Distâncias

Territorialidades Cíclica Pedaço


Reticular Quebrada
Fixa Zona Leste, Oeste etc.
Evasiva
Zonal

Rede e retículas Amigos e colegas da escola Tudo junto e misturado


Redes sociais Galera
Redes sociodigitais Turma
Enturmamentos momentâneos Família
Relações proxêmicas Bonde
(proximidade física) O fluxo

Lugares Bairros Bailes


Periferia Fluxos
Cidade A balada
Lugares fixos Point
Lugares de lazer Ruas de rachas
Espaços de consumo
Estruturas espaciais
Espaço público e privado
Fonte: autor

As microculturas que foram objetos de etnogeografias nas cidades de Bauru e Marília são
os jovens do rolezinho; low; do wheeling, dos fluxos. Embora existissem outras redes juvenis
com diversas outras filiações culturais, estas que foram analisadas oferecem uma significativa
representatividade da diversidade da cultura juvenil nas periferias urbanas, bem como do poder
das suas estratégias espaciais de lazer e movimento na cidade.
O que diferenciou o trabalho etnogeográfico da etnografia tradicional foi aquilo que
Claval (2011) chamou de uma maior atenção aos grados de informações quanto às orientações,
localizações e movimentos no espaço pelos grupos. Soma-se também a importância para os
trajetos, ocupações e circuitos juvenis que denotam as formas de movimento, apropriação e

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congregação no espaço urbano pelos jovens, que foram alvo de estudos pioneiros em Magnani
(1992, 2005).
Outra atenção analítica, foi aquela desenvolvida por Turra Neto (2012), e que não se pode
suprimir, do papel evidenciado das redes de sociabilidade juvenil que sob múltiplas trajetórias e
vínculos interpessoais absorvem e assimilam nas suas especificidades locais (contexto geracional
e socioespacial) o conteúdo de culturas juvenis transterritoriais.

3 AS DIMENSÕES DO LAZER
A pulsão para o lazer é inerente a todos os estratos sociais e gerações etárias. Como parte
do ethos da juventude, essa experiência, muito embora seja intrinsecamente um momento de livre
espontaneidade, comprazias e prazer, nem sempre é livre no sentido de um tempo-espaço dado
ou como um direito.
Diversos fatores, isolados ou combinados, como de ordem moralista, religiosa,
econômica e até política interferem ou limitam o exercício do lazer e uso do tempo livre. Ainda
que seja direito ao lazer e desporto como aquele instituído no Estatuto da Juventude (BRASIL,
2013), é difícil encontrar nas periferias urbanas, de forma plena ou satisfatória, a garantia posta
em seu Artigo 29, de se assegurar a oferta de equipamentos comunitários que permitam a prática
desportiva, cultural e de lazer. A verdade é que o lazer é um tema secundário e marginal nas
políticas sociais públicas, e isso se torna mais extremo em relação aos lazeres dos jovens pobres.
O lazer, assim como outras atividades da vida comum, têm múltiplas dimensões, e para
esse estudo, considera-se analiticamente ao menos três: o espaço, o tempo e o social. Dimensões
que dão a concretude para as mais diversas esferas de vida e sentido. O que significa dizer que é
também nos espaços-tempos do lazer que as juventudes reproduzem seu habitus social de origem,
onde desenvolvem modelos de distinção e aproximação com os outros, bem como modos de
expressarem seus identitarismos e filiações.
A dimensão do espaço que, como se verá mais à frente em detalhes, não diz respeito
unicamente aos lugares das festas e encontros enquanto uma localização, como fosse apenas um
espaço plano, mas abrange outras diversas interações espaciais e escalas na cidade em que os
sujeitos sociais são os protagonistas dessas espacialidades.
E o tempo da diversão dos jovens pobres nem sempre é um tempo dado ou livremente
disponível. A suposta moratória social, um tempo-espaço que permaneceriam relativamente

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livres do trabalho, como na escola, família, clubes etc., afim de aumentarem seus capitais e
melhor desempenhar seus papéis na vida adulta futura, existe para uma parcela deles, contudo,
ela é constantemente interrompida.
Grande parte desses jovens cedo precisam gerenciar o tempo da escola e trabalho, auxiliar
seus pais em serviços domésticos e cuidar dos irmãos. Sem contar que muitos vivem em espaços
de pouca segurança, assediados em suas integridades físicas e emocionais, além de expostos a
diversos tipos de violências. Por isso, o tempo livre pode ser mais um esforço de conquista dos
jovens pobres do que um tempo e espaço dado e garantido. Se para os jovens das classes mais
afluentes essa moratória é real, para os jovens pobres ela é quase frequentemente uma ficção.
Contudo, se a moratória social deixa a desejar, ao menos têm ainda a gastar, como destaca
Margulis (1996), o capital das suas vitalidades físicas e biológicas. O que lhes garante
alimentarem desejos, promessas e esperanças relacionados à sua idade e geração. Situados numa
idade e momento que sabem que é um tempo a ser bem gasto, que estão longe da morte e que se
pode ousar. São essas disposições que se transformam em práticas para o lazer, pois é nos
interstícios da vida diária que vão tentar encontrar algum tempo livre, onde podem criar e exercer
suas autonomias.
E é no espaço de seus bairros de origem que começam a ensaiar e tecer seus lazeres e
expressividades, assim como ajustar suas liberdades e responsabilidades nos tempos que têm
disponíveis. E são nesses bairros que vão descobrindo interesses e filiações culturais, escapando
das formas de controle e socialização (trabalho, família e escola). Lugares nativos que partilham
e negociam conhecimentos e novidades que chegam de outras partes do mundo e que ali
aterrissam em formas de músicas, programas de televisão, vídeos, danças e outras mídias
(TURRA NETO, 2012).
O lazer soma outros aspectos, dentre eles a distinção, a reprodução e os identitarismos.
Nas atividades de lazer os jovens também constroem seus papéis sociais, suas corporeidades e
personalidades, lidando com momentos de alegrias, frustrações, desejos e expectativas de
consumo e sucesso na vida social. Daí relacionar o lazer com suas visibilidades sociais, pois é
nos momentos de lazer, no bairro de origem, em outros bairros e lugares de consumo é que
conseguem melhor expressar seus gostos, suas maneiras de ser, se dissimilarem e afirmarem seus
estilos.

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Nesse norte, o lazer não é apenas um tempo, mas também espaço de fruições e
visibilidades sociais, que aqui não deve soar como simples aparecer e manifestação física, mas
como um conceito de projeção e investimentos pessoais ou grupais, com um sentido de se lucrar
com créditos, reconhecimentos e satisfações subjetivas e intersubjetivas num determinado campo
ou contexto social.
A visibilidade socioespacial também não deve ser restringida às práticas de ostentação e
narcisismo, uma vez que ser e estar no e pelo espaço guarda outras objetividades e subjetividades,
que não apenas enunciar lucros simbólicos e materiais. Há na busca por visibilidade social a
projeção de afirmações pessoais, identitárias e grupais em formação ou que visam se consolidar
nas esferas de vida em sociedade, bem como, denotam momentos de congregação, amizade e
felicidade.
Além disso, existe uma dissociação estrutural e espacial que resulta da receptividade da
informação em contextos distintos, filtrado pela classe, gênero, geração (THOMPSON, 2011)
isto é, se para alguns os jovens querem apenas ostentar, já para eles mesmos, isso tem significados
mais amplos e até mais importantes que simplesmente “aparecer”.
A conclusão que chegamos quanto a isso é que no lazer dos jovens das periferias a
visibilidade social denota uma abertura para dizerem que existem na sociedade, seus consumos
e elementos distintivos de sua condição social e geracional. O que se chama de ostentação quase
sempre é mais do que buscar reconhecimento do que bebem, comem ou usam, mas a forma que
encontram para dizerem que também aspiram a ascensão social e de serem reconhecidos na
cidade, uma reação à invisibilidade e marginalidade a que estão constantemente submetidos.

4 AS MICROCULTURAS JUVENIS DAS PERIFERIAS URBANAS


Antes de entrar nas práticas espaciais e sociais das juventudes da periferia urbana, é
preciso tornar claro o que se entende por microcultura e o que a diferencia de cultura. De início,
microcultura tem como referência os valores e significados partilhados por grupos relativamente
pequenos que criam vínculos grupais significativos na vida cotidiana (FEIXA, 1998;
FERREIRA, 2008). E cultura juvenil agrega num sentido amplo e até global um conjunto de
aspectos simbólicos, materiais e midiáticos com um certa origem e que adquire caráter de um
movimento/tendência que pode se ramificar ou mesclar-se em subgêneros, grupos e
identitarismos.

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As microculturas podem estabelecer vínculos numa rede de partilhas, adesões e
convergências que os identificam num mesmo bloco cultural, ainda que não seja um bloco
homogêneo, mas sob rachaduras e clivagens. É o caso, por exemplo, da cultura juvenil punk
reconhecida na grande mídia, mas que apresenta diferenciações grupais, que podem ser
reconhecidas nas cenas locais que produzem, nos estilos e sub-estilos musicais e até mesmo nas
bandeiras políticas que defendem ou contestam, às vezes derivando para hostilidades e atritos.
Nas periferias urbanas das cidades brasileiras, encontram-se diversas culturas e
microculturas juvenis. Por exemplo, a cultura juvenil punk da periferia se tornou muito
emblemática no começo dos anos 1980 e no final da mesma década entrou em cena a cultura
juvenil do hip hop. Nos anos 1990 se intensificaram na televisão e em outras mídias
documentários e reportagens sobre a difusão dessas culturas urbanas. A visibilidade
frequentemente era um tanto negativa e marginal. E nos anos de 1990 foi a década das
reportagens em torno dos arrastões e pitboys no Rio de Janeiro, o que acabou ainda mais
marginalizado as culturas juvenis. Não obstante, também foi uma década que viu ampliar de
forma relevante os trabalhos sociológicos e etnográficos em torno das culturas e microculturas
juvenis, destacando-se entre os temas, o nomadismo juvenil na cidade.
Apesar desse trabalho não estar focado em espaços metropolitanos, emerge dessas
cidades médias ou não-metropolitanas um sentido de periferia e microculturas semelhantes ou
até se poderia dizer espelhadas aos grandes centros. Isso porque todas as microculturas estudadas
para discutir o lazer aqui, existem e têm origem em espaços metropolitanos. Não é o intuito aqui
chegar em alguma conclusão explicativa desse processo, mas parece estar relacionado com o
processo de uma metropolização (ARCHER, 1993; LENCIONI, 2017), isto é, a dilatação
material e imaterial da metrópole em sentido econômico e cultural, e que incorpora espaços não-
metropolitanos.
Se é uma dedução válida ou não, não se pode esconder o fato empírico da correspondência
de um sentido quase comum de periferia urbana popular entre diferentes espaços urbanos. Mais
ainda, a conexão transperiférica entre elas, ou seja, que elas se identificam como uma cultura
urbana sob a referência de músicas, termos êmicos, danças e outros artefatos culturais que são
comuns e facilmente reconhecidos pelos diversos jovens espalhados pelas diversas periferias e
cidades, e que são em sua maioria modelos e criações das periferias metropolitanas.

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Em correspondência com a metrópole paulistana e outras cidades existem em Bauru e
Marília as festas juvenis de rua conhecidas como pancadão ou fluxo e as vezes funk de rua. Seja
qual termo êmico dado, corresponde num circuito de festas de rua, organizadas pelos jovens das
periferias. Talvez o termo “organizada” não seja o mais apropriado ao induzir a ideia de um
grupo que o coordena; diferente disso, são festas que resultam na maioria das vezes de uma
organização difusa e anárquica de jovens e microculturas.
Não é uma festa que tenha alguma regulação do poder público (há inclusive iniciativas
de controlá-las), além disso, são festas que pelo caráter aglomerativo, barulhento e anárquico
sofrem aversão e estigmatização de dentro e fora da periferia. Porém, é na sua heterogenia juvenil
onde se pode extrair seu melhor retrato, por ser uma festa que reúne várias redes juvenis e
microculturas dispersas nas periferias. Em termos êmicos, denominam tudo junto e misturado,
que sob a pulsão da diversão e na busca de espaços na cidade, encontram um lugar para suas
fruições, visibilidades e encontros.
Outra microcultura atualmente extensivamente divulgada nas mídias são os jovens dos
rolezinhos, que realizam rolês compostos em sua maioria, por jovens adolescentes, entre 12 e 16
anos. Esses rolezinhos constituem fortes aglomerações nos espaços internos e externos dos
shopping centers. Estão nesses espaços para curtirem o tempo livre, para se encontrarem com o
seus, se tornarem visíveis se associando a um espaço de elevado status de consumo e ostentação.
É preciso dizer que não é a única microcultura que se utiliza dessas grandes superfícies de
consumo; há outras, como os jovens estudantes que marcam encontro após o expediente da
escola, assim como patricinhas, emos, gamers etc.
Nas décadas de 1990 e 2000, os shopping centers passaram a estar bastante presentes nas
cidades médias, o que alterou de forma significativa as oportunidades de consumir produtos
derivados de franquias famosas e globais. Decorre disso que essas superfícies comerciais e
imponentes vão além de simples lugares de consumação de produtos e alimentos. Elas se tornam
convenientemente espaços de lazer e palco para ostentação e outras formas de visibilidade social,
isto é, um espaço também consumido em si.
Todavia, os jovens dos rolezinhos não são bem vistos nessas superfícies de consumo,
sofrem constante monitoramento da segurança interna e externa, sem contar os casos de expulsão
e as violências das abordagens que não raro sofrem na ida e saída e/ou imediações dos shopping
centers.

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Diferente das microculturas acima, os jovens do wheeling, aqueles que empinam motos,
e o low que são os jovens que flanam nas cidades com seus carros de suspensão rebaixada e
tunados, têm como principal capital espacial a motorização. São jovens que já atingiram a idade
adulta, trabalhadores e estudantes que cursam ou já cursaram o ensino médio. A partir de suas
rendas ou ajuda dos pais, conseguiram adquirir carros ou motocicletas, por isso seus circuitos e
escalas no lazer noturno são mais amplas e até interurbanas, ou seja, além da escala da própria
cidade.

5 O CAPITAL ESPACIAL E SALTO DE ESCALAS NA CIDADE


A partir de agora se dará atenção às práticas espaciais juvenis. Se o tempo é uma ordem
de períodos e durações, o espaço é a instância de múltiplas coexistências, geometrias e formas
(MASSEY, 2008). É nesse espaço múltiplo e produzido que as juventudes negociam o uso do
tempo livre, sob as responsabilidades e restrições diversas; por isso, pode-se dizer que enfrentam
o tempo e espaço como dimensões objetivas que conformam inicialmente suas experiências de
juventude.
De modo geral, várias são essas práticas espaciais para a fruição do lazer noturno
desenvolvidas pelas microculturas da periferias, porém existem aquelas que vão lhes permitir
acessar lugares na cidade e permanecer neles até altas horas da noite, bem como, em finais de
semana e feriados, quando se abrem as oportunidades de tempo livre e lugares de consumo. Essas
práticas quase sempre têm origem na necessidade de vencer limitações materiais e distâncias.
Em nível básico, o que geralmente fazem é articular suas imaginações criativas com os recursos
disponíveis, para se movimentarem e ganharem as ruas na noite.
Imaginação que se materializa nas estratégias para sair dos seus bairros de origem, marcar
encontros à distância, saltar as escalas da cidade, aparecer em multidão em shopping centers e
até na elaboração de suas festas de rua. Para desenvolverem essas práticas de lazer na cidade
encontram um espaço preexistente, com seus diversos pontos, malhas e sistemas viários, bem
como as superfícies espaciais de consumo. Desde cedo lidam com o espaço urbano, aprendendo
a localizar e ir aos lugares. Em geral, naquele esquema espacial concêntrico identificado por
Feixa (1998) que começa mais familiar e próximo: a casa, as ruas próximas, a escola, o bairro,
locais adjacentes aos bairros, o centro urbano e abrangendo outras escalas da cidade.

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Atingir essas competências de circular, flanar, usufruir o espaço urbano não deixa de ser
um conjunto de experiências que todos os jovens das periferias precisam ter e, de fato, adquirem
em tenra idade, com seus pais a passeio ou em direção ao comércio, quando estão em companhias
de irmãos ou colegas experientes. É um processo que avança a pé, com suas bicicletas, por
automóveis ou linhas de ônibus urbano. Processo gradual até o momento que se sentem
autônomos, por exemplo, ao embarcarem sozinhos em transportes da cidade e articularem no
trânsito as baldeações para chegar nos seus destinos.
Esse saber prático é a base para seus enturmamentos fora dos seus bairros e para
descobrirem lugares de lazer. Estar inseridos em redes sociais proxêmicas (pela proximidade
física) ou digitais ajuda nas descobertas de passeios e lugares para visitar. Interações espaciais e
sociais que, como destaca Castro (2004), ampliam as possibilidades subjetivas dos jovens, em
que o espaço se torna uma instância onde criam e recriam a si mesmos na experiência com outros
e nas diversas esferas sociais espacializadas, além de dilatarem seus horizontes culturais.
Essas habilidades de explorar e mapear a cidade, somadas com outros recursos, como o
econômico e móvel é o que vão garantir inicialmente que realizem suas transposições de escala
com autonomia para o lazer, isto é, sair de seus bairros de origem para construírem seus circuitos
de diversão.
Dito isso, o que as múltiplas territorialidades e os circuitos de lazer dos jovens das
periferias pressupõem de forma anterior e primária é a competência empírica para exercerem
espacialidades, conduzirem seus destinos no espaço urbano. Esses recursos e habilidades
espaciais primárias são seus capitais espaciais.
No pensamento bourdieusiano (1994; 2007; 2013), os capitais como o social e simbólico
são propriedades ou habilidades aprendidas, acumuladas, internalizadas e que acabam sendo
recursos virtualmente essenciais nas práticas dos agentes sociais em diversos campos da vida
social. Recursos e aptidões manejados para diversos fins, como para atingir vantagens,
privilégios, propriedades. Poderes que, em uma sociedade desigual e sob diversas distinções
sociais, se tornam trunfos para diversos tipos de ações, exercícios de poder e ou autonomias.
Para este estudo, as habilidades e operações espaciais primárias e aprendidas se tornam
decisivas para que esses jovens, mesmo sob cerceamentos e privações, consigam desenvolver
suas espacialidades e visibilidades na cidade. O que significa dizer que o capital espacial tem

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uma importância analítica central, pois a narrativa dos lazeres dos jovens não fica nos fins, mas
incorpora os meios para lutar contra uma marginalidade espacial segregativa e inercial.
Capital espacial esse que se soma com outros capitais (econômico, cultural e simbólico),
que englobam assimilações, recursos e disposições para desenvolver suas estratégias e fruições.
O que inclui o capital tecnológico, como de possuirem smartphones e créditos de Internet para
mediar seus encontros pelas plataformas sociodigitais e se espacializarem na cidade.

6 MUDANÇA DA CIDADE E DA PERIFERIA URBANA E NAS PERIFERIAS


Apesar do capital espacial primário se constituir numa pré-condição ou mecanismo
essencial para desenvolverem em suas juventudes suas espacialidades em diversos campos da
vida social, como no caso do lazer, ainda assim não explica de forma exclusiva como se dão essas
práticas, afinal, deve-se levar em conta a própria estrutura urbana e como articulam suas
estratégias diante da cidade em que vivem. Em outras palavras, torna-se necessário articular o
sentido dos seus lazeres com o espaço urbano preexistente e dinâmico, que, com sua distribuição
e concentração de lugares de consumo, lazer e áreas públicas, se torna lugar eletivo dos jovens
nas suas fruições.
E é desse ponto que se distinguem e se complementam duas mudanças nas cidades médias
que respondem pelo aumento de interesses e vida noturna tanto nos bairros da periferia como nas
outras áreas urbanizadas da cidade. A primeira foi o crescimento da magnitude das cidades
médias e/ou não-metropolitanas, processo acompanhado do aumento demográfico, ampliação de
seu tecido urbano – agora mais densamente reticulado e policêntrico, e sobretudo e articulado a
tudo isso, com os agenciamentos externos que chegaram na forma de investimentos econômicos
e na implantação crescente de redes comerciais e de serviços, especializados e diversificados.
Segundo, é fato que em décadas anteriores a "economia do lazer noturno” (SHAW, 2010)
não era nem diversificada e/ou espalhada no tecido da cidade. Eram atividades concentradas em
áreas tradicionais do comércio, constituindo uma monocentralidade. Porém, a partir dos anos
1990 é que começam a se espalhar essas atividades e comércio, surgindo diversas áreas de ofertas
de consumo de alimentos e bebidas, bem como casas noturnas e boates, dança, festas e
espetáculos.
Essa lógica locacional terciária se espraiou também para áreas da periferia, aquelas
atividades comerciais que não conseguiam encontrar lugar nas densificadas áreas centrais foram

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encontrar locações e demanda em lugares mais afastados e com terrenos e aluguéis disponíveis.
Outro movimento em direção para os espaços periféricos que ocorre na atualidade é a
implantação de grandes superfícies comerciais, como hipermercados e shopping centers.
Todas essas mudanças econômicas e estruturais têm um peso importante nas escolhas dos
jovens quanto aos seus lazeres. Primeiro porque essas superfícies comerciais e a chegada de
eventos culturais, shows e feiras passaram a estar mais próximos e frequentes nas bordas da
cidade. E a proximidade dessas estruturas acabou por oferecer aos jovens da periferia, tanto
possibilidades de trabalho quanto um lazer de consumo e visibilidade social.
E segundo, o surgimento de uma modesta economia noturna de lazer relacionada a
pequenos estabelecimentos comerciais como sorveterias, pizzarias e lanchonetes, que resulta em
parte daquela expansão terciária para a periferia. E diferente do que pode achar o senso comum,
muitos bairros da periferia urbana são espaços vivos de lazer, com atividades desportivas,
lúdicas, recreativas, dançantes, musicais e outras que ali ainda chegam, como parques e circos,
ainda que não sejam grandes e famosos.
Soma-se a essas mudanças a expansão de infraestruturas, como de iluminação pública e
segurança em praças e parques em alguns bairros da periferia, que viabilizam os encontros
juvenis na noite e, por consequência, os seus lazeres. Ter em conta essa vida social nos bairros
explica inicialmente porque as práticas juvenis de lazer desses jovens se estendem na noite,
inclusa a vida noturna no próprio bairro nos dias da semana.
Um efeito importante dessas práticas juvenis é o uso mais intenso dos espaços públicos;
isso se vê nas ruas principais, nas praças, em áreas com equipamento poliesportivo e nas escolas
que abrem aos jovens nos finais de semana. São bairros em que os espaços públicos, mesmo que
tenham equipamentos escassos ou já precarizados, são usados e transformados para diversas
práticas juvenis, como jogos de futebol, encontros das turmas, manobras de skate e eventos
culturais.

7 PRÁTICAS ESPACIAIS NO LAZER NOTURNO


Resta a questão, como efetivamente saltam as escalas da cidade? Quais as estratégias e
mecanismos que explicam a territorialidade nômade na cidade pelos jovens das periferias no
lazer noturno? A resposta a essa questão exige destrinçar como as microculturas juvenis

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articulam seus capitais espaciais e o mapeamento da cidade que realizam para elaborar suas
formas de lazer.
A começar pelas transposições de escalas dos jovens dos rolezinhos e dos jovens do fluxo,
que as realizam quando articulam diversos meios de transportes, como linhas de ônibus, caronas
ou, não raro, percursos a pé. É a partir dos seus rolês que se revelam, sobretudo, a importância
do transporte coletivo e conhecimento prático das suas rotas de circulação. Deriva disso que,
quanto mais interligações e ramificações com os bairros maior a possibilidade desses jovens
encontrarem fluidez e acesso para suas festas e encontros em diferentes pontos da cidade. Essa
fluidez e saltos de escalas são facilitados pelo o uso da meia passagem de estudantes que muitos
conseguem, ou com ajuda dos pais ou mesmo cotização entre os amigos.
Se junta ao conhecimento o uso dos transportes, por isso é importante saberem mapear a
cidade, descobrindo os lugares onde podem atravessar e ir, pois nem todos os lugares onde
ocorrem suas festas e aglomerações é garantido que serão bem recebidos. Como destacou
Carrano (2002), os jovens praticam à noite identificando os lugares que são ou não perigosos,
contornando armadilhas e escolhendo os momentos certos.
Tanto nos rolezinhos quanto no fluxo, podem existir conflitos e estranhamentos com base
nos espaços territoriais pertencentes aos grupos juvenis que chamam de família e/ou bonde,
formas de enturmamento mais fechado, onde se unem para viver juntos as diversões, defender-
se de grupos rivais, unidos e irmanados nos rolês.
Os jovens do rolezinhos não praticam em seus movimentos e escalas percursos
unidirecionais, retilíneos e diretos, em realidade podem ziguezaguear na cidade, pois durante
seus trajetos realizam paradas compondo momentos provisórios e combinados para se encontrar
com mais amigos e aumentar a concentração dos suas redes juvenis. Não raro, para não serem
dispersados pela polícia, usam de meios de comunicação digitais, para alterarem suas rotas,
paradas e concentrações.
Justamente, o que torna eficiente as escalas e as territorialidades produzidas pelos jovens
no shopping center e as festas do fluxo é que elas acontecem sob uma aglomeração juvenil. Essa
aglomeração ocorre mediada pelos seus smartphones e nos grupos que compõem nas plataformas
sociodigitais. São pelos meios sociodigitais que conseguem marcar e desmarcar encontros,
combinando e descombinando horários e locais quando pressentem presença da polícia ou de
outras forças de controle sociais e que visam impedir seus encontros.

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O fator da aglomeração gregária que tramam nas suas redes sociais e digitais não apenas
constitui é um fator territorial essencial não apenas para definir seus espaços de lazer, como
permite ampliar o grau de interação, fortalece seus laços de amizade e amplia suas visibilidades
sociais. Neste sentido, suas aglomerações são uma ação territorial intencional, têm um caráter
festivo e interativo. Essa força aglomerativa se estende a quase todas as microculturas das
periferias, rolezinhos, wheeling, lowriders, skaters e outros.
São às vezes centenas de jovens vindos de vários cantos da periferia e se tornando visíveis
nos espaços públicos e de consumo. Para outros frequentadores, alinhados às suas convenções
mais conservadoras, é uma multidão que os assusta, pois são praticantes da cidade que não
costumam ser vistos no dia-a-dia juntos, ou em aglomeração. São cidadãos em geral proscritos
dos espaços de consumo e da visibilidade pública, que agora conseguem alcançar maior
visibilidade pública.
As microculturas do low e do wheeling também exercem ação de se juntar em
aglomeração, tanto na periferia como nos espaços públicos e de consumo, para promover seus
encontros, visibilidades. Contudo, são jovens com maior capital espacial para se movimentarem
e comporem circuitos de lazer que saltam a escala da cidade chegando até cidades vizinhas.
Essas redes juvenis móveis costumam ter seus clubes ou famílias (garagens, lava-jatos ou
oficinas) onde se juntam para seus enturmamentos e combinar suas práticas. Fora dos seus
bairros, os jovens do wheeling buscam as ruas e trechos rodoviários para suas manobras perigosas
e os jovens do low tendem a rodar nas ruas e encontrar pátios para expor seus carros rebaixados.
Todos querem mostrar e performar com suas máquinas motorizadas. Habilmente mostrando suas
práticas, tunagens e congregações.
Ambas as microculturas motorizadas conseguem transpor a escala da cidade de forma
muito ampla. Essas transposições exigem recursos extras, como maior gasto com combustíveis
e maior necessidade de tempo livre para esses encontros. Soma-se a isso estarem mais expostos
às batidas policiais, sob risco de suas motos e carros serem apreendidos em face de infrações de
trânsito. Riscos e gastos que esses jovens compensam, mais uma vez, com o fator aglomeração,
pois ao percorrem as ruas em grande ou média concentração, isso acaba por dificultar que suas
práticas de lazer sejam totalmente impedidas.
Um fator determinante que explica a motorização desses jovens se deve em grande parte
às conjunturas econômicas anteriores que, sobretudo a partir dos anos 2010, ainda que sob ciclos

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de alta e de baixa, favoreceram a ampliação de consumo de bens duráveis entre a população
pobre, o que explica de maneira análoga a massiva motorização dos jovens pobres, sobretudo
com motocicletas e carros usados.
A motorização dos jovens da periferia é um capital espacial bastante eficaz na ampliação
de suas escalas e na construção de seus circuitos na cidade. De um lado, aproveitando tanto a
proximidade das estruturas de consumo que se espraiavam na cidade, e, de outro lado, na
transposição das escalas para além dos seus bairros. Agora chegando em outros bairros e indo
além das bordas da cidades, realizando encontros regionais com jovens de cidades próximas, e
permitindo a essas redes juvenis a ampliação de suas visibilidades e enturmamentos.
As tecnologias informacionais e a ubiquidade das redes sociais digitais constituem outro
aspecto essencial que explica a territorialidade nômade e difusa dos jovens das periferias no lazer
noturno. São tecnologias que liberaram esses jovens para um maior e mais intenso grau de
conexão com os diversos pontos do espaço. Aumentaram a eficiência das suas redes, de suas
trocas e de seus poderes no espaço. Retroalimentam constantemente suas plataformas
sociodigitais como WhatsApp, Instagram e Facebook, com informações para efetivar encontros,
encontrar melhor lugar para suas festas, avisar sobre eventos e inaugurações relacionados aos
ambientes de consumo etc.

8 CONCLUSÃO
A práticas de lazer dos jovens da periferia incluem não somente aqueles momentos em
que estão efetivamente nos locais, como nos ambientes de shopping centers, casas de espetáculos
ou mesmo compondo seus próprios espaços de lazer em diferentes bairros da cidade. São
territorialidades realizadas por diferentes estratégias espaciais, a fim de vencer as distâncias e
barreiras espaciais.
Revela-se nas suas práticas de lazer a importância essencial de desenvolverem seus
capitais espaciais, que são originariamente seus recursos e habilidades para locar e se deslocarem
no espaço. Em realidade, ainda que em circunstâncias objetivamente restritivas, esses jovens, nas
suas sociabilidades e proxemias, desenvolvem um conhecimento prático e operacional que é
parte essencial da engendração de suas espacialidades.

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Pode-se dizer que os lazeres desses jovens não estão restritos à fruição em si, mas é uma
esfera de suas vidas sociais onde exercem também maior autonomia nas suas territorialidades e
na composição de suas visibilidades sociais no e pelo espaço.
Outra conclusão que se pode depreender é que as mudanças na forma e na estrutura
urbana, em direção à maior oferta terciária de lazer e consumos nas cidades não-metropolitanas
abriu um contexto socioespacial de maior oportunidades e eletividades para os jovens quanto
suas visibilidades no lazer.
Por último, fatores conjunturais e locais como motorização massiva, transporte coletivo
mais eficientes, ubiquidade das tecnologias informacionais e digitais se tornam meios que esses
jovens utilizam de forma estratégica para desenvolverem seus lazeres e uso do tempo livre. Meios
que são usados de forma imaginativa e autônoma para vencer as restrições e segregações que
frequentemente estão ainda submetidos.

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