Super Bianca 32 - Caminhos Do Amanhecer - Rebeca Flanders

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Caminhos do Amanhecer

The Growing Season

Rebecca Flanders

Ele encontrou seu destino naquela terra onde se construía a vida com as próprias
mãos!
Quando Pierce Lanson, homem charmoso e sofisticado, se viu naquela terra
esquecida por Deus, longe do luxo e dos prazeres a que se acostumara em sua
estranha profissão, achou que era uma ironia do destino.
Diante dele, o olhar de Christine Walsh jamais disfarçava o desprezo, e o velho
Hamilton parecia ler seus mais íntimos segredos... Só havia um meio de escapar da
traiçoeira situação em que se encontrava: fazer com Christine o que sempre fizera
com as mulheres que o pagavam...

Digitalização: Rosana Gomes


Revisão: Cláudia
Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Título original:
"The Growing Season"

Copyright: © by Donna Bali, Inc.


Publicado originalmente em 1985 pela Harlequin Books, Toronto, Canadá.

Tradução: Sílvia Macedo


Copyright para a língua portuguesa: 1986
Editora Nova Cultural Ltda. São Paulo — Caixa Postal 2372

Esta obra foi composta na Artestilo Compositora Gráfica Ltda e


impressa na Companhia Lithographica Yjmanga

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Prólogo

Pierce Lanson amarrou os cordões dos sapatos e recostou-se na cadeira,


observando a mulher se arrumando à sua frente. Os movimentos dela eram
cheios de charme, como os de uma dançarina exótica. Aquele show seria capaz
de entusiasmar o homem mais saciado do mundo. Pierce, porém, estava
apenas entediado.
Ela puxou a alça da camisola de renda com as unhas longas e pintadas de
vermelho, fitando Pierce com o canto dos olhos. O luar que penetrava na
cabina banhava seus ombros e ela sabia perfeitamente que a luminosidade
tomava-lhe a pele mais suave e as imperfeições do corpo menos visíveis.
— Você é muito bom — murmurou com voz rouca.
— Você é que é fácil de ser satisfeita — respondeu ele, quase sorrindo.
A mulher franziu a testa, sem saber se aquele comentário era um elogio.
Pierce ignorou sua expressão.
Na penumbra, ela não aparentava seus cinquenta e tantos anos. Era
magra, esbelta e tinha cabelos negros. Tanto o corpo quanto o rosto eram
frutos de regimes, máscaras de beleza e, sem dúvida, algumas plásticas.
Mesmo assim, seu estômago e seus braços eram flácidos. Nenhum cirurgião é
capaz de realizar milagres!
Sozinha, ela era dona de meio milhão de dólares. Caso fosse computada a
fortuna do marido, a soma se elevava para vários milhões a mais. No verão
bronzeava-se no Mediterrâneo e no inverno esquiava nos Alpes suíços. Sempre
hospedada nos melhores hotéis e cercada pelas melhores companhias.
Pierce costumava investigar a vida de suas clientes e sabia que eram
sempre ricas. Claro, somente as ricas podiam arcar com ele. Esta era bonita,
rica, fácil de satisfazer... E ele não conseguia lembrar-lhe o nome de jeito
nenhum.
Como a mulher o procurara indicada por outra cliente, ele não dera muita
atenção aos detalhes. Não podia recusar um fim de semana a bordo de um iate
particular no Golfo do México, com todas as despesas pagas e recebendo o
dobro de seu honorário atual... Principalmente estando desocupado, como
agora.
Além disso, o fim de semana lhe dera oportunidade de conviver com
algumas das mulheres mais ricas daquela parte do mundo e aumentavam as
chances de que os contatos o levassem a outro acordo de longo prazo, como o
que terminara recentemente. Só que desta vez estava decidido a ser mais
astuto ao negociar os termos de um novo contrato.
Pierce passara os últimos dezoito meses morando no sul da França com
uma mulher que, segundo os boatos, era uma das quinze mais ricas do
mundo. Enquanto Pierce esteve sob sua proteção, ela sempre foi mais do que
generosa. Providenciou-lhe um guarda roupa que tomava três armários
repletos e havia sempre um Rolls Royce e um Bentley à disposição na
garagem, além do Datsun, que recebera de presente. Até que um dia ela
entregara-lhe uma passagem só de ida para Nova York, as mesmas duas
malas que ele trouxera e tudo estava acabado.
Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Claro que isso era um risco previsível naquele tipo de negócio. O pior foi
chegar à Nova York e descobrir que seu apartamento tinha sido sublocado e
todos os seus pertences vendidos. Ao que tudo indicava sua benfeitora, não
queria que ele tivesse nenhuma recordação da época em que estavam juntos.
Pierce, que nunca tinha se preocupado em poupar para garantir o futuro,
verificou que o saldo de sua conta no Chase Manhattan era de menos de
oitocentos dólares. Ao fim dos quatro dias que levou até fechar aquele contrato
no Golfo do México o dinheiro já havia sumido.
Já passara por momentos difíceis, mas a experiência lhe dizia que nunca
demoravam muito tempo. Estava um pouco desapontado pelo fato de não ter
conseguido nenhum contrato longo naquele fim de semana, mas não podia se
queixar.
O iate já estava ancorado há uma hora, no entanto, ninguém parecia
muito preocupado com isso. As risadas divertidas e as conversas alegres no
convés continuavam como se a festa estivesse apenas começando.
Os dois últimos dias caberiam bem numa página do diário de algum
milionário indolente. A comida, deliciosa, era preparada com doses de
exotismo, o champanha estava sempre circulando e os drinques e várias
outras bebidas estimulantes não paravam de ser servidos.
Pierce passara o fim de semana entretendo uma mulher vaidosa, vazia e
às vezes odiosa, porém não estava com mais pressa em partir do que os
outros convidados que tinham se divertido, dançado e jogado vinho de
excelente qualidade no convés. Graças à última "patroa", ele não tinha para
onde ir.
Partiria com quase mil dólares por dois dias de trabalho e sem
perspectivas para o futuro. Seus hábitos eram caros e o dinheiro seria gasto
em duas semanas, mas Pierce Lanson nunca investia muita energia
preocupando-se com o futuro. Aconteceria alguma coisa. Sempre acontecia.
Levantou-se e começou a abotoar a camisa, fingindo não notar a mulher
que se aproximava de calcinha, camisola transparente e chinelos de cetim. A
festa tinha terminado e duvidava que fosse receber algum extra depois disso.
A mão morna insinuou-se por dentro de sua camisa, brincando
suavemente sobre sua pele, e Pierce resistiu ao impulso de arrancá-la dali.
Sorrindo, pegou-a com delicadeza e beijou-a. A mulher roçou a cabeça
perfumada em seu ombro e ele tentou afastá-la para terminar de se vestir.
— Por que tanta pressa? — Perguntou ela, segurando a mão de Pierce.
— Você é adorável, mas tenho hora certa para pegar o avião — respondeu
ele, beijando-lhe os cabelos. — Além disso, ainda temos que acertar meu
pagamento, não é?
Ela fitou-o com os olhos verdes brilhantes de malícia e Pierce não ficou
surpreso ao lembrar-se de um gato enraivecido.
— Querido, que vulgar! E você tinha quase me convencido de que era um
cavalheiro!
Pierce limitou-se a sorrir e pegou as abotoaduras de diamante que deixara
sobre o criado mudo. Tinha ganhado de uma antiga companheira e era o único
objeto de valor que possuía no momento, além do smoking de quinhentos
dólares e do par de sapatos italianos que usava.
Ela fixou em Pierce o olhar divertido e malicioso por mais um instante,
zombando.

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— Não existe nada que valha realmente a pena além do seu corpo bonito,
não é Sr. Lanson?
— Nada — afirmou ele abaixando as mangas da camisa.
— Mas, então, o que se pode esperar de um... Hã... — Ela fez uma pausa,
tentando provocá-lo. — Como são chamados os homens da sua profissão?
— Impacientes — respondeu Pierce, querendo trazê-la de volta ao assunto
que importava.
Ela riu ironicamente, encolheu os ombros e afastou-se.
— Falou em pagamento, Sr. Lanson?
De repente, a pequena porta da cabina abriu-se com violência e foi
apenas o instinto que fez Pierce desviar-se do murro que quase o atingiu. As
abotoaduras caíram no chão e sua exclamação espantada foi abafada pelo que
parecia o mugido de um touro:
— O que diabos está acontecendo aqui?
Pierce reconheceu a cena, mesmo sem nunca imaginar que participaria de
uma. O mundo em que circulava era muito chique e sofisticado para dramas
exagerados, civilizado demais para maridos ciumentos. Por uma fração de
segundo, teve um desejo insano de rir. Era simplesmente absurdo para ser
verdade.
Em seguida percebeu o brilho de triunfo e satisfação nos olhos da mulher
com quem passara dois dias fazendo amor de todas as maneiras possíveis e a
vontade de rir passou. De repente compreendeu por que lhe tinha sido
oferecido o dobro da quantia que cobrava normalmente.
— Ora, ora, chegou o homem forte das Indústrias Cavenetti — murmurou
ela, destilando veneno em cada sílaba. — Porque demorou tanto, Carl? Pensei
que tivesse ordens para não me perder de vista.
O homem era forte como um trator e sua presença, desproporcional na
pequena cabina. Embora não entendesse o roteiro, Pierce reconhecia os
personagens e sabia que estava para acontecer alguma coisa ruim. Na
verdade, alguma coisa muito ruim.
O gigante fez um movimento furioso na direção de Pierce, mas foi
interrompido pela voz melosa da mulher.
— Pierce meu querido, quero apresentá-lo a Carl, o assistente de meu
marido. Carl, este é Pierce meu amante. — Ela jogou as palavras como um
delicioso desafio.
— Sua vagabunda! — Carl fixou os olhos na mulher. — Quando o patrão
ficar sabendo...
— Carl é um empregado muito leal — disse a mulher examinando as
unhas esmaltadas. — É pago para cuidar dos meus casos amorosos. — Os
olhos dela tornaram-se mais felinos do que nunca. — Bem, quando fizer o
relatório para meu marido, não se esqueça de contar isso, ele não é o único
homem do mundo e, se não me quer, muitos outros me desejam. Diga isso a
ele, está ouvindo, Carl?
Aos poucos, tudo começou a ficar claro para Pierce. Era uma situação
absurda e cômica, mas fazia sentido. "Não acredito nisso", pensou, engolindo
mais uma vez a vontade de rir. "Não posso acreditar!"
— O que foi Carl? — Instigou a mulher, vendo que o gigante continuava
parado, olhando-a com a respiração ofegante e os punhos cerrados.

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Concluindo que não tinha nada a ver com aquela situação e que, em
alguns casos, a discrição é a melhor saída, Pierce começou a aproximar-se
disfarçadamente da porta.
— Está chocado? Pensou que eu não tivesse coragem? Bem, conte tudo
isso ao meu querido marido Carl. Ele não é dono de mim e nunca foi. Existem
muitos outros melhores do que ele!
Pierce não controlou um gemido de raiva. Era uma situação planejada! A
velha crença de que o ciúme acabaria amolecendo o coração dos homens...
Devia ter pressentido que isso ia acontecer. Mas quem seria capaz de imaginar
que na época em que vivemos uma pessoa adulta pensaria numa artimanha
daquelas... Pior ainda, acreditando que daria certo? Desde o princípio, não
tinha gostado da mulher, mas não pensou que fosse tão pouco criativa.
A paralisia que incapacitara o homem por instantes passou e ele avançou
sobre Pierce, cujo instinto prontamente funcionou de novo. Levantou a mão
numa fraca tentativa de defesa, deu um sorriso nervoso, que era mais um
disfarce para a risada histérica que persistia em querer romper e disse:
— Ei, espere um minuto, amigo! Não pode culpar um cara por tentar
ganhar a vida, não é? Eu só estava fazendo meu serviço... — O soco parou no
meio do caminho, pelo menos momentaneamente, e os olhos da mulher
mostraram desespero. — A senhora pagou-me para passar o fim de semana
com ela. Esse é meu trabalho... Eu nem sabia que ela era casada! — Mentiu.
As emoções confusas que transpareceram no rosto dos dois eram
complicadas demais para Pierce, que não estava nem um pouco interessado
em fazer uma análise de personalidades. Claro que a mulher não contava com
a confissão do amante de aluguel, mas concluiu que ela merecia aquela lição.
Carl encarou-a e Pierce sentiu um ligeiro remorso ao perceber o desespero
dos olhos verdes transformarem-se em verdadeiro pânico.
— Carl espere...
— Você pagou... — As palavras soaram como um grunhido.
— Você deu dinheiro para este garanhão estúpido...
— Ela ainda não me pagou nada! — Gritou Pierce, vendo o homem voltar
o punho cerrado para a mulher a quem devia manter sob sua vigilância.
Sua débil tentativa de distrair Carl não funcionou. O som de um murro
ecoou na cabina acompanhada pelo grito da mulher, que foi jogada contra uma
parede, soluçando. Havia um filete de sangue na maçã de seu rosto e Pierce
ficou olhando, sem poder fazer nada. Sentia toda sua impotência e confusão
transformarem-se em horror conforme o homem continuava a xingá-la e
sacudi-la e, embora ela gritasse ninguém aparecia. Devia fazer alguma coisa,
mas não sabia o que. Acabou não tendo tempo nem de pensar, porque depois
de alguns segundos o gigante lembrou-se dele e veio em sua direção.
— Você aí! — Gritou furioso. — Eu devia matá-lo e livrar o patrão deste
problema. Caras como você me dão ânsia de vômito! Saia daqui!
— Não me deixe a sós com ele! — Gritou a mulher soluçando. — Ajude-
me!
A última impressão que Pierce teve dela foi à de uma mulher que perdera
a beleza, encolhida num canto com a camisola rasgada, os cabelos
despenteados com o rosto banhado em lágrimas e sangue. Pierce odiou-a,
odiou a si mesmo e àquela situação infame que algum dia poderia tornar-se

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engraçada, mas que no momento só servia para fazê-lo sentir-se ridículo,


covarde e inútil.
Um braço de ferro agarrou-o pelo pescoço, e Pierce foi empurrado pela
escada da escotilha. Devia parecer um idiota, debatendo-se e ofegando. Os
outros convidados riam e levantavam seus drinques para ele, mas para Pierce
o espetáculo não tinha mais graça. Ouvia uma respiração áspera próxima à
orelha, suas têmporas latejavam pela falta de ar, seus lábios ficavam cada vez
mais amortecidos e os rostos à sua frente giravam em meio a uma névoa
esbranquiçada.
Ouvia expressões furiosas, mas não conseguia entender as palavras e por
um breve momento, temeu por sua vida. De repente foi levantado, em seguida
conseguiu respirar e logo depois começou a cair...
O Golfo do México era frio no começo de abril. Pierce afundou
pesadamente e seus pulmões doeram como se tivessem sido atingidos por um
golpe violento. Os cinco segundos que ficou debaixo d'água pareceram durar
uma vida. Aquele momento sem fim, tão celebrizado no cinema, quando a vida
de um homem prestes a morrer desfila em flashes diante de seus olhos.
Estranhamente, o que Pierce viu foi à mulher de cabelos negros, com
expressão de desgosto e acusação no olhar: "Não há nada que valha
realmente a pena além do seu corpo bonito, não é?", a voz dela ainda parecia
soar. Não, não há nada...
Pierce subiu à superfície, sentindo o sangue latejar nas têmporas.
Respirou fundo e seu peito doeu como se tivesse levado um coice. Ouvia
música e risadas dos barcos e iates ancorados no cais, mas ninguém notou a
figura solitária debatendo-se na água. "Não foi um dos melhores momentos de
sua vida, meu velho. Não foi mesmo"...
Conseguiu nadar, e felizmente à distância até o quebra mar era curta.
Pierce Lanson tinha sobrevivido.

Capítulo I

— Christine Walsh parou de repente e voltou-se para o rapaz que


caminhava a seu lado. O sol de abril tentava penetrar pela copa das árvores,
criando sombras enrodilhadas nos degraus largos da frente da casa e na
alameda de terra. Uma brisa suave balançou as duas marias-chiquinhas que
ela usava, encobrindo-lhe o rosto com um emaranhado de fios castanhos,
quase avermelhados.
— O que foi que você disse?
— Recebi a resposta do seminário — respondeu seu irmão sem hesitar. —
Querem que eu vá fazer uma entrevista no fim do mês.
Christine dirigiu-se para a caminhonete empoeirada, estacionada no pátio
da frente da casa. Eram sete horas da manhã e o ar estava fresco e suave,

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mas ela sentia um gosto amargo na boca. Teve que fazer um esforço para ficar
em silêncio, achando que devia contar até dez. Ou até vinte.
Bateu a porta da caminhonete e o som misturou-se ao barulho distante de
um trator e aos ruídos familiares que vinham da janela da cozinha, onde Mary
já estava ocupada, começando a preparar o almoço.
"Ele é apenas uma criança", pensou Christine com súbita ternura, ao ver o
irmão sentado a seu lado. "Não sabe o que está dizendo. É uma criança!"
— O que é isso agora Clay? — Perguntou. — Pensei que tivesse desistido
da ideia no verão passado. Será que foi assaltado por uma onda de fé
primaveril? — zombou. — Não sabe que na primavera as fantasias dos rapazes
devem se transformar em pensamentos de amor?
— Eu sei. — Clay sorriu. — É exatamente assim que estou me sentindo.
Só que é uma espécie de amor mais profundo do que o que a maioria das
pessoas sente.
Christine ligou a caminhonete num gesto impaciente e o velho veículo
rateou um pouco antes de funcionar.
— Você já contou para papai? — Perguntou, segurando o volante com
firmeza e olhando para frente.
— Não.
— Então não conte.
Clay sorriu. Pela expressão obstinada de Christine, sabia que ela já
chegara à conclusão de que iria fazê-lo desistir e tentaria poupá-lo de um
confronto desnecessário com o pai. Entendia a preocupação de sua irmã. Já
tinha tomado a decisão há meses, mas seria um choque para o resto da
família. Todos precisariam de tempo para se acostumar à ideia e ele não
pressionaria ninguém.
Por mais que tentasse se controlar, Christine estava abalada e era
possível notar seu estado de nervos pelo excesso de cuidado com que começou
a dirigir. A informação de Clay era a gota d'água. Não sabia mais até onde
teria forças para aguentar.
Estavam no dia 1° de abril e a Secretaria das Finanças andava querendo
dar o golpe de misericórdia em sua família. Os Walsh já tinham atrasado o
pagamento de impostos em outras ocasiões, mas desta vez a situação parecia
sem saída. Uma chuva antecipada destruíra a plantação de trigo e uma geada
tardia quase acabara com o pomar. Um dos tratores estava enguiçado e
Christine nem imaginava quanto gastariam para consertá-lo. Já tinham
passado por outros anos difíceis, mas agora ela estava apavorada. E não se
sentia em condições de lidar com Clay, principalmente naquele dia.
Christine era formada em administração de empresas e poderia estar
trabalhando em uma grande indústria de qualquer cidade importante dos
Estados Unidos. Tinha jurado que aquele seria o último ano. Não queria passar
a vida em uma fazenda no sul do Alabama se preocupando com testes de solo,
fertilizantes e máquinas quebradas... Não ligava para nada disso. Esses
problemas não tinham nada a ver com ela e nem queria que tivessem.
"Maldito Clay!", pensou. "Ele e seus sonhos idiotas de paz na terra aos
homens de boa vontade"...
— Precisamos de quantos homens? — Perguntou Clay, depois de algum
tempo.

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— De doze, mas só podemos pagar seis. E por favor Clay, não escolha
bêbados ou mortos de fome. Precisamos de homens que possam enfrentar
trabalho pesado.
— Podemos prometer uma semana de trabalho?
— Não. — Christine mantinha os olhos fixos na estrada e na verdade, não
pensava nos trabalhadores. — Não prometa nada até o fim do dia. Se ficarem
sabendo que faremos contratos longos, haverá uma fila enorme no Ralph's. E
você sabe muito bem que não consegue dizer não. — Tentou amenizar a
aspereza de sua voz com um olhar carinhoso e Clay pegou sua mão sorrindo.
— Não foi uma decisão repentina, Chris. Você sabe que eu queria ir para o
seminário no último verão, mas prometi a papai que não tomaria nenhuma
atitude precipitada. Sei o que quero há bastante tempo... Você não devia ficar
tão surpresa.
— Droga Clay, eu não quero ouvir falar nisso! — Christine não controlou
mais a tensão que a dominava, mesmo sabendo que sempre ficava em
desvantagem, quando levantava sua voz em discussões com Clay. — Você está
falando como um idiota.
— Gostaria que não xingasse tanto Chris.
— Oh, perdoe-me. Sua Santidade! — O olhar de Christine estava cheio de
raiva e menosprezo. — Me admira que esteja sentado tão perto de mim... Não
tem medo de sujar sua auréola? — Às vezes uma explosão era a melhor saída
para aliviar aquela pressão que parecia dominá-la constantemente, mas
naquele momento o desabafo não funcionou. Clay continuava impassível, o
que só serviu para frustrá-la ainda mais. — Droga, Clay! Já temos muitos
problemas sem essa sua loucura romântica!
Clay não estava nem um pouco abalado pelas colocações da irmã.
Simplesmente parecia não estar prestando atenção. Christine o odiava quando
ele agia assim.
— Eu não chamaria de loucura mana.
— Você sabe muito bem do que estou falando! Contas atrasadas,
empréstimos vencendo, equipamento enguiçado, geadas, muita chuva... E um
fanático religioso como administrador! Maravilhoso, simplesmente
maravilhoso! — Ela deu um soco no volante. — Senhor meu Deus,
agradecemos Sua generosidade...
— Chega Chris! — Interrompeu Clay com aspereza.
Christine ficou satisfeita em finalmente arrancar alguma reação de Clay,
mas ficou em silêncio. Respirou fundo e depois de alguns momentos tentou de
novo, com mais calma.
— O que você acha que vai acontecer a este lugar quando for embora
para seguir sua vida santificada? O que faremos sem você?
— O mesmo que fazem enquanto estou aqui. — Clay piscou os olhos
paciente. — Ora meu bem, você sabe que não ajudo muito. Papai e você é que
administram a fazenda... Eu não passo de excesso de bagagem. Não sirvo para
ficar.
— E você acha que eu sirvo? — O rosto de Christine estava vermelho
quando voltou os olhos para ele. — Bem, tenho novidades para você
irmãozinho: também tenho coisas melhores para fazer na vida...
— Oh Chris! — Clay interrompeu-a com uma intensidade que lhe
iluminava os olhos cinzentos. — Não percebe que não é uma questão de

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escolha? É um apelo, tão forte e irresistível quanto o que você e papai sentem
por esta terra! Faz parte de mim e não poderia me livrar disso, mesmo que
quisesse!
Christine não queria que ele percebesse como se sentia incomodada em
lidar com tal situação. Não estava acostumada com aquele papel. Sempre
tinha sido a forte e Clay, o irmão indefeso. Cuidava dele desde o dia em que
nascera. Porque ficava tão assustada ao sentir que ele escapava a seu
controle? Jogou a cabeça para trás com impaciência.
— Clay, quando vai crescer? Nenhum de nós estaria aqui se não
precisássemos! Você acha que papai gosta de levantar às quatro e meia da
manhã e trabalhar até a meia-noite? Você acha que ele gosta de passar
metade do ano torrando-se ao sol para ver a plantação secar quando não
chove ou congelar apenas dois dias antes da colheita? Acha que faz isso
movido por alguma dedicação mística às maravilhas da natureza? Bem, ele só
está tentando ganhar a vida, como milhares de outros fazendeiros! Pelo amor
de Deus, entenda isso Clay!
Mas Clay olhava para o acostamento, onde um homem, usando calça
preta e camisa branca, quase cambaleava. Tinha um andar cansado que
sugeria estar na estrada há bastante tempo. Quando a caminhonete o
ultrapassou, ele levantou a cabeça esperançoso, mas Christine não diminuiu a
marcha.
— Pobre homem! — Murmurou Clay.
Ela deu um longo suspiro. Era inútil tentar argumentar com Clay, e
naquele dia não estava com disposição para investir em causas perdidas. Seria
melhor esperar outra ocasião para conversar com Clay e dissuadi-lo daquela
ideia. Não era possível que o irmão estivesse falando sério. Ele não faria isso
com a própria vida... Nem com a dela.
— Como posso discutir com você, se não me dá atenção? — Murmurou e
ficou um pouco mais tranquila ao ver o sorriso amigável de Clay. Não, ele não
devia estar falando sério. Se lhe desse tempo, acabaria desistindo... Mesmo
assim, resolveu acrescentar só para lhe dar algo em que pensar: — Sabe que
dependemos de você para muitas coisas, não é? Não pode ir embora assim.
Este é o seu verdadeiro apelo — concluiu apontando para terra nos dois lados
da estrada.
— Ah, Chris, você não entende! — Clay sorriu e recostou-se no banco,
meneando a cabeça lentamente. — Você não entende mesmo.
Christine ficou gelada com o tom confiante na voz dele, com aquela
expressão que lhe deixava o rosto sem idade e inescrutável. Um arrepio a
percorria sempre que Clay ficava daquele jeito, o que estava acontecendo cada
vez mais nos últimos tempos. Tinha a impressão de que realmente não o
entendia. Afastou o pensamento incômodo imediatamente, como estava
acostumada a fazer sempre que uma situação ameaçava exigir sensibilidade.
Lidar com os sentimentos, seus ou de outras pessoas, sempre a perturbava
profundamente. Podia lidar com Clay mais tarde. Agora tinha muitas outras
coisas na cabeça.
Pierce aprendera duas lições importantes nas últimas quarenta e oito
horas, sapatos de couro feitos à mão não eram apropriados para andar em
estradas pedindo carona. E ficar sozinho era um sentimento assustador.

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Por razões inevitáveis, passara grande parte da sua vida sozinho. Seu pai
desaparecera, logo após seu nascimento e, apesar da sucessão de "tios" e
"amigos queridos" que entravam e saíam do apartamento de um quarto, onde
morava com sua mãe, Pierce aprendera desde cedo como era se sentir só.
Uma de suas mulheres uma vez lhe disse que era seu ar de infinita solidão
que a deixava loucamente excitada. Talvez tivesse cultivado desde cedo certo
ar de indiferença, mas era pura defesa. Na verdade, Pierce sempre tomava
cuidado para planejar sua vida de modo que nunca estivesse isolado, a não ser
que quisesse. Sempre havia alguém para cuidar dele e nunca ficara realmente
só... Não como agora. Não era nem um pouco agradável estar em uma estrada
no sul do Alabama, sem dinheiro algum e com seus amigos mais próximos a
cinco mil quilômetros de distância.
Quando foi jogado no Golfo do México no meio da noite por um homem
louco que gritava obscenidades, ele pensara apenas em fugir. Caminhou sem
parar, preferindo estradas secundárias e distantes de qualquer sinal de
civilização. Quando deu por si, tinha amanhecido e estava perdido no interior
da Flórida.
Pierce caminhou mais ou menos quinze quilômetros antes de admitir que
estivesse irremediavelmente perdido e concluir que a única saída era continuar
na direção oeste, para longe do oceano.
Percorreu outros cento e cinquenta quilômetros de carona num blazer
respingado de lama, com o motorista que não tirava o revólver do colo nem
enquanto dirigia. O homem parecia uma verdadeira enciclopédia de crimes não
resolvidos. Durante todo o percurso o homem contara com indisfarçado prazer
casos de assassinatos, mutilações e canibalismo, indiferente ao fato de Pierce
transpirar o tempo inteiro.
Depois disso ficou mais resistente a aceitar caronas. Além do mais, não
tinha para onde ir. Nem havia percebido que passara da Flórida para o
Alabama, até ver uma placa indicativa.
A princípio tudo parecia uma aventura, uma novidade excêntrica. A
situação começou a ficar mais séria quando se viu obrigado a dormir num
alpendre abandonado, acompanhado por uma variedade surpreendente de
insetos e roedores. E tornou-se definitivamente desagradável quando ele
começou a ficar esfomeado.
Não pensava na mulher que deixara no iate. De certa forma, sentia pena
dela, e de todas iguais a ela, mas não era problema seu. Ela nem tinha pagado
o que lhe devia e era a responsável por ele estar agora pedindo carona nas
estradas do Alabama, só com a roupa do corpo e morrendo de fome. Conforme
o cansaço e a fome aumentavam, ficava mais deprimido e às vezes a imagem
daquele rosto machucado voltava-lhe à memória, mas não precisava de
esforço nenhum para tirá-la da cabeça. Pierce aprendera a ignorar qualquer
sentimento que o incomodasse.
No entanto, quando chegou a Gull às oito e meia da manhã, já não
conseguia se livrar dos incômodos com tanta facilidade. Era uma combinação
de várias sensações: exaustão, corpo dolorido, fome e desespero. Estava
quase dominado pelo pânico. Talvez por isso os fanáticos do naturalismo,
defendessem o jejum e as longas caminhadas: um homem sozinho aprendia
muito depressa o que é a realidade. Se pudesse optar, Pierce dispensaria essa
lição de muito bom grado...

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Chamar de cidade o local a que chegara era um exagero de benevolência.


Gull possuía apenas uma fileira de prédios velhos, algumas casas em estilo
vitoriano, um bar com uma placa de neon escrito "Ralph's" e uma cabine
telefônica, provavelmente mais velha do que Pierce.
Pierce já tinha perdido o senso de humor há bastante tempo. Estava com
fome, sua paciência chegava ao fim e de repente lhe ocorreu que poderia
acabar ficando para sempre naquele fim do mundo. Dirigiu-se para a cabina
telefônica com ânimo e energia renovados e colocou a mão no bolso.
Foi aí que lembrou que não tinha nem uma nota, quanto mais uma
moeda... Em seguida perguntou-se para quem telefonaria caso a tivesse.
Christine e Clay eram muito diferentes fisicamente e ninguém que
passasse na rua e os visse carregando a caminhonete diria que eram irmãos.
Clay era alto e magro, tinha cabelos loiros e o rosto redondo. Sua pele
clara se avermelhava sob o sol e seus olhos cinzentos costumavam tornarem-
se vagos e distantes, como se vissem coisas além do campo de visão de um
simples mortal.
Christine era baixa e irradiava saúde. Seus cabelos castanhos, brilhantes,
chegavam à altura dos ombros, mas ela costumava usá-los presos. Sua pele
era morena e os olhos amendoados.
Christine arrumou a última caixa na carroceria da caminhonete e parou
antes de saltar.
— Ele está usando uma camisa de seda? — Murmurou.
Clay não precisou de nenhuma explicação e virou-se imediatamente para
a cabina telefônica. O homem que tinham visto na entrada da cidade estava lá,
indiferente ao fato de fazer uma figura cômica parada ali com os bolsos da
calça virados para fora.
— Pode ser — respondeu Clay. — E garanto que é uma calça de smoking.
— Concordo. — Christine saltou para o chão, ignorando a mão que Clay
ofereceu para ajudá-la. — Que será que aconteceu com ele?
— Está arruinado é claro. E perdido.
— Pessoas que usam camisa de seda e calça de smoking às nove horas da
manhã jamais estão arruinadas, Clay. Estão passando apenas por um aperto
temporário. — Christine suspirou, arrumou a gola da camisa e voltou a pensar
nos assuntos mais urgentes. — Falando nisso, vou receber as más notícias do
tio Sam. Irei encontrá-lo no Ralph's daqui a meia hora, está bem?
Clay assentiu observando o homem ao lado da cabina telefônica. Viu que
ele, parecendo ter tomado uma decisão, arrumou os bolsos, endireitou os
ombros e desceu a rua com andar decidido.
— Clay, nada de bêbado e mortos de fome, hein?
Clay sorriu, acenou-lhe e atravessou a rua para entrar no Ralph's.
As notícias do contador não eram boas. Christine mandou apelar no
sentido de conseguir que se adiasse o pagamento dos impostos e deixou o
escritório do Sr. Davis com o livro-caixa gravado na memória.
"Apesar de sempre termos alguma dívida, não me lembro de já termos
vivido uma situação tão ruim", pensou.
Um ano medíocre seguido por um ano desastroso podia arruinar um
fazendeiro. Abalada, Christine admitiu que não estavam muito longe disso. Não
podiam mais contar com a ajuda do governo do Estado, os custos do
combustível, dos fertilizantes e das sementes, aumentavam sem parar e como

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

os empréstimos federais estavam fechados... O que fariam para sobreviver?


Teriam que empenhar tudo o que possuíam só para o pagamento dos impostos
e do serviço da colheita. Se algo desse errado e não conseguissem pagar o
empréstimo, perderiam tudo. Porém, não tinham escolha, e ela só esperava
que seu pai estivesse preparado para o pior.
O único consolo de Christine naquela manhã desastrosa foi chegar à
frente do Ralph's e ver os homens que Clay contratara. Estavam parados perto
da caminhonete e, como conhecia alguns, cumprimentou-os sorrindo. Todos
pareciam fortes, saudáveis e ansiosos para trabalhar.
Christine viu Clay atrás de uma das janelas embaçadas do bar e entrou.
Ele estava terminando de tomar uma xícara de café em uma das mesas,
explicando os termos do contrato de trabalho ao último dos seis homens, que
também parecia adequado. Talvez tivesse sido muito rude com seu irmão mais
novo. Ele sabia lidar com uma situação difícil.
Foi para o balcão e pediu um café. A primeira coisa em que reparou foi no
indigente elegante sentado num banquinho no canto do balcão. O rosto dele
mostrava satisfação ao terminar o que devia ter sido um caprichado desjejum
com ovos, presunto, pão, bolo, suco de laranja e café. Surpresa, Christine
perguntou-se como ele pretendia pagar aquela festa. Depois pegou seu café e
foi para a mesa de Clay.
— Trabalhou bem, garoto — disse ao irmão quando se sentou, e o último
trabalhador saiu para encontrar-se com os outros.
— Só estava cumprindo suas ordens senhora. — Clay sorriu e entregou-
lhe a lista de nomes para a folha de pagamento. — Pode ser que alguns não
aguentem até o fim do plantio. Cameron e Brown não têm mais direito ao
auxílio-desemprego e os dois precisam sustentar a família. Acho que estão
contentes por arranjar trabalho.
— Nenhum deles sabe dirigir trator — murmurou Christine ao examinar a
lista.
— Jake Richardson sabe — disse Clay. Vai voltar a trabalhar na usina na
próxima semana, mas enquanto isso será útil. Além disso, pode ser que a
gente encontre outro tratorista.
— Bem, é um começo. — Christine guardou a lista no bolso, tomou o
último gole do café e afastou a cadeira. — É melhor irmos embora. Precisamos
trabalhar.
Clay seguiu-a até a porta, mas algo chamou sua atenção.
— Espere um pouco. Quero ver uma coisa Chris.
Clay olhava para o canto onde o senhor Elegância acabava de receber sua
conta. Ele começou a bater nos bolsos com expressão de espanto, ensaiando a
cena enquanto Ralph estava de costas.
— Oh não! — Murmurou Christine. — A velha história de que perdeu a
carteira!
Ralph era um ex-peso-pesado cujo raciocínio não tinha sido afetado pelos
socos que levara na cabeça durante sua carreira. E, além do mais, só um idiota
acreditaria naquela cena.
A camisa que o rapaz usava era mesmo de seda, mas estava suja e
rasgada. A calça devia ter custado mais do que o salário de uma semana
inteira de trabalho de um lavrador, mas parecia ter passado por baixo de um
caminhão.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

"Ele está arruinado, totalmente arruinado! Mas não é um vagabundo",


pensou Christine.
Não tinha essa impressão só pelas roupas. Seu porte e a elegância dos
movimentos mostravam bom gosto e refinamento. Era um homem acostumado
às boas coisas da vida e, mesmo com aquele aspecto lastimável, parecia
completamente fora de lugar no bar de Ralph. Apesar dos cabelos negros
despenteados e a barba por fazer, as linhas de seu rosto mostravam
determinação. Embora só o visse de perfil, Christine notou que era um rosto
forte e expressivo.
Ela estava bastante intrigada, a ponto de querer ver como terminaria
tudo aquilo, mas o sol já estava alto e não tinha tempo. Além disso, não lhe
agradava ficar no meio de uma briga de bar.
— Já estava com a mão na porta quando o homem deu um salto e
exclamou com voz alterada:
— Que coisa horrível! Roubaram minha carteira!
"Que inteligente” pensou Christine, virando-se novamente com divertido
interesse. "Ele jamais perderia a carteira. Tinha mesmo que ser roubado!"
Ralph encarou-o com os punhos cerrados e a expressão furiosa, mas o
homem não se abalou.
— Exijo que chame a polícia! Que espécie de estabelecimento é este em
que um cidadão honesto vem tomar o café da manhã e é roubado?
De repente Christine se pegou torcendo pelo malandro engenhoso. Se
pudesse, até lhe pagaria a conta, como prêmio por aquela encenação!
Mas Ralph não pensava o mesmo e num movimento rápido pegou o
homem pelo colarinho.
Christine estremeceu e voltou-se para a porta.
— Não quero assistir — murmurou. — Ver sangue logo de manhã vai
estragar o meu dia. Vamos embora.
Clay colocou a mão em seu braço, impedindo-a de sair. A cena ainda não
tinha chamado muita atenção. Ralph era conhecido por enfrentar fregueses
insatisfeitos, e as brigas eram tão frequentes que os dois policiais de Gull nem
se preocupavam mais em atender às chamadas do bar. O dono fazia justiça
com as próprias mãos e ninguém se queixava. Christine sentia uma vaga
simpatia pelo pobre rapaz, que lutava com coragem, mas realmente não
queria assistir à briga.
Com um único movimento, Ralph quase puxou o homem para cima do
balcão pelo colarinho. Ele continuava firme em seu papel, protestando
inocência, mas o outro não lhe dava ouvidos.
Meneando a cabeça com certa tristeza, Christine empurrou a porta para
sair. Sentia pena do pobre homem e de todos os outros iguais a ele, mas
aquele problema não lhe dizia respeito. No entanto, ao virar-se para chamar o
irmão, não o encontrou mais por perto.
Clay tinha voltado ao balcão, e agora colocava uma nota de cinco dólares
sobre a conta, dando um tapinha no ombro de Ralph. "Devia ter previsto que
isso iria acontecer", pensou ela com um suspiro.
Alcançou Clay quando ele estava se apresentando ao rapaz, que alisava a
camisa e a calça como se tivessem ficado sujas pelo contato com Ralph.
— Muito bem, bom samaritano, agora podemos ir embora? — Perguntou,
pegando-lhe o braço com firmeza.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Esta é minha irmã, Christine — disse Clay, sem pressa. Pierce observou
Christine rapidamente, notando os quadris moldados pela calça justa, a cintura
fina e os seios firmes que se delineavam sob a blusa de algodão. Como estava
esgotado, dirigiu-lhe apenas seu costumeiro sorriso devastador e replicou:
— Estou encantado! Meu nome é Pierce Lanson e tenho imenso prazer em
conhecê-los. — Fez um gesto para o balcão quase vazio. — Não querem tomar
uma xícara de café comigo?
Ela precisou se controlar para não rir. A coragem do homem era mesmo
admirável! Não lamentava os cinco dólares de Clay; o show tinha valido a
pena. Quando se preparava para uma recusa educada, ouviu o irmão
perguntar com um sorriso:
— Não está interessado em um emprego?
Na hora, Christine perdeu o senso de humor e lançou um olhar de
advertência para seu irmão, mas ele não se deu por achado. Apertou-lhe o
braço com força e ele continuou a ignorá-la.
O arquear de uma sobrancelha foi à única reação à proposta inesperada, e
só naquele momento Christine pôde observar melhor o desconhecido. Como
imaginava, possuía um rosto forte, decidido... Mas havia mais do que isso.
Apesar da barba por fazer e da palidez de cansaço, era um rosto bonito. O tipo
de rosto de modelos ou astros de cinema, o tipo de rosto raramente visto num
lugarejo como Gull. O rapaz tinha uma covinha no queixo e um perpétuo
cinismo insinuado nos lábios carnudos. Seus olhos eram contornados por cílios
escuros e espessos. Christine nunca tinha visto olhos tão azuis, tão azuis que
podiam ser chamados de violeta. E agora aqueles olhos estavam fixos nela
com o que parecia um misto de compreensão e divertimento. Não conseguindo
sustentar aquele olhar por muito mais tempo, virou a cabeça, sentindo um
ligeiro mal-estar.
— Bem, para ser sincero, estou desocupado no momento — respondeu
Pierce com tranquilidade, virando-se para Clay. — Que tipo de emprego está
me oferecendo?
A paciência de Christine terminou, talvez pelo olhar de compreensão que
ele lhe dirigira, talvez pelo acúmulo de aborrecimentos daquela manhã. Não
importava porque, mas não queria mais complicações.
— Oh, pelo amor de Deus, Clay! Quer parar de bancar São Francisco de
Assis e vir embora? Temos os homens que precisamos e o senhor...
— Lanson — esclareceu Pierce educadamente.
— Sr. Lanson não está interessado no emprego.
— Como você sabe? — Interrompeu Clay. — Para mim ele precisa tanto
do emprego quanto todos os homens que contratamos.
— Oh, pelo amor de Deus Clay! — Repetiu ela com impaciência. —
Reparou nas mãos dele?
Pierce estendeu as mãos. Eram macias e claras e, apesar dos dias sem
manicure, as unhas ainda estavam lixadas e polidas.
— Acho que sua encantadora irmã quer chamar sua atenção para o fato
de que são mãos de um homem que nunca teve um dia de trabalho honesto na
vida — disse Pierce para Clay.
Christine sabia que o irmão não resistiria a uma declaração tão sincera e
despretensiosa. O brilho nos olhos do estranho mostrou que era exatamente o
que esperava.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Clay foi fisgado.


— É trabalho pesado por trinta dólares ao dia e direito a uma refeição. —
Em seguida lembrando-se da recomendação de Christine, Clay acrescentou: —
Não posso prometer mais do que um dia de trabalho.
— Negócio fechado! — Respondeu Pierce, divertido com o olhar furioso
que Christine lançou para o irmão, antes de virar-se e rumar para a porta.
Para Pierce tudo era um jogo, uma nova aventura que podia até ser
interessante, agora que tinha sido salvo de morrer de fome. Trinta dólares
eram melhores do que nada e, além disso, havia um desafio sutil nos olhos
daquela mulher. Aquilo mexera com ele.
Cinco minutos depois, Pierce subia na carroceria de uma velha
caminhonete azul, encontrando o olhar hostil de outros seis homens
contratados para trabalhar na fazenda. Mais uma vez precisou de muito
esforço para conter um ataque de riso insano e totalmente desapropriado. Se
três dias antes alguém lhe tivesse dito que acabaria numa fazenda no
Alabama, trabalhando por um jantar com calça de smoking e camisa de seda,
ele não acreditaria.
Mas era só o começo.

Capítulo II

Pierce parou no pátio e olhou em volta sem muito interesse. Nunca tinha
ido a uma fazenda, mas também nunca sentira falta.
Era bonita como imaginava. Os imensos carvalhos, o som dos tratores nos
campos, os armazéns longos e baixos e a casa de madeira branca construída
com simplicidade formavam um conjunto perfeito.
Não sabia por que precisavam de todos aqueles homens para trabalhar a
pequena extensão de solo arado que viu estendendo-se atrás da casa. No
entanto, não perdeu tempo em especulações e olhou para Christine.
Ela dava as últimas instruções ao grupo de homens e, depois de deixá-los
por conta de Clay, virou para Pierce.
— Venha comigo — ordenou.
Pierce ergueu uma sobrancelha, divertido, e seguiu-a na direção dos
degraus largos da casa. Posicionou-se de forma a ter a melhor visão do corpo
dela. As curvas provocantes eram realçadas pelo andar firme e furioso, e
Pierce concluiu que era uma mulher atraente. Por um breve instante imaginou
cinicamente se a garota estava levando-o para dentro para que ganhasse seu
ordenado da maneira como estava acostumado, mas logo engoliu uma risada
quando ela lançou-lhe um olhar hostil. Ele ficou sério e entraram.
A casa não era tão grande como parecia. Havia um pequeno vestíbulo de
onde saía uma escada de madeira, dois quartos à direita e uma sala imensa à
esquerda. Christine apontou o aposento principal e subiu a escada.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Sem nada a fazer além de esperar, Pierce caminhou pela sala, observando
com ar distraído. Os aromas de carne assada e legumes cozidos o fariam se
ajoelhar desesperado uma hora antes. Agora eram apenas inegavelmente
agradáveis... Caseiros.
A sala tinha essa mesma característica, com uma lareira de pedra,
cadeiras confortáveis e dois sofás de couro que carregavam as marcas de
muitos corpos cansados. Havia almofadas e quinquilharias no aposento inteiro,
tapetes e luminárias que não seguiam nenhum padrão específico de decoração,
mas era um ambiente agradável. Pierce examinou as fotografias emolduradas,
que mostravam Clay e Christine na escola e em outras situações memoráveis.
Depois resolveu olhar coisas mais interessantes.
Sobre a lareira havia um relógio antigo que ainda funcionava
perfeitamente, e a seu lado algo que lhe chamou a atenção. Era um relógio de
bolso dentro de uma redoma de vidro, sem dúvida muito antigo. Curioso,
Pierce levantou a redoma e o pegou. Era pesado, com certeza de ouro. Havia
um pino lateral e, quando Pierce pressionou-o, a tampa do relógio se levantou
e começou a tocar uma música. Por dentro da tampa, em letras góticas, estava
a inscrição: "O tempo faz o homem". Devia ser uma herança de família e
estava muito bem conservada.
— É ouro puro — disse Christine atrás dele. — Pode-se conseguir
trezentos dólares por ele na casa de penhores daqui de Gull, mas o melhor
seria levá-lo a um joalheiro de uma grande cidade. Daria pelo menos dois mil
dólares, só pelo seu valor enquanto antiguidade.
Pierce fechou a tampa, interrompendo a música, e colocou o relógio
cuidadosamente na redoma. Virou-se sorrindo.
— É uma herança de família?
— Era do meu avô — esclareceu ela. Tinha nos braços um jeans, uma
camisa de algodão e um par de botas que à primeira vista pareciam grandes
para Pierce. — Tome. Use estas roupas de Clay. Provavelmente o jeans ficará
apertado e as botas largas, mas você terá que dar um jeito. — Christine mediu
as pernas e os pés de Pierce, sentindo aquele brilho malicioso nos olhos dele.
Levantou a cabeça e sustentou seu olhar com tranquilidade, sem ficar
impressionada ou intimidada. O homem parecia acostumado a se exibir; na
verdade, parecia até gostar disso.
Pierce pegou as roupas e seus olhos violeta não se desviaram de Christine
enquanto começava a desabotoar a camisa, lentamente. Havia charme em
cada um de seus movimentos; uma promessa irônica e paciente em sua
expressão. Intrigada, ela se perguntou como ele podia fazer aquilo com tanta
naturalidade, como um ator ou um modelo que jamais esquecia a platéia ou a
câmera. Mas o homem exalava tanta sensualidade que não devia ser mera
simulação. Sim, aquele devia ser o jeito dele. Pena que o charme fosse
totalmente inútil num lugar como aquele.
Comprimindo os lábios, Chris saiu da sala quando ele já havia
desabotoado metade da camisa. Os únicos corpos que a interessavam agora
eram os que podiam ser vistos atrás de um trator, transformando poeira em
dinheiro.
Pierce saiu da casa depois de se vestir.
Clay ainda estava no pátio, dividindo os homens em grupos, dando-lhes
instruções sobre o trabalho e mandando-os para partes diferentes da fazenda.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Para Pierce, era como se o rapaz estivesse falando em grego e, além disso,
não estava muito interessado nos detalhes do serviço. O que lhe atraiu a
atenção foi outra coisa.
Estava acostumado a ser observado e não se incomodava com isso, mas
raramente era avaliado por membros do próprio sexo, como agora. Nunca
tinha se encontrado numa situação como aquela.
Os homens que lançavam olhares hostis em sua direção deixavam claro
que o considerava um intruso. As barreiras tinham sido definidas durante a
viagem, através de olhares desconfiados e silêncios teimosos, mas ele estivera
muito envolvido no absurdo de sua situação para dar-lhes importância. No
entanto, a mensagem agora era evidente, estavam em seu próprio território e
Pierce era um estranho. Não pertencia à região, era diferente deles e de tudo o
que conheciam e só merecia desconfiança.
O alerta o advertia a agir com cuidado e por instantes sentiu-se
incomodado. Porém, quando Clay o chamou e ele desceu os degraus para
encontrar seu novo patrão, o sentimento já havia desaparecido. Já tinha
desempenhado muitos papéis em sua vida. Aquele não seria o mais difícil.
Enquanto caminhava ao lado de Clay para um imenso barracão atrás da
casa, Pierce se lembrou da explanação do rapaz sobre o funcionamento da
fazenda e que iam encontrar Hamilton Walsh, o pai dele e da garota.
Passaram por uma enorme árvore tombada, que parecia ter levantado
metade do quintal ao cair e cujas raízes chegavam à altura dos ombros de
Pierce. Clay contou que a árvore caíra no último inverno e que provavelmente
levariam o resto do verão para cavar suas raízes e cortar o tronco. Pierce ficou
impressionado, mas logo desviou sua atenção para o homem moreno que os
esperava na porta do barracão.
Atrás daquele que deveria ser Hamilton Walsh havia um enorme trator, ao
lado de outro menor sob o qual dois homens trabalhavam deitados no chão
sujo de óleo. Havia espaço para um terceiro veículo e Pierce concluiu que devia
ser o que ouvira no campo ao chegar. Três tratores, vários trabalhadores... A
operação devia ser bem maior do que imaginara a princípio.
Clay fez as apresentações e Pierce deu um passo à frente, com a mão
estendida e um sorriso simpático para cumprimentar o homem que pagaria
seu salário. Hamilton Walsh observou-o devagar, com a paciência de um
alfaiate medindo alguém para a confecção de um terno. E era exatamente
assim que Pierce se sentia: sendo medido cuidadosamente. Quando o homem
fixou os olhos cinzentos nos dele, não foi possível perceber nada através de
seu olhar: nem simpatia, nem aprovação, nem desconfiança. Apenas
perspicácia.
Uma perspicácia que o deixou embaraçado. Walsh não ofereceu sua mão,
e depois de um momento Pierce abaixou a sua. Eram pessoas estranhas
aquelas, mas, por uma jornada de trabalho e uma refeição, ele aguentaria.
Eram coisas da vida e algum dia daria muita risada de tudo aquilo.
Hamilton Walsh jogou a ponta do cigarro no chão e pisou em cima. Seus
dedos e seus dentes eram amarelados pela nicotina.
— O que sabe fazer rapaz?
— O que quer que eu faça? — Replicou Pierce, e aproximando-se do
trator, passou a mão na lataria vermelha.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Pensei em colocá-lo para ajudar a carregar o moinho papai, até ele


pegar o jeito das coisas — interferiu Clay. Seu pai ergueu uma sobrancelha,
demonstrando que achava uma perda de tempo e de energia, e Clay explicou
em voz baixa: — Ele precisa muito do emprego papai. Nós o vimos pedindo
carona para a cidade e ele não tem um centavo no bolso.
Pierce não perdeu uma só palavra da conversa enquanto fingia estar
fascinado pelo trator. Na verdade, era uma máquina interessante e, segurando
na maçaneta cromada, subiu num degrau para ver melhor a cabina
envidraçada.
— Sabe dirigir um trator? — Perguntou Hamilton.
— Sei dirigir qualquer coisa sobre quatro rodas ou entre duas asas,
homem — mentiu Pierce sorrindo. — Já ouviu falar no Grand Prix? Há dois
anos, eu estava na equipe Marsonova. E tenho licença para pilotar aviões
pequenos desde os dezoito anos.
— Perguntei se sabe dirigir esse trator — insistiu o pai de Clay.
Pierce saltou para o chão, limpando as mãos no jeans. Ar condicionado,
rádio... O que mais podia querer? E pensava que trabalho em fazenda fosse
duro...
— Bem, meu tio Buck tem um trator parecido com esse — improvisou.
Nada no olhar de Hamilton mostrava descrédito, e Pierce sustentou-o com
facilidade. Clay parecia menos convencido, mas não disse nada.
— Vou ter que passar boa parte do dia mexendo com o trator quebrado, e
você, cuide do campo, Clay — instruiu Hamilton. — Precisamos começar o
plantio esta semana, enquanto o tempo está bom. Faça os rapazes
entenderem que temos pressa. Seria muito mais fácil se tivéssemos os três
tratores, mas não adianta lamentar.
— A propósito, o que vocês cultivam aqui? — Interrompeu Pierce, movido
por súbito interesse.
Hamilton mediu-o de novo e parecia enxergar mais do que Pierce
gostaria. Tirou outro cigarro do bolso, sem tirar os olhos dele e, por uma
fração de segundo, seus lábios assumiram uma expressão irônica.
— Caráter principalmente — disse com simplicidade e virou-se para Clay.
— Leve-o para o campo oeste e lhe dê um homem para ajudá-lo com as
tremonhas. Vamos trabalhar! Estamos perdendo tempo!
— Tudo bem! — Disse Clay. — Vamos lá!
Pierce não precisou de um segundo convite. Entrou na cabina e sentou-se
atrás do painel, examinando ansiosamente os controles. Encontrou a ignição
sem problema algum, a chave estava no lugar e logo à imensa máquina
começou a funcionar. Um largo sorriso iluminou-lhe o rosto quando olhou pela
janela e fez um sinal de positivo para Clay. Não seria nada mau e teria
algumas histórias para contar quando voltasse à civilização!
O painel de controle não era tão complicado quanto o do 280-Z que usara
durante o ano anterior, mas também não tinha indicação nenhuma. Usou a
intuição e a máquina começou a andar para trás quando empurrou a alavanca
certa. Sentiu-se confiante e empurrou outro botão para aumentar a
aceleração.
"Vai ser fácil!", pensou entusiasmado. No mesmo instante ouviu uma
pancada estridente e gritos. Procurou o freio,, mas não fazia a menor ideia de

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onde estava. Um segundo depois um solavanco barulhento jogou-o de


encontro ao painel e o trator parou de funcionar.
Pierce desligou a ignição praguejando em voz baixa. Abriu a porta e gritou
— No que foi que eu bati?
— Na alavanca de força — gritou Clay, indo para trás do trator. — Você
bateu na alavanca de força.
— O que é isso? — Pierce saltou para o chão, sentindo o olhar dos outros
homens.
Clay parou de repente e olhou-o com expressão horrorizada.
— Você disse que sabia dirigir um trator! — Acusou-o. — Você não sabe o
que é alavanca de força?
Pierce chegou à parte traseira do trator e compreendeu que qualquer
desculpa que oferecesse seria inútil. A peça presa ao trator estava agora
amassada e retorcida.
Clay precisou de esforço para manter a voz calma, mas conseguiu. Devia
saber que Pierce estava mentindo quando falara de sua experiência. Não devia
tê-lo encorajado com seu silêncio. Quase entrou em pânico quando olhou a
parte amassada do trator, pensando que agora só teriam uma máquina
funcionando. Se tivessem que comprar outra peça como aquela...
— Você quebrou o arado — explicou afinal, sem necessidade. Pierce
mexeu em um dos pneus. Pelo tom de voz de Clay percebeu que o que
acontecera era grave e, pelo canto dos olhos, viu os outros homens rindo e
cochichando. Embaraçado, ensaiou um sorriso.
— Sinto muito homem.
— Tudo bem — respondeu o rapaz, depois de alguns instantes. — Estas
máquinas são traiçoeiras, quando não as conhecemos bem. Eu devia ter lhe
explicado como os controles funcionam antes de deixá-lo dirigir — deu mais
uma olhada no estrago e tentou amenizar a situação. — Talvez a gente possa
consertá-lo.
Quando Pierce começava a recuperar a segurança, seus olhos
encontraram os de Hamilton Walsh. O velho estava parado, com um cigarro
entre os dedos sem dizer nada, sem fazer nada. Apenas observando-o.

Capítulo III

Clay tinha três anos de idade quando sua mãe faleceu. Às vezes sentia-se
culpado por não conseguir lembrar-se dela, mas o que mais o fazia sentir-se
mal era saber que Chris perdera a juventude tentando cuidar dele.
Clay odiava discutir com a irmã que adorava acima de qualquer outra
pessoa. Odiava desapontá-la. Levara dois anos, talvez mais do que isso, para
tomar a decisão que sabia que não seria aprovada por Christine. Até aquela
manhã, não sabia se teria coragem de contar-lhe, mas agora o fato de ter
conseguido só servia para reforçar sua certeza de não estar agindo errado.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Seguindo os conselhos de seu consultor no seminário, Clay olhara para


dentro de sua alma sem medo, até estar seguro do que queria. Era um apelo
tão poderoso, tão envolvente, que obscurecia todo o resto. Era uma decisão
que o tornava corajoso, quando antes sentia medo; o deixava forte, quando
antes só fraquejava; era algo que lhe conduzia a vida independente de sua
vontade. Não podia ignorar a vocação, mesmo que tentasse.
Sabia que o que vinha pela frente não seria fácil. Deus fortalecia as
pessoas através de testes, afastava a fraqueza pela adversidade. Os
acontecimentos daquele dia eram prova disso.
Enfrentar Christine tinha sido difícil, mas conseguira falar com ela com
tanta calma e firmeza que estava orgulhoso. Porém, deveria ter adivinhado
que o orgulho sempre vem antes de alguma desgraça, e a desgraça viera na
forma de um malandro imprudente e de um trator amassado. Mas Clay ainda
tinha esperança de que algo de bom aconteceria. Era só ter paciência e
aguardar.
Ele passou a manhã inteira na cidade, comprando as peças de que
precisava para consertar as máquinas. Depois, sentindo-se responsável pelo
atraso do trabalho, esquivou-se do almoço e enquanto os outros homens
comiam, foi arar dois regos com o único trator que estava funcionando.
Chris insinuara que ele não gostava de trabalhar na terra porque era um
trabalho pesado e sujo, mas não se tratava disso. Simplesmente não era bom
nessa tarefa. Era lento, desajeitado e, como tinha tendência para errar,
metódico demais. Seu grupo de trabalho sempre terminava o serviço por
último e nenhum homem queria ser escalado para acompanhá-lo.
Clay não estava no melhor dos humores quando voltou para casa no
começo da tarde, para buscar outro latão de combustível para o trator. Ao ver
o carro de Abby estacionado na alameda, compreendeu que seus testes tinham
apenas começado.
Ela estava na cozinha conversando com Mary. Seu rosto iluminou-se ao
vê-lo e Clay sentiu um aperto no peito.
— Vou me lavar — avisou à garota, indo direto para o banheiro.
Não tinha visto Abby durante as últimas semanas e sabia que seu
comportamento estava começando a confundi-la. Contar sua decisão para
Abby era mais uma coisa que tinha evitado durante bastante tempo, mas hoje
era o dia dos confrontos.
Clay encontrou-a a sua espera na sala da frente, elegante e simples num
vestido de algodão amarelo, sandálias brancas, os cabelos pretos
emoldurando-lhe o rosto e os olhos brilhando de alegria em vê-lo.
Clay sentiu outro aperto no coração, diante de uma súbita vontade de
tocá-la.
— Vim para falar com Christine. Trouxe a lista de voluntários para a
escola de domingo — disse ela aproximando-se. — Estava torcendo para
encontrar você.
Abby levantou o rosto para beijá-lo, mas Clay, com um movimento
imperceptível, virou a cabeça e seus lábios só roçaram no rosto dela. Depois,
segurou-lhe os braços com delicadeza, preparando-se para afastá-la.
— Estou feliz por você ter vindo, Abby — disse com sinceridade. O simples
fato de vê-la o enchia de alegria. Mas hoje...

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Não parece meu amigo! — Abby deu uma risada gostosa. — Sei que faz
tempo que não me beija, mas não me diga que já esqueceu como é!
Abby passou os braços em volta do pescoço de Clay e ele sorriu, ainda
tentando afastá-la. A garota pressionou o corpo contra o dele e, em seguida,
colou os lábios doces aos dele.
Não era o que Clay desejava. Sabia que não era a melhor maneira de
iniciar a discussão que devia acontecer entre eles naquele dia. No entanto,
talvez por pressentir que seria a última vez, sentiu uma necessidade intensa e
desesperada de conhecê-la plenamente, de abraçá-la, tocá-la e experimentar
cada centímetro de seu corpo, de marcá-la definitivamente na memória antes
de perdê-la para sempre.
Clay começou a acariciá-la, a acompanhar as curvas delicadas e em
seguida abraçou-a, puxando-a para mais perto. Os seios de Abby, firmes e
macios, moldavam-se contra seu peito e ela tinha o gosto de todas as coisas
frescas, novas e maravilhosas. As emoções que dominavam Clay sempre que
estava perto daquela mulher eram tão intensas que o tiravam de si, o
deixavam fraco. Ficava totalmente cego para tudo e para todos a não ser para
Abby e para o quanto a amava e desejava.
Clay aprofundou o beijo e Abby não se conteve mais. Acariciou o rosto e
as costas dele, escorregando os dedos por baixo da camisa, em busca da pele
nua. Aquele toque deixou Clay com os músculos tensos. Abaixou a cabeça
lentamente até os seios de Abby, simplesmente aspirando sua fragrância
depois os beijou com carinho. Podia senti-la estremecer em seus braços, a
respiração morna alterando-se em sua nuca.
— Amo você Abby — murmurou. — Amo muito! Quando Clay levantou a
cabeça, encontrou os olhos negros de Abby cheios de paixão. Enquanto
procuravam os lábios um do outro novamente, ele a apertou com mais força,
querendo que sentisse a força de seu desejo. Abby gemeu em sua boca e o
fogo ardia irremediavelmente, ameaçando consumir os dois. Clay sempre
tentara protegê-la do próprio desejo, amando-a com ternura, mas conhecendo
bem os limites. Agora, no entanto, havia na situação um desafio que não podia
recusar. A atração física era um demônio com quem travava uma persistente
batalha, e até aquele momento ele sempre vencera. Não que amar Abby fosse
errado, como não era entregarem-se à linguagem dos corpos e da paixão. Mas
amá-la sem comprometer-se era inconcebível. E compromisso era algo que
Clay não podia lhe oferecer.
Levantou a cabeça devagar. A respiração estava alterada e seus músculos
ardiam para tocá-la de novo. Teve que largá-la aos poucos, lutando para
sufocar as emoções enquanto assistia ao rosto bonito e apaixonado tornar-se
confuso, cheio de mágoa.
— Por que Clay? — Murmurou Abby inconformada. — Por que você
sempre para?
Clay deu um passo para trás. Olhou para a janela buscando uma
distração, mas Abby entendeu mal.
— Não estou falando de hoje. Sei que não podemos, nós... — O rosto dela
ficou mais corado, machucando o coração de Clay. — Agora não podemos,
porque a qualquer momento pode entrar alguém aqui, mas é sempre assim,
Clay... Como se você não me quisesse...

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Você sabe que não é verdade, Abby. Você sabe que quero você, que te
amo.
A alegria que transpareceu na fisionomia de Abby foi outra punhalada no
coração de Clay.
— Clay... Sei que você quer esperar até nos casarmos, mas, se nos
amamos tanto não é pecado. — Abby aproximou-se e colocou-lhe a mão
suavemente no braço.
Clay respirou fundo e deu um passo atrás.
— Eu nunca disse que era.
— Então, o que é?
A frustração na voz da garota estava mais evidente agora. Não era a
primeira vez que tinham essa discussão, mas como Abby poderia entender se
Clay nunca tinha lhe explicado a verdade? Mas ele também nunca havia
permitido que ficassem excitados a ponto de perder a razão. A culpa era dele,
não devia ter deixado que isso acontecesse.
— O que é então, Clay? Sexo é uma palavra suja para você? Às vezes faz
com que me sinta culpada, como se meus sentimentos fossem sujos, como se
você não quisesse isso...
Clay virou-se rapidamente, silenciando-a com o apelo dolorido de seu
olhar.
— Abby não! Você sabe que não é verdade. O que sentimos um pelo outro
é bonito e natural...
— Então o que é? — Ela meneou a cabeça confusa, com os olhos cheios
de lágrimas.
— Não tem nada a ver com você, Abby. Tente entender...
— Mas eu não entendo! Não entendo nada Clay! Parece que quanto mais
amo você, mais você se afasta de mim. Nas últimas semanas...
— Abby, eu fui aceito no seminário.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, até que uma onda de alegria
iluminou-lhe o rosto. Pegou as mãos de Clay e sua felicidade transmitiu-se ao
corpo dele como um choque.
— Que bom Clay! Você esperou tanto tempo... Oh, estou tão orgulhosa de
você, querido... — Fez uma pausa pensativa. — Quer dizer que teremos de
esperar para casarmos... Não tem importância. Não precisa ficar chateado...
Eu lhe disse que esperaria e já esperei esse tempo todo, não é? Eu amo você
Clay, e nada...
Clay deu-lhe as costas. Não podia olhar para ela.
— Abby, não posso me casar com você.
Pronto, estava dito! As palavras soaram frias e ásperas, e atrás dele o
silêncio tornou-se mortal.
— O quê? — Perguntou ela afinal, com voz estrangulada.
Clay virou-se, mudo e impotente, implorando com os olhos que ela
entendesse. E Abby estava tentando entender, tentando dar sentido ao que
acabara de ouvir.
— Não podemos nos casar até você se formar. Sei disso, sempre soube
que...
— Não Abby, nunca.
Abby ficou imóvel, tão forte e corajosa quanto suas antepassadas
deveriam ter sido ao desbravarem aquelas terras. Deixou a dor invadi-la, sem

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

nenhum esforço para escondê-la, apenas aceitando, adaptando-se,


encontrando um meio de manter a sanidade. Clay nunca a amara tanto quanto
naquele momento.
— Por quê? — Perguntou ela afinal, com simplicidade.
— Vou assumir um compromisso que exige tudo de mim... Meu tempo,
minha energia, meus pensamentos, minha devoção. Não posso servir a dois
senhores, Abby. Não tenho outra escolha a não ser me dar por inteiro e...
— Não há espaço para mim.
— Não. — Clay teve que responder. Foi à coisa mais difícil de toda a sua
vida.
— Clay, não faz sentido! — Gritou Abby de repente, com os olhos cheios
de protesto. — Você fala como se eu tentasse tirar algo de você... Não sabe
que só quero compartilhar, ajudá-lo? Só quero ficar com você, nós dois
juntos...
Clay não disse nada. Não podia. Só conseguia encará-la e sentir o coração
bater lentamente em compasso com o sofrimento dela.
— Você não me ama... — Afirmou Abby, como se estivesse falando
sozinha.
— Não! — Clay aproximou-se quase num salto e segurou-lhe as mãos. A
dor e o conflito quase deformavam seu rosto. — Não, Abby, é porque amo
você, amo muito! — Apertou os dedos dela, quase a machucando, implorando
que compreendesse. — Amar você me deixa dividido, às vezes é a única coisa
que consigo sentir... Mas sei que nunca poderei me dar por inteiro querida, e
você merece muito mais. — Largou uma de suas mãos e acariciou-a na face,
com dedos trêmulos. — Não posso pedir que viva com um homem cujo
primeiro amor e primeira devoção nunca serão você. E eu não suportaria viver
sabendo que não estou me entregando a nenhum dos meus amores por
inteiro.
— Não tenho nenhuma chance?
— Não. — A voz de Clay tornou-se apenas um sussurro.
Abby fitou-o por um longo momento, com um misto de amor e desespero
estampados nos olhos. Concordou lentamente, aceitando a situação porque
não tinha outra escolha, e um leve sorriso flutuou em seus lábios. A coragem
atrás daquele sorriso foi quase insuportável para Clay.
— Se servir de consolo, saiba que sempre vou te amar. — O sorriso
morreu e, com ele, a esperança. — Adeus Clay.
Clay ficou olhando Abby sair. Não a chamou, não correu atrás dela como
desejava. Tinha feito a escolha certa e nenhum bem surge sem sacrifício. Só
que naquele momento, o sacrifício parecia ser um preço alto demais a ser
pago...
Ao retornar depois da distribuição do almoço para os homens que
trabalhavam nos campos, Chris tinha ouvido tantas versões do acidente com o
trator que não conseguia tirar uma conclusão própria. Os empregados estavam
ressentidos com a estupidez do forasteiro e, embora Clay tivesse conseguido
arranjar serviço para todos mesmo sem o trator, eles estavam se sentindo
enganados.
O descontentamento geral, porém, não foi nada comparado à fúria de
Chris, quando finalmente ficou sabendo do incidente com detalhes. O pai lhe
disse com firmeza que a alavanca poderia ser fixada ainda naquele dia, mas a

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

tranquilidade dele só serviu para aumentar a raiva da filha. Clay não só


contratara um homem a mais como também não havia despedido o idiota que
os colocara naquela situação. Teriam de arcar com o conserto do equipamento,
além de pagar um salário a mais! Procurou o irmão durante a manhã inteira,
mas Clay não pôde ser encontrado em lugar nenhum. Ela chegou à conclusão
de que ele merecia uns bons tapas. Definitivamente, aquele não era seu dia.
Quando ia para casa almoçar e parou na caixa do correio, no entanto,
começou a acreditar em milagres.
Com uma das mãos foi examinando a correspondência, enquanto com a
outra guiava a caminhonete pelo caminho costumeiro. Um nó de tensão crescia
em seu estômago conforme colocava de lado uma conta após a outra. De
repente, viu um envelope que fez seu coração bater mais depressa.
Há pouco mais de um mês Christine chegara a seu limite, recusando-se a
continuar vivendo atolada em problemas. Mandou um currículo para uma
importante firma de marketing e, sem a família saber, viajou um fim de
semana para Atlanta, para uma entrevista. O emprego era exatamente o que
desejava, estava qualificada para assumi-lo e achava que tinha se saído bem
na entrevista. Durante duas semanas tinha aguardado esperançosa uma
resposta, mas com o passar dos dias a animação foi diminuindo, até desistir de
esperar. Agora, porém, tinha nas mãos um envelope que podia mudar sua vida
e, por um momento, leve medo de abri-lo.
Ficou sentada na caminhonete com o motor ligado, olhando o envelope
com o coração aos pulos. A carta poderia ser apenas uma polida recusa de
seus serviços. Poderia ser um pedido para que ela tentasse novamente em
outra oportunidade. Suas mãos tremiam quando rasgou o papel pardo e
retirou a folha datilografada.
“Cara Srta. Walsh,”
Gostaria de informá-la de que, de um grupo de candidatas com excelentes
qualidades, à senhorita foi à escolhida para entrar em nosso programa de
treinamento de gerentes.
Como foi colocado na entrevista inicial, após o período de oito semanas de
treinamento a senhorita trabalhará durante seis meses na firma, e ao final
desse tempo seus progressos e seu potencial serão cuidadosamente avaliados
antes de lhe oferecermos um contrato permanente.
Por favor, compareça ao nosso escritório no dia 1° de maio às nove horas
para receber orientação e instruções iniciais.
Aproveito o ensejo para dar-lhe as boas-vindas ao nosso quadro.
Atenciosamente,
Vermon Simpson
“Vice-Presidente”
Chris leu a carta três vezes.
— Oh, Deus! — Murmurou afinal. Era sua chance de ir embora. Tinha
esperado isso por tanto tempo e justo agora, quando não suportava mais,
acontecera! Finalmente acontecera!
Chris não sabia se ria ou chorava. Uma onda de excitação a impelia a
fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Tentou pensar no que o emprego
oferecia, pois queria saborear cada detalhe. Viagens, status, sucesso,
dinheiro... Oportunidade de fazer o que gostava, oportunidade de ir embora
daquele lugar e viver no mundo real. Nada de se preocupar mais com peças de

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

trator, sementes ou caprichos do clima... Nada de levantar às cinco horas da


manhã, nada de sujeira embaixo das unhas, nada de se desgastar com os
livros-caixa que não se equilibravam. As decorrências de sua partida seriam
muitas, mas Christine não conseguiu deter-se em nenhuma delas por mais de
um segundo. A única coisa que sabia era que a oportunidade estava ao alcance
de suas mãos, que finalmente poderia tornar-se dona de sua própria vida. Seu
pai não se oporia, quando se convencesse de que era o melhor para ela. Clay
ficaria na fazenda. Ela estaria livre e nunca mais olharia para trás!
Chris tinha vontade de correr, de gritar, de contar para alguém. Quando
ouviu a porta da sala bater, desceu imediatamente da caminhonete, sem se
importar com quem seria a primeira pessoa, a saber, da novidade.
Não tinha reparado no carro de Abby estacionado perto da casa e alegrou-
se por encontrá-la. Certamente a amiga participaria de sua felicidade.
— Abby, espere! — Correu a curta distância que as separava, mas sua
euforia desapareceu quando Abby parou com a mão na maçaneta do carro e
levantou a cabeça.
A primeira reação de Chris foi de desapontamento. Era evidente que Abby
não estava com disposição para ouvir as boas novas. Seus olhos estavam
inchados, o nariz vermelho e os lábios pálidos e comprimidos.
— O que aconteceu? — Chris aproximou-se, agora preocupada. — Brigou
com Clay?
— Não exatamente. — Abby tentou sorrir, mas não conseguiu. — Ele
apenas me disse que está tudo acabado, só isso. — Abriu a porta do carro.
Chris encarou-a espantada. De todos os acontecimentos inacreditáveis do
dia, sem dúvida aquele era o mais chocante.
Embora nunca tivessem assumido formalmente, era tácito para todos que
Clay e Abby se casariam. Clay não era uma pessoa frívola. Seus afetos eram
profundos e permanentes e ele nunca havia feito segredo do que sentia por
Abby. O que a garota poderia ter feito para provocar tal atitude de seu irmão?
— Abby, espere... O que disse?
— Você não sabe? — A voz da garota estava embargada, mas recusava-
se a romper novamente em lágrimas. — Clay vai seguir sua vocação e parece
que não tenho condições de... — Não conseguiu continuar e entrou no carro.
Chris segurou a porta antes que Abby pudesse fechá-la. Não conseguia
tirar a expressão de estupidez do rosto, assim como não conseguia entender o
que Abby estava dizendo. Sentia um nó na garganta e não podia deixar a
amiga ir embora sem descobrir o que havia acontecido. Não parecia
simplesmente uma briga sem importância de namorados, pela qual Chris nem
se interessaria em outra circunstância. Alguma ameaça terrível pairava no ar,
lançando sombras escuras sobre o esplendor do dia.
— Não estou entendendo — disse Chris com cuidado, com os olhos fixos
nos de Abby. — O que aconteceu?
— Também não entendo — admitiu a garota afinal. — Parece que Clay
acha que não existe mais espaço para mim em sua vida, agora que vai para o
seminário. Eu lhe disse que o esperaria, mas ele falou algo sobre servir a dois
senhores. — Fez uma pausa, apertando o volante do carro. — Se ele tivesse
enjoado de mim ou se não me amasse mais... Ou mesmo se estivesse
interessado em outra mulher. — Levantou os olhos cheios de dor e desespero.
— Mas como posso competir com Deus?

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Chris não sabia o que dizer. Nem sabia o que fazer para aceitar o que
Abby estava dizendo. Afastou-se simplesmente, deixou-a fechar a porta do
carro e ir embora.
Ouviu a porta da casa se abrir e Clay descer em sua direção, mas levou
um longo tempo para conseguir voltar-se e encará-lo.
Os olhos de seu irmão também estavam muito tristes e o rosto abatido
como ela jamais vira.
— Foi inevitável Chris — disse ele apenas.
Até aquele momento, até ver os olhos de Clay, Chris não tinha acreditado
realmente nele. Apesar da conversa que tiveram pela manhã, apesar do que
Abby lhe contara, até aquele exato momento ela havia conseguido se
convencer de que tudo não passava de uma fantasia. Seu irmãozinho só podia
estar divagando; o entusiasmo duraria uns dois dias e depois tudo voltaria ao
normal. Mas agora precisava enfrentar o fato: Clay estava falando sério.
O gostoso sol de abril de repente parecia cegar e envolver tudo num brilho
incômodo e ofuscante.
— O que diabos pensa que está fazendo Clay?
— É problema meu está bem Chris? — Respondeu ele, virando-se para
entrar na casa, mas ela segurou-lhe o braço.
— O problema não é apenas seu, maldição!
O olhar espantado de Clay foi causado pelo aperto em seu braço e pela
fúria da voz de Christine. Desesperada, ela pensou que estava lutando por sua
vida. Sua vida, agora representada pelo envelope que ainda tinha nas mãos.
Ele não tinha o direito de interferir, pelo menos não agora, quando um mundo
de possibilidades estava ao alcance de suas mãos.
No entanto, quem estava diante dela não era mais o garotinho a que se
acostumara. Ali havia um homem, terrível em sua muda obstinação.
— Você vai mesmo para o seminário, não vai? — Explodiu furiosa.
Observou-o ansiosa, em busca de alguma fraqueza, de algum sinal de que
tudo aquilo era uma brincadeira de mau gosto... Largou o braço dele e
controlou o tom de voz. — Você vai realmente fazer isso conosco?
— Eu lhe disse esta manhã, Chris. — Clay fitou-a com tristeza.
E pensar que alguns minutos antes tudo parecia tão claro, tão perfeito,
tão fácil! Clay não tinha o direito de estragar tudo. Não deixaria que a
sacrificasse... Justo agora que tinha a oportunidade de sua vida... Não podia
deixar que ele fizesse isso. Não deixaria!
— E Abby? Droga, vocês iam se casar! Sua preciosa consciência não liga
para o que fez com ela?
— Já expliquei para Abby Chris. Não preciso explicar a você. — Mas
quando reparou melhor na expressão nervosa da irmã, Clay reconsiderou: —
Não seria justo com ela. O que tenho pela frente exige toda minha dedicação e
energia emocional. Simplesmente não existe espaço para uma esposa em
minha vida.
— Não se exige celibato dos pastores protestantes!
— Não, não se exige. — De novo aquela expressão vaga dominou o rosto
de Clay. — É uma decisão pessoal.
— E a fazenda? E papai? Você vai deixar um velho trabalhando sozinho
até morrer enquanto você fica em algum lugar distante apreciando o perfume
das flores e meditando?

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Papai terá você — argumentou Clay com simplicidade e Chris teve


vontade de enfiar as unhas nos olhos dele. — Este lugar é seu, Chris, como
sempre foi. Você cuidará dele.
Sim, Chris sempre cuidava de tudo. A boa Chris, firme, forte, segura...
Deixe que ela cuide de tudo. Não queria mais cuidar de nada! Será que
ninguém pensava no que Chris queria?
— Eu não vou ficar aqui, Clay. — Chris esforçava-se para manter a voz
segura. Suas mãos estavam tão geladas e amortecidas que ela quase nem
sentia as unhas cravadas nas palmas. — Não tenho nada a ver com este lugar.
É sua responsabilidade. Você não tem o direito de me forçar a ficar aqui.
— Querida, não estou forçando você a nada — respondeu Clay com calma.
— Tente entender, é alguma coisa que está acima de mim, acima de minha
vontade. — Sorriu antes de completar seu pensamento: — Você ficará aqui.
E Chris percebeu que ele tinha razão. Clay iria embora deixando tudo em
suas costas, sem um pingo de remorso. Nada mais parecia importar para seu
irmão, nem ela, nem o pai, nem a fazenda...
— Seu louco! Você é um louco sem coração! — Respirou fundo. Devia
tentar convencê-lo do passo errado que estava prestes a dar, mas a raiva era
tanta que não foi capaz de impedir que suas palavras saíssem cínicas, ferinas e
maldosas: — Você acha que tudo isso é muito simples, não é? Abby tinha
razão: como podemos competir com Deus? É... Seu plano é formidável,
irmãozinho... Para que ficar se matando de trabalhar aqui na fazenda quando
pode passar o resto da vida trancado numa igreja, lendo, sonhando e só tendo
que trabalhar um dia por semana, não é mesmo?
— Chris, por favor, não diga isso. Você sabe que não é assim...
— Mas é claro que é, seu idiota! E não me toque! — Chris deu um pulo
para trás quando Clay tentou segurar-lhe o braço. — Você acha que está sendo
nobre e desprendido, sacrificando sua vida por causa de um apelo vindo dos
céus? Pois bem, você não passa de um covarde! Simplesmente escolheu o
caminho mais fácil para fugir deste inferno aqui!
— É uma pena que pense assim mana — retrucou Clay com calma.
Chris tinha vontade de sacudi-lo até que aquela postura inabalável se
desmoronasse. Precisava fazer alguma coisa, dizer algo que pelo menos
turvasse a calma que flutuava nos olhos dele.
— Você sempre agiu desse jeito, Clay — recomeçou. — Desde quando não
passava de uma criancinha. Sua vida era ouvir contos de fada ou brincar num
mundo de mentira. Quando papai ralhava com você, quando mamãe não podia
atendê-lo ou quando as crianças maiores o aborreciam... Você não ficava
bravo, não brigava... Sua reação era correr para debaixo da escada e começar
a conversar com seus amigos imaginários! — Christine respirou fundo antes de
continuar: — Clay, não percebeu que é justamente isso o que está fazendo
agora? Você não domina direito seus sentimentos por Abby, tem medo da
responsabilidade que papai está lhe passando. Tem medo de acordar um dia e
ver-se no espelho como um velho... E por isso está querendo fugir! Sei que
não deve ser agradável ter como futuro trabalhar eternamente nesta fazenda,
mas este é o seu destino, Clay! E você não pode fugir dele!
— Não, Chris, meu destino não é este. Sinto muito.
— Então se dane! — Exclamou ela exasperada. — Você nunca encarou a
realidade dos fatos. Aliás, nem sabe qual é a sua realidade! — Abaixou-se,

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

pegou um punhado de terra no chão e, num movimento rápido, estendeu a


mão para o rosto de Clay. — Só que a sua realidade é esta, irmãozinho! Esta é
a sua realidade, o seu Deus! Por que não cresce de uma vez? Não pode nos
dar as costas assim, sem mais nem menos.
Mas ele podia e faria isso. Clay continuava calmo, impassível. Sem dúvida
estava cego pela própria determinação e nada do que ela dissesse o faria
mudar de ideia. Seu irmão estava por demais envolvido consigo mesmo para
poder pensar nos problemas dos outros. Tinha vinte e três anos e iria embora;
nenhum argumento seria capaz de impedi-lo. E o pior era saber que Clay
nunca se sentiria culpado por aquela decisão, nunca perceberia o mal que
causaria a todos...
Christine suspirou profundamente. Estava acabado.
— Tudo vai dar certo, Chris — disse Clay com calma. — Você vai ver, esta
é a melhor solução para todos. Você...
Christine jogou o punhado de terra que tinha na mão no rosto de Clay,
que limpou os olhos calmamente.
Ela arrependeu-se de imediato do gesto violento e sentiu vontade de
abraçar o irmão, de confortá-lo, mas em vez disso continuou imóvel, pálida e
inconformada.
Clay fitou-a intensamente por instantes e depois se afastou em direção
aos campos. Ela acompanhou-lhe o andar com os olhos, consciente de que
havia perdido o irmão. Vinte e tantos anos de amor tinham se diluído naquele
seu gesto violento e impensado.
Sempre o protegera, sempre lhe dera amparo e agora, quando Clay talvez
mais precisasse de seu carinho e compreensão, virara-se contra ele.
Não saberia dizer quanto tempo ficou ali parada sob o sol brilhante de
abril, olhando para o nada.
Finalmente virou-se e entrou na casa. O envelope ainda estava em suas
mãos, como um símbolo. Sua relação com Clay nunca mais seria como antes.
Talvez ele até a perdoasse por seu gesto impensado, mas Chris tinha certeza
de que jamais o perdoaria por tê-la forçado a fazer o que fez. E aquela certeza
doía.

Capítulo IV

Soja. Eles plantavam soja. E Pierce tinha carregado grãos suficientes para
alimentar o mundo inteiro.
O corpo de Pierce Lanson estava acostumado com saunas, massagens,
ginásticas leves. Não estava habituado a privações, a caminhadas em
estradas, a dormir em chão duro ou a trabalho pesado sob o sol. Sua cabeça
latejava e suas costas pareciam prestes a quebrar. Tinha três bolhas grandes
nas palmas de cada mão. Tirara a camisa duas horas depois de começar a
trabalhar, mas não tinha tomado um pouco de sol no iate no fim de semana

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passado? No fim de semana passado? Não era possível! Se fizesse tão pouco
tempo ele não estaria agora com as costas queimadas e ardendo. Parado no
fim de uma fila no pátio da frente, onde Clay fazia os pagamentos e agradecia
pessoalmente a cada homem pelo dia de trabalho, Pierce pensou que estava
mais próximo de um colapso físico do que jamais estivera em toda a sua vida.
O pôr do sol era cor-de-rosa e alaranjado e as cores brincavam nas
árvores, lançando sombras alongadas no pátio, lembrando pinturas de Dali.
Para os olhos cansados de Pierce, tudo parecia ter só uma dimensão: as
madeiras gastas do barracão, a casca sem cor das árvores, os corpos dos
homens na fila à sua frente. Até as vozes e as risadas a seu redor pareciam
vazias e distantes. Só uma coisa se sobressaía naquela mistura de imagens
dissociadas: um cheiro torturante que vinha da cozinha. Ele salivava sem
querer, mas se tivesse um prato diante de si talvez nem conseguisse levantar
o garfo, de tanto cansaço.
Pierce não sabia por que não tinha sido mandado embora depois do
acidente com o trator. Não teria se importado se isso acontecesse. Entretanto,
não fez nenhuma pergunta quando foi entregue aos cuidados de um homem
de costeletas e mandado para o silo. Afinal de contas, trinta dólares eram
melhores do que nada.
Os grãos de soja escoavam do silo para um latão alto e seu trabalho era
encher barris com os grãos do latão e transportá-los para uma caminhonete. O
homem de costeletas encarregava-se de dirigir a caminhonete dali até o
campo. Depois retornava e esperava que fosse carregada de novo.
Aparentemente, era só o que fazia. No começo Pierce tentou puxar conversa,
mas o homem só dava uma risada vaga e cuspia um líquido amarelado no
chão sempre que o encarava. Depois de algum tempo, Pierce começou a se
sentir um tolo e desistiu.
Em circunstâncias normais, não era de comer muito, e depois do
caprichado café da manhã não esperava ter muito apetite. A refeição do meio
dia foi levada por Christine, cuja expressão insinuava que poderia ter colocado
veneno no prato. O bom senso impediu-o de tentar flertar com a garota.
Comeu a refeição toda, em parte porque nunca tinha experimentado comida
tão deliciosa em sua vida e em parte por ficar temeroso de que o homem de
costeletas, que pegava as batatas com as mãos, roubasse seu prato caso não
se apressasse.
Depois de um almoço tão delicioso daqueles, teve vontade de acender um
cigarro. Admirado concluiu que, fossem quem fossem, aquelas pessoas eram
generosas em matéria de alimentação. Tentou imaginar quanto tempo ficaria
sem ver outra refeição daquelas. Na verdade, não conseguia acreditar que
sentiria fome de novo.
Pierce não sabia ainda que destino dar aos trinta dólares. Conforme o dia
passava e seus músculos doíam mais, só conseguia pensar que era pouco.
Talvez fossem suficientes para pagar um quarto de motel e outra refeição, mas
não daria para uma passagem de ônibus. Se existisse um cassino por ali, em
uma hora poderia transformar aquela quantia em dez vezes mais. Em todo
caso, tinha a garantia de que poderia dormir num lugar decente. Era tudo o
que lhe importava no momento.
— Dia duro filho?

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Pierce levantou a cabeça e encontrou os olhos divertidos de Hamilton


Walsh. Enrijeceu o corpo instintivamente e seus ombros doeram.
— Nem tanto. É um trabalho chato, se quer mesmo a minha opinião. O
que vai fazer com todos aqueles grãos?
Walsh devia saber que ele estava sofrendo, era evidente que sabia. O
homem tinha um jeito de olhar dentro das pessoas que fazia Pierce se sentir
transparente. Porém, viu na expressão dele certa admiração pela resposta
indiferente e alegrou-se. Não sabia por que, mas desejava impressionar o
velho.
— Vender algumas sacas e plantar a maioria — respondeu Walsh, ainda
com aquele olhar enervante. — A parte mais divertida é enterrá-los no chão.
Pierce não fazia a menor questão de conhecer aquele divertimento!
Clay tirou duas notas de cinco dólares e duas de dez da caixa e olhou para
Pierce com um sorriso amigável.
— Tem lugar para passar a noite?
— Ora, o mais interessante de uma viagem como esta é justamente isso,
meu amigo, não estar preso a nenhum lugar nem a nenhum compromisso.
Os olhos de Clay brilharam quando lhe entregou o dinheiro. Não conseguia
deixar de se divertir com Pierce e, estranhamente, de admirá-lo, Percebia
muito bem como mudava a postura, o modo de falar e até mesmo a expressão
facial, dependendo de quem estava ao seu lado. Uma inocência
cuidadosamente cultivada combinada com uma leve insinuação de dignidade o
fazia parecer vulnerável e irrepreensível perto de Hamilton. Risadas maliciosas
e gírias fáceis o colocavam no nível dos homens de sua idade. Silêncios
cuidadosos o defendiam dos olhares hostis dos trabalhadores. Uma aura sutil
de sensualidade sofisticada era tão natural para ele quanto respirar sempre
que Christine estava por perto.
Como o camaleão, ele mudava de acordo com as circunstâncias, dando a
cada pessoa exatamente o que esperava dele. O fato de ser tão transparente
não parecia preocupá-lo, pois seus disfarces eram instintivos e não
programados. Era um homem preparado para enfrentar todas as situações e,
por alguma razão inexplicável, Clay gostava disso. Facilidade para se adaptar
era uma característica digna de respeito em qualquer circunstância e Clay bem
que gostaria de ser assim.
— Temos um quarto vazio em casa — ofereceu Clay, cedendo a um
impulso. — Se quiser passar a noite aqui, será bem-vindo.
— Não obrigado — Pierce segurou o dinheiro. Antes de recebê-lo, parecia
apenas uma triste compensação para tudo o que sofrera naquele dia, mas
agora parecia uma verdadeira fortuna. Vou para a cidade e seguirei viagem
amanhã cedo.
— Harley vai levar alguns dos rapazes para a cidade — disse Clay,
inclinando a cabeça na direção de um homem de macacão encostado numa
caminhonete branca, conversando com alguns outros. Pelas risadas e olhares,
Pierce teve a nítida impressão de que falavam dele. — Você pode pegar uma
carona.
Pierce deu outro sorriso charmoso e virou-se.
De repente, alguém puxou as três notas de sua mão. Pierce levantou a
cabeça e viu Hamilton Walsh, voltou os olhos incrédulos para a nota de cinco

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

dólares que lhe restara e depois tomou a encarar o rosto implacável do homem
a sua frente.
— Que diabos...
— O pagamento justo por um dia de trabalho — interrompeu Walsh.
Em silêncio atônito Pierce observou o velho abrir uma velha carteira de
couro, guardar o dinheiro e colocá-la de volta no bolso. O cansaço
desapareceu, deixando apenas uma sensação de ofensa. Sua cabeça latejava,
seus ombros estavam em fogo e sua coluna parecia ter um nó de agonia. O
cheiro da soja parecia ter grudado em suas narinas, sobrepondo-se ao odor de
seu próprio suor. Ele tinha certeza de que jamais esqueceria aquele odor.
— Não pode fazer isso! — Agarrou o braço de Hamilton quando ele
começou a se afastar. — É um roubo! Você...
— Não é roubo receber o que é devido — respondeu Hamilton com
tranquilidade.
— E o que você me deve? — Pierce não acreditava no que estava
acontecendo. Era um pesadelo! Lembrou-se de como trabalhara o dia inteiro e
olhou a nota de cinco dólares em sua mão. — Você prometeu trinta dólares.
Todos os outros receberam trinta dólares. Eu trabalhei seu maldito! Trabalhei
como um escravo durante dez horas e você não tem o direito de reter meu
pagamento!
Pierce estava com a respiração alterada quando largou o braço de
Hamilton. Era demais! Ele era Pierce Lanson, cujos favores eram disputados e
pagos com extravagância pelas mulheres mais ricas do mundo; Pierce Lanson,
que estava habituado a sais de banho, champanha e a sentir o roçar de pele
com pele; Pierce Lanson, que vendera seu corpo por trinta dólares por um dia
inteiro de trabalho, quando costumava receber quinhentos por hora! Não era
possível! Nunca havia agredido ninguém em toda a sua vida, mas naquele
momento sentia-se tão injustiçado que sua vontade foi esmurrar o velho até
vê-lo estirado no chão.
Hamilton Walsh não se abalou. Clay continuava imóvel atrás do pai;
completamente sem graça, o que só contribuiu para aumentar a fúria de
Pierce.
— Você me deve cento e cinquenta e sete dólares pelas peças quebradas,
sem contar a mão de obra e os outros cento e vinte que pagamos para quatro
homens ficarem aqui esperando o trator ser consertado — disse Walsh
calmamente. — Você tem razão, não é justo, mas como sou um homem
caridoso, deixarei cinco dólares para você e não cobrarei o resto. Nenhuma
boa lição da vida sai barata filho, nem para o melhor dos homens.
Pierce sentiu a cabeça girar. Imediatamente compreendeu por que não
havia sido despedido. Boas lições! Ora, aquilo era apenas humor negro...
Com o canto dos olhos, viu o grupo de homens que estava perto da
caminhonete começar a se aproximar, demonstrando ainda mais hostilidade.
Pierce conhecia o tipo de código que regia aqueles homens. Tinha assistido
muitos filmes de cowboys. Se fizesse qualquer movimento em falso, poderia
acabar morto e jogado em algum buraco. Como um idiota, engoliu a raiva que
sentia de Walsh. Era sua única saída. Mas o que estava fazendo num lugar
como esse? Era um louco, só isso.
— Seu maldito! — Disse em voz baixa.
Hamilton Walsh apenas sorriu e caminhou na direção da casa.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Os primeiros Walsh foram para o Alabama em 1809, dez anos antes de o


território ser anexado como território da União. Instalaram-se numa terra
cedida pelos Chikasaw e lutaram contra os Creek pelo direito de permanecer
ali. Construíram uma cabana de um só aposento perto de um riacho,
derrubaram árvores, levantaram cercas, araram a terra. Em 1812, Dennis
Walsh escreveu para um primo da Escócia:
"A terra é generosa. Os índios a chamam de Alibamu, a terra da colheita".
Em 1813 um ataque de índios matou Dennis Walsh, sua esposa, os dois
filhos mais novos, e a cabana foi destruída. No ano seguinte, o filho mais velho
morreu na batalha onde o general Jackson finalmente venceu os Creek.
A cabana foi reconstruída, maior desta vez. Mais árvores foram
derrubadas, mais terra foi semeada. Os filhos morriam vitimados por
epidemias, mordidas de cobra e guerras. O verão castigava a terra semeada e
o inverno destruía as safras. O que uma geração perdia a próxima reconstruía,
pois os Walsh eram tão tenazes quanto à terra de onde tiravam o sustento.
Nunca foram ricos, nem bem educados, nem tiveram influência na
política.
Em 1872, a casa em que Hamilton Walsh nasceu foi construída na sombra
de um imenso carvalho que já existia muito antes da primeira tribo Chikasaw
instalar-se nas terras do Alabama. Naquela casa sobreviveram às várias pragas
na lavoura, à Grande Depressão e ao efeito de duas guerras mundiais. Ali
Hamilton casou-se com o grande amor de sua vida, ajudou-a a ter dois filhos e
prometeu duas coisas em seu leito de morte: que as duas crianças seriam
criadas segundo os preceitos da Igreja e que os dois iriam para a universidade.
Cumprir sua promessa foi uma questão de orgulho para Hamilton, foi apenas
uma decorrência natural.
O velho carvalho que abrigara quatro gerações Walsh tinha morrido no
último inverno. Christine não entendia por que não tinham feito alguma coisa
para salvar a velha árvore e nem Hamilton conseguiu convencê-la de que o
tempo e a natureza criam suas próprias regras e que o homem quase nada
pode contra elas. As mudanças são pequenas marcas no relógio da eternidade,
e quem vive bastante aprende a estar preparado para isso.
Apesar de tudo, Hamilton Walsh também não estava preparado, afinal.
Com um quase imperceptível tremor, colocou o garfo no prato, passou o
guardanapo na boca e olhou para seu filho.
— O que foi que você disse?
Era hora do jantar. A hora em que a família estava reunida, em que
juntavam as mãos numa breve prece e ficavam felizes por estarem juntos,
mesmo que não trocassem mais de meia dúzia de palavras. Esse era o
costume da época de sua esposa, de sua mãe e de sua avó. Era um momento
de tranquilidade e ninguém até agora jamais ousara quebrar a tradição. Um
pouco desesperado, Hamilton perguntou-se por que Clay agia daquele jeito.
— Mandei um pedido para o seminário em janeiro e recebi uma carta
dizendo que fui aceito. — Clay não recuou da pergunta de seu pai nem da
tempestade que prometia se abater sobre a casa.
Hamilton não reparou na palidez de Christine, nem em suas mãos
entrelaçadas. Viu apenas a calma nos olhos do filho, sua postura ereta e
segura e, surpreso admitiu que um adulto ocupava a cadeira reservada para o
pequeno Clay. De repente, sentiu-se desorientado, perdido no tempo e não

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

sabia como isso tinha acontecido. Aquele era seu filho, seu filho único. Será
que percebia o que estava fazendo? Clay não tinha pedido permissão, não
estava querendo saber de opiniões. Tinha feito uma afirmação como se
estivesse apenas contando um episódio interessante. Não era o filho de
Hamilton Walsh, era um homem no comando de sua própria vida. E resolvera
dedicar aquela vida a uma autoridade maior. Simples, claro, inquestionável.
Hamilton esforçou-se para aceitar num breve instante o que tentava ignorar a
anos; seu filho não lhe pertencia. Nunca tinha pertencido.
— Você sabia disso, Chris? — Perguntou, sem revelar na voz o que estava
sentindo.
— Ele me contou esta manhã. — Ela não precisou dizer mais nada. Seu
pai sabia como estava se sentindo.
Durante o dia inteiro nem passou pela cabeça de Christine a ideia de
desistir de seus próprios planos. Havia carregado a carta no bolso como um
talismã, à espera de uma oportunidade para falar a sós com o pai. Clay tomara
a situação mais difícil, quase impossível, mas aquela era sua única chance e,
por nada no mundo, deixaria que seu irmão a tirasse dela. Diria que estava de
partida naquela noite. Clay e seu pai que se entendessem depois. Eles não
poderiam impedi-la de ir. Não desta vez.
Entretanto, devia ter previsto que só estava adiando o inevitável.
Ouviu Clay dar a notícia e sentiu mais um aperto de raiva e de
ressentimento no estômago. Viu seu pai voltar-se atônito para ele e seu
coração encheu-se de esperança.
"Brigue com ele", desejou com fervor. "É seu filho e está nos traindo. Não
o deixe fazer isso".
Por instantes, teve certeza de que os planos de Clay não iriam adiante.
Hamilton Walsh não permitiria. Hamilton Walsh, aquele homem cheio de força
e determinação, não permitiria que seu filho e único herdeiro escapasse assim.
Ele não ficaria impassível, deixando que gerações de amor, de trabalho e de
tradição terminassem assim. Ele era seu pai e faria alguma coisa.
Mas, mesmo envolvida no fervor daquela convicção desesperada, Chris
sentiu a chama de esperança começar a se extinguir. Notou o conflito que
transparecia no rosto de seu pai. Ele odiava tal situação tanto quanto ela.
Estava furioso, magoado, sentia-se traído. E no final, em apenas alguns
segundos, notou que ele havia cedido. Sentiu o coração despedaçado quando
os olhos magoados procuraram os seus em busca de conforto. Estava acabado.
O leve sorriso no rosto envelhecido parecia um recado para ela:
"Bem, nós já sabíamos disso, não é, Chris? Não é a melhor coisa que
poderia ter acontecido, mas nós prosseguiremos. Temos que prosseguir. Agora
só resta você e eu".
Horrorizada, Chris olhou para dentro de si mesma. Não, não teria coragem
de magoar ainda mais aquele homem que a olhava com tanto amor.
— Então, quando vai partir? — Perguntou Hamilton, pegando o garfo
novamente.
Christine pediu licença e levantou-se da mesa. Quando chegou ao
vestíbulo, parou e rasgou a carta, jogando-a no lixo. Tinha vontade de gritar,
de chutar ou destruir alguma coisa. Mas não perderia o controle, não agora
que seu pai dependia dela, não agora que Clay jogara toda a responsabilidade

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

em seus ombros. Christine Walsh era uma mulher forte, todos dependiam dela.
Não podia demonstrar mágoa, desapontamento ou tristeza.
Saiu da casa em silêncio, atravessou o pátio e sentou-se no banco de
passageiros da caminhonete. Só depois de fechar a porta foi que se permitiu
começar a soluçar, sozinha na escuridão.
Hamilton ouviu a filha sair. Sabia que ela estava arrasada, mas não a
seguiu. Christine teria que aprender sozinha a lidar com aquela situação. Teria
que aprender sozinha a aceitar os fatos.
Ouviu os planos de Clay, deu os conselhos que um pai dá para um filho
numa ocasião dessas, mas ficou em silêncio a maior parte do tempo. Clay
também precisava descobrir sozinho o momento de deixar a natureza seguir
seu curso.
Depois do jantar, Hamilton saiu para fumar um cigarro. Não viu Christine,
nem procurou por ela. Colocou o pé sobre uma parte do imenso tronco caído e
ficou ali, pensando nas gerações que aquele carvalho abrigara e nas
transformações a que tinha assistido. Era uma tristeza ver uma maravilha
daquelas apodrecendo no chão e todos sentiriam a falta de sua sombra, mas
assim eram as coisas. Gostaria de saber como explicar isso para sua filha.
Depois de algum tempo, Hamilton pegou um machado e começou a
golpear o tronco. Ficou logo cansado, mas conseguiu criar um ritmo lento e
estável e suportar a dor no corpo. Era uma tarefa árdua e ele sabia que levaria
o resto do verão cortando o tronco sempre que tivesse tempo e disposição.
Mas não deixaria de ser feito só por ser difícil. Esse era o único modo que
Hamilton conhecia de levar a vida: dando um passo de cada vez.

Capítulo V

A caminhonete foi embora sem ele. Pierce não tinha o menor desejo de
seguir para a cidade com aquele bando de homens desconfiados que não
paravam de observá-lo com olhares um tanto assassinos. Viu Christine sair da
casa e sumir na escuridão. Esperou calmamente até parar de ouvir as vozes
que chegavam até ele através de uma janela aberta. Observou Hamilton sair
da casa e contorná-la em direção aos fundos e continuou esperando. Começou
a ouvir o som de um machado rachando lenha, um som monótono e irritante,
que também cessou depois de alguns minutos.
Só depois que entrou na casa em silêncio foi que Pierce percebeu
claramente o que estava prestes a fazer. A raiva é um sentimento que
consome muita emoção, e Pierce nunca gostou de preservá-la por muito
tempo. Passara apenas uma hora, mas a fúria já havia cedido e a um
ressentimento duro, muito próximo do desejo de vingança.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Na verdade, Pierce não estava querendo nem pensar no ato que estava
prestes a cometer. Não queria saber se estava agindo certo ou errado ou se
corria sérios riscos de ser apanhado em flagrante. Tudo o que almejava era
fugir o mais rápido possível daquele inferno e voltar para seu meio.
Não havia sinal de vida quando atravessou a sala de visitas. Os sons de
uma televisão no outro cômodo abafavam seus passos. O cheiro de comida
vindo da cozinha assanhou terrivelmente seu estômago e ele quase foi para lá.
Mas não, quanto mais depressa saísse daquela casa, melhor. Sem hesitar,
levantou a pequena redoma de vidro e pegou o relógio. Trezentos dólares,
dissera Christine. Aquele dinheiro o levaria de volta a Nova York e era só isso o
que importava.
Segurou o relógio com firmeza e virou-se apressado na direção da porta.
Foi nesse momento que viu Clay.
O irmão de Christine estava na escada, observando-o. No quarto degrau,
tinha uma visão excelente de toda a sala e não havia como não perceber o
brilho dourado entre os dedos dele.
Pierce estremeceu. Será que Clay tinha visto mesmo o que ele estava
fazendo? Como explicar sua presença ali na sala de visitas? Podia dizer que
estava procurando Hamilton... Ou que estava com fome... Não, Clay vira tudo,
seu olhar dizia isso.
Encarando o rapaz, Pierce colocou deliberadamente o relógio no bolso.
Clay continuou sem fazer um só movimento, apenas olhava-o. E seu olhar era
muito estranho e desconcertante... Era um olhar de perdão? De pena? Ou seria
um olhar de entendimento? Talvez apenas... Um olhar que transmitia um sinal
de permissão. Imediatamente Pierce correu para a porta.
Ainda sentia os olhos tolerantes de Clay em suas costas quando saiu e
respirou aliviado o ar puro da noite. O coração parecia saltar no peito e seu
estômago estava embrulhado. Sabia que o melhor a fazer era fugir o mais
rápido possível daquele lugar antes que o rapaz se arrependesse e viesse atrás
dele.
O que fazer? Ir embora a pé era uma temeridade, pois teria que andar
dois quilômetros. A velha caminhonete estava estacionada ali perto, embaixo
de uma árvore, e com certeza os idiotas deviam deixar as chaves no contato.
Se tivesse sorte, poderia estar numa rodoviária antes da meia noite.
Como estava tudo escuro dentro da caminhonete, Pierce só percebeu a
presença de alguém a seu lado depois de subir na cabina e bater a porta.
— Inferno... — Praguejou ele, quando seus olhares se encontraram.
As lágrimas tinham deixado Christine cansada, sem forças ou disposição
para coisa alguma. Não ficou surpresa com a entrada daquele maluco na
caminhonete, interrompendo-lhe bruscamente a solidão. Já havia acontecido
de tudo naquele dia e seria otimismo julgar que os aborrecimentos haviam
cessado. Com muito esforço, conseguiu perguntar:
— o que está fazendo aqui?
Pierce suspirou profundamente, dizendo a si mesmo que era vítima de
algum pesadelo. Mas não. A garota era real, de carne e osso, e o olhava com
ar de poucos amigos. Pois bem, ia dizer a verdade, para variar.
— Estou roubando sua caminhonete. Quero ir embora desta sua querida
fazendola o mais depressa possível!

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Christine observou-o, incapaz de qualquer movimento. Não conseguia


sentir nada, parecia vazia por dentro. Engraçado, aquele rapaz conseguia ser
elegante até com roupas emprestadas. E queria roubar a caminhonete. Em
outras circunstâncias, seria o momento de desmascará-lo. Mas no momento, o
mundo poderia cair-lhe na cabeça que não reagiria.
— Para mim, tudo bem.
Pierce arregalou os olhos, encarando-a. Mesmo na penumbra, percebeu os
olhos brilhantes, denunciando que Christine havia chorado. Quanto tempo ela
teria ficado ali solitária, entregando-se ao desespero? Bem, não tinha a menor
importância. E, além do mais, precisava tomar alguma atitude, pois a chave
não estava no contato.
— Que tal passear? Para onde quer ir? — Perguntou de repente.
— Acho que para o inferno. Seria um bom lugar. Pierce ficou
completamente desconcertado com a resposta.
Sem dúvida, ela estava arrasada.
Um grande silêncio caiu sobre os dois. Por alguns momentos Pierce parou
de pensar na fuga, no roubo do relógio... Sabia que precisava tomar alguma
iniciativa, mas não fez o mínimo movimento. Tinha a impressão de que nada
mais fazia sentido.
O que estava acontecendo com ele? Inesperadamente sentia-se envolvido
pelo silêncio, por aquela situação completamente absurda que se estabelecera
entre ele e Christine. Eram como dois fugitivos sem ter lugar para onde ir. Pois
estava claro que Christine, ali a seu lado, também queria fugir daquele lugar,
mas sem saber para onde.
Pouco a pouco as imagens dos últimos dias foram voltando a sua mente.
O iate, a mulher com quem passara o turbulento fim de semana, o brutamonte
que aparecera de repente... O mar... A estrada...
Num impulso, virou-se para Christine e disse:
— Ei, sabe o que eu fazia antes de aparecer por aqui?
Ela o encarou, como se só naquele momento percebesse que havia
alguém a seu lado. Quanto tempo tinham ficado ali sentados, em silêncio? Ele
tinha dito que estava roubando a caminhonete...
— Não, não sei — Conseguiu responder com esforço. — O que você fazia
antes de vir para cá?
— Era acompanhante de mulheres ricas.
Christine continuou olhando-o, sem demonstrar surpresa. Na verdade,
sem demonstrar qualquer tipo de emoção.
— E para quê? — Retrucou finalmente.
— Dinheiro, minha cara. O que mais poderia ser? — Pierce sorriu com
cinismo.
— Você ia mesmo roubar a caminhonete? — Perguntou ela, agora
demonstrando um pouco de interesse.
— Se você não estivesse aqui...
Os dois riram. Aquilo tudo era tão absurdo que rir parecia ser a única
atitude capaz de dar alguma aparência de normalidade à situação.
Christine observou-o melhor. Sem dúvida, era um homem bonito e
sofisticado e, desde que o vira pela primeira vez, teve certeza de que devia ter
algum tipo de vida misterioso e extravagante. E tinha.
— Por que você estava chorando? — Ele a surpreendeu.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Porque odeio este lugar.


— Acho que entendo seu sentimento.
Ficaram novamente em silêncio. Depois de alguns momentos, Chris voltou
a falar.
— Então você se vendia. Sua "companhia" também incluía...
— Também.
Chris pensou que era estranho examiná-lo sob esse novo ponto de vista.
Ainda não tinha parado para observá-lo com atenção nem uma vez, desde que
o encontrara em Gull. Por outro lado, ele também não demonstrava tê-la
enxergado como mulher, nem mesmo como pessoa. Mas tivera sempre uma
postura indiferente, cheia de desdém. Agora que tinha oportunidade de
observá-lo melhor, percebia que ele começava a demonstrar algum tipo de
interesse. Parecia até contente por estar ao seu lado. Talvez ela o tivesse
ajudado a esquecer, pelo menos por alguns minutos, a situação difícil que
estava vivendo.
— Como veio parar nesta região?
— É uma longa história garota.
Em outra ocasião, em outro lugar, Chris teria gostado de ouvir aquela
história. Mas não era o momento. Só estava trocando algumas palavras com
outro ser humano, uma conversa banal, dentro de uma situação singular em
suas vidas. Mais alguns minutos e se separariam para sempre.
— E você era bom no seu trabalho? — Ela sorriu.
— O melhor minha cara. O melhor de todos.
De repente, um pensamento ousado surgiu na mente de Pierce Era o
melhor em sua "profissão", as mulheres o procuravam, sem ligar para o preço.
E este preço podia ser um fim de semana num belíssimo iate, algumas
centenas de dólares... Ou uma velha caminhonete, não importava. Pierce
achava que conhecia as mulheres. Quando estavam satisfeitas, gratificadas,
normalmente tornavam-se bastante generosas...
Por que Christine seria diferente? Ela podia ajudá-lo, dando-lhe dinheiro,
permissão para levar a caminhonete ou apenas ficando em silêncio enquanto
ele fugia. Talvez permitisse que levasse o veículo até Gull... Depois poderia
mandar algum empregado buscar. Ou então poderia lhe dar algum dinheiro ou
algum objeto de valor para que vendesse, tanto fazia. Uma mulher bem amada
nunca nega qualquer favor a seu amante.
Pierce aproximou-se com uma sensualidade tão evidente que por um
instante Christine chegou a ficar assustada. Em seguida, enquanto ele
começava a acariciar-lhe os cabelos, ela pensou que, se soubesse agir com
segurança, teria o que mais desejava naquela noite, a sensação de estar sendo
amada. Fosse por vinte minutos, uma hora, a noite inteira, não importava.
Bastava fingir que estava sendo seduzida por ele. Qualquer coisa era melhor
do que aquela insuportável sensação de angústia e abandono.
— Em que está pensando? — Sussurrou ele, com um sorriso. Na verdade,
não tinha o menor interesse em saber o que Christine poderia estar pensando.
A pergunta era apenas uma tática para dar impressão de que ela estava tendo
alguma chance de escolha. Pierce tinha certeza de que conseguiria fazer com
que Chris pensasse exatamente o que ele desejava. Era só uma questão de
tempo.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Ela não respondeu. Continuou a fitá-lo, sem fazer nenhuma objeção, sem
rejeitá-lo, apenas esperando.
"Calma", disse Pierce para si mesmo. "Muita calma".
Seus dedos passearam suavemente pelo rosto delicado. Pouco a pouco foi
deixando de lado seus próprios desejos, suas necessidades e frustrações para
tornar-se apenas uma extensão de Chris. Agora estava ali apenas para servi-
la, para lhe dar prazer.
Acariciou-a novamente, com suavidade, notando com prazer que a
expressão dela tomava-se diferente, que havia uma sutil aceitação naquele
olhar preso ao seu.
— Você é tão bonita...
— É claro que não sou — retrucou-a sem emoção, como se não houvesse
o que discutir.
— Seus olhos são lindos — insistiu ele, chegando mais perto e passando o
braço em volta dos ombros de Chris. Acariciou-lhe os olhos, fazendo-a fechá-
los. Nem sabia de que cor era, mas não fazia diferença.
Abraçou-a com mais força, sentindo o corpo jovem de Chris contra o dele.
Cheio de perícia aproximou os lábios do rosto dela e mordiscou-o gentilmente.
— Vai ser ótimo, meu bem. Sei o que você quer doçura, e farei tudo para
que se sinta feliz e satisfeita.
Eram palavras de amor, carinhosas. E ele as dizia com naturalidade. Chris
deixou-se levar, mesmo sabendo que nenhuma palavra era verdadeira. Como
eram boas aquelas carícias.
— Você pode tocar em mim, se quiser — convidou Pierce num murmúrio,
enquanto sua língua percorria os lábios de Christine. Pouco a pouco aquela
promessa de beijo foi se concretizando e os dois finalmente confundiram seus
hálitos.
— Você é deliciosa, meu bem...
Pierce continuou a acariciá-la. Seus lábios agora percorriam lentamente o
rosto dela em todas as direções, orelhas, olhos, queixo... E voltaram para a
boca, num beijo profundo e embriagador.
— Nós estamos mais tranquilos agora, não é meu bem? É bom a gente se
acariciar... É bom a gente se amar... — E seus lábios cobriram os dela
novamente.
Pierce sabia muito bem como encaminhar aquelas carícias preliminares. A
cabina da caminhonete de repente tinha se tornado extremamente confortável,
um oásis no meio de um universo ameaçador. Os dois foram se deitando no
banco e seus corpos se estreitaram num contato mais íntimo.
Ele sabia exatamente que carícia devia suceder a outra, onde um beijo
podia despertar mais emoções... Chris entregava-se sem muito
constrangimento àquele momento mágico e sensual.
Pierce tinha consciência absoluta de todas as emoções que devia realizar
para que tudo desse certo entre os dois. Em primeiro lugar, precisava ir com
calma, ser doce e carinhoso. Ela devia ter passado por alguma situação muito
desagradável naquele dia e por isso estava tão vulnerável, com os nervos à
flor da pele.
Estava cada vez mais receptiva às carícias, mas justamente por isso o
momento era muito perigoso. Se agisse direito, seria a melhor experiência da
vida da garota, mas se errasse seria um verdadeiro desastre.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Era evidente que fazia muito tempo que ela não trocava nenhuma carícia
com um homem, o que tornava a situação ainda mais difícil. Havia uma ponta
de desespero em seus gestos, algo quase assustador. Pierce sentia-lhe o
pulsar agitado do coração e a pele que ardia como fogo. Quando tocou
gentilmente o bico dos seios firmes, Chris fechou os olhos de repente, pareceu
que iria explodir de paixão.
— Calma, meu bem, temos todo o tempo do mundo...
Chris o desejava terrivelmente. Se ele a possuísse naquele momento, era
capaz de morrer de prazer. Não tinha importância se depois começasse a se
sentir suja e culpada... Não, não tinha a menor importância. Dominada pelo
desejo, aconchegou-se ainda mais sob o corpo musculoso e viril de Pierce.
E foi naquele instante que a aura de magia que pairava sobre os dois
começou a se desfazer. Estavam praticamente colados um ao outro. Pierce não
saberia dizer a quanto tempo não fazia amor com uma mulher tão jovem. Não
se lembrava mais de como era bom sentir um corpo flexível e ágil sob o seu. O
perfume dos cabelos dourados o deixava quase sem ação de tão excitante e
seu desejo era ficar abraçado com ela eternamente. Pierce começara suas
carícias pretendendo satisfazê-la e agora percebia que era ela que estava lhe
dando um imenso prazer.
Tudo o que Christine desejava naquele exato instante era ser possuída por
Pierce. Era sexo o que procurava. Não entendeu quando ele parou de acariciá-
la, mas não ficou preocupada. Após todos aqueles beijos e carícias, confiava
naquele homem, tinha certeza de que ele continuaria lhe dando prazer, muito
prazer.
Prestou atenção nas batidas compassadas do coração de Pierce. O corpo
dele estava quente sobre o seu e seus braços lhe davam uma sensação
confortável e boa. Seu cérebro voava de uma fantasia para outra, sem parar.
Imaginavam-se fugindo, os dois viajando numa noite escura como aquela, sem
destino. Ela não o conhecia, não gostava dele. Seu corpo era forte e seu rosto
bonito, e só. Nada mais a impressionava. Mas só isso bastava naquele
momento. Queria fugir com ele para qualquer lugar, sair do inferno do próprio
desespero.
Aos poucos o fogo que ardia dentro dela foi se acalmando. Pierce, por sua
vez, tinha parado de murmurar frases sensuais em seu ouvido. Podia sentir a
respiração dele contra os cabelos e a pele cálida de seu rosto. Eram duas
pessoas que haviam se aproximado para compartilhar um pouco a solidão de
cada um. Por mais estranha que fosse a situação, naquele momento só tinham
um ao outro. Como náufragos.
Se fizessem amor, seria um ato vital, quente e animalesco. Uma explosão
de violência e desejo. Ela o envolveria com toda a sua plenitude de mulher e
os dois alcançariam uma tremenda satisfação física. Seria apenas sexo, mas
isso agora não tinha a menor importância.
Inesperadamente, ele a fitou com simpatia. Não era um olhar sensual, era
apenas um olhar humano, solidário.
Christine cerrou as pálpebras e foi envolvida pela escuridão. Não, não
queria fugir com aquele estranho. O que estava acontecendo com eles naquele
momento era apenas circunstancial. Eram dois solitários que de repente se
encontraram, cheios de necessidade. O mundo daquele homem era totalmente
diferente do seu. Pierce vivia no meio de mulheres ricas, tomando champanha

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

e esbanjando dinheiro... Ela acordava todos os dias às cinco horas da manhã e


só sabia falar de lavoura e de contas a pagar.
Retirou os braços das costas de Pierce lentamente. Seu desejo, a urgência
terrível que a abrasava até instantes havia se desvanecido.
— Vou sair — disse sem emoção.
Pierce deixou-a ir e não ficou nem um pouco desapontado. Estava
consciente de que perdera a chance de possuí-la no exato momento em que
tinha começado a pensar em seu prazer pessoal, deixando o dela em segundo
plano.
Ficou sentado na escuridão da cabina por um longo tempo. Um cansaço
insistente dominava seu corpo e por pouco não dormiu ali mesmo.
"E aquele rapaz idiota?", pensou, tentando reanimar-se. "Será que
continua parado na escada? Ainda não entendo por que ele me deixou sair
levando o relógio!"
Sentiu o peso da joia em seu bolso. Tinha a impressão de estar ficando
completamente louco. Por que roubara o relógio? Como tinha conseguido
pensar em fugir naquela caminhonete que não era sua? O que estava
acontecendo com ele?
Sem pensar duas vezes, desceu do veículo e foi em direção a casa.
Entraria silenciosamente, colocaria o relógio no lugar e iria embora a pé.
Sentia um cansaço terrível, tudo o que mais queria na vida era cair numa
cama e dormir sem pensar em nada, mas tinha que sumir daquela fazenda.
Quando passava por uma janela da casa, um pouco antes de começar a
subir a escada, uma voz a fez parar.
— Está perdido rapaz?
Era Hamilton, com seu cigarro infalível iluminando-lhe o rosto. Há quanto
tempo estaria na janela? Será que tinha visto o que acontecera na
caminhonete?
— Sim, acho que sim — respondeu Pierce, sem graça e sem forças para
continuar andando.
— Escute aqui, filho. Ainda temos muito para fazer na fazenda. Se quiser
ficar, terá serviço por uma semana. Há uma cama sobrando no último andar.
Você terá três refeições diárias e lhe pagarei cem dólares pela semana de
trabalho.
Pierce nem chegou a refletir sobre a proposta. As palavras "trabalho" e
"semana" mal foram registradas por seu cérebro. A única que ficou gravada
imediatamente foi "cama".
Estudou Hamilton por um instante, antes de dizer:
— Encontrou uma boa maneira para eu pagar o conserto do trator, não é?
— Não é nada disso, rapaz. Negócio é negócio. Estamos precisando de
mão de obra, e no final da semana você receberá seu salário inteiro. —
Hamilton fez uma pausa. — Como é aceita?
Pierce concordou com um leve movimento de cabeça e, com esforço,
dirigiu-se para a porta de entrada.
— Está com fome filho? — Ainda perguntou o velho da janela.
— Não. — Respondeu Pierce, perguntando-se se o tom de voz do pai de
Chris tinha mesmo sido gentil ou se já estava imaginando coisas por causa do
sono.

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Entrou na sala e foi direto para a lareira. Com cuidado, colocou o relógio
sob a redoma de vidro e, com passos pesados, caminhou para a escada.
Jogou-se vestido na primeira cama vazia que encontrou.

Capítulo VI

O jeito de Pierce lidar com os homens era muito simples, gostava de


quem não o ameaçasse e evitava os que poderiam trazer-lhe problemas. Clay
não fez nada que o ameaçasse ou ofendesse, por isso gostava dele.
Os dois caminhavam em direção à caminhonete. Voltavam para o campo,
depois do almoço, no terceiro dia de serviço de Pierce. A refeição havia sido
deliciosa, como sempre, mas ele sem o costume de trabalhar duro todos os
dias, andava devagar e sem muito ânimo.
— Sua irmã cozinha muito bem — comentou fingindo indiferença.
— Chris cozinha bem, sim, mas não foi ela quem fez o almoço. Temos
uma empregada que cuida da casa.
Clay sabia que aquele ar despreocupado era puro fingimento. Tinha
capacidade de perceber muito bem os sentimentos das pessoas e estava certo
de que o novo empregado estava bastante interessado por sua irmã. Não sabia
se devia proteger Chris... Ou se ela realmente precisava de proteção.
— Para onde você vai na próxima semana? — Perguntou Pierce, querendo
puxar conversa. — Para a faculdade?
— Para o seminário. E só vou ao final do mês — Clay parou.
— Verdade? Vai ser pastor?
— Sim.
— Por quê?
— Por amor.
— Puxa cara, deve ter sido uma tremenda desilusão amorosa, para você
se mandar para o seminário!
— Não foi por nenhuma desilusão amorosa que resolvi ir para o seminário.
Estou falando de outro tipo de amor.
— Entendo... — Murmurou Pierce, embora não entendesse nada.
Continuaram caminhando sob o sol quente. Teriam mais algumas boas
horas de trabalho, e Pierce nem queria pensar nisso.
Depois de alguns instantes, sabendo que querendo ou não, teria que
trabalhar, perguntou sem nenhum entusiasmo:
— Que setor da fazenda o patrão reservou para mim esta tarde?
Clay parou novamente. Havia alguma coisa na personalidade do rapaz que
o deixava muito intrigado.
— Ora, até que o trabalho não tem sido tão duro — replicou, depois de
alguns instantes. — Parece que você até já está se acostumando...
— É verdade.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

E era mesmo. No primeiro dia, Pierce voltara para casa completamente


quebrado, só tendo um desejo, uma cama! Na manhã seguinte acordou com a
voz imperiosa de Christine no outro lado da porta:
— O café da manhã sai daqui a dez minutos!
Quando se levantou, sentia todos os músculos do corpo doloridos. Foi com
muita dificuldade que conseguiu chegar até o banheiro. Clay lhe emprestara
mais algumas roupas e um aparelho de barbear. Só conseguiu se sentir um
pouco melhor depois de um banho gelado.
À noite, quase nem jantou. Antes de terminar de comer, pediu licença e
foi direto para a cama. Eram pouco mais de sete e meia.
Porém, naquela manhã, sentia-se mais disposto. Clay continuava a
observá-lo.
— Afinal, como você veio parar aqui?
Pierce pensou em inventar uma longa história, assim ficaria sem fazer
nada por meia hora, ou até mais, se Clay se interessasse pelo caso. Mas de
repente lembrou-se de como ele o observara roubando o relógio. Não, melhor
não enganá-lo. Afinal, Clay era quase um pastor!
— Bem, tive um problema — começou um tanto embaraçado. — Como
estava sem dinheiro e longe de casa, resolvi aceitar esse trabalho.
— E onde fica sua casa? — Quis saber Clay. Na verdade, queria saber
muito mais sobre a vida do outro homem.
— Em qualquer lugar, eu acho — respondeu Pierce, com súbita tristeza na
voz.
— Você não tem família?
— Minha mãe deve estar em alguma parte. — Pierce teve a impressão de
que, se continuasse falando daquele jeito, Clay começaria a sentir pena dele.
Por isso ironizou. — Ela nunca trabalhou na vida, mas sempre tinha um
namoradinho para pagar as contas, sabe como é. E o que tinha de contas,
cara! Também mamãe sempre gostou de champanha...
— Há quanto tempo você vive sozinho?
Pierce se lembrou da mulher, muitos anos mais velha do que ele, que lhe
ensinara tudo sobre sexo, quando ainda não tinha treze anos de idade. Desde
aquela época estava sozinho, mas não diria nada disso para Clay.
— Faz tempo. — Em seguida, vendo Hamilton iniciando o corte do velho
carvalho na frente da casa, apressou-se em pôr um fim na conversa. Virou-se
para o fazendeiro e gritou: — Ei cara, você parece gostar do que está fazendo!
Foi um erro. Só havia pensado em livrar-se das perguntas de Clay, mas a
última coisa que desejava era chamar a atenção de Hamilton sobre ele. Aquele
velho o incomodava não sabia por quê. O pai de Chris encostou o machado
numa das raízes e se aproximou dos dois.
— Talvez você também gostasse de experimentar.
— Não, muito obrigado — retrucou Pierce sorrindo.
— Sinto muito rapaz, mas acho que você será mais útil aqui esta tarde do
que em qualquer outro lugar.
— O senhor quer que eu também fique papai?
— Não, volte para o trator. Eu vou em seguida. Pierce e Hamilton ficaram
sozinhos.
— Vamos até o carvalho caído — disse o velho, começando a andar.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Ao chegarem perto das raízes da imensa árvore, ficou claro para Pierce o
quanto teria que trabalhar. Teria sido melhor ir com Clay.
— Tem certeza de que quer ver toda essa madeira cortada? — Perguntou
meio sem graça.
— Mas é claro rapaz.
— Não seria melhor usar dinamite? Hamilton riu divertido, antes de
responder:
— Não, é muito perto da casa e, além do mais, quero aproveitar a
madeira para usar na lareira.
— Mas não sei cortar árvores...
— Você só aprenderá praticando.
Hamilton começou a se afastar, deixando Pierce indeciso diante do tronco
imenso. Desanimado, apanhou o machado e iniciou o trabalho.
No primeiro golpe, a lâmina entrou tão fundo na madeira que Pierce teve
a impressão de que nunca mais conseguiria tirá-la dali, por mais esforço que
fizesse.
Com determinação, colocou um pé no tronco e puxou o machado. Quando
a ferramenta se soltou, por pouco Pierce não caiu para trás, ferindo-se com a
lâmina afiada. Sim, teria que praticar muito para aprender...
Christine o observava da janela, divertida com sua falta de jeito e
impressionada com a beleza de seu corpo.
Tinha ficado atônita quando o pai dissera que Pierce continuaria a
trabalhar para eles e que ocuparia o quarto do andar de cima. Ficou furiosa,
mas depois se resignou. Seu pai era um homem de métodos misteriosos para
julgar as pessoas e não saberia explicar por que resolvera dar aquela chance a
Pierce.
Chegou até a argumentar com Hamilton, dizendo que era bobagem
contratar um homem estranho e totalmente inexperiente quando existiam
tantos outros desempregados na região. Mas não adiantou. Seu pai estava
decidido.
Porém, não era só por esses motivos que não queria Pierce na fazenda.
Existiam outros, mais sutis e poderosos. Ainda não esquecera o que tinha
acontecido na cabina da caminhonete. Nem um detalhe.
Como poderia esquecer aquelas carícias audaciosas que Pierce fizera e de
como estivera disposta a se entregar totalmente?
Christine suspirou. Não se envergonhava do que tinha sentido. Afinal, era
uma mulher com necessidades físicas reais e Pierce tinha tudo o que uma
mulher precisava em matéria de sexo. Mas só em matéria de sexo. Pierce
nunca a atrairia de outra maneira.
Oh, sim, ele era realmente muito bonito. Percebera isso claramente na
manhã seguinte à noite em que estiveram juntos na cabina. Quando ele
desceu para o café da manhã, lavado, barbeado e com as roupas simples de
Clay, que conseguia tomar elegantes pela maneira displicente como as usava,
ela chegou à conclusão de que realmente era um homem muito bonito. Só que
nunca pertenceria àquele mundo e era isso o que mais a intrigava.
Pierce demonstrava nos mínimos gestos que vivia outra vida,
completamente diferente da que levavam na fazenda. Seu dia a dia
provavelmente transcorria fácil e tranquilo. Devia ser interessante viver em
lugares elegantes, com milionárias dispostas a pagar para fazer amor. A

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

presença dele fazia com que Chris ficasse o tempo todo consciente de que
existia outro tipo de vida em algum lugar, uma vida muito mais fascinante... E
também a deixava consciente do quanto seu quotidiano era desagradável,
monótono... A presença de Pierce a deixava irritada.
Mas assim mesmo não se envergonhava de continuar querendo fazer
amor com ele. Como poderia esquecer como Pierce a deixara excitada naquela
noite? Por que deveria sentir-se embaraçada ou com vergonha de si mesma?
Afinal, ele estava acostumado a ser usado pelas mulheres.
Fazia mais ou menos dois anos que tivera um romance completamente
insatisfatório com um professor de uma escola de Gull. Antes desse houve
outro rapaz em seus tempos de universidade, mas jamais conhecera um
homem tão experiente quanto Pierce.
No entanto, desde aquela noite, os dois nunca mais tinham ficado
sozinhos. Quem sabe agora não era uma boa oportunidade. Sem pensar duas
vezes, Chris saiu da casa e caminhou em direção ao carvalho. Pierce não notou
sua presença, pois estava novamente tentando tirar o machado fincado no
tronco da árvore.
— Você está fazendo tudo errado — disse ela, parando com a mão na
cintura.
Ele conseguiu retirar o machado e fitou-a. Estava ensopado de suor e com
ar de poucos amigos.
Chris tirou-lhe o machado da mão e começou a explicar:
— Você deve bater com o machado na madeira num ângulo agudo, não
como está fazendo. — Em seguida, lançou a ferramenta sobre o tronco com
precisão. — Está vendo?
"Era só o que me faltava!", pensou Pierce. "Todos aqui querem me ensinar
alguma coisa. O velho, o rapaz e agora esta garota". Em vez de expressar seus
pensamentos sorriu ligeiramente comentando:
— É menina, você tem estilo! Deixe-me ver de novo. Christine usou o
machado mais algumas vezes.
— Puxa, você é mesmo forte! — Ele não conseguiu controlar o desejo de
ironizar e completou malicioso: — Posso sentir seus músculos?
— Pensei em pedir para sentir os seus, mas fiquei com medo de me
decepcionar — retrucou Christine, sem se sentir embaraçada.
— Você não tem muito senso de humor, não é?
"Eu tinha. Antes”, pensou Chris, sem conseguir se lembrar de quando sua
vida havia sido tranquila e alegre. Talvez na infância. Mas já fazia tanto tempo.
— E você acha que existem muitas coisas boas para que se viva rindo, de
bom humor?
— Sim, existem muitas! A vida, este lugar... Você...
— Talvez você consiga achar tudo isso agradável; eu não! Pierce estava se
desconhecendo. Por um lado desejava que Chris voltasse depressa para o
lugar de onde tinha vindo deixando-o com o tronco e o machado. Mas, por
outro, queria que ela ficasse ali, pois no mínimo ganharia alguns minutos de
descanso. Ou talvez até outras coisas, se tivesse sorte. Além do mais, ela não
tinha aparecido só para lhe mostrar como se usava um machado, era
impossível não perceber o jeito como Christine o olhava. Afinal, quem poderia
saber o que se passava em sua cabeça?

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Seduzi-la tornou-se uma possibilidade subitamente interessante, que o fez


encorajar a continuação da conversa. Displicente, apoiou os cotovelos numa
das altas raízes do carvalho, deixando de propósito que a camisa entreaberta
mostrasse o peito largo e os músculos bem torneados.
— Mas por que você não se permite sorrir para a vida, ser feliz? —
continuou.
Christine observava Pierce atentamente e não pôde deixar de se sentir
perturbada diante do corpo dele. Era realmente um homem muito bonito e
atraente! A camisa branca, toda molhada de suor, colava-se à pele dele,
desenhando os detalhes de seus músculos. Por instantes, ela acalentou a
fantasia de deslizar a mão, suavemente sob o tecido, tocando-lhe as costas, o
peito... Para disfarçar, aproximou-se da árvore, examinando as marcas que
Pierce deixara na madeira.
— Eu ia embora daqui, sabe? — Começou. — Tinha conseguido um
emprego em Atlanta, numa grande empresa, e deveria começar a trabalhar
ainda este mês.
Pierce acompanhava-lhe os movimentos. Por mais que ela fingisse estar
preocupada com o carvalho, era óbvio que tinha se aproximado dele para ficar
mais a seu lado, para sentir seu calor.
— Verdade? E que tipo de trabalho você ia realizar em Atlanta?
— Gerência de vendas. — Christine olhou para ele, surpresa por perceber
como era fácil conversar com um estranho sobre problemas que nunca
revelaria a ninguém. Era fácil contar tudo a ele. Pierce não estava interessado
na história de sua vida, estava apenas sendo gentil e era ótimo poder
desabafar. — Sou formada em administração de empresas. Na verdade, nunca
passou pela minha cabeça voltar para a fazenda e passar aqui o resto da
minha vida.
— Quer dizer que você fez faculdade? — Ele ficou admirado. — Não acha
que é uma pena permanecer enterrada neste fim de mundo, se tem chance de
seguir uma boa carreira?
— É só no que penso.
— Então, o que aconteceu? — Pierce queria que ela parasse de acariciar
aquela raiz e olhasse para ele. Seria tudo mais fácil se pudesse ver-lhe os
olhos.
— Clay — murmurou ela afinal. — Clay resolveu dar outro rumo à vida
dele e um de nós tem de ficar aqui para ajudar papai.
— E como você é a filha mais velha, viu-se na obrigação de concordar —
completou Pierce.
Christine não tinha certeza se ele compreendia a situação, mas isso não
fazia a menor diferença. Já era um alívio conversar, sentia-se bem por poder
falar sobre suas tristezas.
Quando o encarou finalmente, percebeu que ele estava pensando em
sexo. Ela também estava.
O momento era muito delicado e Pierce resolveu não estragá-lo com
palavras. Virou-se e abraçou-a impetuosamente. Estava suado e sujo, mas
Chris não parecia se importar.
Beijaram-se de um modo quase selvagem, ofegantes, como se não
houvesse tempo para mais nada.

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Christine não saberia dizer em que instante a conversa terminara para dar
lugar à sensualidade, mas também não estava interessada em saber. Como
era bom sentir-se desejada, principalmente por um homem experiente e
bonito como Pierce!
Quando Pierce passou-lhe as mãos no rosto, num afago, foi que ela viu os
curativos. As mãos dele estavam cheias de bolhas pelo trabalho no campo. De
nada adiantariam aqueles curativos malfeitos. Chocada, ela se afastou um
pouco.
Pierce entendeu tudo. Nenhuma mulher iria querer ser acariciada por
mãos feridas. Quando ela se libertou e caminhou para a casa, não fez nenhum
movimento para impedi-la.
— Lanson! — Gritou ela da janela, depois de alguns minutos. Segurava
um par de luvas.
Pierce se aproximou, pegou as luvas e ouviu-a dizer:
— Tente tomar mais cuidado com as mãos. E agora volte ao trabalho.

Capítulo VII

Era a manhã do quinto dia. A equipe de trabalho estava dividida em dois


grupos, Pierce e mais dois homens trabalhavam com Clay, nos campos do
norte e Hamilton tinha mais três empregados com ele nos campos do sul.
Pierce já estava cansado de comer poeira atrás do trator, mantendo o funil
cheio de grãos.
Era a primeira vez que se envolvia com plantação e não entendia por que
todos estavam tão excitados.
Uma nuvem de pó começou a se aproximar e ele avistou Christine
chegando na caminhonete.
O ronco do trator era ensurdecedor. Pierce não estranharia se acabasse
ficando surdo com todo aquele barulho. Seu estômago estava embrulhado e a
garganta seca, cheia de pó. Na parte traseira do trator também havia um
galão de água e Pierce largou um pouco o trabalho para tomar um gole.
Mesmo que tomasse o galão inteiro, aquele gosto de terra não sairia de sua
boca.
Nos últimos dias só lhe tinham dado os trabalhos mais pesados no
processo de plantio. Era como um rito ele imaginava. Por ser o mais
inexperiente da equipe, tinha que começar de baixo, até ganhar experiência.
A contragosto acabou admitindo que admirava aquela família
trabalhadora, principalmente Hamilton Walsh. Velho e abatido, não parava um
só instante, das cinco da manhã até às seis da tarde.
Quando voltasse para a civilização, depois de receber seus bem merecidos
cem dólares, teria muitas histórias para contar.
— Pierce! — Aquele chamado conseguiu ser mais alto do que o barulho do
trator. — Que diabos está fazendo aí parado?

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Ele recolocou o galão no lugar e voltou para perto do funil, olhando para
Benson, o homem que gritara e que agora o fuzilava com o olhar de cima do
trator.
A expressão de Benson era de raiva, mas Pierce não estava nem um
pouco impressionado. Já tinha percebido que aquelas pessoas só conseguiam
demonstrar sentimentos básicos como raiva, felicidade, desdém...
— Tenho que ficar vigiando você o tempo todo, é? — Continuou o homem.
— Tudo o que você tem a fazer é prestar atenção no funil para que esteja
sempre cheio. Só assim terminaremos nosso serviço!
— Qual é o problema Benson? — A voz de Christine, clara e fria, soou
atrás de Pierce.
— Estou dizendo para esse cara prestar atenção no funil o tempo todo,
mas parece que ele não está entendendo.
— Bem, vou mandar Jordan vir ajudar você. Preciso de alguém para me
ajudar a pegar umas caixas de fertilizantes na cidade e vou levar Lanson. —
Chris olhou para Pierce e ordenou: — Venha comigo.
Pierce ficou contente. Seria uma ótima oportunidade de descansar um
pouco daquele trabalho maçante. Subiu na caminhonete ao lado de Christine e
foram procurar Clay.
Fazia uma semana que Chris não conversava com o irmão. Estava muito
magoada e achava que não tinham nada a dizer um ao outro. Durante toda
sua vida procurara aconselhá-lo resguardando-o dos perigos e jamais deixando
de respeitar-lhe os sentimentos. Mas agora ele havia escolhido sua trajetória
sozinho e sem escutar ninguém. Portanto, que continuasse sozinho dali para a
frente.
— Benson precisa de um homem para ajudá-lo — disse Chris com frieza,
ao parar ao lado de Clay. — Mande Jordan para lá.
Clay fitou-a com tristeza. Não podiam continuar daquele jeito! Gostava
muito da irmã para ficarem se agredindo daquela maneira e, se não
conseguisse uma reconciliação rapidamente, talvez nunca mais conseguisse.
— Chris, precisamos conversar.
— Estou indo para a cidade. Mantenha seus homens trabalhando se quer
acabar o serviço até o fim do dia.
Pierce não percebeu que havia algo diferente entre os dois.
Não tinha intimidade com a família para saber como era a relação entre os
dois irmãos.
Chris colocou a caminhonete em movimento. Sua postura em relação a
Pierce não havia mudado, desde a tarde em que se beijaram perto do tronco
do carvalho. Só que andava sem tempo para alimentar fantasias. É claro,
ainda gostava de admirar Pierce, como gostava de admirar um búfalo ou um
animal selvagem. E algumas vezes se divertia com a inexperiência dele em
tratar com as coisas da fazenda. Mas frequentemente estava aborrecida com
sua presença.
Pierce não passava de um incompetente e preguiçoso. Os homens da
equipe não o suportavam, pois não tinham esquecido o incidente com o trator.
Por outro lado, não lhe perdoavam a elegância e seus modos diferentes. Ele
por sua vez, não fazia nada para se defender das gozações dos outros, e isso a
deixava ainda mais irritada.

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Na verdade, Pierce simbolizava tudo que Christine mais desejava e jamais


teria. Por mais que o achasse incompetente e sem personalidade, aquela
aparência bonita e sofisticada a fascinava terrivelmente. O que só lhe
aumentava a irritação.
Agora estavam sozinhos na mesma cabina onde tudo começara. Pierce
sorriu e perguntou com voz insinuante:
— Para onde estamos indo? Quando devo começar a trabalhar?
Por um instante Christine não sabia se ria ou se devia se esforçar para
manter o rosto sério. Ele já estava querendo começar tudo de novo!
— Não perca seu tempo Pierce.
— Mas se não souber a que horas vou trabalhar e o que tenho que fazer,
não saberei como justificar o pagamento pelo meu serviço de hoje... — Ele
tentou contornar a situação, percebendo que tinha sido precipitado. Se
quisesse conseguir alguma coisa de Chris, precisava ter calma, muita calma.
— Não terá que justificar nada. Preciso de alguém para carregar aquelas
sacas e você era o único homem disponível. E como não acho muito certo você
ficar usando as roupas de Clay, acho que deve aproveitar nossa ida à cidade
para comprar alguma coisa.
Pierce recostou-se na poltrona, pensando em como era bom deixar aquele
trabalho horrível na fazenda. De repente, Christine tirou um vidro de
comprimidos do porta-luvas e entregou-lhe.
— São para suas bolhas. Se pegar uma infecção, você se tornará mais
inútil do que já é.
Pierce olhou para ela surpreso, mas Christine dirigia impassível. Resolveu
não dizer nada. Aquele pessoal era muito estranho mesmo; era bobagem
gastar energia argumentando com eles. Além do mais, era ótimo ficar em
silêncio, admirando a paisagem campestre que o lembrava do vale do Loire, na
França.
— Você deveria sentir o perfume de Paris no verão — disse
inesperadamente, querendo compartilhar suas lembranças.
Christine não respondeu. Continuou concentrada na estrada, como se não
tivesse ninguém a seu lado.
— Ei, você já viu aqueles velhos filmes na televisão, onde mostram os
cassinos de Monte Cario? — Insistiu ele. — Estive lá algumas vezes. Uma noite
ganhei três mil dólares. — Riu.
— O gerente até me chamou em seu escritório, dizendo que eu devia ter
usado algum truque. Imagine.. . Como é que um rapaz sem nenhuma
experiência de cassinos elegantes como aquele saberia como trapacear para
ganhar no jogo?
Mas Chris continuou obstinada no silêncio e ele também ficou quieto.
Minutos depois, chegaram à cidade. Ela estacionou em frente ao bar onde
haviam se conhecido naquela fatídica manhã e Pierce saiu da caminhonete.
Ficou observando a cidadezinha, até que Christine também saiu e se
aproximou.
— Vá até a loja Walls, que fica no outro quarteirão, e compre algumas
roupas para você. Ponha na nossa conta, que descontaremos no seu salário
depois. Tenho alguns negócios para resolver. Encontre-me na "Feed and
Seeds" daqui a quarenta e cinco minutos. — Tirou uma nota de vinte dólares
do bolso e continuou: — Vá à farmácia e mande fazer um curativo decente nas

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mãos. Pierce pegou o dinheiro e foi até a farmácia. Para as mãos, comprou
apenas mais esparadrapo. Gastou o resto do dinheiro com desodorante, creme
e aparelho de barbear, xampu, escova de cabelos, pasta e escova de dente.
De lá, foi direto para o velho telefone que ficava em frente.
Pierce tinha apenas alguns conhecidos, clientes e ex-clientes. Nenhum
amigo, ninguém que o socorresse numa emergência. Assim mesmo ele discou.
A mulher que atendeu ao telefone em Nova York parecia sonolenta.
— Pierce! Onde se meteu? Pensei que na próxima vez que ouvisse falar de
você seria no noticiário da televisão, com o locutor anunciando que o
encontraram morto em algum buraco!
Mary, sempre exagerada... O fim do caso entre os dois havia sido
desagradável, pois ela chorava muito, mas Pierce nunca se esqueceria dela.
Mary o pagara direito e ainda lhe dera um Cartier de ouro de presente. Era
muito generosa.
— Onde você se meteu? — Repetiu ela.
— É uma longa história benzinho. Mas é ótimo ouvir sua voz. Escute
querida, como vão as coisas?
— O quê? Está me gozando? Só problemas! Todos os meus amigos estão
em apuros, presos ou sofrendo processos! É uma loucura! — Mary fez uma
pausa. — Você não está na cidade, não é querido?
— Não, meu amor. Mas, se me mandar algum dinheiro, estarei na porta
do seu apartamento daqui a algumas horas!
— Você está a salvo, não é? Claro que está, senão não estaria me
telefonando. — A voz de Mary tornou-se séria de repente. — Agora escute
querido, é melhor você ficar aí, seja lá onde estiver. Não apareça aqui e nem
me telefone de novo. Você sabe muito bem que meu apartamento é muito
visado, eles poderiam aparecer a qualquer momento para pegá-lo, não é?
— Do que é que está falando, benzinho? — Perguntou Pierce, sem
entender nada.
Houve um silêncio momentâneo e depois ele voltou a ouvir a voz de Mary
no outro lado da linha.
— Então você não sabe de nada? Não acredito!
— Escute aqui benzinho, estou no fim do mundo há uma semana, sem
dinheiro e sem ter para onde ir. O que mais desejo é uma passagem para ir
embora. Olhe, se você estiver complicada com algum caso de amor antigo, eu
ajudo você. Não tenho medo dos seus ex-amantes!
— Por Deus, Pierce, não é nada disso! Estão à sua procura! Se vier para
Nova York, eles te matam!
— Mas do que você está falando?
— De Cavenetti, querido. Ele está louco para pôr as mãos em você. Diz
que vai cortar o que você tem de mais lindo e precioso e jogar no meio da
Times Square.
— Cavenetti? Mas quem é esse homem Mary? Está ficando louca?
— Não foi você que passou um fim de semana com uma milionária num
iate no Golfo do México?
Cavenetti! Aquela velha era mulher de um gangster.
— Desgraçada!
— Entendeu agora por que estou dizendo para você ficar onde está
querido?

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— Sim, entendi claro! — Murmurou Pierce. — Mas não preciso ir para


Nova York. Quanto ao dinheiro, se você pudesse...
— Você acha que um homem como Cavenetti iria limitar-se a procurá-lo
apenas em Nova York? Querido, você não tem ideia de como aquele homem é
poderoso. Onde estava com a cabeça, afinal, quando aceitou passar um fim de
semana com a mulher dele? Antes era mais inteligente e cuidadoso, Pierce!
Ele ia responder, mas Mary voltou a falar, não lhe dando tempo:
— Escute, fique onde está. Sua vida não valeria um centavo se você
saísse daí para alguma cidade grande. Ninguém mandou se meter com a
mulher de um chefão da Máfia. Ligue para mim daqui a umas três semanas,
que lhe direi se a situação já está mais calma, está bem? Então um beijo. —
Mary desligou.
Pierce ficou olhando para o fone mudo em suas mãos, antes de tentar
ligar desesperadamente para mais três ex-clientes. Mas todas desligaram
assim que lhe identificaram a voz.
Estava desesperado. Seus contatos com o mundo estavam sendo
desligados um a um. A última chamada que fez foi para Los Angeles. Sam
possuía o maior estábulo da cidade. Todos sabiam que o velho mantinha
negócios escusos e Pierce sempre se mantivera afastado, mas sem cortar
relações, pois um dia ele poderia lhe ser útil. Finalmente tinha chegado o
momento.
— Escute cara, você tem que me ajudar!
— Ora, ora, ora, então o rapazinho bonitinho está em apuros e telefona
para o velho Sammy. Que posso fazer por você meu docinho?
— Escute Sam, o que você quer em troca do que vou lhe pedir? —
Perguntou Pierce, enojado com a situação. — Posso ficar com você três, seis
meses, até um ano, se quiser, mas tire esse Cavenetti das minhas costas, está
bem? Extermine-o!
— Você acredita mesmo que eu possa fazer isso? — Perguntou Sam com
uma voz tão doce que embrulhou ainda mais o estômago de Pierce. — O velho
Sammy tem muitos poderes meu docinho, mas já pensou que ele também tem
seus limites?
— Está bem cara. Mande-me dinheiro então. Estou sem nenhum e quando
tudo isso acabar, eu...
— Quando tudo isso acabar, você o quê? Virá correndo para os braços do
velho Sammy? Vou gostar muito de ter um rapaz tão bonito como você ao meu
lado. Vou gostar muito. Vou...
Pierce colocou o fone no gancho. Sentia-se mal.
Estava tudo acabado. O único mundo que conhecia, onde sabia se virar,
fechava suas portas para ele. Nova York, Los Angeles, Chicago, Detroit... Não
fazia a menor diferença. Se voltasse, não teria um só momento de paz com
aquele mafioso à sua procura.
Encostou-se a cabina telefônica. Talvez não precisasse ficar muito tempo
naquela cidade. Dois ou três meses, talvez fossem suficientes. Enquanto isso,
só lhe restava levar sua vida da melhor maneira possível.
Começou a caminhar na direção da loja Walls.

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Capítulo VIII

O estabelecimento em nada lembrava as lojas sofisticadas que estava


acostumado a frequentar, mas Pierce não se deixou abater. Fez suas compras
rapidamente, um jeans, igual ao que estava usando, meias, cuecas e cinco
camisas, pois eram muito baratas. Não conseguia recordar a última vez em
que examinara uma etiqueta de preço. Sabia muito bem que o que estava
comprando agora teria que lhe durar por algum tempo e isso lhe dava uma
insuportável sensação de estar preso àquele lugar, mas tentou não se deter
muito em tais reflexões. Comprou um par de botas e, num impulso,
experimentou também um chapéu leve com as abas levantadas. Gostou da
própria imagem refletida na vitrina empoeirada e saiu da loja usando o
chapéu.
Encontrou a caminhonete estacionada na frente da revendedora de
sementes e foi guardar seus pacotes. Chris estava conversando com o
proprietário, mas parou ao vê-lo e sorriu.
— Muito chique — comentou, apontando o chapéu.
Pierce riu, puxou o chapéu para trás e bateu os calcanhares no chão,
numa clara imitação de um cowboy.
— Quer que eu puxe seu gado, moça? — Perguntou, e ela quase caiu na
risada.
De repente Pierce achou-a simpática. Talvez porque tivesse falado com ele
como uma pessoa de verdade pela primeira vez desde aquela tarde ao lado do
tronco tombado. Talvez pelo brilho divertido de seu olhar. Ou simplesmente
pelo alívio de ver um rosto familiar, alguém saudável e normal, depois de ter
acabado de saber que estavam querendo acabar com sua vida.
Aquela notícia terrível, que ainda não tinha assimilado muito bem, o
perseguia como um pesadelo e o mal estar continuava, depois da conversa
com Sam. Nessas circunstâncias, encontrar Chris era um alívio enorme.
Subiu na plataforma e começou a carregar as sacas para a carroceria da
caminhonete. Trabalharam em silêncio por algum tempo, ele carregando e
arrumando as sacas e ela contando-as e anotando num bloco. Era uma relação
amigável, fácil e natural. Os músculos de Pierce se tensionaram, mas não doía,
o sol o aquecia, mas não queimava. Pela primeira vez, estava fazendo um
trabalho sem esperar críticas, uma coisa simples, mas as coisas simples
estavam começando a significar muito para ele ultimamente.
O silêncio era confortável, mas assim mesmo, era silêncio. Depois de
algum tempo, começou a incomodá-lo, pois deixava muito espaço para pensar.
Parando para enxugar o suor da testa, perguntou casualmente:
— E então, o que vocês fazem para se divertir por aqui?
— Não há muita opção. — Christine verificou mais uma saca e anotou no
bloco.
— Todo mundo precisa de algum lazer — insistiu Pierce, pegando outra
saca. — O que você faz depois que anoitece? Fica tricotando na frente da
lareira, dorme em cima de algum livro, joga baralho, pensa em sexo... O quê?
Christine lançou-lhe um olhar frio e voltou à atenção para o bloco.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Pierce carregou a última saca para a caminhonete e esticou o corpo para


endireitar as costas, examinando as ruas desertas.
— Nenhuma boate, nenhum clube, nem mesmo uma pizzaria — comentou
espantado. — O que você faz?
Christine fitou-o num misto de perplexidade e divertimento, mas sem o
mínimo desdém. Pierce gostava quando ela o olhava assim.
— Por que quer saber?
— Não sei. — Ele sorriu e, como era de sua natureza agradar as mulheres
completou: — Pode ser que eu queira convidá-la para sair, uma noite destas.
O costumeiro ar de zombaria transpareceu no rosto de Christine, mas não
parecia tão ruim quando misturado com um pouquinho de malícia.
— Claro! Esqueci que você é do ramo de diversões. — Chris fez uma
última anotação antes de fechar o bloco e continuou: — Temos a pista de
danças e a cervejaria do Ralph. Você pôde ir lá para tomar um drinque, para
jogar ou... Para arrumar alguma garota, se quiser.
Os olhos de Pierce brilharam e ele saltou da caminhonete.
— Não tenho esse problema — garantiu, dando uma piscada e estendendo
os braços para ajudá-la a descer.
Por dois segundos, quando sentiu a cintura firme de Chris sob suas mãos,
ele pensou em fazer amor pelo simples prazer de fazê-lo. Não tinha essa
fantasia há anos, se é que já tivera algum dia, e ficou espantado. Mas no
instante seguinte Chris se afastou e a fantasia se desvaneceu.
— A propósito, como foi que você entrou nesse seu... Vamos dizer...
Ramo de negócios? — Perguntou Christine, dando a volta para entrar no
veículo.
Também aquela pergunta pegou Pierce de surpresa. Com outra pessoa,
em outra oportunidade, teria inventado uma de suas histórias malucas, mas
não estava com disposição para mentir, apesar de não saber por quê. Subiu na
caminhonete e hesitou por um momento antes de responder, encolhendo os
ombros:
— Eu entrei só isso. — Em seguida, sentindo-se um tolo por estar na
defensiva, esticou o braço sobre o encosto do banco e fingiu relaxar. — Era a
única coisa que eu sabia fazer bem, acho.
Christine fitou-o com indisfarçada curiosidade e ele ficou ainda mais
incomodado, sentindo-se como uma espécie de animal raro exposto à visitação
pública.
— Por que as mulheres te pagam se podem conseguir a mesma coisa...
De graça?
Pierce não queria mesmo conversar sobre aquele assunto com ela, por
várias razões. Talvez a mais eminente fosse que não queria pensar no mundo
que deixara, o choque com os telefonemas ainda era muito recente para ser
analisado. Preferia esperar o curso dos acontecimentos, embora suspeitasse
que uma mudança drástica de vida podia estar à sua espera.
Outra razão era que não parecia correto conversar sobre seus antigos
hábitos com aquela garota provinciana. Como ela poderia entender aquilo
tudo? Para que desejava saber? Mas Christine continuava fitando-o com uma
estranha mistura de curiosidade e ironia, esperando que ele respondesse antes
de ligar a caminhonete, e Pierce compreendeu que precisava dizer alguma
coisa.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Não sei. Acho que é sinal dos tempos. Hoje em dia as pessoas
compram e vendem quase tudo. — Christine olhou-o com tanta impaciência e
descrédito que Pierce viu-se obrigado a continuar: — Bem, muitas são velhas
que não possuem nada além de dinheiro. Outras passaram a vida inteira sem
conhecer um bom... — Quase disse o que não devia, mas disfarçou com
elegância: — As pessoas que têm muito dinheiro estão acostumadas a pagar
pelo que precisam. Quando existe demanda, sempre existe a oferta. — Ele
encolheu os ombros. — É a lei da selva.
Christine não parecia satisfeita quando começou a dirigir. Pierce achou
que a curiosidade dela tinha algo de mórbido, como se ela estivesse tentando
encontrar mais razões para não gostar dele.
— Você ainda não respondeu minha pergunta.
— Veja bem, elas não pagam só pelo sexo, entende? Sexo é fácil! —
Retrucou Pierce impaciente. Em seguida enrugou a testa, tentando encontrar
as palavras. Nunca tinha parado para pensar nisso, mas entendia muito bem
do assunto. Só que nunca precisara explicar para alguém. Quase como se
estivesse pensando em voz alta, começou: — As mulheres estão acostumadas
a serem usadas, sabe? Mesmo com toda essa história de liberação, os homens
ainda continuam no comando, ou pelo menos é o que a maioria das mulheres
acha. Ainda é a mesma coisa, as mulheres tentando agradar os homens. Às
vezes uma mulher só quer ter prazer. Sentir que o mundo gira ao seu redor.
Assim, eu faço com que elas se sintam atraente, queridas, protegidas e
importantes. Elas pagam por tudo isso.
— E você? Não se incomoda de vender seu corpo?
Pierce meneou a cabeça, ligeiramente exasperado. Claro que ela não
estava entendendo nada, mas não esperava que entendesse.
— Cada um vende o que tem. Posso lhe garantir que é muito mais fácil do
que o que estou vendendo agora, músculos e suor a cem dólares por semana.
Chris ficou em silêncio, pensando naquilo tudo. Ele era um homem
estranho. Não sabia o que esperava como resposta, mas não era exatamente
aquilo.
— Eu faço as mulheres se sentirem amadas — concluiu Pierce, querendo
colocar um ponto final na discussão. — É tão ruim assim?
— É uma mentira. É um jogo. Uma maneira superficial de um ser humano
se relacionar com outro. Como se... Como se as pessoas estivessem doentes.
— A velha história de que o dinheiro não compra o amor, não é? — Ele
riu. — Bem, eu vivo a contradição dessa teoria.
— Você nem sabe o que a palavra "amor" significa.
— Sei tanto quanto posso, como qualquer outra pessoa. Vou lhe dizer
uma coisa, as mulheres que me procuram, são profundamente infelizes e na
verdade pagam por alguns momentos de esquecimento. Você acha que isso é
doença e talvez seja. Talvez o mundo inteiro seja doente. Mas, às vezes... —
Pierce não pretendia ficar tão emocionado e surpreendeu-se com o nó na
garganta. Não se lembrava de já ter passado tanto tempo conversando sobre
um assunto tão abstrato. Não sabia que era capaz disso. — Às vezes uma
pessoa precisa se sentir especial. Precisa sentir alguém ao seu lado; precisa se
sentir querida. Às vezes precisa apenas ser abraçada ou tocar alguém... — Sua
voz tinha se tornado suave e, sem perceber, pegou uma mecha de cabelos que
tinha se soltado do coque que Christine usava. — Como você, naquela noite.

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Precisava de carinho, de força. Precisava de alguém que afastasse as


lembranças ruins. Eu posso fazer isso por você.
Chris sentiu os dedos de Pierce tocar sua nuca e ficou arrepiada. Quando
ele falava daquele jeito, quase acreditava que era sincero, carinhoso, um ser
humano capaz de dar e receber amor.
Voltou a olhar para ele e conseguiu manter a voz firme:
— De graça?
Pierce deixou a mão cair e recostou-se no banco. A conversa o linha
deixado esgotado. O esforço mental o deixara deprimido.
— Não é de graça menina — respondeu cansado.

Capítulo IX

Sentada diante de sua escrivaninha, Christine começou a ouvir pela janela


aberta o som monótono do machado contra a madeira, era seu pai novamente
tentando mover montanhas. Tinha certeza de que devia existir algum meio
mais eficiente de se livrar daquele tronco imenso, mas Hamilton, com sua
típica teimosia, dispensara qualquer sugestão. Christine odiava aquele som,
aquele ruído seco da lâmina contra a madeira, mostrando apenas um homem
contra séculos de natureza. Ela odiava qualquer coisa que demorasse muito
tempo para morrer. Naquele dia, o som a irritava mais do que de costume
porque a remetia para a futilidade de tudo contra o que lutavam e da
estupidez de tentar.
Esfregou as têmporas e recostou-se na cadeira, descansando os olhos da
longa sessão que tivera com os livros-caixa.
Se há dez anos, ou mesmo há cinco, alguém tivesse dito que, na
primavera de seus vinte e sete anos, Christine Walsh estaria sentada à frente
daquela antiga escrivaninha, tentando ajustar a folha de despesas para mais
uma semana de trabalho na fazenda, ela não teria acreditado. Desde que tinha
idade suficiente para perceber que o mundo não terminava nas cercas da
fazenda, resolvera passar sua vida em outro lugar.
No início era apenas um desejo de aventura. Olhava sonhadoramente as
revistas de cinema, ficava horas em frente à televisão, devorava todos os
livros que ofereciam uma promessa de algo além do abrigo de sua família,
daquela fazenda, de seu modo de vida. O desejo de sair tornou-se uma febre
durante os primeiros anos de sua adolescência, mas a ansiedade acalmou-se
lentamente numa certeza. Era só ter calma e esperar a hora certa para realizar
todos os seus sonhos. Na universidade, foi uma estudante aplicada, mas a
dedicação aos estudos não significou nada comparado à alegria de viver, que
sentiu naqueles quatro anos de liberdade. Estava construindo sua vida no
mundo que desejava e fazia isso com entusiasmo. Recebeu propostas de
emprego antes mesmo de se formar. Tinha seu próprio círculo de amigos. Teve
um namorado que quis levá-la para morar com ele, mas recusou com firmeza.

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Valorizava demais sua liberdade para ficar presa a um homem por muito
tempo.
Prometera ao pai que, no verão após a formatura, colocaria a
contabilidade da fazenda em ordem antes de confiá-la a outra pessoa e por
isso voltara. Afinal, sem o apoio financeiro e afetivo de Hamilton, não teria tido
a oportunidade de construir sua própria vida e era natural que lhe retribuísse
de alguma forma. Claro que não esperara encontrar os negócios tão confusos.
Não podia ter previsto a queda da economia nem as oscilações do mercado
internacional que afetaram a agricultura e ameaçavam os pequenos
fazendeiros com uma das piores crises da história... Não esperara que seu pai
passasse a depender tanto dela.
E, então, chegou à época de Clay ir para a faculdade.
Fazia cinco anos. Christine ficou vendo sua vida mais e mais envolvida
com aquilo tudo. A cada dia que passava seus sonhos iam ficando cada vez
mais distantes.
Não que tivesse sonhos mirabolantes. Era tudo muito simples, queria
apenas uma vida igual à de tantas outras que moravam nas grandes cidades.
Tornar-se uma mulher independente, envolvida com assuntos que a
interessassem, correndo riscos e tomando decisões. Às vezes ganhando, às
vezes perdendo, mas fazendo alguma coisa...
Se seus planos tivessem dado certo, ela agora seria apenas uma mulher,
entre milhares, ajudando a moldar o mundo de hoje. Estaria morando em um
apartamento decorado com cores alegres e muitas plantas. Sairia para fazer
compras num carro pequeno, usaria roupas de corte perfeito, trabalharia até
tarde e depois iria ao teatro ou sairia para tomar um drinque com as amigas.
De vez em quando levaria um namorado para casa e fariam amor entre lençóis
floridos. Passaria os sábados lavando roupa e cuidando da casa e os domingos,
tomando café e lendo os jornais. Passaria noites solitárias, desejando ter
alguém a seu lado, e às vezes ficaria tão aborrecida que teria vontade de
gritar. Às vezes odiaria sua vida, mas seria a vida que tinha escolhido.
Christine ouviu a porta bater e passos atravessando o vestíbulo. O som do
machado cortando madeira continuava e ela voltou a olhar os livros. Um forte
desespero dominou-a. Era tudo inútil. Estúpido e inútil.
Tinham pedido emprestado cada centavo que investiam agora na fazenda.
Às vezes sua garganta secava quando pensava em como estavam próximos do
colapso financeiro, às vezes seu rosto ficava vermelho de tanta raiva.
Tinha tentado explicar exatamente isso para seu pai na noite anterior.
— Não podemos continuar assim por muito tempo papai. Estamos
endividados até o pescoço e já não há mais de onde tirar empréstimos. No
outono passado, tentei lhe mostrar que não podíamos continuar a produzir na
mesma escala que sempre produzimos. Nossa única saída era vender parte do
equipamento...
— Não se pode gerir uma fazenda sem equipamento filha — interrompeu
Hamilton.
— Não vê que é exatamente isso o que estou dizendo? — Gritou Christine,
perdendo a paciência. Sabia que seu pai se fazia de desentendido de propósito,
como agia sempre que ela tentava discutir os negócios sob um ponto de vista
prático.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Se reduzíssemos pela metade, ou um terço que fosse, os custos seriam


menores e mais suportáveis para nós. Pelo amor de Deus, papai, não é preciso
ser um gênio para ver que estamos sendo comido vivos! O senhor está
jogando milhares de dólares numa terra que não dará o retorno! O terceiro
trator só gasta combustível e não faz nada! Se o senhor...
— A terra ainda é nossa — cortou seu pai com firmeza. — Se deixarmos o
campo crescer este ano, teremos duas vezes mais produção no ano que vem.
— Não percebe que poderemos não ter o ano que vem?
Hamilton limitou-se a sorrir. Sempre houvera o ano que vem para ele,
para seu pai, para seu avô... Alguns foram anos ruins, outros piores ainda,
mas tinham sobrevivido. Hamilton acreditava seriamente que com trabalho,
dedicação e preces, conseguiriam sobreviver. Nos últimos anos, vira seus
vizinhos desaparecendo um após outro. Alguns vendendo suas terras para
grandes corporações, alguns falindo e outros simplesmente mudando para
outros lugares. Mas Hamilton Walsh não acreditava que poderia acontecer o
mesmo com ele.
Christine sabia muito bem disso. Nada que dissesse faria diferença, não
adiantava ficar falando sobre o que deveriam ter feito. Seus conselhos
ignorados. Agora estavam comprometidos com a plantação inteira. Era tarde
para voltar atrás. Respirou fundo, endireitou os ombros e controlou a raiva.
— Tudo bem, o que está feito, está feito! Mas teremos de cortar despesas,
imediatamente. Vamos despedir alguns homens — começou a se imaginar
suando sob o calor do sol, na direção do trator. Mas não havia outra opção. —
Não será fácil, mas não temos condições de manter o tipo de ajuda que
precisamos e que estamos acostumados a ter. Temos que cortar
imediatamente pelo menos três homens da folha de pagamento e depois...
— Eu sei. Acho que Marshall e Winston podem ser dispensados. São bons
trabalhadores, mas ainda têm trabalho de meio período em Norrisville, então
tudo bem. E Joe Johnson, que de qualquer jeito iria embora ao fim da semana
que vem.
Christine concordou com a cabeça. Detestava a ideia de perder Joe. Era o
único dos homens que conseguia arar um sulco inteiro.
— E Lanson? O senhor lhe prometeu trabalho até o final da semana.
— Continuará conosco.
— O senhor está brincando!
Porém, a única coisa engraçada que Hamilton parecia ver naquela decisão
era a reação dela. Christine não sabia por que estava tão surpresa. Seu pai
nunca faltara com uma palavra empenhada em toda a sua vida e parecia
acreditar que a incompetência de Pierce no campo era amplamente
compensada por sua habilidade em ser um companheiro brincalhão e
agradável.
— Papai, sei que o senhor tem pena dele e por isso o aceitou, mas já fez
muito por Lanson. Não temos desconto nos impostos por praticar caridade!
Quer tentar ser prático pelo menos uma vez na vida? O homem é um inútil que
só causa problemas...
— Oh, ele está melhorando — interrompeu Hamilton com calma.
Estava claro que ele não mudaria de ideia, mas Christine insistiu.
— Ele já nos custou mais do que vamos lhe pagar. Perdemos muito tempo
para consertar o trator que ele amassou e até agora o sujeito não fez nada

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

direito. Foi encarregado de limpar o campo antes que o trator passasse e


quase quebramos uma lâmina numa pedra enorme que não tirou do caminho.
Deixou a plantação aqui atrás secar antes de resolver molhá-la e depois
queimou duas sacas de sementes com fertilizantes... O que é tão engraçado,
papai?
— Você. — Hamilton levantou e deu-lhe um beijo no rosto. — Você é
engraçada. Não duvido que ainda aprenda algumas lições com esse rapaz que
está com tanta pressa de chutar para a estrada. Enquanto isso, não se
preocupe tanto. Já passamos por anos piores e sempre deu tudo certo. Só
precisamos de uma boa colheita.
"Uma boa colheita" pensara ela, vendo-o sair. "Sempre entregamos
nossas vidas aos caprichos da natureza. Por que uma pessoa quer viver assim,
meu Deus?"
Um assobio veio do vestíbulo e imediatamente Christine descobriu quem
estava na casa. Ele assobiava o clássico dos Eagles, "Hotel Califórnia", e por
um momento ela sentiu-se voltando a seus dias na universidade. Teve vontade
de cantar... E, logo em seguida, de chorar. Quando levantou a cabeça e viu
Pierce Lanson encostado no batente da porta, lutava contra um misto de
nostalgia, irritação e desespero.
— Você devia-me ver tocando violão — disse ele, rindo e fazendo de conta
que dedilhava um instrumento imaginário.
— O que está fazendo aqui?
Pierce ergueu as sobrancelhas e tirou uma chave inglesa do bolso da
calça.
— Clay me pediu para vir buscar esta ferramenta e, já que eu estava aqui,
resolvi aproveitar a oportunidade. Meu pagamento está pronto?
— Por que tanta pressa? Vai ao Ralph's esta noite jogar tudo fora?
— Para aguentar bêbados e brigas inúteis? Não preciso disso, obrigado.
— Ainda não fui ao banco — resmungou ela. — Quer um cheque?
— E onde eu o descontaria?
Christine voltou para seus livros, ignorando-o. Pierce inclinou a cabeça na
direção do som do machado, ainda querendo puxar conversa.
— Seu velho não desiste, não é? Q que será que ele tem contra o pobre
carvalho? Ou será que faz isso só para passar o tempo?
Ela tampou a caneta, recostou-se na cadeira e começou a massagear
inconsciente o músculo tenso dos ombros.
— Por que você continua aqui? — Perguntou. — Por que não vai embora
da fazenda?
— Acredite ou não, não tenho lugar melhor para ir — respondeu Pierce
com tranquilidade, depois de examinar uma peça de porcelana na prateleira.
Christine fez um gesto impaciente. Colocou os cotovelos sobre a
escrivaninha, a cabeça para frente e esfregou a nuca para desfazer a tensão.
Ele começou a cantarolar, ainda passeando com displicência pela sala. De
repente parou e fitou-a.
— Conhece essa música?
— Sim — replicou ela, sem levantar a cabeça. — Volte para o trabalho!
Pierce cantou mais um trecho da música, só para incomodá-la, e ela
abaixou mais a cabeça, continuando a esfregar a nuca.

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Christine ouviu-lhe os passos apenas um segundo antes de sentir os


dedos fortes começando a massagear-lhe os músculos enrijecidos. Tentou
levantar-se, mas ele a impediu:
— Deixe — disse Pierce. — Sou bom em massagem... Também.
E era mesmo. Com a perícia de um massagista experiente, Pierce tocou-
lhe os pontos sensíveis, parecendo tirar a tensão com a ponta dos dedos.
Christine deixou-se relaxar e até mesmo o som irritante do machado cortando
o tronco tornou-se quase agradável.
Os cabelos dela tinham aquele perfume que Pierce aprendera a associar
com sol e feno e sua pele era macia e delicada. Teve um súbito desejo de
afundar o rosto na cabeleira sedosa, roçar os lábios na nuca delicada, e por um
momento seu corpo chegou a fazer um movimento para isso. Conteve-se a
tempo e continuou apenas massageando os músculos enrijecidos.
Ele sabia que Christine não gostava dele. Não, era mais do que isso. Era
um sentimento que beirava a hostilidade ou a apatia. O estranho era que
aquela garota cada vez mais começava a penetrar em sua vida. Por isso a
reação negativa diante dele o incomodava tanto. Christine Walsh o deixava
confuso.
Chris trabalhava tanto quanto qualquer homem e até mais do que
alguns... Do que ele, inclusive. Era a primeira a se levantar de manhã, e a luz
na saleta que usava como escritório muitas vezes se refletia na janela do
quarto de Pierce quando ele fechava os olhos para dormir. Durante o dia, podia
ser vista dirigindo o trator, jogando sementes na plantadeira, atravessando a
terra fofa dos campos para resolver um ou outro problema. Quando o almoço
era servido nas mesas perto do barracão, ela fazia o prato e se sentava no
chão com os outros homens, rindo e conversando como se fosse um deles. Mas
não agia assim com Pierce.
Quando falava com os outros homens, fosse para dar uma ordem ou para
fazer uma pergunta, havia algo em seu tom de voz que faltava quando se
dirigia a Pierce. Quantas vezes não a ouvira gritar da caminhonete:
— Ei, vocês estão bonitos rapazes!
— Você também doçura! — Respondiam aqueles homens sujos e suados,
e Chris apenas sorria, acenava e voltava para seu trabalho.
Nunca imaginara homens e mulheres convivendo daquela maneira
inusitada e isso o deixava fascinado e intrigado ao mesmo tempo. As normas
tradicionais, que governavam o comportamento entre os sexos, não existiam
ou eram ignoradas. Ela era a patroa, mas era uma mulher e os homens à sua
volta não faziam o menor esforço para disfarçar esse fato. Ela ria tanto quanto
qualquer um com as piadas sujas que eles contavam e sempre tinha um
comentário à altura. E, quando voltava a dar ordens, não existiam
ressentimentos. Eles retornavam para seus lugares, trabalhando a seu lado e
respeitando-a, porque ela os respeitava.
Mas era como se Pierce não existisse para Christine. Jamais se dignava a
dar-lhe um sorriso e, na maioria das vezes, olhava-o como se ele não
estivesse presente. Quando lhe dirigia a palavra, ou era rude ou distraída. Não
demonstrava a mesma camaradagem que tinha para com os outros e só lhe
respondia em momentos como aquele, quando estavam a sós, quando ele a
forçava.

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Não duvidava de que poderiam fazer amor, se quisesse. Porém, não tinha
a menor ideia de como cativar aquela mulher como amiga.
Sentiu Christine relaxar e viu sua cabeça pender ligeiramente.
— É gostoso, não é? — Sussurrou.
Ela não respondeu, mas Pierce sentiu um leve estremecimento nos
músculos de seu pescoço. Aumentou a pressão dos movimentos e ela começou
a relaxar novamente.
— Não é gostoso? — Insistiu.
— Sim. — Christine queria que sua voz parecesse irritada e impaciente,
mas saiu apenas como um suspiro de satisfação. — É gostoso.
— Obrigado. É o primeiro elogio que você me faz.
Chris queria responder, mas de repente achou que não valeria o esforço.
As mãos dele eram macias e cheiravam a sabonete, seus dedos eram fortes e
habilidosos. Nunca alguém tinha feito isso por ela.
Por um momento desejou que a massagem fosse apenas um gesto de
ternura, que ele estivesse apenas querendo agradá-la, e não porque fosse
vantajoso subir no conceito da filha do patrão.
Desejou que o belo corpo a seu lado pertencesse a uma pessoa de
verdade, alguém em quem pudesse confiar, de quem pudesse depender.
Desejou que Pierce fosse outro homem. Não importava quem, qualquer um,
desde que fosse gentil, honesto e verdadeiro.
— Quanto você costuma cobrar por uma sessão de massagem? —
Perguntou com voz sonolenta.
Por instantes, houve hesitação nos movimentos dos dedos, mas logo
continuaram no mesmo ritmo.
— Depende do caso.
Pierce começou a cantarolar "Hotel Califórnia" novamente. Chris percebeu
que devia fazê-lo parar antes que a situação escapasse de seu controle. Logo
ele começaria a beijar seu pescoço ou tomaria qualquer outra atitude de
conquistador barato, e ela não estava disposta a nenhuma cena ridícula.
Endireitou o corpo e ficou surpresa quando Pierce aceitou seu movimento,
apenas pousando as mãos em seus ombros.
— Você cometeu um erro — disse ele simplesmente. Christine fitou-o,
mas ele olhava compenetradamente para o livro em sua frente.
— Dezessete com trinta e oito são cinquenta e cinco, e não quarenta e
sete.
Christine voltou os olhos para o papel e, aborrecida, viu que Pierce estava
certo. Devia ter apertado o botão errado da calculadora e não era de se
admirar, com tantas coisas que tinha na cabeça.
— Que é isso agora? Você também é um gênio da matemática? —
Perguntou, corrigindo a conta.
— Oh, eu tenho muitos talentos ocultos! — Garantiu, com aquele sorriso
cuidadosamente cultivado. — Vocês não me pagam nem a metade do que eu
valho.
— Ainda bem que não. Se as coisas não começarem a melhorar, pode ser
que a semana que vem a gente não possa pagar nada.
— Estão com problemas financeiros? — A voz dele tornou-se séria.
Se morder a língua ajudasse, era o que Christine teria feito.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Era só o que faltava, circularem boatos de que estavam à beira da


falência. Mas que diferença faria? A situação não poderia ficar pior do que já
estava.
Ela encostou-se na cadeira e observou-o. Os olhos azuis de Pierce agora
não estavam brincalhões. Ele mudava de humor como antes devia mudar de
camisa, sempre que a ocasião exigia. Por um breve instante, Christine quis
acreditar no que via nos olhos dele, um amigo a quem podia contar seus
problemas e de quem poderia esperar compreensão, simpatia e até conselhos
úteis. Desejou que ele fosse tão forte, tão sensível e tão preocupado quanto
parecia.
— Nunca ouviu falar da situação dos pequenos fazendeiros americanos,
Sr. Lanson? — Perguntou com sarcasmo. — Estamos quase morrendo de fome.
Só que nós levamos um pouco mais de tempo para morrer do que os outros.
— Por que não vendem a fazenda?
— Já pensei muito nisso. Se vendêssemos agora, mal daria para pagar
nossas dívidas. Além disso, papai morreria. — Chris encolheu os ombros com
certa tristeza. — É uma tradição dos Walsh, terra rica e caixa pobre. Tem sido
assim há muitas gerações.
Aquele era um conceito totalmente estranho para Pierce, e ele chegou a
ficar irritado. Não entendia nada sobre aquelas pessoas, a vida que levavam ou
as paixões que as motivavam. Trabalhavam como escravos numa era de
mecanização, seu deus era o clima, eram regidos pelas estações do ano, pela
esperança de chuva ou pelo medo da geada. Tudo dependia das condições
meteorológicas, e quem era capaz de controlar isso? Era como Hamilton e
aquele estúpido tronco de árvore. Tudo tinha que ser feito do jeito mais difícil,
e às vezes pareciam fazer as coisas simplesmente por fazer. Trabalhavam
como animais e no final das contas nem era por dinheiro. Não fazia sentido.
Nenhum sentido.
O rosto de Christine estava cansado, seu ombro caído observou. Parecia
uma criança indefesa, o que o fazia ter vontade de abraçá-la. Pierce gostaria
de lhe proporcionar algum conforto, mas não podia. Ele não fazia parte
daquele mundo. Desejou que ela não estivesse tão arrasada. Seria tão bom
fazê-la sentir-se melhor, arrancar um sorriso daqueles lábios crispados.
Desanuviou o próprio rosto, injetou alegria na voz e disse:
— Bem, se quer o conselho de um perito em matéria de oferta e procura,
vocês estão gerindo a fazenda de maneira errada.
Christine lançou-lhe um olhar cético.
— Claro — continuou Pierce animado. — Estão no mercado errado, só
isso. O que vocês têm que fazer é parar de plantar soja e usar a terra para
plantar flores. Poderiam fazer vasos ornamentais de cerâmica e arranjos com
bambu ou talo de trigo e... Ei, as pessoas estão fazendo isso no mundo inteiro!
Christine ficou olhando para ele por um longo momento.
— Você é mesmo um burro, não é, Lanson?
Por um segundo algo brilhou nos olhos de Pierce, mas ela não sabia o
quê. Mágoa ou desapontamento, talvez... Mas logo o sorriso retornou e ele
caminhou para a porta.
— Avise-me se mudar de ideia — disse de lá. — Eu bem que seria capaz
de ficar numa fazenda que se dedicasse a esse tipo de produção.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Christine ouviu a porta bater e a voz agradável de Pierce ainda


assobiando, enquanto ele descia os degraus.
Cruzou os braços sobre a escrivaninha, deitou a cabeça e fechou os olhos.
Tentou se controlar, mas não conseguiu e começou a rir.

Capítulo X

Para Pierce, os dias terminavam na noite, as noites davam lugar ao nascer


do sol, o mundo continuava girando e ele continuava vivendo. As mãos tinham
começado a cicatrizar e a formar calos onde antes estavam em carne viva, à
pele estava mais morena e os músculos mais rijos. Os dias já não pareciam tão
longos e as noites tão curtas. A vida não era intolerável.
Talvez pela primeira vez em toda a sua existência adulta, Pierce passava
um longo tempo completamente sóbrio. Ficou espantado ao perceber isso e
quase maravilhado, passou a explorar a diferença que fazia. Sem as alterações
que o álcool provocava circulando em sua corrente sanguínea, tudo mudava.
As cores eram mais vivas, os aromas mais penetrantes, as texturas mais
perceptíveis. Era como se antes nunca tivesse sentido o gosto da comida e seu
apetite o surpreendia. Engordara alguns quilos, o que também era uma
surpresa agradável. Agora conhecia a fome e a satisfação depois de comer.
Conhecia o trabalho duro e o prazer de uma noite bem dormida. Sabia como
era gostoso um copo de água sob o calor do sol e o efeito refrescante de seu
próprio suor em contato com a mais leve brisa. Passara toda a sua vida sem
sentir dor, prazer, desconforto ou alegria e antes nem percebia como andava
entorpecido. O choque da descoberta era uma sensação peculiar.
Sua nova vida, porém, não era de todo agradável. Se tivesse escolha,
ainda pensaria em ir para qualquer outro lugar. Não gostava de ficar sujo. Não
gostava de ficar cansado nem de ficar sozinho. Porém, não tinha outra
alternativa e não gastaria suas energias remoendo um fato consumado.
O trabalho continuava duro e a vigilância constante de Hamilton Walsh,
tornou-se parte do quotidiano. Ele sempre aparecia para corrigi-lo, mas
acabava contando histórias de como seus ancestrais garantiam a colheita e a
alimentação para o ano inteiro.
Ouvir aquelas histórias não o aborrecia. Enquanto Hamilton falava, Pierce
trabalhava. Fazia muitas perguntas, principalmente porque conversar com o
velho era uma forma de evitar especulações sobre o futuro... e também
porque era bom ter alguém com quem conversar. Estava acostumado a ser o
centro das atenções, e ser ignorado era uma sensação muito incômoda.
Poucos meses antes, com um simples estalar de dedos, Pierce Lanson
podia conseguir uma mesa num restaurante com lista de reservas para três
meses, entrava em lojas importantes e era cumprimentado pelo nome e
tratado como um cliente especial em qualquer lugar.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

No meio de uma fazenda no sul do Alabama, cercado por terra arada e


tratores, porém, sentia-se totalmente perdido. E a cada dia que passava
tornava-se mais consciente da própria incompetência.
Quando o mandaram encher o recipiente com fertilizante, ninguém se
preocupou em lhe explicar a dosagem precisa do composto e nem mesmo para
que servia aquele recipiente. O desastre só foi evitado pela intervenção de
Walsh. Hamilton explicou a relação necessária entre o oxido nitroso e os outros
componentes químicos e até contou que só era possível saber o grau de
fertilidade da terra experimentando-a.
Embora nunca tivesse imaginado que algum dia colocaria terra na boca,
Pierce colocou. E o velho tinha razão. Depois de mostrar como se misturava o
fertilizante, fechar o recipiente e encaixá-lo no trator, Hamilton continuou a
explicar as origens do solo daquela área, como reagiria com os componentes
químicos. Suas explicações carregavam o conhecimento de um geólogo e
Pierce ficou muito impressionado. Tinha que admitir que o homem era um
gênio!
Pierce cometia erros, vários erros, mas Hamilton estava sempre disposto
a corrigi-lo e os outros homens a ridicularizá-lo. Como não era nenhum
estúpido, não levou muito tempo para perceber que era muito mais fácil fazer
o serviço certo do que ter de fazê-lo duas vezes. Com um pouco de astúcia e
de esforço físico, poderia evitar muitos problemas.
Deixou de ver a lavoura como uma espécie de folclore e passou a encará-
la como uma ciência, começando a respeitar os homens e mulheres que
dedicavam as vidas a esse tipo de trabalho. O processo de aprendizagem era
tão absorvente que ele não tinha mais tempo de pensar no absurdo de sua
situação.
Pierce sabia que nunca faria parte daquele meio, daquela gente, mas
estava aprendendo a ser tolerante. Os homens com quem trabalhava
continuavam a fazer tudo o que podiam para tornar-lhe a vida insuportável e
Pierce continuava não dando atenção a eles. Agora que o número de
trabalhadores tinha diminuído, todos estavam sobrecarregados e não tinham
muito mais tempo para brincadeiras de mau gosto.
Como o tempo era curto, o almoço passou a ser servido em caldeirões
quentes na carroceria da caminhonete. Os homens serviam-se de generosas
porções, sentavam-se em alguma sombra o voltavam ao trabalho logo depois
de comer.
Naquele dia Pierce notou algo estranho. Ao invés de se afastarem com os
pratos, os homens se demoraram perto da caminhonete, falando bobagens e
não olhando para ele, que era o último da fila. Devia ter imaginado. Depois de
fazer seu prato, pegou o guardanapo que cobria o cesto de pão e foi aí que
aconteceu.
Algo deslizou sobre sua mão, uma coisa fria e viscosa. Pierce deu um grito
abafado, afastando-se com um movimento rápido. O cesto virou e uma imensa
cobra negra caiu sobre sua bota. Desta vez ele gritou a plenos pulmões,
lançando longe a comida, o rosto lívido. Os homens em volta dele gargalhavam
de satisfação.
— É apenas uma cobra negra cara! Não vai machucar você!
— Malditos, olhem a cara dela!

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Jordan, o homem baixo com o rosto todo marcado por cicatrizes de acne,
que Pierce rotulara desde o primeiro dia como um criador de caso, abaixou-se
e pegou o réptil, colocando-o bem diante de seu rosto. O sorriso abriu-se
maldoso, e os olhos brilharam cheios de perigo. Pierre recuou um passo.
— Não está com medo de uma cobrinha de nada, não é gatinho? — Jordan
olhou para os companheiros, como se fossem uma platéia. — Ei, uma vez
estive num lugar onde as mulheres dançavam com cobras. Vocês não
imaginam o que faziam com elas! — Virou para Pierce, aproximando
novamente o réptil do rosto dele. — Você dança com cobras, gatinho? Não
quer nos dar um showzinho? Podemos pagar ingresso...
Pierce enfrentou-lhe o olhar o máximo de tempo que conseguiu. Depois se
afastou, acompanhado pelas risadas divertidas. Com o canto do olho, viu Clay
fazer menção de segui-lo, mas Hamilton o impediu, segurando-o pelo braço.
Atravessou o campo e chegou a uma pequena elevação que antecedia
uma colina, de onde não ouvia mais as risadas nem via os rostos gozadores.
Não tinha sido a primeira brincadeira de mau gosto, nem seria a última.
Atravessou um trecho pedregoso e subiu até o topo, observando a paisagem
que se descortinava a sua frente. Parecia uma parte do mundo que Deus se
esquecera de terminar. Dali a alguns minutos voltaria para conseguir algo para
comer, antes de recomeçar a trabalhar. Tinha certeza de que no fim do dia o
incidente já estaria esquecido.
Ouviu passos, mas não virou a cabeça. Hamilton Walsh parou a seu lado,
permanecendo em silêncio por algum tempo. Tirou do bolso a velha cigarreira
de couro, onde guardava os cigarros de palha, enrolados à mão.
— Quer fumar?
Pierce encarou-o um pouco desconfiado e hesitante, depois aceitou. Tinha
parado de fumar a alguns anos porque quase todas as mulheres não gostavam
do gosto que o cigarro deixava em sua boca. Agora não precisava mais se
preocupar com isso.
Pierce tragou com cuidado quando se inclinou para o fósforo aceso que
Hamilton segurava, mas assim mesmo engasgou e tentou não tossir. Percebeu
o olhar divertido do velho e tragou de novo. Desta vez não conseguiu conter a
tosse.
— É forte — conseguiu dizer com os olhos molhados.
— É uma seda comparada ao tabaco que eu fumava antes. Ficaram em
silêncio por algum tempo e Pierce começou a se acostumar ao gosto do
cigarro. Viu que Hamilton olhava a paisagem e tentou imaginar o que o
interessava particularmente ali. O velho parecia cansado naquele dia. Ficou um
pouco preocupado, pois encarava seu patrão e mentor como um homem
infatigável. As rugas do rosto dele, porém, estavam mais pronunciadas e sua
cor mais pálida. Percebeu a respiração alterada apenas por subir a pequena
colina. Quantos anos ele teria? Quase perguntou se também sentia dor nos
músculos e entorpecimento depois de cada dia mourejando na terra.
— Estão começando a se formar nuvens de tempestade — disse Hamilton,
com os olhos fixos no horizonte. — Teremos que trabalhar como o diabo para
terminar esse campo antes que comece a chover.
Pierce olhou para o horizonte e não viu nenhum sinal de tempestade, nem
mesmo de nuvens.
— Terminaremos sábado.

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— Sábado está bem — concordou Hamilton. — Não se pode plantar na


lama, e dois dias perdidos bastam para nos colocar em situação difícil.
— Se chover logo que terminarmos, será mais fácil arar o campo oeste. As
sementes que já plantamos criarão raízes mais depressa.
— Você está indo bem filho. — Hamilton fitou-o com aprovação.
O cigarro estava deixando Pierce tonto. Se desse mais uma tragada, cairia
no chão. Apagou-o no cano da bota e jogou-o no mato.
— E o que farão depois que todos os campos estiverem semeados? —
Perguntou.
— Ficaremos vendo crescer. Precisamos manter os insetos longe da
plantação, arrancar as ervas daninhas e manter o solo fertilizado. E, se
tivermos sol e chuva na dose certa, colheremos.
Pierce tentou imaginar onde estaria na época da colheita.
─ Quantos anos tem filho? — Perguntou Hamilton inesperadamente.
— Vinte e oito.
Se Pierce esperasse que a pergunta iniciasse uma conversa mais íntima,
ficaria desapontado. Hamilton apenas inclinou a cabeça para a paisagem que
se descortinava diante deles.
— O que vê lá embaixo filho?
— Um lugar muito feio — respondeu ele sem hesitar. Parecia o início de
uma nova história.
Hamilton começou a descer a colina e Pierce o acompanhou. A trilha era
quase invisível, ele escorregava nas pedras lisas, enroscava os pés no mato,
mas o velho caminhava pelo terreno irregular com a habilidade de uma cabra
montanhesa. O único comentário que fez foi quando passaram ao lado de um
trecho coberto por uma vegetação rasteira.
— Morangos. Não posso esquecer de avisar Chris. Não existe nada de que
ela goste mais do que morangos silvestres.
Pierce seguiu-o pela mata. Estava mais fresco ali, com o ar perfumado
pelas folhagens e pela terra úmida.
Pararam numa clareira onde havia uma coluna de pedras, uma lareira
ainda intacta e uma chaminé semidestruída. Hamilton ficou parado por alguns
minutos, observando.
— Esta foi à primeira casa dos Walsh, quando se instalaram aqui no início
de 1800 — acendeu outro cigarro. — Foi incendiada em 1843.
Pierce se aproximou e tocou nas pedras. A chaminé lhe provocou uma
emoção inesperada. Quase dois séculos atrás pessoas tinham estado ali e
construído um lar. A terra devia ser acidentada, pior ainda do que agora.
Tinham arado com ajuda de mulas e plantado com as mãos. Se tivessem má
colheita, morreriam de fome. No entanto, bem ou mal haviam sobrevivido e,
quando a casa foi incendiada, tinham simplesmente erguido outra. Tantos anos
depois, um descendente distante trazia um estranho e lhe contava o fato como
se tivesse acabado de acontecer. Que estranha e admirável tenacidade! Ele
tentou imaginar como seria ter uma herança dessas, trabalhar na terra em que
seus ancestrais haviam se instalado, sentir-se parte da História, afinal. Como
seria a sensação de ter raízes, de pertencer a algum lugar?
— De onde você é filho?
— De muitos lugares. — Pierce encolheu os ombros com desconforto. —
Fui criado na cidade. — Olhou a chaminé quase destruída. — Deve ser

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engraçado saber que as pessoas que construíram tudo isso são parte de você,
que pode reconstituir sua origem até tão longe.
Walsh passou por ele e avançou na mata. Caminharam alguns metros e
ele parou para esfregar a bota no chão. Curioso, Pierce viu as folhas serem
afastadas e uma pedra chata começar a aparecer. Era uma lápide.
— Veja só! — Murmurou, abaixando para examiná-la. As palavras
entalhadas eram tão antigas que não passava de um simples recorte escuro
sobre o granito, mas ali descansava um Walsh, alguém que conhecera tristezas
e alegrias, que suara ao sol e se sentava sob a sombra fresca das árvores...
— O antigo cemitério — explicou Hamilton. — Depois que a igreja foi
construída em 1865, as pessoas deixaram de ser enterradas aqui — tirou um
pedacinho de tabaco da língua com um movimento rápido. — Mudanças
ocorridas ao longo dos anos.
Hamilton deu-lhe as costas e recomeçou a caminhar, mas Pierce ficou
ajoelhado mais alguns momentos, olhando a pedra. Eles viviam ali, morriam
ali, eram enterrados ali. Nasciam, cresciam, morriam num círculo infinito. De
repente, ajoelhado no meio do mato sobre uma antiga lápide, podia sentir os
séculos atrás e os séculos à sua frente e concluiu que nunca tivera uma
definição tão precisa e tão profunda da palavra lar. Fizeram quase todo o
caminho de volta em silêncio. Pierce fumou outro cigarro e, como todo o resto,
foi mais fácil com a prática. Hamilton parou na beira da mata e olhou para o
chão. Cutucou um pinheiro mirrado e suspirou.
— Pinheiros crescem em qualquer lugar, mas veja este aqui. Nunca
conseguirá. Foi nascer bem na sombra de um carvalho. Não recebe sol e o
carvalho tira toda a sua alimentação e água — Hamilton deu uma risada seca.
— Se árvores fossem pessoas, eu diria que essa aqui não é das mais
inteligentes, você não acha?
Pierce também riu e o velho se abaixou para arrancar a pequena árvore.
— A natureza não deixa espaço para erros — disse, jogando-a para o
lado. Pierce conhecia alguns ecologistas que abominariam tal atitude, mas
Hamilton continuou com seu tom de voz costumeiro: — Pode-se lutar contra
ou trabalhar com ela. Minha Chris é uma lutadora, como este pinheirinho
estúpido! — Abaixou um pouco a voz. — Às vezes fico preocupado com ela.
Pierce não sabia o que dizer. Deu a última tragada e jogou o cigarro fora.
— Veja isso filho. — Hamilton chutou o pedaço de uma trepadeira que se
emaranhava inteira, subia nas árvores e esparramava-se como um rio pela
mata. — Um idiota em Washington comprou essa erva daninha dos japoneses
depois da guerra para impedir a erosão da terra e ela já está dominando
metade do país. Não adianta arrancar, cortar ou queimar. Ela simplesmente
continua crescendo. Desgraçada!
Pierce estava refletindo sobre o hábito engraçado de Hamilton, em
atribuir, característica humana às plantas, quando o velho lançou-lhe um olhar
furtivo e inesperado.
— Você me lembra muito mais essa erva daninha do que o pinheirinho. —
Seus olhos eram claros e serenos, deixando Pierce pouco à vontade. — Existe
algo de obstinado em você rapaz, bem lá no fundo, algo duro como aço. Você
faz o que tem que fazer e não se preocupa com o resto. Se quer saber, não me
incomodo com isso.

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A afirmação simples o pegou de surpresa. Por trás daquelas palavras


calmas e dos olhos inexpressivos, era possível notar quase uma aprovação e
Pierce sentiu a garganta apertada.
— Você sabe o que eu fazia antes de vir para cá? — Perguntou sem
pensar no que dizia.
— Acho que sim. Mas também acho que é assunto seu e que ninguém tem
nada a ver com isso.
Recomeçaram a caminhar. No topo da pequena colina, Hamilton olhou
para trás e riu.
— Você tem razão — disse. — É um lugar muito feio. É o que acontece
quando se deixa a terra agir sozinha.
— Devia ser pior quando seus antepassados moravam lá. Será que
chegaram a imaginar a vida como é agora?
— Provavelmente — Hamilton examinava novamente o horizonte à
procura de inexistentes nuvens de chuva. — A gente trabalha a terra, tira o
que pode dela e sabe que ela não se lembrará de você quando tiver morrido.
— Então, por que...
— A gente faz o que pode enquanto está aqui porque somos os únicos a
fazê-lo. Só isso! — Hamilton olhou para Pierce por um longo momento e um
leve sorriso surgiu em seus lábios. — Você está indo bem filho. Só falta
amadurecer mais um pouco.
Em seguida, começaram a descer a colina para voltar ao trabalho.

Capítulo XI

Christine ouviu passos. Estava deitada de olhos fechados sob uma árvore,
descansando um pouco. Tinha quase certeza de que era seu irmão, por isso
continuou como estava. Clay, se saíra muito bem na entrevista que havia feito,
no dia anterior para ingressar no seminário. Partiria dali a três semanas.
Se continuasse de olhos fechados, Clay pensaria que estava dormindo e
iria embora...
De repente deu um pulo, assustada, quando alguma coisa caiu em sua
barriga. Sentou-se e viu que eram morangos. O homem que estava ao seu
lado não era Clay, e sim, Pierce. Ele tirava as frutas do chapéu, que segurava
nas mãos e continuava jogando os morangos, delicadamente sobre ela.
Chris não reprimiu uma exclamação de alegria.
— Morangos! Onde os achou?
— Numa colina, lá adiante.
— Humm, que delícia! — Chris mordeu o primeiro morango. — Venha,
vamos guardar esses que você jogou.
Os dois pegaram os morangos do chão. Em seguida, Chris voltou a se
recostar no tronco da árvore e Pierce sentou-se a seu lado, com o chapéu
entre eles.

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Ela permaneceu em silêncio, com os olhos fechados, e de tempos em


tempos apanhava uma fruta do chapéu. Pierce também preferiu não iniciar
nenhuma conversa. Era bom ficar ali, só observando-a.
Como terminara de almoçar antes dos outros homens e devia esperá-los
para voltar ao trabalho, resolveu ir até a colina, lembrando-se do que Hamilton
dissera no dia anterior. Agora que via como Chris se deliciava com os
morangos silvestres, estava satisfeito com sua boa ideia.
Ele gostava de olhar para Chris. Durante todos aqueles dias não perdia a
oportunidade de observá-la andando de um lado para o outro de jeans e
camiseta, dando ordens aos empregados, dirigindo bem tanto a caminhonete
quanto o trator.
Ela nunca usava maquilagem e seu rosto tinha uma beleza saudável e
juvenil que o agradava muito. Reparou na respiração tranquila, nos lábios
carnudos ligeiramente entreabertos... Teve um desejo louco de beijá-la, de
acariciar-lhe os seios, de... Lutando para afastar a ideia, comentou:
— Nossa você gosta mesmo de morangos, hein?
— São deliciosos — respondeu Chris abrindo os olhos.
— Fico contente que você tenha gostado. Bem, agora que está de bom
humor, que tal me ensinar a dirigir aquele trator?
— Você deve achar que sou idiota Pierce.
— Mas qual é o problema? Se você me ensinar, posso ajudá-los ainda
mais!
— Muito obrigada, mas não podemos ficar pagando estragos toda vez que
você resolve "ajudar".
Pierce ficou ressentido. Pegou o maço de cigarros e ofereceu-o num gesto
instintivo, pois sabia que Christine não fumava. Ela recusou com a cabeça,
vendo-o acender um cigarro. Continuaram em silêncio.
Por que Chris não tinha confiança nele? É verdade que não tinha
experiência nenhuma em trabalho de agricultura, mas estava se esforçando
para aprender, droga!
— Não sei por que não quer me ensinar — reclamou ele, depois de alguns
minutos. — Só tem que me dizer quais os botões que devo apertar. Deve ser
fácil.
— Talvez tenha razão. Para uma pessoa de inteligência mediana é mesmo
fácil dirigir o trator...
Pierce ficou em pé, louco de raiva.
— Por que não me dá um tempo menina? Você me trata como se eu fosse
um débil mental! E só você me trata assim. Seu pai e eu nos damos muito
bem, acho que ele até gosta de mim...
— Então por que não lhe pede para ensiná-lo?
─ Eu não, não sou louco. — Ele riu e sentou-se de novo, com o humor
restabelecido.
— O problema é Clay — disse ela de repente.
— Clay? O que ele tem a ver com isso?
— Meu pai se liga muito nas coisas e nas pessoas. Ele é muito apegado a
Clay, que agora cresceu e vai embora para sempre. Você chegou no momento
certo, por isso meu pai se afeiçoou a você.
Pierce refletiu sobre o comentário. Seria verdade? Entretanto, preferiu
perguntar:

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— Por que você culpa Clay de tudo? O que ele lhe fez?
— Oh, nada, ele não me fez nada. — Chris ficou tão tensa que Pierce
percebeu. — Ele só está indo embora e me deixando responsável por tudo.
Passarei o resto da minha vida trancafiada nesta fazenda enquanto ele estará
livre para fazer o que quiser! — Chris suspirou e mudou de tom: — Esqueça.
Isso não é da sua conta.
— Escute menina, não seja tão dura com seu irmão. Clay tem o direito de
viver a vida dele.
— E eu, não tenho o direito de viver a minha? — retrucou furiosa. —
Ninguém nunca me perguntou se eu queria passar o resto da minha vida aqui!
Mas o pobrezinho do Clay, não, ele tem uma missão espiritual a cumprir...
Bem, eu também tinha a minha missão, que era sair deste inferno o mais
depressa possível!
— E o que a mantém presa, Chris?
— Você nunca entenderia. — Ela suspirou de novo. — É uma coisa de pai
para filho, sabe? Tem sido assim há mais de duzentos anos. É responsabilidade
de Clay tocar a fazenda, e como ele não quer o que vou fazer? Dizer adeus
para papai e sumir? Dizer para ele vender esta terra que nossos antepassados
lutaram tanto para conseguir? Entregá-la de novo para os índios?
— Acho que você está é com medo de assumir a responsabilidade —
retrucou Pierce, sem olhar para ela e sem se importar com sua agressividade.
— Nossa quem ouve pensa que você sabe muito bem o que significa esta
palavra!
— Acho que aprendi um pouco sobre responsabilidade nestas duas últimas
semanas...
Chris ficou alguns instantes em silêncio, depois voltou a falar:
— Nem sei por que se interessa por um assunto que não vai afetá-lo em
nada. Você só precisa sorrir para Clay e bajular meu pai para receber direitinho
seu salário no fim da semana.
— Sabe o que eu acho? — Pierce estava vermelho de raiva. — Que você
não dá valor à família que tem, ouviu? Ela pode não ser perfeita, mas e daí?
Devia tentar preservá-la, pois é a única que tem!
Chris observou-o, impressionada com o tom apaixonado da voz dele.
— E fique sabendo que não preciso ficar bajulando ninguém! Seu pai é
uma pessoa agradável e gosto dele. Acho que Hamilton nunca fez nada para
magoar você. Vou lhe dizer mais uma coisa, seu pai trabalha muito para a
idade que tem. O cansaço já é visível em seu rosto e nos movimentos do
corpo. Talvez você devesse prestar mais atenção nisso, antes de se negar a
me ensinar a dirigir o trator, o que ele faz com bastante dificuldade... Inferno!
— Pierce jogou o cigarro fora. — Acho que sou mesmo um idiota! Não sei por
que me preocupo com uma pessoa egoísta como você!
Christine não prestou atenção nas últimas palavras. Estava fascinada com
Pierce, intrigada com essa nova faceta de sua personalidade. A maior parte do
tempo ele parecia um ator, o manequim mais superficial do mundo, mas de
repente falava com tanta paixão, com tanto ímpeto, demonstrando ser uma
pessoa de verdade, cheio de convicções profundas.
— Sabe de uma coisa Pierce? Às vezes acho que você deve ser uma
pessoa boa.
— Quem, eu?

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Ele nunca esperaria por tal comentário. Ficou sem graça e ao mesmo
tempo satisfeito. Era agradável ouvir aquilo de Christine, que só lhe dirigia
palavras hostis.
Sem jeito, estendeu-se no chão e olhou para o céu. Hamilton tinha razão,
logo começaria a chover. Nuvens brancas e sólidas se formavam no céu.
Chris pensava em como Pierce estava diferente desde a manhã em que
ela e Clay o encontraram tomando café. Seu rosto estava mais queimado e o
corpo parecia ainda mais forte e sensual... Será que ainda desejava fazer amor
com ela?
— Você já esteve em Veneza? — Perguntou de repente, tentando fugir das
fantasias que ameaçavam dominá-la.
— Sim, há mais ou menos um ano.
— E como é?
— Suja.
Chris sorriu. Nada romântico!
— E Las Vegas? Conhece?
— Sim, é uma cidade muito estranha... Não gosto nem um pouco de lá.
— Você não gosta muito de falar, hein?
Como ele poderia explicar que todas aquelas experiências por que passara
antes de chegar à fazenda pareciam agora tão distantes?
— Às vezes tenho a impressão de que tudo o que vivi antes de vir para cá
aconteceu com outra pessoa — disse afinal.
— Por que você não roubou a caminhonete naquela noite? — Perguntou
Chris de repente.
— Porque sou covarde. — Ele não a encarou. Não tinha a menor vontade
de enfrentar ironias.
Chris observou-o atentamente. Pierce estava com a expressão séria e
seus olhos pareciam voltados para o passado, sem gostar do que viam.
— Mas o que aconteceu com você, afinal? — Perguntou curiosa. — Está
fugindo da polícia? É por isso que não vai embora daqui?
— Ei, quem pensa que sou? — Pierce sorriu, divertido. — Está me achando
parecido com algum personagem de filme de cowboy?
Christine corou, embaraçada. Não conseguia deixar de fantasiar quando
pensava na vida de Pierce.
— Não, não é da polícia que estou fugindo. Se fosse, eu estaria até
tranquilo. — Pierce decidiu ser sincero. Na verdade, sentia-se completamente
incapaz de mentir para ela. — Estou me escondendo de um homem. Um
chefão da Máfia. Ele não gostou muito do jeito como eu ganhava a vida...
Ainda mais sabendo que a esposa dele me contratou. Telefonei para alguns
conhecidos e me aconselharam a ficar o mais longe possível dos capangas
desse cara. ─ Olhou para Christine um pouco ansioso, mas não percebeu nada
revelador na expressão dela. — Mas não se preocupe. Ele não virá me procurar
aqui. Não sou importante o suficiente para que ele mande seus homens me
procurarem no interior do Alabama. Daqui a um mês ou dois ele se esquecerá
de mim e então poderei ir embora.
Christine não sabia o que dizer ou pensar. Pierce vivia uma vida de cão,
sem família, vendendo o corpo como uma prostituta, e agora perseguido por
um chefe da Máfia... Como devia ser solitário e indefeso!
— Para onde vai quando for embora daqui? — Perguntou afinal.

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— Não sei. Aquela estrada me levará para algum lugar.


Ele fechou os olhos e Christine continuou em silêncio, observando-o.
Parecia invadido por uma sensação de paz e ela pensou que tinha adormecido.
Mas não. Acostumado às mulheres, Pierce sentia que Chris se aproximara
mais, sentia sua respiração bem perto e a proximidade tentadora de seu corpo
sensual... Foi difícil afastar o desejo de abraçá-la, de possuí-la ali mesmo, sob
as árvores...
Abriu os olhos e sorriu.
— E o que me diz daquelas aulas com o trator?
— Só ensino com uma condição. — Ele aguardou, interrogando com os
olhos. — Que você traga mais morangos. Quero fazer uma torta.
— Combinado — disse ele divertido, estendendo a mão. Depois de um
segundo, Chris estendeu a sua e os dois selaram seu primeiro compromisso.

Capítulo XII

Christine começou a ensinar Pierce a dirigir o trator e ele se acostumou ao


tom de sua voz irritada, a suas instruções dadas aos gritos, a suas broncas.
Esforçava-se para aprender e não era fácil. O trabalho era duro e exaustivo. A
cabina fechada não impedia a poeira de entrar, o ar condicionado não passava
de uma compensação inútil para o sol refletido nos vidros, e quem teria tempo
de ouvir rádio quando manter a imensa máquina em linha reta consumia toda
a atenção?
Todos se desdobravam para acabarem as tarefas, competindo com a
tempestade. Não sobrava mais tempo para brincadeiras de mau gosto. Clay e
Hamilton quase sempre saíam após o jantar para plantar sob os faróis do
trator, Pierce os acompanhava. Trabalhavam oito, dez horas por dia e caíam
na cama exaustos.
Os dias passavam e Pierce podia sentir as mudanças que se operavam em
si mesmo. Gostava de seu corpo mais forte e atlético, da textura e da cor mais
escura da pele. Os calos das mãos eram medalhas de honra ganhas a duras
penas. Antes de ir para a fazenda, nunca tinha se preocupado em assistir ao
nascer do sol. Agora, não importava o que acontecesse no futuro, tinha certeza
de que jamais perderia esse espetáculo diário. Gostava do cheiro da terra ao
amanhecer, ainda úmida pelo orvalho da noite. Gostava da calma que envolvia
tudo com o crepúsculo. Gostava de aprender a nomear os pássaros por seu
canto e as árvores por suas folhas. Não sabia para que serviriam as novas
informações, mas gostava de aprender.
O sol continuava impiedoso, o gosto de poeira na boca mais forte e os
insetos torturantes. Uma vez o trator bateu num vespeiro e ele não escapou à
fúria das vespas. Hamilton colocou um pedaço de fumo mastigado sobre as
picadas e, embora Pierce desconfiasse de que se tratava de uma brincadeira, o
emplastro fez com que o ardor passasse. Outro homem começou a inchar
como um balão e teve que ser mandado para casa.

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Passaram três dias com pouca mão de obra e todos tiveram que trabalhar
duas vezes mais. Pierce, porém, estava cada vez mais acostumado ao calor e a
monotonia não era tão aborrecida quando entendia o que estava fazendo. Nem
se importava mais por ficar sujo, pois sabia como era bom tomar uma ducha à
noite. A vida se tornava cada vez mais suportável.
Agora tinham três trabalhadores fixos por dias, Benson, Jacobs e Jordan.
Nenhum deles o tratava com simpatia, mas Jordan era um criador de casos.
Bebia no serviço e, às vezes, já começava o dia com uma garrafa na mão.
Pierce se perguntava se Hamilton sabia, mas achava que o fato de o patrão
saber não faria diferença alguma. Tinha ouvido os homens comentarem sobre
a esposa e os filhos de Jordan e, aparentemente, existia um consenso de que
se podia tolerar tudo de um homem contanto que estivesse tentando sustentar
a família. Pierce tratava de ficar o mais distante possível de Jordan e ignorava
o que acontecia em volta dele.
Era meio dia. Pierce trabalhava com Hamilton, Christine e Jordan no
campo oeste enquanto Clay acompanhava os outros homens no campo sul.
Houve um atraso na volta ao trabalho porque um parafuso tinha se quebrado
no fertilizador e a caixa de ferramentas ficara com Clay. Pierce não podia fazer
nada, além de descansar um pouco e fumar mais um cigarro enquanto
Hamilton pegava a caminhonete e ia buscar o que precisavam.
Christine recolhia as sobras do almoço. Pelo canto dos olhos Pierce notou
Jordan aproximar-se dela e previu uma situação constrangedora. Acendeu o
cigarro, observando os dois com cuidado. Quando Jordan colocou a mão no
ombro dela, sentiu o estômago embrulhado e disse a si mesmo para não
interferir. Chris arrancou a mão do homem com um gesto irritado, só para que
ele a colocasse com insinuante intimidade em sua cintura. Ela usava a camisa
amarrada embaixo dos seios e aqueles dedos sujos começaram a acariciar a
pele macia. Pierce sentiu o coração bater acelerado e tentou desviar o rosto
para outro lado.
Ouviu a voz de Chris era rouca e irritada, e uma risada cínica de Jordan.
Indeciso, Pierce deu uns passos na direção deles. Talvez Jordan tivesse o bom
senso de largá-la se soubesse que estava sendo observado. Mas, e se ele não
a deixasse? O que deveria fazer?
Sentiu a garganta seca, vendo Jordan segurá-la pelos ombros, puxando-a
para mais perto. Christine o empurrava com o rosto vermelho de raiva e os
lábios comprimidos. Pierce teve a impressão de que seu peito ia estourar de
angústia. O que aquele desgraçado ia fazer... Violentá-la ali mesmo, na sua
frente?
"Maldito! Não fique aí parado! Faça alguma coisa!", pensou sentindo o
suor ensopar seu corpo inteiro. Não sabia como agir. Christine saberia se virar.
Afinal, o que acontecia com aquelas pessoas não era da sua conta. Por que se
envolver nas brigas deles? Era pago só para fazer o que lhe ordenavam...
Jordan começou a forçar o joelho entre as pernas dela e Christine deu um
grito abafado. Pierce não conseguia se mexer, sentindo os músculos tensos e o
estômago mais embrulhado ainda.
Finalmente jogou o cigarro fora e deu um passo decidido. Mas seu
momento de coragem aconteceu tarde demais. Ouviu o som da caminhonete
ao mesmo tempo que Jordan. Quando Hamilton saltou do veículo e bateu a

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

porta, Pierce deu as costas, incapaz de assistir ao desenrolar da cena. Seu


rosto ardia.
Não ouviu nenhuma discussão e tentou relaxar. Jordan não estava tão
bêbado que não percebesse o momento de recuar. Pierce acendeu outro
cigarro que, na primeira tragada, deixou-lhe um gosto ardido na boca.
Escutou os passos de Hamilton, mas não olhou para trás até o homem
parar a seu lado. A expressão do velho era inescrutável.
— O que foi isso?
— Isso o quê? — Replicou Pierce com um nó na garganta.
A raiva que turvou os olhos de Walsh deixou-o inesperadamente abalado.
— Você sabe muito bem o quê! Estava parado aqui! Por que não fez nada?
Até aquele momento ele não tinha percebido como passara a depender da
aprovação do velho Hamilton. A voz cheia de raiva foi como um soco preciso e
dolorido, bem na boca do estômago.
"Droga, eu ia fazer alguma coisa!", pensou, na defensiva. "Eu faria
alguma coisa se você não tivesse chegado".
Faria mesmo? Aquele momento de covarde hesitação lhe custara mais do
que o respeito de Hamilton. Custara o respeito de si mesmo. A voz do velho
tinha sido apenas um eco de sua própria consciência.
— Inferno, o que acontece aqui fora do meu horário de trabalho não é da
minha conta! — Explodiu afinal, encolhendo os ombros. — E sua filha pode se
virar sozinha!
No entanto, bem no fundo, uma aguilhoada continuava a torturá-lo. Sem
nenhum aviso, lembrou Chris dizendo: "Às vezes acho que você deve ser uma
pessoa boa"...
Pierce desviou o olhar daquele rosto acusador. Estava furioso consigo
mesmo, com Hamilton, com Christine, por tê-lo colocado naquela situação.
Droga, o que esperavam dele afinal? Estava tentando, não estava?
Desesperado, tentou se ater às realizações que conseguira nas últimas
semanas. Chegara à fazenda apenas com a roupa do corpo e assim mesmo
tinha conseguido dar um jeito de ganhar a vida. Expulso do mundo que
conhecia, sobrevivera, apesar de tudo. Era inteligente, alto, forte e bonito.
Conhecia segredos do solo e sabia dirigir um trator, quando há um mês nem
imaginava para que servia um fertilizador. Estava indo muito bem.
Porém, ao ver a raiva dos olhos de Hamilton se transformando lentamente
em decepção, a única lembrança que lhe veio à cabeça foi a de uma mulher na
cabina de um iate, numa noite que julgava ter esquecido. Compreendeu que
nada tinha mudado, a não ser o cenário. Ficou parado, olhando para o velho
concluindo que a imagem que descobria de si mesmo era a pior coisa que
encarava em toda a sua vida.
De repente, o desgosto que enrijecia os lábios de Hamilton, alterou-se
sutilmente e algo próximo à compaixão suavizou-lhe a expressão.
Desesperado, Pierce deu-se conta de que a compreensão era ainda mais difícil
de aceitar do que a raiva.
— Vamos trabalhar — disse o pai de Christine apontando o trator. —
Estamos perdendo tempo.
Pierce ficou parado por um momento, sentindo-se cansado, vazio e
totalmente desorientado. "Não existe nada que valha realmente a pena além
do seu corpo bonito, não é?", soava uma voz insistente no fundo da memória.

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Capítulo XIII

— Marshall Wilson esteve aqui esta tarde — disse Christine. Serviu uma
xícara de café para seu pai, pegou outra e se sentou. — Queria saber se
podemos comprar seu trator.
Era hora do jantar. Pierce tinha comido sem apetite e mal prestava
atenção na conversa. Evitava os olhos de Christine, perguntando-se se ela o
culpava pelo que acontecera com Jordan naquela tarde. Ela, porém, agia como
se nem se lembrasse do incidente. Se tinha havido alguma falha de sua parte,
ela nem notara. Chris não esperava nada dele.
Talvez fosse justamente isso que mais incomodasse Pierce. Chris não
esperava nada de melhor dele, ninguém esperava. A não ser ele próprio. Sim,
por alguma estranha razão, passara a exigir de si mesmo um comportamento
diferente, o que era uma loucura. O que acontecia naquele lugar não era de
sua conta!
— O trator é novo, Wilson nem pagou um ano de prestações —
resmungou Hamilton. — O que ele está querendo?
— Ele não tem mais condições de arcar com o trator — disse Christine
calmamente.
— O que quer dizer com isso? Ele vai descobrir que não terá condições de
arcar com mais nada caso se livre do trator. Como Wilson pensa que terá uma
boa colheita sem...
— Não terão colheita este ano — interrompeu Chris, com voz ainda calma.
Por um momento Hamilton limitou-se a sustentar o olhar da filha. Porém,
seu rosto começou a ficar vermelho, reprimindo emoções intensas que
deixaram Pierce desconcertado. Como sempre, naquelas discussões em
família, ele sentia-se ignorado e confuso. Desta vez estava feliz por ser assim.
— Está acontecendo o mesmo com muita gente — intercedeu Clay. Sua
voz estava calma e gentil como sempre, não merecendo o olhar de acusação
que o pai lhe dirigiu. — As pessoas estão vendendo as propriedades, indo
embora, fazendo o que podem. O senhor sabe disso papai. Pelo menos seis
vizinhos nossos estão lutando com dificuldades, sem saber a quem recorrer no
próximo...
— Pelo menos estão lutando! — Cortou Hamilton, e o rancor de seu olhar
foi canalizado para Clay, com um significado muito mais forte do que apenas
defender o empenho dos vizinhos. — Eles não saem correndo quando as coisas
começam a piorar ou porque têm coisa melhor a fazer na vida!
Um rubor começou a tingir o rosto de Clay e Hamilton percebeu o que
tinha dito. Houve um momento desconfortável e tenso, em seguida o velho se
levantou da mesa.
— Idiotas! — Resmungou se afastando. — O que Wilson pensa que vai
fazer sem as máquinas?

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Ouviram a porta da frente bater e o silêncio tornou-se tão pesado que


parecia palpável. Christine olhou para Clay com uma expressão de vingança. O
irmão recostou-se na cadeira e passou os dedos pelos cabelos. Foi um gesto de
desalento, seguido de um suspiro pesado.
— Talvez você esteja certo, Clay — disse ela finalmente. — Vá embora
enquanto há tempo. Afinal de contas, por que passar tanto tempo se
preocupando com quem vai cuidar da fazenda se no ano que vem
provavelmente não teremos fazenda?
— Vou verificar aquele parafuso solto. — Pierce levantou-se ao sentir a
tensão beirar o insuportável. — Não estava bem apertado esta tarde.
Nenhum dos dois irmãos se mexeu ou falou durante longo tempo.
Christine sabia que devia tirar a mesa, mas não encontrava energia para tanto.
Clay sabia que devia ajudá-la, mas continuou imóvel.
— Como tem coragem de fazer isso, Clay? Como pode ver papai se
destruindo desse jeito e nem se importar?
— Não me importar? Claro que me importo! Mas o que posso fazer? Pode
me responder Chris? O que você acha que posso fazer?
— Qualquer coisa que não fosse fugir — retrucou a irmã irritada,
começando a empilhar a louça.
— Não estou fugindo de nada! Não consegue enxergar que estou
caminhando para algo muito sério?
— Tem certeza? Tem certeza absoluta?
— Não, não tenho certeza de nada! — Clay começou a recolher as xícaras
e, com esforço olhou para Christine. — Tenho dúvidas todos os dias... Sobre
mim mesmo, sobre minha vocação, sobre se vou fazer o certo. Você e eu...
Somos tão diferentes, Chris! — Pousou os olhos na mesa por um breve
instante, depois começou a recolher os pires. — Você sempre soube
exatamente o que queria e usou todas as suas forças para conseguir, mas eu
não. Eu só fiquei procurando caminhos, abrindo várias portas erradas,
tentando várias opções... Fazendo o melhor que posso. — Tornou a fitá-la. —
Talvez eu nunca tenha certeza. Talvez seja esta a minha cruz. Porém, sei que
fiz promessas... A mim e a Deus e devo fazer o máximo para cumpri-las.
Christine sentiu uma ponta de ternura. Amava Clay e no fundo, queria
compreendê-lo. Mas resistiu ao sentimento. Promessas! O que ele entendia de
promessas? Porque se importaria com seus desejos, suas necessidades, suas
desculpas, se ninguém agia assim com ela?
— Você nunca gostou de enfrentar conflitos Clay — comentou com
simplicidade, carregando a louça para a pia. — Nunca gostou que as coisas
ficassem mais complicadas e eu sempre tentei facilitar sua vida. — Encolheu os
ombros e abriu a torneira. — Acho que o erro foi meu, porque agora você é um
adulto e tudo continua igual. Acho que nenhum de nós tem muito do que se
orgulhar, não é?
Clay estremeceu. Achava que estava imune às agressões de Christine e à
culpa que ela tentava lhe transmitir, mas aquele comentário doeu mais do que
qualquer outro que ela já tinha feito. Talvez porque fosse verdade.
Não sabia o que responder ou como se defender. Levantou-se para ajudá-
la a arrumar a cozinha, mas aquelas palavras e suas próprias incertezas
continuariam a atormentá-lo pelo resto da noite.

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Pierce não foi verificar o parafuso. Sem saber por que, de repente se
encontrou olhando o imenso tronco de carvalho caído. Não tinham feito muitos
progressos nas últimas semanas. As raízes eram um amontoado de nós
firmemente enterrados, embora muita terra já tivesse sido tirada em volta.
Uma fenda tinha sido aberta no tronco e lascas de madeira estavam
espalhadas por perto como dentes caídos. O tronco parecia estar rindo para
Pierce, zombando dele, dizendo que ficaria ali até depois que ele tivesse
partido... Talvez até muito depois que todos tivessem partido.
Toda a raiva e o desgosto acumulados o dia inteiro, de repente, se
canalizaram para algo concreto, aproximando-se, Pierce arrancou o machado
da madeira. Os primeiros golpes foram dados cegamente, com a única
intenção de descarregar energia. Era por isso que Hamilton golpeava a
madeira, não era? Era por isso que vinha todos os dias atacar aquele cadáver
inútil da natureza... Para afastar as coisas ruins, para sublimar a raiva, para
esquecer, mesmo que por pouco tempo, todas as coisas que não podia mudar
enquanto mudava a cada golpe a forma da árvore morta.
Mas não funcionou. Os músculos enrijecidos e o suor escorrendo só lhe
aumentaram a frustração. Redobrou a energia em cada golpe, mas o tronco
teimoso se recusava a ceder. Parecia que, quanto mais forte o golpeava, mais
a madeira endurecia e sempre seria assim. Nada que nenhum deles fizesse
mudaria as coisas. Bateu o machado vezes seguidas, e no último golpe
vigoroso o cabo quebrou em suas mãos.
Pierce praguejou com violência e jogou o machado no chão.
Ficou imóvel por um momento, olhando a ferramenta com a respiração
alterada. Depois se afastou.
Deu a volta na casa e tinha subido o primeiro degrau para entrar quando
viu uma sombra na varanda e hesitou. Hamilton estava debruçado sobre a
grade, com a cabeça abaixada e os ombros caídos. Pierce nunca o tinha visto
daquele jeito, fraco, abatido, derrotado. Viu a mão trêmula pegar um vidrinho
no bolso e tirar um comprimido. Ficou alarmado e seu desejo era se
aproximar, agarrá-lo pelo braço e perguntar o que estava acontecendo, mas o
medo o mantinha grudado no chão.
Hamilton colocou o comprimido na boca e Pierce continuou imóvel, mal
respirando. O velho estava doente? Era como dizer que o sol era azul. Era
incompreensível! Lembrou-se da fadiga do rosto do velho, que parecia ter
piorado nos últimos dias, a respiração entrecortada, os longos silêncios às
vezes fora de hora. Recusou-se a lembrar de mais coisas, recusou-se a
acreditar. Devia ser uma dor de cabeça. Todo mundo tem dor de cabeça. As
pessoas têm o costume de tomar pílulas como chupam balas, aquilo não
significava nada. Porém, nunca tinha visto Hamilton Walsh tomar
medicamentos, e isso significava alguma coisa. E o deixava apavorado.
Pierce subiu os degraus lentamente, não tentando mais disfarçar sua
presença, e viu Hamilton endireitar os ombros.
Ficaram ao lado da grade em silêncio, Hamilton ereto e com a respiração
alterada e ele apertando a madeira, tentando dominar o pânico. O velho
deixou o vidro sobre a grade e Pierce fingiu não vê-lo.
Finalmente o fazendeiro inclinou a cabeça na direção de onde Pierce tinha
vindo.
— Fez você se sentir melhor, não fez filho?

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Pierce levou alguns instantes para compreender que ele estava se


referindo a seu encontro com a árvore. A voz de Hamilton parecia normal.
Claro que estava tudo bem!
— Não. Acabou me deixando mais louco da vida! Quebrei o cabo do
machado.
— Bem, o cabo de um machado não vai levá-lo à falência. — Hamilton riu
e Pierce relaxou um pouco. — E valeu a pena porque aprendeu alguma coisa.
— Aprendi o quê?
— Que bater nas coisas nunca resolve nada.
— Droga! Isso eu já sabia! Então por que você vive batendo naquele
tronco? Se não é porque se sente melhor...
— Ora, filho, se eu contar perde a graça! — O sorriso de Hamilton foi
enigmático.
Mas não era aquele tipo de mistério que intrigava Pierce no momento. Não
conseguia deixar de olhar para Hamilton com certa desconfiança, não
conseguia afastar a sensação de que algo não estava bem.
— Antigamente os ladrões de cavalos eram enforcados — disse o velho,
depois de algum tempo — Sabe por quê?
Pierce tossiu para limpar a garganta e tentou se descontrair. Tudo estava
bem.
— Não. Por quê?
— Antigamente o cavalo era a vida de um homem. O animal o levava
através dos desertos, dos rios, das florestas, para longe dos índios e dos
criminosos. Puxava o arado, transportava lenha. E, se a situação ficasse
péssima, o homem podia comer o cavalo. Se alguém roubasse o animal, era o
mesmo que condenar o homem à morte. — Hamilton fez uma breve pausa. —
Tudo era mais simples naquela época, mas não muito diferente do que é hoje.
Um homem não é nada sem suas máquinas. — Olhou para Pierce. — Lembre-
se sempre disso filho.
Pierce não sabia o que dizer. Pigarreou de novo incomodado, e desviou o
rosto.
O silêncio se prolongou, tornando-se descontraído. Depois de algum
tempo Hamilton acendeu um cigarro e Pierce não lançou mais olhares
disfarçados para o vidro de comprimidos. Tudo estava bem. Não precisava ficar
preocupado.
— Há dois séculos aqui só havia mata cerrada — continuou o velho, com
os olhos fixos na paisagem. — Mato, cobras, mosquitos e índios. Tivemos
nossas batalhas com os índios também. Os Walsh lutaram por esta terra,
cultivaram-na e tiraram dela seu sustento. Plantaram milho e trigo, tiveram
filhos, enterraram seus mortos e, quando incendiaram seu barracão, não
desistiram e construíram outro. O algodão era como ouro naquela época e
todos acreditavam que ficariam ricos. Tudo isso, até onde a vista pode
alcançar, ficou branco como que coberto de neve. — Hamilton deu uma
tragada no cigarro.
— E então veio à guerra e o algodão deixou de ter valor. Os Walsh
voltaram à estaca zero de novo. Recomeçaram a trabalhar com uma mula e
um arado, mas continuaram lutando.
Pierce encostou-se num dos postes da varanda. Na luz difusa do
crepúsculo, achou que era quase capaz de ver as milhas e milhas de arbustos

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cobertos de branco e um homem com uma mula e um arado. Gostava de


pensar que podia ver isso.
— Então aconteceu a Primeira Guerra Mundial, os filhos foram para a
Europa e nunca mais retornaram. É duro trabalhar a terra sem filhos. Chegou
a Depressão e os tempos eram difíceis. A única coisa que se tinha para comer
era o que se plantava. Meu velho pai chegou a pensar que não conseguiriam
sobreviver, mas conseguimos. Depois veio a Segunda Guerra e o amendoim.
— Hamilton olhou para Pierce e sorriu. — Sim, amendoim! Desta vez
pensamos mesmo que faríamos fortuna! Só que não se pode plantar
amendoins para sempre, pois esgota e mata a terra. Agora plantamos soja. —
Levantou os olhos para o horizonte distante. — Mata, índios, pragas, fome.
Sangue e fogo. Milho, trigo, algodão, amendoim. E agora, soja. Esta terra viu
muitas mudanças, mas uma coisa permaneceu igual, nós sempre estivemos
aqui! Sofremos dificuldades, mas resistimos com mais firmeza. Sobreviver era
nossa única preocupação.
— Você fala como se tivesse visto tudo — disse Pierce com delicadeza,
com medo de quebrar o encanto da história. — Como se tivesse visto os
índios, o algodão... — Meneou a cabeça, não encontrando palavras para
expressar o que sentia.
— Eu estava aqui — replicou Hamilton com simplicidade. — Como estarei
aqui quando não tiver mais soja e outra coisa qualquer esteja crescendo nos
campos, quando outro velho estiver aqui contando a alguém como eram os
velhos tempos. Está no sangue, só isso!
Pierce tentou entender, mas não conseguiu. Que tipo de homens eram
aqueles, capazes de doar suas vidas inteiras ao trabalho duro e a tempos
difíceis e não se arrependerem nem um minuto? Sangue, suor e trabalho
árduo... A terra lhes tirava tudo e não oferecia nada em troca. Não, Pierce
realmente não entendia aquela gente, suas raízes, sua lealdade, sua
dedicação.
— Bando de loucos, se quer saber minha opinião. — Pierce expressou seus
pensamentos em voz alta. Ser escalpelado pelos índios, mordido por cobras,
trabalhar o dia inteiro sob o sol escaldante com uma mula! Se fosse comigo,
procuraria outro jeito de ganhar a vida, pode apostar que sim!
— Talvez sim, talvez não. — Hamilton jogou o cigarro fora e olhou para
Pierce. — Vou lhe dizer uma coisa, filho, é duro trabalhar a terra. Ela tira sua
juventude, sua saúde, seu dinheiro, seu suor. Acaba com seu orgulho e
consome suas esperanças, mas não existe outro lugar no mundo em que o
homem chegue mais perto de descobrir por que vive.
— Sim. — Pierce pensava em si mesmo e nas coisas que aprendera desde
que chegara à fazenda, que talvez fosse melhor não ter aprendido. Lembrou-
se de Jordan e de sua própria covardia. — Acho que é a mais pura verdade.
De repente teve certeza de que Hamilton também estava se lembrando da
cena no campo e ficou embaraçado.
— Às vezes um homem tem que parar e dar uma boa olhada no que é
antes de ver o que pode ser — disse o velho com tranquilidade. Pierce fitou-o,
atônito, mas não viu nenhuma acusação no rosto dele. Era apenas a
constatação de um fato. Hamilton encolheu os ombros e fez menção de entrar
na casa. — Acho que faz parte do processo de amadurecimento. É melhor
irmos deitar agora. Amanhã teremos um longo dia.

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Pierce ouviu a porta fechar e continuou parado, apreciando a calma da


noite. A compreensão do outro homem era como uma bênção que o fazia
sentir-se quase bem consigo mesmo outra vez. Era uma estupidez, claro! Não
tinha importância o que um velho fazendeiro pensava a seu respeito. Não
devia fazer a menor diferença... Mas fazia, naquela noite principalmente.
Ia entrar também, mas seus olhos encontraram o vidrinho de
comprimidos ainda sobre a grade da varanda. Desejou ignorá-lo, ir para a
cama e nunca mais pensar nele, mas não conseguiu. Odiando-se por ser tão
curioso, pegou o vidro. Estava vazio. Virou-o cuidadosamente e leu o rótulo
sob a luz fraca da janela mais próxima. "Nitroprussinato de sódio. Um
comprimido em caso de dor".
Apertou o vidro com raiva. Sabia que nitroprussinato era para o coração.
Conhecera um homem que tomava esse medicamento... Ele não vivera seis
meses depois de descobrir que estava doente.
Pierce sentiu um nó na garganta e a cabeça doendo. Desviou o olhar para
a porta que se abria e quis dizer a Hamilton que tinha voltado tarde demais.
— O que há de errado com você? — Perguntou num impulso.
— Coração.
Percebeu que tinha alimentado uma esperança louca de que o velho
desmentisse o que acabara de descobrir, mas agora não havia mais como se
iludir. Perguntou-se se Christine e Clay sabiam. Não, claro que não sabiam. Se
soubessem, não estariam lhe dando desgosto. Clay não estaria indo para o
seminário e Chris não...
Droga! Pierce quase se sentia mal. Hamilton Walsh não era um homem,
era um símbolo. Tão permanente quanto às árvores, tão permanente quanto a
terra, tão constante quanto o sol. Seu rosto não podia se crispar de dor, suas
pálpebras não podiam pesar de fraqueza. Ele tinha que continuar, como seus
ancestrais, dia a dia, estação a estação.
Pierce respirou fundo e apertou mais o vidro de comprimidos. Por que ele
mantinha a doença em segredo? Por que trabalhava tanto ao invés de se
poupar um pouco e se cuidar?
— Seus filhos não sabem — foi à única coisa que conseguiu dizer, abatido,
em meio às emoções confusas que o dominavam.
— Não.
— Por que não? São seus filhos e, pelo amor de Deus, têm o direito de
saber! — Pierce teve a impressão de ver um leve sorriso nos lábios de
Hamilton.
— O que você acha que eles poderiam fazer?
"Alguma coisa. Eles podem fazer alguma coisa... Não, ninguém pode fazer
nada." Pierce abaixou a cabeça.
— Pois é — Hamilton olhou o vidro na mão dele. — Acho que é isso o que
chamam de questão de honra. Vai contar a eles filho?
"Droga" pensou Pierce. "Não quero essa carga! Não quero saber da
doença!" Não era de sua conta, Pierce Lanson não podia se envolver nos
problemas particulares daquela gente... Não, precisava contar para Chris ou
para Clay. Os filhos tinham o direito de saber. Alguém tinha que lidar com
aquela situação.
Mas Hamilton Walsh não queria que ninguém soubesse. Era uma questão
de honra...

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— Não sou eu que devo contar a eles.


O velho assentiu com um movimento quase imperceptível de cabeça e
voltou para dentro sem mais palavras.
Depois de um longo tempo, Pierce foi até a cozinha, jogou o vidro na
lixeira e colocou alguns guardanapos de papel em cima para escondê-los.
Odiou sua atitude e os motivos que o levaram a tomá-la. Agora o segredo era
seu, responsabilidade sua.
Foi para a varanda outra vez. Ficou muito tempo sentado num degrau,
fumando, pensando, sentindo-se mais velho do que jamais se sentira em sua
vida.

Capítulo XIV

Mais uma semana se passou, e, conforme se aproximava o dia da partida


de Clay, a tensão na casa aumentava. Hamilton teve a ideia de dar uma festa
de despedida e Pierce tentava imaginar que tipo de festas as pessoas
promoviam naquela região.
O quarto em que Pierce dormia era, na verdade, o sótão da casa, baixo,
estreito e pouco confortável. Era muito abafado e, mesmo com a janela aberta,
era sempre muito quente à noite.
Mas não era pelo calor que ele não conseguia dormir. Teve um sonho
erótico com Christine e acordou numa situação embaraçosa que não ocorria
desde seus treze anos. Tinha certeza de que levaria muito tempo para pegar
no sono outra vez.
Jogou água fria no corpo molhado de suor e enxugou-se vigorosamente.
Vestiu o jeans e desceu para a cozinha.
Na verdade, não devia ficar surpreso. Quando um homem ficava muito
tempo sem contato com uma mulher era de se esperar que... Pierce meneou a
cabeça, decidido a afastar a lembrança do sonho.
Abriu a porta da geladeira, viu um pedaço de torta de morangos e levou-o
para a mesa. Pegou um garfo, encheu um copo com leite e se sentou. Não se
lembrava de já ter morado em algum lugar onde se sentisse à vontade a ponto
de assaltar a geladeira no meio da noite. Mas aquela cozinha o convidava a
fazer isso.
A torta tinha sido feita com os últimos morangos que conseguira achar.
Pierce cumprira sua promessa, trazendo um cesto cheio todos os dias. Tinham
comido tortas, bolos e saladas de frutas. Chris e Mary passaram um dia inteiro
cozinhando morangos para compotas e geleias e a casa ficou com o cheiro da
fruta quase uma semana. Parte dos morangos tinha sido acondicionados em
recipientes especiais e colocados no freezer. Às vezes Pierce sorria ao pensar
que Chris teria morangos colhidos por ele durante o ano inteiro, até muito
depois que ele tivesse partido. Alguma coisa dele ficaria ali, e tentava imaginar
se Chris pensaria nisso mais tarde.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Ouviu passos e não precisou virar a cabeça para saber quem entrava na
cozinha. Chris não usava perfume, mas tinha uma fragrância única, como a do
ar fresco e das flores em botão. Pierce sentiu aquele perfume como uma
promessa, e por um instante seu coração bateu mais depressa.
— O que está fazendo acordado? — Ela hesitou parada na porta, e Pierce
virou-se. Chris usava um robe de algodão até a altura dos tornozelos e uma
camisola florida por baixo.
— É o último pedaço — convidou ele, apontando a torta com o garfo. —
Quer dividi-lo comigo?
— O mundo dá muitas voltas, não é? — Chris fitou-o com um sorriso. — A
última coisa que decidimos roubar juntos no meio da noite foi uma
caminhonete. — Ao entrar na cozinha, o robe marcou-lhe ligeiramente os
quadris. Seus cabelos estavam soltos e Pierce teve uma súbita visão dela
deitada, os fios sedosos espalhados sobre o travesseiro...
Não conseguiu refrear um calor subindo-lhe pelas costas. Era difícil
prestar atenção na torta, mas ele conseguiu dar um sorriso de aparente
indiferença.
— Está vendo o que a comida de uma mulher é capaz de fazer por um
homem? Você me recuperou totalmente. — Pierce comeu outro pedaço.
— Até ir para a universidade, só eu cozinhava aqui. — Chris foi até a
janela e Pierce fitou-a. Era impossível tirar os olhos dela. — Mas depois papai e
Clay foram obrigados a contratar Mary, senão morreriam de fome. — Ela riu.
— Você acredita que quando eu voltei, queriam despedi-la? Eles não viam por
que eu não poderia cuidar dos negócios, trabalhar no campo e também limpar
a casa e cozinhar. — Encolheu os ombros. — A mulher sempre acaba
sobrecarregada.
Quando duas pessoas se encontram numa cozinha no meio da noite é
inevitável que o clima acabe ficando agradável. As normas que governam o
comportamento durante o dia deixam de ser tão rígidas, como se a noite
convidasse à intimidade. Também era fácil fantasiar, ele descobriu.
Decidido, freou seu olhar insistente e sua imaginação galopante e voltou à
atenção para a torta de morangos.
— Não conseguiu dormir? — Perguntou casualmente. Christine atravessou
a cozinha para servir-se de um copo de leite. Na verdade, tinha ouvido Pierce
descendo a escada e o seguira. Não ficava surpresa nem envergonhada de
admitir esse fato. Às vezes precisava estar com alguém que não tivesse nada a
ver com seus problemas. E ele possuía uma característica de que gostava
muito, não tinha a mania de ficar julgando as pessoas.
Veio sentar-se na frente dele, segurando o copo de leite com um sorriso
sonhador.
— Clay e eu costumávamos fazer isso. Depois que todos iam dormir,
vínhamos assaltar a geladeira e, às vezes fazíamos uma verdadeira provisão
para ficarmos assistindo algum filme de terror na televisão. Outras vezes
ficávamos aqui mesmo apenas conversando. — Chris tentou afastar a nostalgia
e bebeu um pouco do leite. — Éramos crianças.
— Acho que vai sentir falta dele.
— Ele é meu irmão — concordou Chris, quase sem emoção. — Está
tomando uma atitude horrível e egoísta e arruinando muitas vidas, mas... Sim,
sentirei muita falta dele.

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— As mudanças são difíceis para todo mundo, eu acho — considerou


Pierce.
— Você mudou. — Christine fitou-o, surpresa pela sensibilidade e
compreensão que ele demonstrava. — Você está muito diferente de quando
chegou aqui.
— Mudei? — Ele queria acreditar que era verdade. Queria ter mudado e
encontrar a aprovação de Christine. Às vezes não conseguia se lembrar de
como era antes de chegar à fazenda e achava isso bom.
— Sabe de uma coisa engraçada? — Chris sorriu. — Acho que somos mais
parecidos do que pensamos. Nenhum de nós gosta deste lugar, mas nós dois
estamos aqui atolados. A diferença, claro, é que você tem a liberdade de partir
quando quiser, de viver sua vida da maneira que escolher.
— Você acha que é só isso? Liberdade? — Pierce riu.
— E não é?
— Vou lhe dizer uma coisa, menina, ninguém é livre onde eu vivia. Não só
eu e caras como eu, mas ninguém! Todos devem algo para alguém, todos
dependem de alguém, todos sofrem pressão de cima... Cada parte de sua vida
é controlada por outra pessoa. Aqui, você só depende de você mesma, seja
para resolver quanto quer trabalhar, qual o risco que vai assumir. Você faz seu
próprio sucesso, comete seus próprios erros... Tem seus próprios fracassos.
Isso é ser livre.
Christine estava surpresa de novo, mas tentou não demonstrar. Fez uma
careta e disse:
— Você está começando a falar como meu pai.
Pierce abaixou os olhos depressa, antes que Chris percebesse que tinha
sido o maior elogio que poderia ter lhe prestado.
— Em todo caso, acho que você pertence muito mais a este lugar do que
admite Chris. Não que não tenha capacidade de se realizar em qualquer outro
lugar. Ora, você é muito inteligente menina, e acho que conseguiria se sair
bem em qualquer coisa que quisesse. Mas é óbvio que carregaria parte deste
lugar aonde quer que fosse.
— Como a sujeira embaixo das minhas unhas? — Sugeriu desanimada.
— Como o sol em seus cabelos — corrigiu Pierce sério. — Como o cheiro
da chuva, como cem anos de trabalho realizado apenas com as mãos. —
Encolheu os ombros sem graça, percebendo que estava sendo muito poético.
— Algo de que nunca mais conseguirá se livrar aposto.
Christine achou que ele tinha razão, mas só pensar nessa possibilidade,
lhe causava tanto mal estar, que a afastou imediatamente.
— Bem, acho que nunca vou descobrir, não é? — Ela queria que sua voz
soasse casual, mas saiu carregada de tanta amargura que era impossível não
notar.
Pierce largou o garfo, encostou-se à cadeira e ficou olhando para ela, um
tanto irritado.
— Sabe qual é seu problema Christine? — Ela fitou-o espantada e na
defensiva, mas Pierce não lhe deu tempo para interrompê-lo. — Não tem nada
a ver com Clay ou com odiar esse lugar ou querer estar em qualquer outro. O
problema é que você gosta de estar no controle de tudo, gosta que as pessoas
dependam de você, de dizer o que devem ou não fazer. — Pierce viu o rosto
dela começar a ficar vermelho de indignação, mas não podia parar agora.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Algumas coisas tinham que ser ditas e ele se calara por muito tempo. — Talvez
você não esteja com tanta raiva de Clay por ele estar indo embora, mas sim
porque ele não precisa mais de você. Clay é um adulto e pode fazer o que
quiser sem sua ajuda.
Christine baixou os olhos, mas Pierce chegou a ver que reconheciam a
verdade. Sabia que tinha tocado no ponto, mas não estava orgulhoso. Ao
contrário, chegava a lamentar. Continuou em tom mais suave:
— Olhe você não pode controlar as pessoas da mesma maneira que não
pode controlar a plantação. — Fez um gesto, desejando não ter entrado
naquela discussão. Com a cabeça abaixada daquele jeito e os ombros caídos,
Chris parecia tão indefesa que ele tinha vontade de abraçá-la. — Você planta a
semente certa, faz o máximo que pode, mas no fim não é você que sabe o que
vai acontecer, não é? Quero dizer, até um pinheiro não se desenvolve na
sombra. Assim é a vida, entende? Algumas coisas a gente simplesmente tem
que aceitar.
Ela tentou resistir ao que ouvia. De todas as pessoas do mundo, aquele
homem era o último a quem devia dar ouvidos. Talvez ele a deixasse tão
furiosa porque via as coisas com clareza. Via coisas que não tinha o direito de
ver, dizia coisas que não tinha o direito de dizer.
— Muito bem Lanson! — Disse com sarcasmo, sem conseguir encará-lo. —
Leu algum manual de psicologia?
Pierce deu um suspiro impaciente e virou o rosto. Estava mais irritado
pelo fato de Chris ter se voltado contra ele do que pelo insulto; por ela ter
quebrado o elo que parecia estar começando a se formar e que poderia
aproximá-los. Aproximar-se de Chris se tornara muito importante para ele.
— Às vezes menina, você age como uma criança!
Ele esperava uma resposta rápida e áspera. Ficou espantado ao vê-la
apenas continuar sentada, olhando o copo de leite. E ficou mais confuso ainda
quando sentiu a raiva em seus olhos se desvanecerem lentamente.
— Às vezes eu me sinto uma criança — disse afinal levantando-se e
afastando-se.
Pierce observou-a atravessar a cozinha e parar diante da janela, olhando
o vazio. De repente, mais do que qualquer coisa no mundo, quis levantar-se e
aproximar-se dela. Queria abraçá-la, dar-lhe conforto, beijá-la, sentir seu
corpo, fazer amor com ela. Queria tanto que nem conseguia se mexer.
Sim, ele a queria. Era um sentimento que invadia sua imaginação durante
o dia e seus sonhos à noite. Mas até aquele instante, até vê-la parada em sua
frente e o desejo se tomar uma coisa viva, não sabia por que era tão
espantoso. Quando pensava em Christine, não pensava no prazer que podia
lhe dar nem na gratidão que receberia, não analisava seus pontos fracos, nem
planejava como manipulá-los. Quando pensava em Chris, a sensação que o
dominava era a do prazer que encontraria nos braços dela.
Pierce não procurava as mulheres, elas é que o abordavam. Esse desejo
novo e atordoante era uma experiência desconhecida. As mulheres precisavam
dele, sua única tarefa tinha sido satisfazê-las. Jamais pensara em seu próprio
prazer antes. Agora não conseguia pensar em outra coisa.
Com o coração acelerado, os músculos tensos, Pierce levantou-se da mesa
e se aproximou colocando as mãos nos ombros de Chris.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Ela sentiu o toque e não resistiu. Virou-se, encontrando os braços de


Pierce abertos. Quando deitou a cabeça no peito largo as lágrimas represadas
durante tanto tempo, começaram a cair silenciosamente.
Ele abraçou-a com mais força e encostou o rosto em seus cabelos
apreciando o contato macio. Quando sentiu as lágrimas molhando seu peito
nu, teve vontade de nunca mais afastar-se dela. Queria acariciá-la e fazer com
que ela também o desejasse. A intensidade daquelas emoções desconhecidas
combinadas ao desejo físico era tão grande que o amedrontaram. Não confiava
em si mesmo.
Porém, os braços de Chris em volta de sua cintura, como os de uma
criança, fizeram com que Pierce lhe acariciasse os cabelos com movimentos
lentos e incertos. Seu coração batia descompassado pelo esforço de se conter.
A verdade se tornara tão clara, tão transparente...
Talvez soubesse desde sempre que existiam dois tipos de mulheres no
mundo, as que ele podia ter e as que ele não podia. Antes, a escolha nunca
era sua. As mulheres que podia ter eram ricas, seus corpos tão artificiais
quanto seus sorrisos e viviam de fantasias e aventuras. A mulher que tinha
agora nos braços era simples, tão verdadeira quanto o sol. Seus olhos eram
limpos, fortes e não sustentavam mentiras, suas mãos tiravam vida da terra.
Seus quadris largos eram feitos para ter filhos, seus seios para alimentá-los.
Ela nunca se preocuparia em usar roupas da última moda nem em ser vista
nos lugares certos. Nunca seria encontrada num iate com drogas e álcool,
dormindo com o primeiro que aparecesse. Ela nunca pagaria um homem em
troca de favores sexuais.
Christine não precisava do conforto de um homem apenas em uma noite
solitária. Não era feita para encontros inconsequentes que terminavam quando
o corpo estava saciado. Precisava de alguém a seu lado sempre, nas épocas
boas e nas ruins. Por uma noite, podiam entregar-se à paixão, à linguagem
dos corpos, mas Chris precisava de mais do que isso. O que ela precisava e
merecia Pierce nem sabia nomear, mas tinha certeza de que não seria ele que
poderia lhe oferecer.
As lágrimas cessaram. Chris se sentia bem nos braços de Pierce, era bom
sentir a pele dele contra seu rosto. Naquele momento era possível esquecer
quem ele era, o que representava, absorvendo-lhe apenas a força, o calor.
Passou a mão pela cintura, tocou-lhe o peito, notou sua pele arrepiada e a
respiração entrecortada. Levantou a cabeça e encarou-o sem medo. Queria
ficar com ele. Queria passar a noite com ele, mas o primeiro movimento não
podia ser seu.
Pierce sabia disso. Viu os olhos dela sem defesas, sem amargura, sem
desgosto. Era apenas uma mulher querendo um homem. Encostou
ligeiramente os lábios na testa de Chris, e sua mão estava trêmula quando
acariciou seus cabelos pela última vez.
— Lembre-se de uma coisa — disse, tornando a encará-la. Sua voz estava
grave, sem nenhuma sombra de cinismo. — Ninguém muda realmente, e não
sou um homem bom. — Precisou de todas as suas forças para afastá-la com
delicadeza.
— Boa noite.
Dar as costas e distanciar-se de Christine foi à atitude mais dolorosa que
tomou em toda a sua vida.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Capítulo XV

Era sábado e Clay partiria na segunda-feira. Christine estava ocupada com


os preparativos da festa, que começaria logo depois que os tratores fossem
recolhidos.
Desde aquela noite na cozinha, quase uma semana antes, nada tinha
mudado entre Pierce e ela. Chris mostrava-se de novo forte e eficiente e não o
procurava, a não ser para dar alguma ordem. Não tinham ficado a sós mais
nenhuma vez.
Pierce não conseguia esquecer o que tinha acontecido. Às vezes desejava
conseguir, às vezes se agarrava à lembrança de Chris em seus braços, como
se fosse à única coisa verdadeira que já tinha vivido.
Aquele não prometia ser um dos melhores dias para ele. Estava no trator
maior, tendo Jordan como parceiro. Os outros homens estavam no trator
pequeno, no outro extremo do campo. Trabalhar com Jordan, só havia sido
possível enquanto Hamilton esteve supervisionando, mas quando ele e Clay
saíram para buscar fertilizante a situação se deteriorou rapidamente.
Jordan era um bom trabalhador, mas assim que Hamilton virou as costas,
pareceu decidido a causar problemas para Pierce. Lançava insultos e
comentários maldosos, deixou o fertilizador se esvaziar e se recusou a ajudá-lo
a enchê-lo. Tinha bebido muito e, quando o recipiente se soltou, Pierce
suspeitou que Jordan o sabotara de propósito.
Pierce deixou o veículo em ponto morto e saltou da cabina.
— Que diabos está acontecendo agora? — Perguntou, indo para a parte
traseira do trator. Ainda não era meio-dia, mas já estava todo suado, com os
nervos à flor da pele. Quando Hamilton voltasse, pediria para ser transferido
para o outro trator. Não suportava mais aquela situação.
— Qual é o problema gatinho? Não sabe consertar essa máquina velha?
Pierce nem se dignou a olhar para Jordan. Ajoelhou-se para examinar o
encaixe e praguejou ao ver que era o mesmo parafuso solto.
— Esse maldito parafuso outra vez! — Deitou-se no chão para examinar.
— Pegue a caixa de ferramentas no outro trator, sim?
— Claro gatinho. Você manda! — Jordan afastou-se e Pierce compreendeu
que ele mesmo teria que ir buscar as ferramentas.
Tirou um pouco da terra e do óleo que encobriam a peça e começou a
mexer só com as mãos. O parafuso cedeu um pouco e ele tornou a praguejar
baixinho.
O trator começou a se mover. Pierce não percebeu logo de início e,
mesmo quando viu os pneus rodarem bem diante de seus olhos, não acreditou
no que estava acontecendo. Rolou rapidamente para o outro lado, apenas
alguns segundos antes que a lâmina mais baixa passasse sobre seu pescoço.
Deu um salto e ficou em pé, com o coração descompassado e a cabeça
latejando, ao perceber que quase tinha sido decapitado.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Você ficou louco? — Gritou quando ouviu a máquina engrenada em


maior velocidade.
— É assim que se faz garoto! — Gritou Jordan da janela da cabina. —
Fique de olhos abertos!
O trator virava ao acaso, passando sobre os sulcos, estragando os regos
recém-plantados.
— Seu idiota! — Pierce correu ao lado da máquina e conseguiu pegar a
maçaneta. — O que pensa que está fazendo?
Jordan riu e virou a direção bruscamente, quase jogando Pierce longe.
Agora furioso e também apavorado, ele pendurou-se na porta, querendo
alcançar o painel de controle. O outro homem tentava empurrá-lo, sem parar
de rir, mas Pierce tinha visto o declive logo adiante e não lhe ouvia os insultos,
nem sentia seus socos.
— Desligue! — Gritou. Apoiando o pé na porta, conseguiu empurrar a
maçaneta. — Você vai nos matar! Desligue maldito!
A porta se abriu quando a máquina começou a descer a ribanceira, no
exato momento em que ele saltou para dentro. Alcançou o painel de controle
no instante em que a frente do trator afundava contra uma árvore.
Pierce não soube o que aconteceu em seguida. Quando deu por si,
segurava Jordan contra o trator, sacudindo-o e gritando. O homenzinho
parecia atônito, seus olhos estavam pasmos e um filete de sangue corria de
um pequeno corte acima da sobrancelha. Pierce largou-o com um movimento
brusco e caminhou alguns passos, ainda tonto de raiva e com a visão nublada
pelo suor, pela tensão e por um resíduo de medo.
Ouviu os gritos e passos apressados dos outros homens atrás, mas não se
virou. Fixou os olhos no trator, caído com a roda dianteira enfiada nos
arbustos, e praguejou. Seu braço tremia quando afastou da testa os cabelos
molhados de suor. Lembrou-se de como o homenzinho bêbado se debatia em
suas mãos e sentiu desgosto por si mesmo. Cerrou os punhos, tentando parar
de tremer.
— O que aconteceu aqui? — Perguntou Hamilton áspero. — Quem é o
responsável por isso?
Pierce virou-se lentamente. Viu Hamilton, tenso e com o olhar carregado.
Viu Jordan, enxugando o sangue da têmpora com a mão trêmula e os outros
homens a seu lado. Todos os olhos estavam fixos em Pierce e o silêncio era
absoluto.
Por um instante pensou em contar a verdade, mas quem acreditaria? Não
importava o que dissesse, acabaria sendo culpado. Ele estava no comando do
trator. Era responsabilidade sua.
— Eu.
Viu o rubor de cólera tingir a pele de Hamilton enquanto se aproximava.
Os olhos do velho estavam cheios de fúria e desgosto, seus lábios firmemente
comprimidos. Pierce nunca o tinha visto daquele jeito e ficou assustado.
Hamilton parou a menos de um passo de distância e deu-lhe um tapa na cara.
Pierce quase perdeu o equilíbrio. Sentiu o rosto arder e o sangue quente
saindo do canto do lábio, mas só conseguiu ficar olhando para Hamilton,
chocado demais para registrar o que tinha acontecido.
O fazendeiro o pegou pelo colarinho, começou a sacudi-lo e deu-lhe outro
soco. Seu rosto estava quase roxo e as veias saltadas nas têmporas. Toda a

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tensão acumulada na última semana, talvez até no último mês, explodia de


uma vez sobre Pierce, que estava com mais medo pelo velho do que por si
próprio.
— Nunca minta para mim rapaz! Nunca!
Ele sentiu a garganta seca quando tentou tirar as mãos de Walsh de seu
colarinho. A confusão ultrapassava todas as outras emoções.
— Está bem, mas que tal me largar, hein? — Disse com a máxima calma
que foi capaz de ter.
— Por que não me enfrenta?
Hamilton largou-o, empurrando-o para trás, e Pierce quase caiu. Levantou
as mãos, num gesto de paz e defesa, mas o fazendeiro afastou-as com raiva.
A situação estava fora de controle e Pierce não sabia como resolvê-la. Nunca
soube como lidar com situações daquele tipo.
— Vamos! — Desafiou o velho, empurrando-o com mais força. — Lute
comigo! Defenda-se maldito!
Pierce encarou Hamilton. Raiva e humilhação o dominaram e, por um
momento, seu impulso foi bater. Tinha que provar, que mostrar a todos... O
quê? Que conseguia bater num velho? A frustração o dominou e ele controlou
a raiva.
— Não vou lutar com você, Hamilton! — Disse, virando-se para se afastar.
— Não, você não vai lutar! — O outro homem agarrou-o pelo ombro e
virou-o bruscamente. — Não luta por nada porque não passa de um maldito
covarde!
— Não fique tão preocupado está bem? — Pierce tentou contornar a
situação. — O trator não está estragado. Podemos...
— Que se dane o trator! — Gritou Hamilton descontrolado.
Pierce estava realmente assustado, mas mais do que isso. Sentia-se
tomado pelo ódio, ressentimento, mágoa. Arrancou a mão de Hamilton do
ombro, sem acreditar que naquele momento, com toda a intensidade de que
era capaz, tinha vontade de esmurrá-lo. Sabia que o velho só estava tentando
provocá-lo, mas não entendia por que e nem se importava, pois estava cego
de fúria. Usou todas as forças para dominar-se. Não ia bater num velho com
problemas cardíacos por causa de um acidente estúpido com um trator.
— Você tem que se defender, maldito! — Gritou Hamilton de novo
avançando, mas Pierce recuou. — Assuma só a responsabilidade pelo que
realmente faz, está ouvindo? Não fique fugindo! Defenda-se e lute pelo que é
seu! Você não liga para o que acontece a essa terra nem às pessoas que nela
trabalham e não existe nada em sua vida por que valha a pena lutar! Você é
um inútil filho! Ouviu? Você é um inútil! Por que não cresce e age como um
homem?
— Não sou seu filho! — Explodiu Pierce, não suportando mais. Antes que
tivesse consciência do que dizia, repetiu furioso: — Não sou seu filho!
As palavras pareciam suspensas no ar antes de se assentarem
lentamente, como a poeira depois de uma ventania. Viu a raiva desaparecer e
um momento de clareza e choque nos olhos do outro homem, antes de ficarem
nublados por uma sombra de relutante vergonha. Pierce sabia que Hamilton
não estava com raiva dele, que nem gritava para ele. Gritava com Clay, com a
própria impotência diante de Clay, com o governo, com o clima, com os

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insetos, com a economia e com todas as outras coisas pelas quais se sentia
traído.
Saber tudo isso, porém, não anulava o que tinha acontecido, não
eliminava a mágoa. Pierce não era filho de Hamilton, mas acabara de ser
brutalmente punido pelo único pai que conhecera na vida e estava arrasado
com isso.
— Pegue a prancha de madeira e a corrente no outro trator e tire aquela
máquina de lá. — O fazendeiro disse afinal, antes de se virar para os outros: —
Vamos voltar ao trabalho!
Afastou-se sem olhar para Pierce, que ficou parado, dominado por intensa
angústia.
"O que estou fazendo aqui?" pensou, mal enxergando os homens parados,
parecendo à sua espera. "Não tenho nada a ver com esse lugar, não preciso
disso".
Avistou seu chapéu caído perto do trator e foi pegá-lo, afastando os
cabelos com mão cansada. Colocou-o na cabeça e olhou os outros
trabalhadores, testemunhas silenciosas da tempestade que acabara de
acontecer.
— Vocês ouviram o homem — disse, sem muita emoção e para ninguém
em particular. — Vamos voltar ao trabalho.

Capítulo XVI

Pierce não estava com a mínima vontade de ir à festa, mas como não
tinha jeito de ficar alheio a ela, acabou comparecendo.
Parecia que toda a fazenda estava mobilizada para o grande evento.
Desde a casa, com mulheres por todos os lados preparando travessas de doces
e salgados, até o pátio de estacionamento, já repleto de caminhonetes e carros
velhos do pessoal dos arredores.
Tinham colocado várias mesas ao ar livre em frente à casa e, logo à
noitinha, quando Pierce apareceu, várias pessoas já estavam por ali. As
mulheres com seus vestidos floridos conversavam animadas entre si mesmas
ou com os homens, todos com jeans mais novos que possuíam e com suas
camisas xadrez. Havia crianças por todo lado, correndo, pulando, se divertindo
de todas as maneiras possíveis.
Já de banho tomado e com uma muda de roupa limpa sobre o corpo,
Pierce observava aquela gente toda sob a luz de vários lampiões que
iluminavam a festa. Sorriu. Se fosse há alguns meses atrás, até que gostaria
de participar daquela reunião animada, pois seria uma oportunidade única para
observar a maneira de aquelas pessoas se divertirem... Mas, naquela noite,
tudo o que mais desejava era comer alguma coisa e ir para o quarto, o mais
depressa possível.

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Depois do acidente, o trabalho no resto da tarde tinha transcorrido sem


problemas. Até Jordan parou de importuná-lo, embora Pierce não tivesse
prestado atenção nele e nem nos outros homens. Algumas vezes chegou a
pensar em dar o fora daquele lugar imediatamente. Afinal, por mais terrível
que fosse Cavenetti, estava certo de que nunca vivenciaria uma experiência
tão horrível como a daquele dia... Mas, como tinha muito trabalho a fazer, não
pôde refletir muito sobre aqueles pensamentos.
Caminhava por entre as pessoas e as mesas, tentando sentir o clima da
festa. De repente viu Benson aproximando-se com dois copos de limonada.
— Oi, Pierce. Aceita uma limonada para refrescar a goela? — Perguntou,
parecendo um tanto inseguro.
— Obrigado — murmurou ele, pegando o copo e se perguntando o porquê
da gentileza repentina.
Benson tossiu desajeitado e começou a falar:
— Sabe Pierce, só queria dizer... Isto é, eu e os rapazes... Pierce olhou
por sobre os ombros de Benson e viu os outros homens atrás dele, seus
colegas de trabalho. O outro continuou:
— O que eu queria dizer... É que você foi muito legal esta tarde...
Christine tinha razão sobre você. Todos nós sabemos que Jordan é chato, é um
osso duro de roer... Ele enche todo mundo muitas vezes até atrapalha o
serviço da gente...
— E daí?
— Daí que você foi legal com ele, afinal de contas. Todo mundo percebeu
que o culpado pelo acidente com o trator foi ele... E percebemos também que
você foi legal assumindo a culpa, pois afinal Jordan tem família e não pode
ficar sem emprego... Por isso queríamos lhe dizer que achamos muito bonita
sua atitude.
Pierce não sabia o que dizer. Nem o que pensar. Se aquela conversa
deixava Benson embaraçado, ele também estava, e como! Mas era uma
sensação esquisita... Será que finalmente estava sendo aceito e respeitado
pelos colegas? Completamente sem jeito, deu um gole em sua limonada.
Jacobs, que estava atrás de Benson ouvindo a conversa, chegou mais
perto:
— Sei que nós não agimos direito com você quando chegou aqui, Pierce.
Mas agora queríamos lhe dizer que...
— Esqueça — cortou Pierce, com vontade de sumir.
— Você vai continuar aqui, depois que terminarmos o plantio? —
Perguntou Benson de repente.
— Não sei, não pensei ainda sobre isso.
— Não sei se Hamilton está pensando em plantar batatas depois. Talvez
não precise mais da gente.
— É, ele que vá plantar batatas sozinho! — Disse outro homem, e todos
começaram a rir e a falar ao mesmo tempo.
Pierce, no meio da roda, observava com incredulidade aqueles rostos
marcados por sol e trabalho. Parecia um sonho que finalmente eles o tivessem
aceitado... Uma emoção estranha invadiu-lhe o peito, um sentimento novo e
desconhecido.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Clay estava ao lado de Hamilton quando este se preparava para iniciar o


discurso. A festa estava no auge, e todos os participantes ficaram em silêncio
quando o dono da casa pediu para que ouvissem o que tinha a falar.
Clay estava horrorizado. Sabia exatamente o que seu pai diria e faria ali,
na frente de todos, e pedia a Deus que um milagre ocorresse e impedisse que
aquela situação constrangedora continuasse.
Mas nenhum milagre ocorreu e Hamilton começou a falar:
— Estou feliz esta noite por vocês terem vindo à festa de despedida de
meu filho. Espero que continuem a se divertir bastante. Antes de dar
continuidade à festa, gostaria que todos participassem de uma cerimônia
muito tradicional em nossa família.
Clay estremeceu. Hamilton virou-se para ele com calma e os dois sabiam
exatamente o que iria acontecer. O rapaz teve vontade de sumir, desaparecer,
evaporar... Detestava ser o centro das atenções, detestava enfrentar todos os
olhares postos nele.
Hamilton tirou o velho relógio de ouro do bolso e voltou a falar, olhando
novamente para os convidados:
— Este relógio tem passado de pai para filho em minha família há muitas
gerações. Disseram-me certa vez que foi trazido a duzentos anos da Escócia,
não sei. Meu pai me presenteou com ele no dia em que me casei. Eu o guardo
para Clay desde o dia em que ele nasceu esperando entregar-lhe esta joia no
momento mais importante de sua vida... — Hamilton suspirou emocionado e
continuou: — Bem, acho que agora é chegado o momento. Meu filho
respondeu ao chamado de Deus, e nós todos estamos muito orgulhosos dele.
Clay estremeceu novamente ao encarar os olhos tristes do pai. Sabia que
aquela sua atitude de ir para o seminário o matava pouco a pouco. Mas o que
fazer? Não queria magoá-lo, não desejava ferir ninguém.
Hamilton colocou o relógio nas mãos de Clay e disse emocionado:
— Hoje você é um homem.
Todos os convidados aplaudiram com entusiasmo.
Clay apertou o relógio na mão perguntando-se se merecia de verdade
aquele presente. Se merecia ser considerado um verdadeiro homem pelo pai.
Parecia que nunca iria saber a resposta.
Aos poucos as pessoas foram se dispersando e Clay então pôde caminhar
mais sossegado pela festa. Sua festa de despedida...
Conversava distraidamente com alguns convidados quando avistou Abby,
não muito longe. Desculpou-se apressado e foi ao encontro dela.
— Oi. Obrigado por ter vindo.
— Não poderia deixar de vir Clay — disse Abby sorrindo com tristeza.
Suspirou antes de perguntar: — Ficaria mal se eu lhe desse um beijinho no
rosto? — Antes que Clay respondesse, ela o beijou depressa no canto dos
lábios.
O perfume suave de Abby atingiu-o, despertando lembranças. Tudo o que
mais queria naquele instante era abraçá-la e beijar seus lábios com amor. Mas
não podia. Tossiu, antes de perguntar:
— Como vai indo, Abby?
— Bem. Quer dizer, não muito. Nosso sistema de irrigação quebrou e
papai anda louco da vida. Eu...

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Não era sobre a vida quotidiana dela que Clay perguntara. Ele queria
saber sobre seus sentimentos, sua vida amorosa...
— Tem saído com alguém? — Perguntou de repente.
— Você sabe que não... — respondeu Abby baixinho, deixando
transparecer naquela frase todo o amor que ainda sentia.
— Gostaria que as coisas fossem diferentes, Abby...
— Sei que sim, Clay — retrucou antes de se afastar.
Clay teve vontade de alcançá-la, mas não podia. Tinha feito uma escolha
definitiva e agora só podia seguir em frente... Por mais difícil que fosse...
Quem prestasse atenção em Chris imaginaria que ela estava, além de
linda, muito feliz por estar participando da festa de despedida de Clay. Nunca
imaginariam que na verdade ela sentia-se arrasada...
Ainda em seu quarto, enquanto se preparava para descer, mais uma vez
voltou a pensar em Pierce. Será que ele a acharia bonita?
Christine estava linda. Usava um vestido verde simples, mas
extremamente elegante. Puxara os cabelos para trás e, como única joia,
ostentava um filete de ouro no pescoço.
Pensava muito em Pierce. Constantemente. Tinha consciência de que o
que a atraíra tinha sido o corpo dele, sua profissão, os lugares que conhecera e
em que vivera.
As fantasias de Chris sempre estavam centradas em ambientes
sofisticados, em homens sensuais e bonitos, por isso Pierce prendera
inicialmente sua atenção. Mas aquela noite na cozinha tinha lhe mostrado que
ele estava mudado. Parecia que pouco a pouco estava deixando de lado a
máscara de "profissional", revelando um ser humano de muito interesse. E
aquele homem novo também a atraía... O que era uma pena.
Mais cedo ou mais tarde Pierce iria embora dali, e ela então sofreria como
a terra arrasada por falta de chuva.
Não podia acreditar nas palavras dele. Tinha que esquecê-lo, tentar fingir
que não existia nada entre os dois.
Mas, quando fechou a porta do quarto para ir receber os convidados, não
pôde deixar de se perguntar mais uma vez se Pierce a acharia bonita.
— Bem — começou Pierce, levantando o copo de limonada num brinde,
assim que Clay chegou perto dele. — Acho que devo dizer alguma coisa muito
importante. Espero que saiba o que está fazendo, rapaz!
Clay sorriu. Gostava de Pierce.
Pierce, aproveitando que não havia ninguém ao lado deles naquele
instante, resolveu saber de Clay, algo que há muito tempo o importunava:
— Por que nunca tocou no assunto do relógio, afinal?
— Achei melhor deixar você mesmo tirar suas conclusões sobre aquele
seu ato.
No fundo Pierce sabia que a resposta seria aquela. Tinha visto a cerimônia
da entrega do relógio. Embora não ouvisse as palavras, pois estava um pouco
afastado da multidão, pôde ver a expressão emocionada de Hamilton e o
nervosismo de Clay. Aquele relógio era um símbolo que passava de pai para
filho na família Walsh. E ele quase tinha sumido com a joia.
Também observara Clay conversando com Abby momentos antes.
Gostava de ver os dois juntos, pois faziam um belo par. Resolveu falar sobre
aquilo, pois o assunto do relógio o incomodava bastante.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Vi você conversando com aquela garota ainda há pouco. Ela é muito


bonita...
— Sim — respondeu Clay. — E eu a amo.
Bem, agora estava explicado por que o casal parecia tão triste. Afinal Clay
ia partir e os dois estavam chateados com a situação.
— Mas com certeza ela vai esperar até que você volte — disse, tentando
animar o rapaz.
— Espero que não.
— O quê? — Perguntou Pierce, sem entender nada.
— Não posso forçá-la a compartilhar minha vida de pastor.
— E por que não?
— Não tenho esse direito...
— O quê? Mas vocês conversaram sobre isso? Ela lhe disse que não quer
ser esposa de um pastor?
— Isso na verdade não interessa. O que realmente importa é que, embora
eu a ame tanto, tenho outro amor e quero me dedicar inteiramente a ele. —
Clay tentava aparentar calma.
Amor! Clay havia usado a palavra amor para definir seus sentimentos por
aquela garota. E os dois se amavam muito, Pierce podia jurar, só por ter visto
como se olhavam!
— Rapaz, para mim você é louco. ─Clay olhou espantado para Pierce. —
Desculpe — continuou ele. — Quero dizer, entendo todo esse seu empenho em
seguir o chamado de Deus e tudo mais, mas... Olhe para ela! Quero dizer,
você acha que foi fácil para a garota vir aqui depois que você a abandonou?
Diabos cara. Já percebeu que espécie de mulher rara ela é? Vocês se amam
rapaz! Vai jogar isso fora?
Clay ficou completamente confuso. Por um momento pareceu que ia dizer
alguma coisa, mas recobrou-se logo, olhando em outra direção.
— Lá está Chris finalmente. Pensei que não a veria na festa! — Apressou-
se em dizer, quase correndo a encontrar a irmã.
Pierce viu Christine e se esqueceu de repente do que estava falando, da
festa, de tudo. Ela estava tão linda, tão maravilhosa!
Engoliu em seco. Christine era a mulher com quem sempre sonhara. Era a
mulher com quem passaria o resto da vida, mas sabia que, caso lhe
propusesse isso, ela riria na cara dele. Christine nunca o escolheria para ser
seu companheiro, nunca... Completamente perdido, só conseguia ficar parado
olhando para ela. Poderia ficar observando-a para sempre... Para sempre...
— Esta festa deve ser bem diferente daquelas que costumava frequentar,
hein, rapaz?
Pierce se assustou com a voz de Hamilton, soando de repente a seu lado.
— E nas festas que você ia, acho que a única coisa que não serviam era
limonada, não é filho? — Continuou o velho sorrindo.
Hamilton não parecia se lembrar do acidente com o trator. Seu rosto
estava calmo e seus olhos fitavam Pierce com amizade. Mas, inesperadamente
mencionou o problema.
— Rapaz, posso despedir Jordan, se você quiser. É só falar. Pierce pensou
um pouco antes de responder:
— Temos ainda uma semana de plantio. Precisamos de homens para o
trabalho.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Mas ele é um bêbado. Jordan poderia tê-lo matado esta tarde.


— Hamilton, você me deu uma chance certa vez. Acho que poderia fazer o
mesmo com Jordan agora.
O fazendeiro permaneceu em silêncio. Depois de alguns mo- mentos
bateu a mão compreensivamente nas costas de Pierce. E foi só. Era sinal que
entendia e aprovava suas palavras.
Pierce ficou satisfeito. Não que quisesse dar uma de bonzinho, em relação
a Jordan, para ganhar as graças do patrão e dos outros colegas. Não.
Simplesmente partia do princípio de que, como ele, todos deveriam ter sempre
outra chance na vida...
Meio sem graça, sem saber direito o que falar comentou:
— A festa está uma beleza...
— É — Concordou Hamilton. — Tem muita gente boa, e todos vieram
desejar felicidades a Clay. — De repente, como se movido por um sentimento
de estranho desespero, encarou Pierce e falou: — Mas ele vai voltar, sabe?
Clay ainda vai perceber que o lugar dele é aqui entre nós. Afinal, é um Walsh!
Pierce ficou desconcertado. O que dizer? Sabia que Clay estava indo
embora para sempre, e, por mais que doesse, não gostaria de enganar o pobre
velho ocultando-lhe o que sentia. Por isso falou:
— Não, senhor. Acho que ele não volta.
— Veremos — murmurou Hamilton depois de um instante de confusão.
Em seguida se afastou para conversar com os outros convidados.
Pierce ainda ficou parado ali por um momento, mas depois resolveu ir
para seu quarto.
Não tinha mais nada a fazer ali na festa.

Capítulo XVII

Estava tudo acabado. Embora Christine tivesse se recusado a acreditar


que fosse mesmo verdade, Clay estava de partida e ela continuaria ajudando
seu pai na fazenda. Todos os seus sonhos tinham terminado, e era só isso o
que o futuro lhe reservava.
O plano se é que podia ser chamado assim, estava em sua cabeça desde o
final da tarde. A princípio era tão nebuloso que Chris nem o reconheceu, mas
quando o último convidado partiu e seu pai e Clay lhe desejaram boa noite,
sabia exatamente o que queria, o que ia fazer. Com fria determinação foi para
seu quarto e começou a se despir. Esperou até ouvir o pai e o irmão se
deitarem, até a casa ficar em total silêncio. Não sentia nenhuma emoção,
talvez apenas um pouco de orgulho pelo fato de pelo menos uma vez na vida,
ter coragem de fazer o que desejava. E era Pierce Lanson que desejara. Há
muito tempo.
Pierce ainda estava acordado e ouviu Chris chegando, antes mesmo que
ela abrisse a porta, mas não acreditou. Sentou-se na cama e ficou olhando.

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Ela usava um robe de tecido fino até a altura dos joelhos, sem nada por
baixo. Estava desabotoado, mas ela o segurava junto ao pescoço, e só quando
andou Pierce pode ver suas coxas firmes e bem torneadas. Seus cabelos
estavam soltos e brilhantes e havia uma estranha expressão em seu olhar.
— Christine, o que está fazendo aqui? — Pierce não conseguia tirar os
olhos dela.
— Não diga nada. — A voz da Chris soou tranquila. Começou a se
aproximar. — Não diga nada.
Algo estava errado. Ela não devia estar ali, vestida daquele jeito,
aproximando-se com olhar distante e calculista... Pierce fez um movimento
para se levantar da cama, mas lembrou de que estava nu. Pensou que talvez
ela estivesse embriagada. Confuso e um tanto espantado, deu um sorriso
incerto.
— Ei menina, o que é isso? Você não devia estar aqui! Andou bebendo
demais?
Chris sentou a seu lado. Não sorria e não estava embriagada. Limitou-se a
colocar o dedo sobre os lábios em sinal de silêncio, e inclinando-se, pousou a
boca sobre a dele.
Foi só nesse momento que Chris percebeu o quanto estava nervosa e não
contava com isso. Era uma mulher em busca do que queria. Apenas por uma
noite queria tocar Paris, passear nas gôndolas de Veneza, tomar champanha
admirando as luzes de Manhattan... Ser acariciada pelas mãos fortes do
homem perfeito, realizar a dança do amor com um parceiro experiente... Dizer
um adeus definitivo a tudo o que nunca teria e acordar na manhã seguinte
sentindo-se capaz de enfrentar o futuro, pois pelo menos teria vivido uma
noite.
Porém não esperava ficar nervosa, e quando seus lábios tocaram os de
Pierce nada aconteceu. Nenhuma luz mágica começou a brilhar. Quando ele
não correspondeu, Chris teve um impulso de recuar, dominada pela vergonha
e decepção, mas em seguida ele começou a acariciá-la. Chris tentou relaxar.
As emoções e conflitos que Pierce sentia eram incoerentes e indecifráveis.
Aquela era Christine, a mulher que desejava mais do que qualquer coisa que já
desejara na vida. Estava com os seios nus sobre seu peito e com os lábios
colados aos seus. Aquela era Christine, especial, diferente. Mas não devia estar
ali, se oferecendo como qualquer mulher vulgar. Estava errado. Ele não queria
isso e ela não merecia menos do que um verdadeiro ato de amor.
Porém Christine queria muito fazer amor e Pierce era treinado exatamente
para isso. Sua mente protestava, mas seu corpo começou a corresponder.
Tocou-lhe os seios com delicadeza, acariciou-lhe os lábios com a língua. Sabia
que devia dizer às palavras que as mulheres adoram, mas não conseguia
lembrar nenhuma. Tudo o que queria era pedir para que ela parasse, mas nem
conseguia fazer sair à voz.
Christine passou a língua em seu pescoço e Pierce acariciou-lhe as costas
e a cintura, mas os movimentos eram automáticos e, de repente, o corpo firme
e jovem pareceu-lhe velho e flácido. Ela não devia estar ali.
—Christine... Por quê? — Conseguiu perguntar encarando-a.
"Porque preciso me sentir amada Pierce", pensou Christine deitando em
seu ombro, sem conseguir expressar o que sentia.

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Ele sentiu a insegurança e a tensão de Chris e beijou-a. Mas estava tudo


errado, ela não devia procurá-lo como as outras. De repente, o rosto bonito e
jovem de Chris parecia mesclado com o de outras mulheres, velhas cheias de
diamantes no pescoço e exalando vinho caro pelo hálito. Pierce sentiu um nó
no estômago.
Christine o acariciava com sensualidade, tentando excitá-lo, e Pierce
tentava corresponder, mas sentia as mãos como se fossem de outra pessoa, e
os lábios entorpecidos davam beijos sem vida. Era inútil continuar. Ela não
devia estar ali.
Quando Pierce virou a cabeça e deu um longo suspiro de frustração,
Christine compreendeu. Foi invadida lentamente pela humilhação e angústia,
não sabia o que fazer. Ficou imóvel, sentindo-se mais constrangida e mais
miserável do que jamais se sentira em toda a sua vida. Pierce não a queria. O
tempo todo acreditara que tudo estava sob seu controle, que bastaria resolver
que o queria. Nunca tinha lhe ocorrido que ele pudesse não a querer. E agora,
não sabia o que fazer.
Era uma cena de pesadelo. O suor que cobria o corpo dele estava gelado e
sua respiração entrecortada. Percebeu a confusão e a mágoa de Christine e
praguejou baixinho.
— Saia já daqui! — Conseguiu dizer, quase sem voz. Chris continuou
imóvel e ele repetiu, com voz mais áspera: — Vá!
Ela se levantou devagar, não tendo certeza de que suas pernas a
suportariam. Tinha vontade de sair do quarto correndo e continuar correndo
até aquela noite tomar-se menos do que uma lembrança. No entanto, mal teve
forças para chegar até a porta. Não conseguiu olhar para Pierce. Nem sabia se
teria coragem de se olhar de novo no espelho.
Pierce massageou as têmporas e fechou os olhos, mas não conseguiu tirar
aquelas imagens da cabeça, jamais conseguiria, nem que vivesse cem anos.
Depois que Chris saiu, ficou deitado por longo tempo, com o coração
acelerado e o estômago ardendo. De repente, com um gemido angustiado,
saltou da cama e vestiu o jeans. Saiu da casa silenciosamente, desejando que
a brisa fresca da noite levasse para longe a lembrança torturante daquelas
cenas.
Ele só voltou para o quarto pouco antes de amanhecer. Sabia que não
conseguiria dormir, mas não queria que ninguém soubesse que passara a noite
em claro. A família sempre ia à igreja aos domingos e ele sempre dormia até
tarde. Ouviu a caminhonete sair e continuou deitado, olhando o teto, sem
consciência de quanto tempo passou.
Era uma estupidez transformar o que acontecera em um grande
problema. Sabia que podiam existir várias razões para uma única falha. Estava
cansado, tinha tido um dia desgraçado, um mês desgraçado. Na verdade, toda
a sua vida estava virada e estava esgotado emocionalmente.
Este era o ponto central, as razões para sua falha eram emocionais e não
físicas. Sabia exatamente o que tinha acontecido, Chris viera a sua procura tão
fria e decidida quanto uma assassina, e ele não conseguira lidar com o conflito
emocional entre a situação de fato e a que deveria ser. Era exatamente isso
que o perturbava, pois nunca antes seu desempenho sexual tinha dependido
do envolvimento emocional. E isso o apavorava.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Continuou olhando, o teto e perguntou-se o que estava fazendo ali. A


escolha era sua, poderia ter ido embora se quisesse. Mas tinha ficado vendo
suas mãos calejarem, os músculos enrijecerem, sendo humilhado, rejeitado e
zombado quase que diariamente; já estava acostumado ao trabalho pesado, e,
quando pensava que merecia algum reconhecimento, tinha sido esbofeteado e
chamado de covarde pelo único homem por quem queria ser respeitado.
Quanto mais tentava afastar aqueles pensamentos, uma palavra o
assaltava implacável; amor. Não tinha nada a ver com o que acontecera
naquela madrugada. Não entendia por que aquele conceito irrelevante lhe
ocorria, mas ele estava ali presente, como que o lembrando de algo esquecido
ou não conhecido. Tentou imaginar qual a definição de Christine para a palavra
amor, mas não conseguiu. Provavelmente nunca saberia e isso o incomodava.
Levantou-se da cama num salto, vestiu o jeans e a camisa que usara no
dia anterior, sem se preocupar em abotoá-la. Podia ir embora agora, enquanto
não havia ninguém em casa. Não que fizesse qualquer diferença, pois ninguém
tentaria impedi-lo. Já tinha recebido o salário da semana e não existia razão
para estender-se com despedidas.
"Então vai fugir só porque não conseguiu fazer amor com a mulher dos
seus sonhos?"
Pierce meneou a cabeça, tentando arrancar aquela acusação dos
pensamentos. Era exatamente isso o que ia fazer. Era isso o que acontecia a
um homem que sempre dependera de seu desempenho sexual.
Christine estava sofrendo. Sentia toda a humilhação e vergonha de uma
mulher rejeitada, mas não era só. Tinha visto a expressão dos olhos de Pierce
quando ele a afastara e compreendeu que não tinha o direito de envolvê-lo em
seus conflitos, assim como não tinha o direito de descontar sua raiva em seu
pai e em Clay.
Talvez fosse justamente essa intenção que norteara seu comportamento,
queria magoar seu pai e Clay fazendo amor com um estranho na casa que
abrigava nascimentos, casamentos e mortes há quatro orgulhosas gerações.
No fim, só Pierce tinha sido machucado por sua atitude egoísta e ela não
queria machucar ninguém, só ela mesma.
Há pouco tempo atrás, sentada naquela mesma cozinha, Christine
comentara como Pierce tinha mudado... Mas só agora percebia como ela
própria estava diferente. Era quase incapaz de reconhecer a mulher em que se
transformara desde que Clay resolvera ir para o seminário. E Pierce Lanson
entrara em sua vida.
Pierce não contava em ver Christine outra vez. Se existisse espaço em sua
imaginação para outro encontro, teria esperado ver decepção e ironia
estampadas nos olhos dela, esperaria sentir raiva e vergonha. Entrou na
cozinha descalço e com a camisa aberta e Chris estava sentada à mesa, a sua
espera. Tudo o que viu nos olhos dela foi constrangimento, e ele não sentiu
absolutamente nada.
Por um momento Christine pensou que ele fosse virar as costas e sair. Se
isso acontecesse, nunca mais teria coragem de falar com ele. Nada podia ser
feito para apagar a noite anterior, mas também nada se ganharia em ignorá-
la.
— Ouça, sobre ontem à noite... — Foi só o que conseguiu dizer, nervosa.

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— Sim — Pierce foi até a garrafa de café com o rosto inexpressivo. —


Acho que devia tê-la avisado que só trabalho com metade do pagamento
adiantado. Espero que não tenha ficado desapontada.
Então ele não ia mesmo facilitar as coisas. Christine já esperava por isso.
Não sabia o que fazer, mas tinha que tentar. Era muito importante que Pierce
soubesse como lamentava o ocorrido.
— Acho que em toda história da família, um Walsh nunca pediu desculpas
a outro ser humano — começou com dificuldade, depois de engolir a vergonha
e a dor que o comentário dele lhe causou.
— Então não vamos romper as tradições, certo? — Pierce observou-a sem
muito interesse, mas na verdade estava chocado. Se é que alguém devia se
desculpar, não era ele? Não tinha a menor intenção de pedir desculpas, nem
mesmo de mencionar o assunto. A situação inteira era absurda, ela estava
louca, ele também, e tudo o que desejava era sumir dali.
Christine fixou os olhos nas mãos entrelaçadas sobre a mesa. Queria dizer
tantas coisas para Pierce, embora não soubesse muito bem o que e nem
tivesse coragem.
— De qualquer maneira, quero que me desculpe — disse sem conseguir
encará-lo.
Pierce fitou-a embora não quisesse, sentiu o coração amolecer. Talvez
fosse apenas surpresa. Chris pedia desculpas por ele ter falhado na cama? E
por que aquelas palavras mudavam tudo?
Não era difícil imaginar como ela se sentia, magoada, envergonhada e, no
mínimo, tão humilhada quanto ele. Queria dizer que não era culpa dela, que na
verdade, ainda a desejava mais do que nunca. Gostaria de lhe explicar
milhares de coisas, mas sabia que não teria coragem.
— Esqueça o que aconteceu certo? — Bebeu um gole de café, colocou a
xícara sobre o balcão e pegou um cigarro.
Christine sentia que ele evitava fitá-la e desejou que ele se sentasse na
sua frente, assim seria mais fácil. Tentou mostrar-se à vontade.
— Espero que você não...
— Conte a ninguém? — Pierce riu, passou a mão nervosa nos cabelos e
olhou pela janela. — Claro que não.
"Espero que você não me odeie pelo que aconteceu", era o que Christine
pretendia dizer, mas percebeu que soaria estranho para Pierce. Nunca se
importara com ele, então por que se importaria agora? Era uma pergunta que
nem ela sabia responder e acabou ficando contente por ter sido mal
interpretada em sua frase inacabada.
O silêncio incômodo se prolongou e nenhum dos dois sabia como quebrá-
lo. Pierce encostou-se a janela, sem saber por que estavam tendo aquela
conversa estúpida. Uma mulher normal pouparia seu ego nunca mencionando
o assunto, fingindo que nada acontecera. Mas ela não era uma mulher normal.
Era Christine. Teria sido tão mais fácil ir embora se não a tivesse visto, se ela
não tivesse dito nada, se não ficasse ali, parecendo tão vulnerável e
rejeitada...
E um homem normal colocaria um ponto final no assunto naquele
instante, mas talvez ele fosse um masoquista.
— Só uma coisa — perguntou olhando-a. — Por quê?
— Acho que eu estava apavorada.

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"Inferno!", pensou Pierce, invadido por relutante resignação. Conhecia


aquele sentimento. Não seria fácil fugir daquilo. Nem um pouco.
Christine respirou fundo e virou-se para ele, controlando as emoções que
a sangravam e mantendo a voz firme. Pierce não foi capaz de reprimir uma
profunda admiração, quando percebeu seu esforço.
— Só queria lhe dizer que... Bem, não se preocupe que nunca mais
acontecerá uma situação dessas. Daqui para frente, ficarei fora do seu
caminho.
— Não será difícil, já que não estarei aqui.
— Você vai partir? — Perguntou ela com voz estranha e os olhos
ligeiramente arregalados.
— Acho que não terei muito que fazer depois que o último campo estiver
pronto — disse ele, ouvindo a caminhonete estacionar e as vozes de Hamilton
e de Clay.
— Sempre existe o que fazer em uma fazenda. Temos que cuidar da
horta, do pomar, manter a terra molhada, fertilizada, os insetos... Papai estava
contando com você agora que Clay...
Christine não queria que ele partisse. Pierce fitou-a duvidando, mas era
isso mesmo. Ela realmente não queria que partisse. Aquela gente era muito
esquisita! Quanto antes fosse embora dali, melhor!
Pierce ouviu a porta da frente bater, e depois de um minuto Hamilton
apareceu na cozinha.
— Você está aí, rapaz! Precisamos dar uma olhada naquele fertilizador
antes de começarmos a trabalhar amanhã. Vamos ver se damos um jeito nele
antes do almoço.
— Pensei que não trabalhava aos domingos — protestou Pierce.
— É um caso especial filho. — Hamilton deu uma piscada. — Deixe-me
tirar esta roupa domingueira e vou encontrá-lo no barracão.
"Não vá embora, Pierce!", pensou Christine com tal intensidade que a
surpreendeu! "Não sei por que, mas quero que fique aqui. Preciso de você
aqui. Se você for embora, deixará um vazio em minha vida que não será
preenchido por nada. Não vá, Pierce".
Ele hesitou. Tinha que chamar Hamilton e avisá-lo que...
Seus olhos encontraram os de Christine. Há muito ela já tinha deixado o
orgulho de lado, e não fez esforço algum para disfarçar o apelo e... O desafio.
Teria coragem de abandonar um velho doente quando mais precisava dele, de
seu apoio? Diziam os olhos dela.
— Inferno! — Murmurou Pierce, amassando o cigarro no cinzeiro. — Acho
que não tenho para onde ir. — Deu-lhe as costas e saiu pela porta dos fundos,
em direção ao barracão dos tratores.
"Consciência!", pensou com amargura ao sentir o sol de domingo. Tinha
adquirido consciência desde que viera parar naquele lugar, mas passaria muito
melhor sem ela.

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Capítulo XVIII

As plantas começaram a florescer e Pierce assistia ao processo com uma


satisfação profunda e quase mística. Até onde os olhos podiam alcançar o
campo, antes marrom e empoeirado, tornara-se verde, com as frágeis mudas
crescendo gloriosas. Às vezes Pierce ficava sentado diante do campo,
maravilhado e orgulhoso, sentindo que era quase capaz de tocar o elo
misterioso entre o homem e a natureza...
— Meu Deus, como é bonito! — Dizia para si mesmo.
Christine não tinha mentido ao dizer que ainda havia muito trabalho.
Pierce passava muito tempo cuidando da horta, resmungando de insatisfação,
mas, quando colheu os primeiros tomates que cultivara, não pôde reprimir o
orgulho. Eram os tomates mais gostosos que já tinha experimentado.
Também passava muito tempo trabalhando no velho tronco caído,
principalmente para evitar que Hamilton o fizesse. Ainda achava que cortá-lo
era a coisa mais estúpida do mundo e ainda odiava cada minuto que passava
batendo o machado sob o sol escaldante. Mesmo assim, dia a dia eram feitos
progressos. As raízes já tinham sido aparadas e metade do tronco cortado em
pedaços. Na verdade, principalmente à noite, Pierce não se incomodava em
manejar o machado. Dava-lhe tempo para pensar.
Os trabalhadores não estavam desocupados, mas no verão os dias
passavam num ritmo mais lento. Era tempo de relaxar, de se fortalecer, do
preparo para a colheita. A vizinhança promovia piqueniques e reuniões sociais.
Pierce não ia a nenhum, mas Christine parecia gostar e ele ficava feliz por vê-
la sorrindo. As coisas estavam melhores entre os dois agora. Não conversavam
muito e nunca ficavam a sós, mas era uma sensação boa saber que ela estava
por perto. Pierce começava a aprender como era ter uma mulher por amiga.
Hamilton o ensinou a jogar xadrez e, quando jogavam, Christine cochichava no
ouvido de Pierce, dando palpites sobre as melhores jogadas que deveria fazer.
Ele encontrou um velho violão no sótão e, como ninguém se opôs, consertou-
o. Passava horas dedilhando antigas canções. As noites eram boas, longas e
calmas e, embora não admitisse, Pierce começava a descobrir o que significava
ter um lar...
Clay mandava cartas insensíveis e sem arrependimento algum do
seminário. Os olhos de Christine ficavam enevoados quando as lia, mas a
confiança de Hamilton jamais cedia. Às vezes Pierce não sabia o que era pior,
se a tristeza de Christine ou a fé de Hamilton. Não gostava dos dias em que
chegava carta de Clay.
Naquele dia, como nos outros, a temperatura estava muito alta e não
havia uma brisa sequer. Hamilton olhava preocupado para o céu e tinha ficado
com o rádio ligado durante duas horas depois do jantar para ouvir o serviço
meteorológico, mas não houve novidade alguma. Ouviam trovões distantes, e
o calor abafado no quarto de Pierce era quase insuportável. Christine tinha lhe

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dado um pequeno ventilador elétrico, mas não adiantava. Como não conseguia
dormir, ficou pensando na vida.
A colheita seria feita depois da primeira onda de frio que viesse. Mas as
plantas ainda estavam muito pequenas, mal podiam ser chamadas de mudas,
e o frio parecia muito distante. Entretanto, apenas algumas semanas antes os
campos agora verdes não passavam de um sonho louco de um velho. Pierce
tinha certeza de que teriam uma boa safra. Depois disso iria embora.
Um inesperado golpe de ar frio penetrou pela janela aberta e Pierce virou-
se agradecido. Era bom pensar em frio numa noite quente como aquela. As
estações mudariam, Cavenetti cansaria de persegui-lo e ele iria embora
daquele lugar estranhamente fascinante com a mesma facilidade com que
tinha chegado. Era difícil imaginar isso, mas sabia que iria acontecer.
Outro golpe de ar movimentou as cortinas, um relâmpago silencioso
deixou o quarto azul e Pierce sentou-se, olhando a janela. O vento estava mais
frio agora e parecia granuloso, elétrico, como...
Ouviu os primeiros pingos baterem no telhado de zinco de seu quarto e
sentiu o corpo como que percorrido por uma corrente elétrica. Levantou-se da
cama num salto e olhou pela janela.
— Meu Deus! — A exclamação foi proferida entre dentes e seu corpo ficou
mais tensionado ao perceber, horrorizado, o ritmo crescente e a força dos
granizos batendo no teto.
Sem saber como, vestiu a roupa e saiu do quarto. Desceu a escada
correndo, gritando por Hamilton e batendo nas portas. Quando chegou à
varanda, o barulho da chuva de pedras era tão alto que ele nem conseguia
pensar.
Ficou parado ali, vendo as pedras de gelo furiosas, batendo no chão,
brilhando na noite, rasgando as árvores. Não conseguia acreditar. Estava ali,
vendo com seus próprios olhos, mas não conseguia acreditar. Um minuto atrás
não havia nem uma brisa, e agora o céu tinha se aberto, despejando um
verdadeiro dilúvio.
Christine estava ao seu lado, com a camisola curta grudando no corpo, e o
rosto pálido de horror. Logo depois, Hamilton agarrou-lhe o braço e Pierce mal
conseguiu ouvi-lo:
— A caminhonete! Lona e palha de trigo! Vamos salvar o que pudermos!
Correram os três, escorregando no gelo, lutando contra o vento.
Carregaram fardos de palha e lonas na caminhonete, correram ao longo dos
canteiros das mudas de plantas já derrubadas e castigadas pelas pedras de
gelo, esparramando a palha, desenrolando as lonas. Carregaram de novo a
caminhonete e Pierce nem sabia quantas viagens fizeram, nem por quanto
tempo trabalharam.
Sentiu as costas como se tivesse sido chicoteado, um filete de sangue
escorrendo-lhe pelo rosto e foi lavado pela chuva, seus pulmões doíam e ele
não conseguia enxergar nada, escorregava na lama e o gelo cortava-lhe a
mão, mas num segundo estava em pé novamente. Não era verdade. Pierce
sabia que não era verdade, mas continuava, pois o pesadelo precisava
terminar.
De repente, sentiu a mão de Hamilton, firme em seu ombro. Ouviu o grito
mais forte do que o vento:
— Não adianta!

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— Não! — Gritou Pierce, sem reconhecer a própria voz. — Não, você está
louco! Não podemos parar agora! Vamos perder tudo...
— Leve Chris para casa! — Hamilton segurou Pierce com mais firmeza,
tentando fazê-lo voltar a si. — Acabou! Não podemos fazer mais nada!
Hamilton foi para a caminhonete e Pierce ficou imóvel, banhado pela
chuva. Dois meses de sangue e suor, dia após dia de sol escaldante, músculos
exaustos, esperança, sonhos e orgulho... E em questão de minutos estava
tudo acabado... Não era possível...
A chuva diminuiu, os granizos desapareceram com a mesma rapidez com
que surgiram.
Pierce viu Christine parada alguns metros adiante, com a camisola tão
colada ao corpo que parecia nua. Estava com os olhos arregalados, o corpo
sacudido pelos soluços, as pernas cobertas de lama, os pés sangrando e os
ombros caídos.
Aproximou-se e abraçou-a. As lágrimas quentes dos dois contrastavam
com a frieza da chuva. Segurou-a com mais força, embalando-a, sem saber se
estava tentando confortá-la ou ser confortado.
— Leve-me embora Pierce, leve-me embora daqui. — Murmurou Christine
em seu ouvido. — Não sei para onde, mas me leve embora.
Sim, de repente, mais do que qualquer coisa no mundo, era exatamente
isso que ele desejava. Estar longe dali, levá-la para longe dali. Não importava
para que lugar, contanto que o sol brilhasse e a vida fosse fácil.
— Sim — respondeu ele, não reconhecendo a voz rouca. — Nós vamos
embora daqui.
Pierce passou o braço pela cintura de Chris e começaram a caminhar
rapidamente, sem saber para onde, apenas pela satisfação de se afastarem
daquela desolação. A chuva recomeçou com súbita ferocidade e os dois
rolaram num banco de lama. Pierce ouviu Christine gritar. Talvez também
tivesse gritado de raiva e frustração. Quando pararam afinal, ficaram deitados
no chão, com a respiração difícil, procurando abrigo e segurança um no corpo
do outro.
Seus rostos estavam próximos, a respiração e os soluços dos dois se
confundiam. Suas bocas se colaram e uma súbita corrente de energia invadiu-
os ao mesmo tempo. Estavam desesperados, e era como se tivessem apenas
um ao outro no mundo.
Nem tiraram a roupa. A camisola de Christine foi levantada e o jeans de
Pierce aberto. Bocas e línguas se misturavam com desespero e eles entraram
imediatamente no mesmo ritmo. O clímax aconteceu rápido e dolorosamente
explosivo... Mas, assim que terminou a tristeza que os invadiu foi tão vasta e
desoladora quanto à morte que os cercava.
Os dois estavam cobertos de lama, tentavam tirar força um do outro
quando nenhum deles tinha o que oferecer. Sentiam-se vazios, terrivelmente
vazios...
Pierce sentou-se na lama e abotoou o jeans, fechando os olhos para o que
não suportava ver. Sentia o desespero de Christine e a dor que o dilacerava
também era horrível, como as lágrimas incontidas dela. Queria tocá-la, abraçá-
la, dividir a dor, mas a crueldade da chuva os separava. Era como se a vida
inteira tivesse sido conduzida para aquele momento... Sexo na lama, tão
rápido e desesperado que a lembrança tinha quase desaparecido antes mesmo

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de o ato ser consumado. E não mudara nada. Não adiantara nada. Apenas um
momento onde a natureza agira sozinha, utilizando-se de seus corpos como
instrumentos de seu poder. E não adiantara nada. Não mudaria nada...
Pierce ouviu Christine respirar fundo ao seu lado e arrumar a camisola.
Não conseguiu encará-la. Levantaram-se com movimentos cansados e
começaram a voltar para casa, sem se tocar, sem falar e sem olhar para trás...

Capítulo XIX

A manhã seguinte chegou limpa e clara. Os raios de sol brilhando acima


do horizonte eram um riso irônico à devastação da terra, e o canto alegre dos
pássaros soava quase obsceno. As poucas horas de sono agitado nada fizeram
para amenizar o pesadelo e, quando abriu os olhos, Pierce ainda sentia um
forte aperto na boca do estômago, uma sensação mais intensa e angustiante
do que qualquer outra que conhecia.
Encontrou Christine na cozinha. Não tinha dormido e estava abatida, com
olheiras profundas. Olharam um para o outro, mas nada havia a dizer que
compensasse o esforço. O que acontecera entre eles na noite anterior parecia
ter acontecido com outras pessoas.
Ela andava de um lado para outro, procurando serviço para manter-se
ocupada. Hamilton estava do lado de fora, encostado no batente da porta,
olhando o estrago. Pierce serviu-se de uma xícara de café e foi até a porta,
mas não saiu.
O sol brilhava sem remorso sobre a devastação e Pierce mal suportava
olhar. Também não suportava olhar para Hamilton e para Christine e ver seu
próprio choque e sonhos mortos refletidos nos rostos deles. Mas Hamilton
continuou ao lado da porta, com uma xícara de café nas mãos, por um longo
tempo. Pierce não sabia como era capaz de examinar e absorver em cada
detalhe o terrível fim de um mundo.
— Logo que estiver seco o suficiente, vamos arar a terra e plantar de novo
— anunciou o velho de repente. — Vamos torcer pelo florescimento rápido e
pelo frio tardio. Já fizemos isso antes.
— Com o quê? — Replicou Christine desanimada. — Vendemos as
sementes para comprar fertilizante. Estamos empenhados até o pescoço e sem
um centavo. Não tem jeito.
— Vamos Christine, tem que ter um jeito! — Retrucou Pierce num
impulso, sem pensar no que estava falando.
Ela fitou-o, parecendo não compreender. Pierce não suportava vê-la
arrasada daquele jeito. Virou-se e saiu, seguido por Hamilton, que lhe
estendeu as chaves da caminhonete.
— Vamos verificar os prejuízos.
Christine foi até a porta e ficou olhando o que restava de sua última
esperança. Não conseguiriam superar aqueles prejuízos. Só lhes restava

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vender a terra. Mudaria com seu pai para uma casa menor, arrumaria um
emprego em alguma cidade grande...
Duzentos anos. Quatro gerações de Walsh naquela casa e, antes delas, os
pioneiros que conseguiram a posse legal sobre a terra. Pessoas tinham morrido
por aquele lugar. Geração após geração depositara a energia de suas vidas
naquele pedaço de terra, para terminar assim...
"Vamos, Christine, tem que ter um jeito!"
Com aquelas palavras ecoando em seus ouvidos, ela endireitou o corpo e
foi para a escrivaninha. Sabia que era inútil, mas os Walsh nunca desistiam.
Passou a manhã inteira examinando os livros-caixa, telefonando para
bancos, instituições financeiras e agências federais. A cada negativa bem
educada, sentia o coração mais apertado, mas a cada uma respirava fundo,
revia suas opções e tentava outra vez.
Hamilton e Pierce voltaram depois do meio-dia e era impossível dizer
quem estava mais deprimido. Christine preparou sanduíches, mas ninguém
estava com fome. Eram interrompidos a cada cinco minutos pelo toque do
telefone, todos os vizinhos querendo saber se a fazenda dos Walsh estava tão
deplorável quanto à deles, querendo saber o que fariam. Christine não
aguentava mais e tirou o fone do gancho. No fim da tarde Hamilton resolveu ir
ver pessoalmente o estado lastimável de toda a região e Pierce recusou o
convite para acompanhá-lo. Christine se fechou no escritório e acabou por fim
adormecendo.
Estava escurecendo quando acordou. Olhou pela janela os campos
enlameados, tão diferentes do que via até o dia anterior e, sentindo um nó na
garganta, não quis ficar sozinha.
Pierce estava sentado num degrau da varanda. Parecia tão jovem, sozinho
e perdido quanto Christine.
— Papai está em casa? — Perguntou ela, sentando-se a seu lado.
Pierce meneou a cabeça e acendeu um cigarro.
— Ele voltará tarde. — Christine respirou fundo e ficou surpresa ao
perceber como o ar estava doce. — Devem estar todos reunidos no Ralph's ou
em outro lugar qualquer, pensando no que fazer.
— Teve sorte com os telefonemas?
— Ninguém está emprestando dinheiro. Mesmo que estivessem, não
temos nada para oferecer como garantia. Posso tentar de novo amanhã, mas...
"Acabou", pensou Pierce. Ainda era difícil aceitar a ideia. Na noite anterior
o sentimento dominante tinha sido raiva; durante o dia, tristeza, e agora...
Não era possível.
Ficaram em silêncio por alguns minutos, desfrutando o fato de estarem
próximos um do outro, como se fossem os únicos sobreviventes do mundo.
Ele terminou de fumar e jogou o cigarro fora. O brilho distante de uma
estrela chamou-lhe a atenção.
— Vênus. Nunca a tinha visto antes de vir para cá.
"Ele gosta daqui", pensou Christine, sem se surpreender. Mal lembrava o
rapaz metido que chegara na primavera, só causando problemas. Era difícil
pensar em Pierce em termos de passado. Tudo o que via agora era um homem
que gostava dali tanto quanto ela, que estava magoado pelas mesmas razões,
que precisava das mesmas coisas... Nem conseguia lembrar como começara
aquele elo de companheirismo entre eles. Mas não tinha importância.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Pierce tinha passado o dia inteiro pensando no que diria a respeito do que
haviam feito, do que ele havia feito, na noite anterior. Queria que Chris
soubesse que não tinha planejado. Que não queria, que nem imaginava que
pudesse acontecer daquela maneira. Queria que ela soubesse que seu desejo
era fazer amor com delicadeza, para fazê-la feliz. Queria que soubesse que
merecia muito mais, e que ele lamentava o ocorrido. Não a culparia se o
odiasse.
— Acho que vou partir em breve — disse de repente. Apesar dos muitos
choques que Christine sofrerá nas últimas vinte e quatro horas, não esperava
por aquele. Foi como se algo comprimisse seu peito, impedindo-a de respirar.
Claro que Pierce iria embora. Para que ficaria? Estava tudo acabado!
— Eu quero você há muito tempo, você sabe — disse ela, sem encará-lo.
— Sim. — Pierce sorriu vagamente e sua resposta parecia à coisa mais
natural do mundo. — Eu também quero você. Há muito tempo.
Os dois se olharam e não havia mais nada a dizer. Sabiam a verdade e a
verdade era que, no meio de toda aquela terrível destruição, os desejos e
necessidades das pessoas perdiam a importância. Havia tristeza nos olhos de
Chris e resignação nos de Pierce.
Depois de um longo tempo, ela desviou o olhar, mas pousou a mão sobre
o joelho de Pierce. Era um gesto apenas amigável, mas ele se encorajou a
passar-lhe o braço em volta da cintura e Chris deitou a cabeça em seu ombro,
aconchegando-se. Ficaram sentados assim, vendo a noite chegar.
Christine entrelaçou os dedos nos dele e sentiu o peito de Pierce se
expandir num suspiro silencioso. Pensava em todas as mulheres que tinham
passado por sua vida, imagens sem nome, rostos que não conseguia lembrar.
Dizer adeus nunca havia sido tão doloroso assim. Quase sem querer, seus
dedos fecharam-se nos dela e abraçou-a com mais força. Teve que fechar os
olhos.
— Ah, Chris, o que vamos fazer?
Christine afastou-se um pouco e encorajou-o. Antes que respondesse ele
tinha adivinhado.
— Vamos para a cama.
Por quanto tempo ficou olhando-a? Quantas vezes tinha ouvido aquelas
palavras, de quantas maneiras? Sedutoras, impacientes, irônicas,
imperativas... Mas nunca tinham tido o poder daquela noite, ditas com tanta
simplicidade.
Pela última vez compartilhariam tudo o que tinham a oferecer. Não seria
suficiente, mas precisava ser assim.
Pierce sentia a garganta ardendo e não conseguiu dizer nada. Assentiu
depois de um momento e entraram na casa de mãos dadas.
Quando Christine afastou-se para acender a lâmpada sobre o criado
mudo, Pierce ficou desorientado por um instante. Nunca tinha visto o quarto
dela, decorado com simplicidade, como a própria Christine. Teve certeza de
que ela nunca trouxera nenhum homem a seu quarto e, de repente, sentiu que
também não devia estar ali.
Christine cerrou as cortinas, Pierce fechou a porta e trancou-a. Eram
movimentos comuns, mas pareciam novos para ele, com o poder de
intensificar a expectativa.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Chris abaixou-se para tirar os sapatos e Pierce começou a se despir.


Parecia complicado aquele ritual que fizera inúmeras vezes para inúmeras
mulheres. Sentia o coração explodindo no peito ao desabotoar a camisa, e os
músculos de seu estômago estavam tão contraídos que chegava a doer. Era
como se fosse à primeira vez...
Christine tirou o jeans e sentou-se na cama, de calcinha e camisa,
esperando por ele. Pierce não sabia dizer se estava tímida, ansiosa ou
simplesmente a sua espera. Sentia-se desajeitado abrindo o zíper do jeans,
mas conseguiu sustentar-lhe os olhos, tentando não deixá-la perceber que
aquela era a coisa mais importante que já lhe tinha acontecido, tentando não
deixá-la perceber quanto a queria.
Aproximou-se nu, e ajoelhou-se na cama. Começou a desabotoar a
camisa de Chris, não acreditando que suas mãos tremiam e seu coração
estava disparado. Os botões pareciam intermináveis e quando afinal, tocou-lhe
a pele, pensou que ia desmaiar.
Queria dizer alguma coisa. Tentou pensar em frases eróticas, em palavras
quentes e sussurradas que sabia usar tão bem para excitar uma mulher, mas
não conseguiu se lembrar de nenhuma.
Tirou-lhe a camisa e o sutiã e ficou extasiado ao vê-la nua. Beijou-lhe o
pescoço, quase com reverência e um tanto inseguro, passou os dedos na curva
do seio.
— Diga como posso agradá-la Chris! — Foi tudo o que conseguiu
murmurar.
Christine abraçou-o e correu os dedos por seus cabelos. Levantou-lhe o
rosto para fitá-lo e seus olhos eram tão claros e brilhantes que Pierce viu sua
imagem refletida.
— Ame-me Pierce, só isso...
Foi aí que ele compreendeu por que se sentia tão inseguro e desajeitado.
Não podia desempenhar um papel, pois daquela vez não se tratava de um ato
falso. Foi um pensamento assustador, mas, quando a abraçou, dando um
longo suspiro, tudo o que sentia era liberdade.
Pela primeira vez na vida, deixou as emoções, e não a mente, controlarem
suas atitudes. Os dois se compreendiam e se completavam, criando um mundo
à parte de tudo o que não podiam ter, onde poderiam ter o que mais
importava, nem que fosse apenas por um momento... Era tão bom, tão
natural, mais real e mais bonito do que qualquer coisa que Pierce conhecia.
Pierce penetrou-a, e por um momento ficaram abraçados como se
quisessem fundir os dois corpos num só. Ele não se moveu. Mal se atrevia a
respirar. Queria que aquele instante se prolongasse pela eternidade, intacto
em sua beleza e perfeição.
Christine beijou-lhe docemente os lábios, o rosto, os olhos. Pierce
levantou a cabeça e fitou-a, acariciando-lhe os cabelos, as linhas do rosto que
queria lembrar para sempre. Como eram bonitos os olhos dela! Sem mentiras,
sem falsidade. Apenas Christine, que agora era parte dele.
O ritual natural começou orquestrado pelos dois. A princípio com ternura,
numa comunicação perfeita e silenciosa, um explorando o outro e se
reverenciando. Mas o ritmo tornou-se mais forte, sucumbindo à paixão.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Christine o agarrou e abafava em seu ombro gemidos de intenso prazer.


Pierce queria beijá-la e acalmá-la para prolongar o momento, mas seu próprio
êxtase foi explosivo e envolvente, parecendo não terminar nunca.
Quando, afinal, afastou-se, foi natural aconchegarem-se um nos braços do
outro. Abraçar e acariciar eram as atitudes mais naturais depois de um ato de
amor, mas era a primeira vez que Pierce sentia ser impossível sobreviver sem
esse momento.
O corpo de Christine ainda estava cálido e trêmulo como o dele. Pierce
fechou os olhos, com vontade de falar. Queria contar que nunca tinha sido
assim, mas seria redundante. Ela já sabia. Compartilharam juntos inteiramente
aquele momento, tinha sido maravilhoso para os dois.
Quando depois de algum tempo abriu os olhos lentamente, notou que
Christine apagara a luz. Talvez quisesse dormir, o que não o incomodava.
Gostava da ideia de Chris dormir em seus braços. Dali a pouco teria que deixá-
la, mas ainda podiam ficar juntos alguns instantes...
— Não estou dormindo — murmurou ela.
Pierce apertou-lhe o braço levemente para demonstrar que tinha ouvido,
mas não respondeu. Ainda estava dominado por emoções intensas demais
para falar. Como era estranho que um ato tão simples, executado tantas vezes
pelas mais variadas razões, fosse tão diferente agora! Talvez porque tivesse
esperado muito tempo. Ou talvez simplesmente porque era a primeira vez na
vida que tinha feito amor com alguém.
Virou a cabeça para a janela, ouvindo o coro de grilos. Pensamentos
loucos começaram a passar-lhe pela cabeça. Pensamentos de outras noites
iguais àquela, nos braços de Chris, na mesma cama, pensamentos sobre
crianças e outras coisas impossíveis. Sentiu o peito comprimido, retirou o
braço que a aninhava e sentou-se devagar. Estava feliz por terem vivido
aquela noite, tinha sido bom, mas era apenas sexo afinal. Nada mudara.
— Você nunca devia ter se envolvido comigo — disse com voz abafada.
Christine recostou-se nos travesseiros e fechou os olhos.
“Não me faça chorar agora, Pierce. Não me faça chorar”. Mas as lágrimas
não estavam muito distantes. Ela sabia que estava tudo terminado antes
mesmo de começar.
Pierce caminhou pelo quarto escuro com a segurança de um gato. Vestiu o
jeans e acendeu um cigarro.
— Não posso ficar você sabe.
— Não me lembro de ter pedido para que ficasse — respondeu Christine
com o coração em pedaços, mas a voz firme.
Pierce deveria ficar aliviado pela compreensão, mas ao contrário,
angustiou-se ainda mais. Nada mudara mesmo!
Foi até a janela e abriu as cortinas. Ficou recostado por alguns momentos,
fumando e tentando entender por que sua vida se tornara tão louca. Por que,
depois de esperar tanto tempo, lhe acontecera uma coisa maravilhosa, quando
nada mais fazia diferença? Mas era sempre assim. Nada fazia sentido. Nunca.
"Não quero saber", pensou Chris crispando as mãos. "Não podemos
esquecer tudo só por uma noite? Não pode fingir mais um pouco que me ama,
Pierce? Só mais um pouco..." Entretanto, ouviu a própria voz calma e quase
normal:
— Você acha que estará em segurança partindo agora?

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

— Não sei. — Pierce encolheu os ombros. — Talvez sim. Você acha que
existe possibilidade de... Manter a fazenda?
"Maldito! Por que tem que ser tão responsável Pierce?" Chris não queria
pensar na fazenda. O esforço de pensar nesse e em tantos outros problemas
era muito mais do que podia suportar. "Só mais alguns minutos de paz, de
fingimento."
Mas era inútil fingir e o tempo estava esgotado. De repente, sentiu-se
cansada, esgotada.
— Sempre existe uma chance. Pelo menos vamos tentar.
A noite estava escura e Pierce sentia-se vazio. Com súbita e
surpreendente intensidade, desejou poder estalar os dedos e mudar tudo.
Gostaria de tirar mudas tenras e fortes da terra, de fazer feliz de novo um
homem velho, de amar aquela mulher. Porém, nada podia fazer.
Uma onda de frustração o dominou. Jogou o cigarro pela janela com um
gesto impulsivo e atravessou o quarto para pegar a camisa e os sapatos. Não
adiantava ficar. Não ajudava Christine ficando ali, nada podia fazer por ela.
Quando chegou à porta, virou-se para ela. Pelo menos tinham vivido
aquela noite, e talvez fosse até mais do que tivessem direito de pedir.
— Eu sinto muito, Chris.
Não adiantava. Os dois sabiam muito bem, mas no momento era o melhor
que Pierce podia fazer.

Capítulo XX

— Obrigado por me telefonar — disse Clay, estendendo a mão.


Era mentira. Clay tinha suado frio desde o momento em que desligara o
telefone, e agora só conseguia pensar em como tudo estava feio e enlameado
em comparação ao conforto do dormitório que ocupava no seminário.
Pierce hesitou por um momento. Depois lhe estendeu a mão.
— Fiz o que achei mais correto.
Pierce tinha vindo buscar Clay num posto de gasolina no outro lado da
cidade, onde havia uma parada de ônibus. Não avisara Hamilton e Chris sobre
a visita, principalmente por não ter certeza se Clay viria. O rapaz carregava
apenas uma maleta, e Pierce ficou aliviado por não ter dito nada.
Foram para a caminhonete em silêncio e assim ficaram durante vários
quilômetros, até Clay comentar:
— Acabou com toda a região.
— Sim.
— Como papai está aceitando o fato?
— Do jeito dele — respondeu Pierce, mas não podia contar o resto. O
rapaz descobriria por si mesmo.
Clay não tinha mais nada a dizer. Não queria estar ali, nem queria saber o
que acontecera. Queria voltar para a paz dos sinos repicando, dos livros, dos

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sorrisos calmos de seus colegas. Ainda não estava preparado para uma missão
difícil.
— Chris passou os dois últimos dias tentando levantar dinheiro —
acrescentou Pierce, depois de algum tempo. — Mas não existe dinheiro para
replantar em lugar nenhum.
E ainda assim, Hamilton se recusava a aceitar o fato. Dizia que já passara
por situações semelhantes e que sempre tinha sobrevivido. A família sempre
se recuperava e ele não conseguia ver que aquela vez era diferente. Recusava-
se terminantemente a aceitar a ideia de que era a última vez.
Bem, Pierce não tinha nada a ver com isso. Chamara Clay, o filho, a
pessoa correta. Era tudo que estava ao seu alcance para ajudá-los.
— Não sei o que devo fazer — disse Clay em voz baixa, depois de longo
silêncio.
Por um momento Pierce ficou surpreso e o olhou. Viu um garoto diante de
problemas sérios de um adulto, com expressão desajeitada e constrangida. Ele
era filho de Hamilton, devia saber o que fazer. Era um Walsh. Só precisava
tomar seu lugar ao lado do pai e fazer alguma coisa.
Mas o rapaz realmente não sabia o que fazer, ele compreendeu de
repente, sem saber se lamentava mais por Clay, por Hamilton ou por si
mesmo.
— Acho que você deve fazer o melhor que puder — conseguiu dizer afinal.
Christine estava sozinha quando encontrou Clay. Estava no escritório,
olhando o telefone que acabara de levar sua última esperança. Não havia
absolutamente nada que pudessem fazer.
Não ficou surpresa ao virar e ver o irmão parado dentro da saleta. Os
últimos dias tinham exaurido sua capacidade de se surpreender, mas não era
só isso. Estavam no fim de um ciclo, e nada mais natural que seu irmão
estivesse junto para dividir os momentos difíceis.
— Nunca fiquei realmente com raiva de sua opção de vida, Clay — disse
com tranquilidade. — Só que... Apavorava-me o fato de você crescer. — Sorriu
e baixou os olhos. — Há pouco tempo alguém me disse isso, mas acho que só
agora tenho condições de admitir. — Encarou-o. — Espero que me perdoe.
— Não há nada para perdoar. — Ele sorriu.
Pierce estava na sala quando Christine e Clay saíram abraçados e
observou-os por um instante, sentindo-se satisfeito.
Não sabia ao certo porque, mas estava feliz com aquela reconciliação.
— Clay, seu pai está lá fora. Eu não contei que você está aqui.
Demonstrando certa insegurança, Clay olhou para Pierce, depois para
Christine e sorriu. O encontro não seria nada fácil. Respirou fundo e saiu.
Christine e Pierce ficaram a sós, olhando um para o outro. Inúmeras vezes
nas últimas trinta e seis horas tinham ficado a sós com mil coisas a dizer, mas
sabendo que nada podia ser dito. Palavras de amor, promessas e segredos
eram vazios e sem sentido. Pierce não queria humilhá-la dizendo coisas sem
sentido. Era um ator que representava sempre um jogo e agora, de repente,
percebia que não havia mais jogo. Não sabia o que dizer.
Centenas de vezes desde aquela noite seus olhares se encontraram, claros
e sem medo, e também não havia nada que Christine pudesse dizer. E centena
de vezes Pierce desejou abraçá-la e nunca mais deixá-la se afastar. Mas
também não tinha sentido. No final, nada existia além de uma lembrança. Os

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dois não tinham possibilidade de sobrevivência no panorama que os


circundava.
Pierce saiu à procura de Hamilton e Christine virou-se para ocultar a dor
que se seguiu à saída dele.
Mal colocou os pés para fora, ele desejou ter ficado dentro da casa ou ido
para qualquer outro lugar, assim não testemunharia o encontro entre pai e
filho. A felicidade que transformou o rosto do velho quando abraçou Clay
deixou Pierce com o coração apertado. A eterna esperança do velho tinha
alguma coisa de patético.
— Você voltou filho — disse Hamilton, com a voz embargada pela emoção.
Ficou olhando para Clay. — Eu sabia que você voltaria. Quando as coisas ficam
ruins você logo lembra quem é, não garoto? Bem, talvez não esteja tão difícil
quanto pareça! Não existe nada que nós, os Walsh, não possam fazer quando
estamos juntos, não é?
— Papai, vim para casa porque... Bem, não podia deixar vocês sozinhos
numa situação dessas. — Clay colocou as mãos nos ombros de Hamilton,
tentando demonstrar todo o amor e tristeza que sentia. — Mas não vou ficar.
Não posso.
Pierce viu o terrível esforço de compreensão estampado no rosto de
Hamilton. Viu á morte de algo mais precioso do que a esperança refletida nos
olhos do velho. Percebeu que era a primeira vez que ele admitia estar tudo
acabado, que era mesmo o fim de tudo.
— Entendo — disse afinal, e Pierce não aguentou mais. Virou as costas e
afastou-se.
Uma hora depois, Clay encontrou Pierce sentado sob a sombra de uma
árvore e acomodou-se a seu lado.
— Posso lhe perguntar uma coisa? — Disse depois de alguns momentos.
Pierce não respondeu. — Christine... Está apaixonado por ela?
— Diabos! — Resmungou Pierce, arrancando um punhado de grama e
jogando-a longe. Tinha sido pego de surpresa. Clay saberia que havia dormido
com a irmã? Pela primeira vez, perguntou-se se Hamilton também tinha
percebido e concluiu que provavelmente sim. Era muito difícil que alguma coisa
passasse despercebida ao velho.
— Está conversando com o homem errado, pastor — respondeu, sem
olhar para Clay. — Não entendo nada de amor.
— Não é tão difícil de entender — começou Clay, mas o súbito
endurecimento das feições de Pierce e o olhar de amargura que queimou em
seus olhos fizeram-no engolir as palavras.
— Esqueci. — Pierce sentia-se completamente dominado pela raiva e pela
mágoa. — Você entende muito de amor mesmo! Você ama uma mulher e a
abandona, tem uma família que o adora e vira as costas para ela! Acho que
por isso o amor não é assunto difícil para você — concluiu com amargura. —
Perde o valor quando uma pessoa tem demais.
Clay sentiu a garganta apertada. Não tinha resposta para aquele
comentário. Pierce não estava dizendo nada que não soubesse, mas até hoje
não quisera pensar nisso.
— Escute, eu lhe expliquei por que...
— Certo! Tinha me esquecido, certo? — Pierce sabia que não tinha o
direito de jogar sua frustração em cima de Clay, que o rapaz não tinha nada a

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ver com seus problemas, mas era impossível se controlar. — Escute aqui
pastor, todas as suas palavras parecem boas, mas não têm significado algum
porque estão distantes da vida real. De que Deus você fala? Quem é Esse que
deseja todo o amor só para ele? Também não quero saber, maldição! — Pierce
jogou fora mais um chumaço de grama e levantou-se com um movimento
brusco.
Clay o seguiu mais devagar. Estava totalmente confuso. Todas as
verdades que já sabia e todas as que evitava estavam agora tomando corpo.
Sentia-se à beira de uma crise de desespero.
— Pierce — murmurou quase em tom de súplica, ao pousar a mão no
braço dele. — Não há nada que eu possa fazer.
Pierce olhou para a mão em seu braço por tanto tempo que Clay acabou
retirando-a. Depois olhou para o rapaz, mas sem raiva ou desprezo. Em seus
olhos havia apenas uma expressão de desânimo.
— Você poderia pelo menos tentar — disse com simplicidade, antes de
afastar-se.
Clay ficou parado durante muito tempo. Começou a entender lentamente
não só as palavras de Pierce, mas tudo, tudo que questionara, tudo que
precisava aprender. A compreensão viera à duras penas, mas estava
consciente. Tinha se envolvido num mundo confortável de estudo e meditações
abstratas sem qualquer utilidade para a vida prática. Pierce estava certo. No
dia a dia, tudo o que estudava não servia para nada.
O amor não era fuga, mas compromisso. De alguma maneira, Clay
confundira tudo. Tinha respondido ao chamado para servir a Deus, mas a única
pessoa a quem servira tinha sido a si mesmo.
Ainda não sabia como ajudar sua família, como canalizar sua energia e fé
para transformar o mundo real, que era o que realmente importava. Mas tinha
certeza de que algo devia ser feito. E sabia por onde começar.
Abby estava no quintal, pendurando roupas num varal preso entre dois
carvalhos. Durante todo o caminho Clay estava com um nó na boca do
estômago, e com as mãos tão úmidas de suor que escorregavam no volante.
Havia desapontado tanta gente, magoado tanto as pessoas que amava! O que
diria para Abby agora? Como era capaz de imaginar que ela ainda o queria?
Conforme passava pelos campos devastados das fazendas, um sentimento
peculiar passou a dominá-lo. A ansiedade transformou-se em atenção e vários
pensamentos lhe ocorriam ao mesmo tempo. Dezenas de fazendeiros, toda a
região... Tudo arruinado e na mesma situação. Porém, onde Pierce via
destruição, Clay viu uma pequenina chama de esperança.
Quando estacionou a caminhonete ao lado da casa de Abby, estava tão
excitado que quase esqueceu o nervosismo. Podia dar certo, tinha certeza que
sim. Deviam pelo menos tentar.
Abby o viu, quando Clay já estava bem próximo, nesse momento, a
ansiedade voltou.
Os dois ficaram imóveis, com os olhos fixos um no outro. Abby estava
com um saco de prendedores de roupa amarrado no cós da calça e a camiseta
enrolada acima da cintura. Uma brisa jogou uma mecha de cabelos sobre seus
olhos e ela empurrou-a para trás com um movimento lento. Clay prendeu a
respiração. Pela primeira vez na vida, tinha certeza de que estava certo.
— Case-se comigo Abby — disse com calma.

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Ela continuou imóvel, fitando-o. Quando o vento começou a brincar


novamente com seus cabelos, levantou o braço para segurá-los.
— Por quê?
— Porque preciso de você, porque não posso viver sem você.
Os dois se moveram ao mesmo tempo. Os lábios se encontraram, e a
paixão represada por muito tempo transformou-se finalmente em alegria.
Acabaram rindo ao perceber que o saco com prendedores de roupa espetava o
estômago de Clay.
— Você tem certeza Clay?
— Não posso continuar fugindo Abby. Levei muito tempo para
compreender que estava fugindo do que mais preciso. Ainda tenho muito para
aprender, mas você pode me ajudar... — Deu-lhe um beijo na têmpora. — Não
me deixe esquecer que sou humano, meu bem.
Ficaram abraçados por longo tempo e Clay foi lentamente se acalmando.
Desta vez agiria bem. Tinha certeza disso.
Quando olhou de novo para Abby, seu sorriso retratava um homem que
passara a vida inteira à procura de algo que estava sob seu nariz. Estava feliz,
triste, um pouco surpreso, decidido a não perder aquela oportunidade de sua
vida.
— Vamos entrar Abby. Temos muitos planos a fazer — disse, numa carícia
delicada. Olhou os campos devastados. — Preciso usar seu telefone.

Capítulo XXI

Eram cerca de quinze homens reunidos no pequeno escritório. Christine


estava sentada atrás da escrivaninha e Clay ao seu lado. Hamilton pegara uma
cadeira da cozinha e acomodara-se num canto.
Christine só ficava nervosa quando olhava na direção dele. Ela e Clay
haviam resolvido não discutir o plano antecipadamente, acreditando que talvez
fosse mais fácil o pai aceitá-lo, ouvindo a apresentação junto com os outros
fazendeiros. Na verdade não estava preocupada. Tinha certeza de que daria
certo, e cada vez que pensava naquela solução sentia-se fortalecida e
triunfante.
Pierce estava no fundo da sala, parado no vão da porta, como se não
tivesse certeza se devia estar presente na reunião. Christine o queria na
frente, segurando-lhe a mão, compartilhando aquele momento de decisão e
vitória que também era dele. Pierce devia estar ao seu lado agora e sempre.
Ela o fitou pensando nisso, mas ele evitou-lhe o olhar.
Clay pediu silêncio e atenção dos presentes.
— Sei que todos querem saber por que estão aqui. Quando falei com
vocês pelo telefone, tentei lhes dar uma ideia do que estamos tentando fazer,
e acho que a grande questão agora é saber como nosso plano vai funcionar.
Bem, para falar a verdade eu não sei. Só tive a ideia, e minha irmã é a pessoa
da família que tem tino comercial. Passo a palavra a ela, que explicará os

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detalhes. Christine se levantou, acompanhada pelos olhares de todos os


homens da sala. Teve consciência de que segurava o futuro deles nas mãos.
— Estamos aqui reunidos hoje porque temos um problema em comum e
acredito que podemos ter encontrado uma solução também comum. Meu pai
gosta de contar como eram os velhos tempos, quando os vizinhos se uniam
para ajudar quem passava por dificuldades. — Olhou para Hamilton e sorriu. —
Sei que é duro ajudar quando ninguém tem nada, mas, senhores ainda é
possível tirar força da união entre as pessoas.
Christine respirou fundo, olhando para a assembleia. Seus olhos
encontraram os de Pierce.
— Individualmente, nenhum de nós tem condições de sobreviver mais um
ano. Juntos, porém, temos muito mais do que percebemos. — A voz de
Christine era clara e sua expressão determinada. — Estive com advogados e
banqueiros durante seis horas ontem e descobri que existe uma saída viável
para todos nós. O que estamos propondo é simplesmente uma cooperativa, o
que significa que, ao invés de dez ou doze pequenas fazendas, teremos uma
corporação gigante, com duas vezes mais poder de compra, cinco vezes mais
crédito e possibilidade de inserção no mercado quase ilimitada.
— Que diabos está dizendo? — Perguntou alguém. — Vamos vender
nossas terras? Quem vai comprá-las?
— Vocês. Nós todos — respondeu Chris com simplicidade. — Nossas terras
se transformarão em propriedade da cooperativa e nossos prejuízos também.
Seremos todos empregados pela corporação e todos trabalharão juntos na
produção de todos. Isso não quer dizer que alguém tenha que mudar os
métodos ou o que deseja plantar. Significa que parte do lucro anual de cada
um será destinado a um fundo comunitário e cada um poderá tirá-lo,
dependendo da necessidade. O importante é que a cooperativa absorverá
nossos prejuízos, conseguirá créditos em qualquer banco do Estado e nos
qualificará para certos programas governamentais a que até então não
tínhamos nenhum direito. Além disso, como grande corporação, podemos
atrair investidores, vender estoques, diversificar os negócios. — Chris via o
interesse aumentar a cada palavra e pegou alguns papéis sobre a
escrivaninha. — Vou explicar as taxas de benefícios para os senhores...
Pierce observava a reação dos presentes às explicações. Metade não
entendeu, mas uma coisa era clara, existia uma chance.
Chris dissera que daria certo e ela era a mulher mais inteligente que
conhecia. Aos poucos viu sua opinião refletida nas faces dos outros homens. A
esperança voltava a brotar e, desta vez, com mais força. Era possível.
Quando Chris acabou de falar e deu um passo atrás, quase sem respirar,
à espera da reação dos presentes, o clima era de esperança.
— Parece que ela sabe o que está falando...
— Christine falou em Bert Venner, não foi? É um ótimo advogado. Entende
do nosso ramo.
Chris estava rezando. Não percebera isso, mas pela primeira vez na vida
adulta estava tão desesperada, esperançosa e confiante...
De repente, uma única voz baixa e clara, ecoou na sala como uma lâmina
afiada.
— Não!

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A cadeira foi arrastada com um movimento brusco e Hamilton levantou-


se. Observou a filha e os outros presentes com expressão de descrédito e
desprezo, e seus olhos pareciam lançar fogo.
— Vocês sabem o que estão fazendo? Bem, eu prefiro morrer a vender
minhas terras para uma maldita corporação... Estas terras pertencem aos
Walsh há quase duzentos anos e continuarão pertencendo enquanto eu puder
me manter em pé.
— Papai... — A voz de Chris soou horrorizada, mas mal foi ouvida entre o
discurso alterado de seu pai.
— Cada um de nós trabalha a terra como quer, e, quando caímos,
levantamos outra vez. É assim desde que o primeiro homem branco colocou os
pés nesta região e eu não vou mudar agora! Vocês façam o que bem
entenderem, mas quero ser um maldito se me tornar um meeiro da minha
própria fazenda.
Hamilton virou as costas e saiu.
Pierce sentiu a cabeça girar. Era a segunda vez em alguns dias que via a
esperança ser aniquilada e não podia suportar mais aquilo. Notou a expressão
arrasada de Christine, vendo o pai sair da sala daquele jeito, e se recusou a
aceitar o que acontecera. Sem pensar no que fazia, saiu do escritório. Ao ver
Hamilton cortando o tronco de carvalho, foi dominado por intensa raiva. O
velho nem olhou para o lado quando ele se aproximou, mas Pierce decidido
segurou o machado com as duas mãos.
— Que diabos pensa que está fazendo? — Gritou. Hamilton já estava
coberto de suor. Seu rosto estava vermelho e Pierce não sabia se pela raiva ou
pelo esforço físico.
— Fique fora disso rapaz — avisou tentando recuperar o machado.
— Seu velho estúpido, não percebe o que está fazendo? — Pierce tornou a
gritar descontrolado. — Tem consciência do que está recusando? É sua última
chance! Lute por ela!
Os dois homens sustentavam o olhar um do outro, em igualdade de forças
e de paixão. As veias nas têmporas de Hamilton estavam azuis, sua face
encolerizada e os olhos queimando.
— Você não sabe do que está falando garoto! A fazenda é minha e cuido
dela sem sua ajuda há quarenta e sete anos! Saia de perto de mim e...
— Você não terá fazenda alguma se não der ouvidos a eles! Pode salvar
suas terras e sua vida se fizer o que Christine diz!
— As terras são minhas e a vida também, portanto faço o que bem
entender!
Pierce segurou o braço de Hamilton, com a raiva transformada numa
necessidade desesperada de que ele o escutasse.
— Não acredito no que estou ouvindo — disse com delicadeza. — Não
acredito que este é o mesmo homem que me disse que é preciso lutar pelo
que é seu. Você vai se agarrar num orgulho estúpido, numa ideia louca de
tradição e vai perder tudo! Os tempos estão mudando, homem! Você tem que
mudar também, se quer sobreviver! Você tem que mudar! Pelo amor de Deus,
não percebe que...
Mas Hamilton não estava mais ouvindo. Pierce viu o rosto contorcido pela
dor, os dedos convulsionados apertarem o cabo do machado e depois largá-lo.
No instante seguinte, Hamilton caiu em seus braços.

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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders

Pierce ficou tonto e, não aguentando o peso do corpo, deitou-o


lentamente no chão.
A respiração de Hamilton estava entrecortada e cada vez mais difícil, o
rosto vermelho e contorcido, os lábios sem cor, as mãos brancas crispadas no
peito.
— Oh, meu Deus... Não morra... Não morra — murmurava Pierce,
movendo-se como em câmara lenta. Precisava de ajuda! Virou-se bruscamente
e tentou gritar, mas não conseguiu fazer sair à voz. — Não morra... — Era a
única coisa que conseguia dizer, apenas num murmúrio.
O remédio! Ele devia ter os comprimidos! Pierce colocou a mão trêmula no
bolso da camisa dele, encontrou o pequeno vidro e quase soluçou de alívio.
Puxou a tampa com tanta força que metade dos comprimidos caiu no chão.
— Você não pode morrer meu velho. — Colocou um comprimido entre os
lábios pálidos, mas Hamilton estava tão fraco que nem conseguiu levantar a
língua. O desespero deu forças à voz de Pierce. — Está me ouvindo? Você não
vai morrer!
Forçou o remédio dentro da boca do velho e abraçou-o como se pudesse
impedir que a alma abandonasse aquele corpo. As lágrimas escorriam-lhe pelo
rosto, mas ele não se importava.
— Você não vai morrer, entendeu? — Gritou. — Eu amo você, droga! Você
não vai morrer! — As palavras transformaram-se em soluços. Chorava,
sentindo que a primeira pessoa que amava verdadeiramente estava escapando
por entre os dedos.
— Eu amo você meu velho, de verdade! Devia ter lhe dito, mas não sabia
que era tão simples. Amo você e não quero que morra... Chris! — Conseguiu
gritar de repente. Ouviu passos correndo e vozes confusas e gritou
novamente, mais alto, o único nome em que conseguia pensar: — Chris!
O velho médico da região chegou em dez minutos e se referiu a angina. A
face de Christine mostrava choque e terror, a de Clay descrédito. E Pierce
sentia-se consumido pela culpa.
"Eu devia ter contado, eles tinham o direito de saber", pensava. Mas era
um pacto de honra entre os dois e ele não tivera escolha. Agora Hamilton
podia morrer por causa do estúpido senso de valor e honra, Podia ter morrido
com um machado na mão, tentando forçar a natureza a obedecê-lo...
Mas ele não morreu. Uma hora depois estava acomodado em sua imensa
cama, parecendo mais velho e menor do que jamais Pierce imaginara. O
médico chamou Clay e Christine para uma conversa e os dois ficaram a sós.
Olharam um para o outro por um longo tempo.
— Parece que meu tempo ainda não se esgotou — murmurou Hamilton
afinal.
Pierce encostou-se a parede, sentindo-se fraco. O velho estava vivo e era
só isso que importava. Fechou os olhos, e um sentimento de calma e certeza
foi invadindo-o aos poucos. Ouvia a própria voz suplicando: "Eu amo você!" O
que sentia era tão simples. Uma sensação profunda e poderosa que não se
pode controlar. Ainda não compreendia o sentimento, mas o conhecia. Era o
que Hamilton sentia por aquela terra, pelos filhos, pela vida que levava. Era o
que sentiam todos aqueles homens que se entregavam ao solo e aos caprichos
da natureza sem promessas de recompensa. Era o que os impulsionava e lhes

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dava forças para lutar. Nem sempre era bom, às vezes se desejava estar longe
dali, mas nada no mundo conseguiria arrancá-los daquele lugar.
— Fique na cama e repouse, foi o que o médico me disse — resmungou
Hamilton e Pierce abriu os olhos. — Esse maldito quer que eu fique deitado
esperando a morte!
Pierce não conseguia imaginar que alguém conseguisse manter Hamilton
na cama por muito tempo. Ele estava lutando há anos e não reconhecia
quando perdia uma batalha.
— Tem que se cuidar — disse com a voz ainda um pouco embargada. —
Está se matando.
— Você não entende filho — respondeu o velho com um sorriso triste.
— O pior de tudo é que acho que entendo. — A voz de Pierce estava muito
calma e, com esforço, dirigiu-se para a porta.

Capítulo XXII

Pierce encontrou uma velha mochila no sótão, guardou as poucas roupas


que possuía e pendurou-a no ombro. Estava parado na alameda, ao lado da
horta. Precisava olhar tudo mais uma vez.
Apenas alguns meses tinham se passado, mas era como se toda uma vida
tivesse transcorrido ali. O lugar permaneceria o mesmo ao longo do tempo,
mas transformara sua vida para sempre.
Vários minutos transcorreram antes que percebesse que Christine o
observava. Virou-se para ela.
Chris sabia que aquele momento iria acontecer mais cedo ou mais tarde e
nada faria para impedi-lo. Sabia que Pierce estava consciente de que levava
parte dela, mas nenhum dos dois podia fazer nada. Ainda assim, a dor a
rasgava lentamente.
— Você está de partida — disse, com uma estranha calma na voz.
Pierce aproximou-se. Nunca dissera adeus a ninguém, pois dispensava
esse tipo de sentimentalismo. Estava sempre partindo, sempre chegando.
Achava que sua vida podia ser resumida numa interminável lista de despedidas
mudas.
— Não tem mais sentido eu ficar.
Christine engoliu em seco e desviou os olhos. O clima entre eles estava
cheio de emoção.
— Sei que você tentou falar com papai.
— Mas não adiantou. O que você vai fazer?
— Não posso fazer nada se ele não assinar. Os outros também não
querem resolver nada sem ele. Vou tentar convencê-lo e, se conseguir e todos
me quiserem, cuidarei da cooperativa. — Ela tentou sorrir. — Clay disse que
vai ficar e nos ajudará enquanto precisarmos.

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Pierce não sabia o que dizer. Nada mais daquilo era problema seu. Tinha
feito tudo o que estava ao seu alcance para ajudá-los.
Christine ajoelhou-se e pegou um punhado de terra. Um ligeiro sorriso
atravessou-lhe os lábios.
— Uma vez você me disse que eu não odiava este lugar, que eu só estava
com medo das responsabilidades — deixou a terra escorregar-lhe por entre os
dedos. — Você estava certo. No momento em que estava para perdê-lo foi que
compreendi como amo este solo, esta terra... — Levantou-se e limpou as mãos
no jeans. Seu sorriso era triste. — Acho que nós dois ainda temos que crescer
muito. Eu jamais poderia ir embora daqui Pierce.
— Você ainda está com medo? — Perguntou ele, depois de conseguir
controlar o desejo de abraçá-la para sempre.
— Sim...
Ele desviou os olhos relutantes para o horizonte. Deus, como a queria!
Não sabia como poderia viver sem Chris.
— Eu também... — Disse apenas.
Ficaram em silêncio. Havia tanto a dizer, tanto a ser dito, no entanto
como era difícil!
— Cuide de seu pai, está bem? — Disse finalmente, e Chris assentiu. Viu
as lágrimas brilhando nos olhos dela e não suportou mais. Virou as costas e
partiu.
Pierce caminhou duas horas, mais uma vez enfrentando a estrada para
lugar nenhum, levantando o dedo automaticamente nas raras ocasiões em que
passava um carro. Ninguém parava e ele não se importava.
Era difícil acreditar que dois meses antes, estava naquela mesma estrada
sem saber o que lhe aconteceria. Tinha chegado sem nada, estava partindo
com tudo. Aprendera a reconhecer cantos dos pássaros, as várias espécies de
árvores e plantas, aprendera o que era trabalho, dedicação e honra. Sabia o
que era orgulho e esperança. Ali aprendera a amar, Hamilton, Christine e
mesmo aquele lugar. Ali se transformara num homem. As estações do ano
mudavam, o tempo passava e mais uma vez ele estava partindo. Não fazia
ideia para onde iria, mas não se importava. A estrada o levaria para algum
lugar...
Se ao menos pudesse voltar... Se ao menos tivesse coragem de assumir
de uma vez por todas que era na fazenda que desejava passar o resto de seus
dias, junto com Chris, Hamilton... Trabalhando a terra, sendo útil...
De repente notou a aproximação de um veículo em sentido contrário e
levantou o dedo mais uma vez.
A caminhonete parou alguns metros depois e Pierce aproximou-se com
passos pesados, um tanto indecisos ainda.
— Para onde vai filho? — Perguntou um velho, usando macacão e um
chapéu batido.
Hesitou com a mão na maçaneta. Nada havia em sua frente... Só uma
esperança...
— Para onde filho? — Insistiu o velho fazendeiro. Pierce sorriu, entrou na
caminhonete e bateu a porta.
— Para casa.
O sol estava se pondo no horizonte quando Pierce pisou novamente na
fazenda. Ficou parado por alguns instantes, invadido pelas lembranças de tudo

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o que acontecera naqueles dois meses. Depois, aproximou-se da casa pelos


fundos, não querendo encontrar ninguém no caminho.
Não ficou surpreso ao deparar com Hamilton parado ao lado do tronco
caído. Seu olhar estava fixo no horizonte e ele não se moveu quando Pierce
parou a seu lado. Ficaram em silêncio, olhando os campos e, de repente, o que
antes parecia feio e destruído, agora estava calmo e esperançoso na
luminosidade discreta e avermelhada do crepúsculo, como se à espera do
próximo passo na programação natural das coisas, o replante.
Hamilton pegou um cigarro e acendeu-o. Pierce quis protestar, mas não
disse nada.
— Milho, trigo, algodão, amendoim, e agora soja... Esta terra viu muitas
mudanças... — O velho suspirou, ainda sem olhar para Pierce. — Existiu uma
época em que o homem só podia contar consigo mesmo e com seus braços.
Cultivava o que era preciso para sobreviver. Nós respeitávamos a terra e ela
cuidava de nós. Agora, envenenamos as safras com produtos químicos e nos
perguntamos por que as pessoas morrem de câncer. Esgotamos a terra,
plantamos a maldita soja que eles trituram e transformam em comida. Diabos,
nada mais vale a pena, filho. Nada mais.
— Sempre existe um ponto que vale a pena — discordou Pierce
apaixonado. — Existe algo para ser feito e você sabe disso. Quem fará se não
formos nós? A gente faz o que pode enquanto está no mundo. — Respirou
fundo, relaxando os músculos com a lembrança fácil daquelas palavras. —
Porque nós somos os únicos a fazer isso!
Hamilton fitou-o pela primeira vez, mas foi impossível saber o que sentia.
— Estão todos em casa, esperando alguém que lhes diga o que devem
fazer. Acho que não é preciso pensar muito para saber o quê. — Hamilton
jogou o cigarro fora e deu um longo suspiro. — Esta batalha não é minha,
filho. As estações mudam e esta não será minha.
— Não fale assim — protestou Pierce. — É sua sim, sempre será...
Hamilton abaixou-se de repente e pegou o machado do chão. Olhou a
ferramenta por um momento, depois o tronco caído.
— Acho que não posso mais fazer isso. Pena! O trabalho está quase
terminado.
Pierce engoliu em seco. Depois pegou o machado.
Levantou a ferramenta e sentiu os músculos dos ombros contraídos.
Golpeou a madeira, levantou-a novamente e golpeou mais forte. Depois de
cinco ou seis batidas, não pensava mais em como odiava aquela tarefa, na
perda de tempo que significava. A fenda aumentava e a madeira cedia com
mais facilidade. Lenta e inexoravelmente, Pierce assistia a natureza ceder à
sua força. Quando bateu o machado pela última vez e separou a madeira em
duas partes, triunfo e satisfação o invadiram. Estava terminado! Pensou que
jamais aconteceria, mas tinha conseguido!
— Agora você sabe por que faço isso — disse Hamilton com simplicidade.
Pierce encontrou seu olhar e compreendeu. Não sabia colocar em
palavras, mas compreendia.
— Teremos muita lenha neste inverno — comentou. Ficaram se olhando
por um momento, e Pierce compreendeu o que era esperado dele.
— Estou ficando velho filho. É melhor deixar as mudanças para os jovens.
Você é um bom homem Pierce.

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Pierce hesitou por um momento, engoliu em seco e afastou-se,


contornando a casa.
Os homens estavam no pátio, fumando e conversando sobre o que
deviam fazer. Vários levantaram os olhos quando ele surgiu, curiosos, talvez
cheios de esperanças. A janela do escritório lançava uma luz amarela contra o
crepúsculo avermelhado. Pierce subiu os degraus e entrou na casa.
Christine estava sentada atrás da escrivaninha e levantou a cabeça assim
que ele parou no vão da porta.
Levantou-se devagar, e Pierce aproximou-se e abraçou-a. Queria beijá-la
e não dizer nada. Fitou-a em busca de tudo o que estava ansioso por encontrar
em seus olhos, sentiu a garganta apertada e pensou que não conseguiria falar.
Desta vez, porém, as coisas deviam ser ditas, e ele começou apressado,
antes que perdesse a coragem:
— Sei que não tenho muito a lhe oferecer, como homem ou como
fazendeiro... Inferno, você sabe o que eu sou. — Fitou-a novamente, e o calmo
sorriso de Chris mostrou que sabia e impeliu-o a continuar, quase sem fôlego:
— Talvez eu não esteja sempre por perto quando você precisar de mim, não
saiba dizer o que você precisa ouvir, talvez eu a magoe e nem peça
desculpas... Cometerei erros. Não sei nada sobre cooperativas nem sobre
fazendas, e você terá que me ajudar, mas, Chris eu vou tentar. Amo você e
tudo o que peço é um tempo...
— Amo você Pierce, e podemos tentar...
Ficaram abraçados por um longo momento, mal acreditando no que
estava acontecendo. Juntos teriam forças para enfrentar e vencer o que
viesse.
Christine afastou-se e encarou-o. Seu rosto estava corado e bonito, seus
olhos brilhantes como estrelas. Mas a expressão era séria.
— Você conversou com papai?
— Acho que estamos liberados.
— Então vamos! — Disse Chris, puxando-o pela mão.
Clay estava na porta quando eles saíram para a sala. Aproximou-se de
Pierce sorrindo, e colocou um objeto redondo em sua mão.
— É seu agora...
Pierce olhou o relógio e foi assaltado por muitas lembranças e emoções.
Apertou o botão, a música começou a tocar, leu a inscrição: "O tempo faz o
homem".
Sorriu e fechou a lapela. Caminhou até a cornija e colocou-o
cuidadosamente na redoma de vidro. Em seguida, virou-se para Christine e
saíram juntos.
As vozes e os movimentos foram cessando conforme os homens os viram
parados na varanda. Por um momento Pierce foi dominado pelo pânico ao ver
todos aqueles rostos voltados para ele. À espera de alguém que tomasse uma
decisão, que lhes dissesse o que fazer. Logo depois pensou em todos os
campos devastados esperando que as ervas daninhas os cobrissem ou alguém
os replantasse. Era necessário um florescimento rápido, e o frio tardio... Cada
minuto era precioso.
— Bem, para que vocês acham que os tratores têm faróis? — Disse
descendo os degraus. — Vamos trabalhar!

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O entusiasmo dominou a todos, o mesmo entusiasmo que brilhava na face


de Pierce quando encontrou os olhos de Christine. Juntos conseguiriam. Ele a
amava, e era como estar livre depois de passar a vida aprisionado. Era como
voltar para casa depois de uma longa viagem, sabendo que era para ficar. Para
sempre, os dois juntos!
Christine segurou-lhe a mão com força e os dois riram de pura felicidade,
caminhando para o barracão dos tratores guiados por homens ansiosos para
trabalhar. O ar da noite era benevolente e a lua brilhava em toda a sua
plenitude.

Fim

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