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Super Bianca 32 - Caminhos Do Amanhecer - Rebeca Flanders
Super Bianca 32 - Caminhos Do Amanhecer - Rebeca Flanders
Super Bianca 32 - Caminhos Do Amanhecer - Rebeca Flanders
Rebecca Flanders
Ele encontrou seu destino naquela terra onde se construía a vida com as próprias
mãos!
Quando Pierce Lanson, homem charmoso e sofisticado, se viu naquela terra
esquecida por Deus, longe do luxo e dos prazeres a que se acostumara em sua
estranha profissão, achou que era uma ironia do destino.
Diante dele, o olhar de Christine Walsh jamais disfarçava o desprezo, e o velho
Hamilton parecia ler seus mais íntimos segredos... Só havia um meio de escapar da
traiçoeira situação em que se encontrava: fazer com Christine o que sempre fizera
com as mulheres que o pagavam...
Título original:
"The Growing Season"
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Prólogo
Claro que isso era um risco previsível naquele tipo de negócio. O pior foi
chegar à Nova York e descobrir que seu apartamento tinha sido sublocado e
todos os seus pertences vendidos. Ao que tudo indicava sua benfeitora, não
queria que ele tivesse nenhuma recordação da época em que estavam juntos.
Pierce, que nunca tinha se preocupado em poupar para garantir o futuro,
verificou que o saldo de sua conta no Chase Manhattan era de menos de
oitocentos dólares. Ao fim dos quatro dias que levou até fechar aquele contrato
no Golfo do México o dinheiro já havia sumido.
Já passara por momentos difíceis, mas a experiência lhe dizia que nunca
demoravam muito tempo. Estava um pouco desapontado pelo fato de não ter
conseguido nenhum contrato longo naquele fim de semana, mas não podia se
queixar.
O iate já estava ancorado há uma hora, no entanto, ninguém parecia
muito preocupado com isso. As risadas divertidas e as conversas alegres no
convés continuavam como se a festa estivesse apenas começando.
Os dois últimos dias caberiam bem numa página do diário de algum
milionário indolente. A comida, deliciosa, era preparada com doses de
exotismo, o champanha estava sempre circulando e os drinques e várias
outras bebidas estimulantes não paravam de ser servidos.
Pierce passara o fim de semana entretendo uma mulher vaidosa, vazia e
às vezes odiosa, porém não estava com mais pressa em partir do que os
outros convidados que tinham se divertido, dançado e jogado vinho de
excelente qualidade no convés. Graças à última "patroa", ele não tinha para
onde ir.
Partiria com quase mil dólares por dois dias de trabalho e sem
perspectivas para o futuro. Seus hábitos eram caros e o dinheiro seria gasto
em duas semanas, mas Pierce Lanson nunca investia muita energia
preocupando-se com o futuro. Aconteceria alguma coisa. Sempre acontecia.
Levantou-se e começou a abotoar a camisa, fingindo não notar a mulher
que se aproximava de calcinha, camisola transparente e chinelos de cetim. A
festa tinha terminado e duvidava que fosse receber algum extra depois disso.
A mão morna insinuou-se por dentro de sua camisa, brincando
suavemente sobre sua pele, e Pierce resistiu ao impulso de arrancá-la dali.
Sorrindo, pegou-a com delicadeza e beijou-a. A mulher roçou a cabeça
perfumada em seu ombro e ele tentou afastá-la para terminar de se vestir.
— Por que tanta pressa? — Perguntou ela, segurando a mão de Pierce.
— Você é adorável, mas tenho hora certa para pegar o avião — respondeu
ele, beijando-lhe os cabelos. — Além disso, ainda temos que acertar meu
pagamento, não é?
Ela fitou-o com os olhos verdes brilhantes de malícia e Pierce não ficou
surpreso ao lembrar-se de um gato enraivecido.
— Querido, que vulgar! E você tinha quase me convencido de que era um
cavalheiro!
Pierce limitou-se a sorrir e pegou as abotoaduras de diamante que deixara
sobre o criado mudo. Tinha ganhado de uma antiga companheira e era o único
objeto de valor que possuía no momento, além do smoking de quinhentos
dólares e do par de sapatos italianos que usava.
Ela fixou em Pierce o olhar divertido e malicioso por mais um instante,
zombando.
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
— Não existe nada que valha realmente a pena além do seu corpo bonito,
não é Sr. Lanson?
— Nada — afirmou ele abaixando as mangas da camisa.
— Mas, então, o que se pode esperar de um... Hã... — Ela fez uma pausa,
tentando provocá-lo. — Como são chamados os homens da sua profissão?
— Impacientes — respondeu Pierce, querendo trazê-la de volta ao assunto
que importava.
Ela riu ironicamente, encolheu os ombros e afastou-se.
— Falou em pagamento, Sr. Lanson?
De repente, a pequena porta da cabina abriu-se com violência e foi
apenas o instinto que fez Pierce desviar-se do murro que quase o atingiu. As
abotoaduras caíram no chão e sua exclamação espantada foi abafada pelo que
parecia o mugido de um touro:
— O que diabos está acontecendo aqui?
Pierce reconheceu a cena, mesmo sem nunca imaginar que participaria de
uma. O mundo em que circulava era muito chique e sofisticado para dramas
exagerados, civilizado demais para maridos ciumentos. Por uma fração de
segundo, teve um desejo insano de rir. Era simplesmente absurdo para ser
verdade.
Em seguida percebeu o brilho de triunfo e satisfação nos olhos da mulher
com quem passara dois dias fazendo amor de todas as maneiras possíveis e a
vontade de rir passou. De repente compreendeu por que lhe tinha sido
oferecido o dobro da quantia que cobrava normalmente.
— Ora, ora, chegou o homem forte das Indústrias Cavenetti — murmurou
ela, destilando veneno em cada sílaba. — Porque demorou tanto, Carl? Pensei
que tivesse ordens para não me perder de vista.
O homem era forte como um trator e sua presença, desproporcional na
pequena cabina. Embora não entendesse o roteiro, Pierce reconhecia os
personagens e sabia que estava para acontecer alguma coisa ruim. Na
verdade, alguma coisa muito ruim.
O gigante fez um movimento furioso na direção de Pierce, mas foi
interrompido pela voz melosa da mulher.
— Pierce meu querido, quero apresentá-lo a Carl, o assistente de meu
marido. Carl, este é Pierce meu amante. — Ela jogou as palavras como um
delicioso desafio.
— Sua vagabunda! — Carl fixou os olhos na mulher. — Quando o patrão
ficar sabendo...
— Carl é um empregado muito leal — disse a mulher examinando as
unhas esmaltadas. — É pago para cuidar dos meus casos amorosos. — Os
olhos dela tornaram-se mais felinos do que nunca. — Bem, quando fizer o
relatório para meu marido, não se esqueça de contar isso, ele não é o único
homem do mundo e, se não me quer, muitos outros me desejam. Diga isso a
ele, está ouvindo, Carl?
Aos poucos, tudo começou a ficar claro para Pierce. Era uma situação
absurda e cômica, mas fazia sentido. "Não acredito nisso", pensou, engolindo
mais uma vez a vontade de rir. "Não posso acreditar!"
— O que foi Carl? — Instigou a mulher, vendo que o gigante continuava
parado, olhando-a com a respiração ofegante e os punhos cerrados.
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Concluindo que não tinha nada a ver com aquela situação e que, em
alguns casos, a discrição é a melhor saída, Pierce começou a aproximar-se
disfarçadamente da porta.
— Está chocado? Pensou que eu não tivesse coragem? Bem, conte tudo
isso ao meu querido marido Carl. Ele não é dono de mim e nunca foi. Existem
muitos outros melhores do que ele!
Pierce não controlou um gemido de raiva. Era uma situação planejada! A
velha crença de que o ciúme acabaria amolecendo o coração dos homens...
Devia ter pressentido que isso ia acontecer. Mas quem seria capaz de imaginar
que na época em que vivemos uma pessoa adulta pensaria numa artimanha
daquelas... Pior ainda, acreditando que daria certo? Desde o princípio, não
tinha gostado da mulher, mas não pensou que fosse tão pouco criativa.
A paralisia que incapacitara o homem por instantes passou e ele avançou
sobre Pierce, cujo instinto prontamente funcionou de novo. Levantou a mão
numa fraca tentativa de defesa, deu um sorriso nervoso, que era mais um
disfarce para a risada histérica que persistia em querer romper e disse:
— Ei, espere um minuto, amigo! Não pode culpar um cara por tentar
ganhar a vida, não é? Eu só estava fazendo meu serviço... — O soco parou no
meio do caminho, pelo menos momentaneamente, e os olhos da mulher
mostraram desespero. — A senhora pagou-me para passar o fim de semana
com ela. Esse é meu trabalho... Eu nem sabia que ela era casada! — Mentiu.
As emoções confusas que transpareceram no rosto dos dois eram
complicadas demais para Pierce, que não estava nem um pouco interessado
em fazer uma análise de personalidades. Claro que a mulher não contava com
a confissão do amante de aluguel, mas concluiu que ela merecia aquela lição.
Carl encarou-a e Pierce sentiu um ligeiro remorso ao perceber o desespero
dos olhos verdes transformarem-se em verdadeiro pânico.
— Carl espere...
— Você pagou... — As palavras soaram como um grunhido.
— Você deu dinheiro para este garanhão estúpido...
— Ela ainda não me pagou nada! — Gritou Pierce, vendo o homem voltar
o punho cerrado para a mulher a quem devia manter sob sua vigilância.
Sua débil tentativa de distrair Carl não funcionou. O som de um murro
ecoou na cabina acompanhada pelo grito da mulher, que foi jogada contra uma
parede, soluçando. Havia um filete de sangue na maçã de seu rosto e Pierce
ficou olhando, sem poder fazer nada. Sentia toda sua impotência e confusão
transformarem-se em horror conforme o homem continuava a xingá-la e
sacudi-la e, embora ela gritasse ninguém aparecia. Devia fazer alguma coisa,
mas não sabia o que. Acabou não tendo tempo nem de pensar, porque depois
de alguns segundos o gigante lembrou-se dele e veio em sua direção.
— Você aí! — Gritou furioso. — Eu devia matá-lo e livrar o patrão deste
problema. Caras como você me dão ânsia de vômito! Saia daqui!
— Não me deixe a sós com ele! — Gritou a mulher soluçando. — Ajude-
me!
A última impressão que Pierce teve dela foi à de uma mulher que perdera
a beleza, encolhida num canto com a camisola rasgada, os cabelos
despenteados com o rosto banhado em lágrimas e sangue. Pierce odiou-a,
odiou a si mesmo e àquela situação infame que algum dia poderia tornar-se
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
Capítulo I
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
mas ela sentia um gosto amargo na boca. Teve que fazer um esforço para ficar
em silêncio, achando que devia contar até dez. Ou até vinte.
Bateu a porta da caminhonete e o som misturou-se ao barulho distante de
um trator e aos ruídos familiares que vinham da janela da cozinha, onde Mary
já estava ocupada, começando a preparar o almoço.
"Ele é apenas uma criança", pensou Christine com súbita ternura, ao ver o
irmão sentado a seu lado. "Não sabe o que está dizendo. É uma criança!"
— O que é isso agora Clay? — Perguntou. — Pensei que tivesse desistido
da ideia no verão passado. Será que foi assaltado por uma onda de fé
primaveril? — zombou. — Não sabe que na primavera as fantasias dos rapazes
devem se transformar em pensamentos de amor?
— Eu sei. — Clay sorriu. — É exatamente assim que estou me sentindo.
Só que é uma espécie de amor mais profundo do que o que a maioria das
pessoas sente.
Christine ligou a caminhonete num gesto impaciente e o velho veículo
rateou um pouco antes de funcionar.
— Você já contou para papai? — Perguntou, segurando o volante com
firmeza e olhando para frente.
— Não.
— Então não conte.
Clay sorriu. Pela expressão obstinada de Christine, sabia que ela já
chegara à conclusão de que iria fazê-lo desistir e tentaria poupá-lo de um
confronto desnecessário com o pai. Entendia a preocupação de sua irmã. Já
tinha tomado a decisão há meses, mas seria um choque para o resto da
família. Todos precisariam de tempo para se acostumar à ideia e ele não
pressionaria ninguém.
Por mais que tentasse se controlar, Christine estava abalada e era
possível notar seu estado de nervos pelo excesso de cuidado com que começou
a dirigir. A informação de Clay era a gota d'água. Não sabia mais até onde
teria forças para aguentar.
Estavam no dia 1° de abril e a Secretaria das Finanças andava querendo
dar o golpe de misericórdia em sua família. Os Walsh já tinham atrasado o
pagamento de impostos em outras ocasiões, mas desta vez a situação parecia
sem saída. Uma chuva antecipada destruíra a plantação de trigo e uma geada
tardia quase acabara com o pomar. Um dos tratores estava enguiçado e
Christine nem imaginava quanto gastariam para consertá-lo. Já tinham
passado por outros anos difíceis, mas agora ela estava apavorada. E não se
sentia em condições de lidar com Clay, principalmente naquele dia.
Christine era formada em administração de empresas e poderia estar
trabalhando em uma grande indústria de qualquer cidade importante dos
Estados Unidos. Tinha jurado que aquele seria o último ano. Não queria passar
a vida em uma fazenda no sul do Alabama se preocupando com testes de solo,
fertilizantes e máquinas quebradas... Não ligava para nada disso. Esses
problemas não tinham nada a ver com ela e nem queria que tivessem.
"Maldito Clay!", pensou. "Ele e seus sonhos idiotas de paz na terra aos
homens de boa vontade"...
— Precisamos de quantos homens? — Perguntou Clay, depois de algum
tempo.
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
— De doze, mas só podemos pagar seis. E por favor Clay, não escolha
bêbados ou mortos de fome. Precisamos de homens que possam enfrentar
trabalho pesado.
— Podemos prometer uma semana de trabalho?
— Não. — Christine mantinha os olhos fixos na estrada e na verdade, não
pensava nos trabalhadores. — Não prometa nada até o fim do dia. Se ficarem
sabendo que faremos contratos longos, haverá uma fila enorme no Ralph's. E
você sabe muito bem que não consegue dizer não. — Tentou amenizar a
aspereza de sua voz com um olhar carinhoso e Clay pegou sua mão sorrindo.
— Não foi uma decisão repentina, Chris. Você sabe que eu queria ir para o
seminário no último verão, mas prometi a papai que não tomaria nenhuma
atitude precipitada. Sei o que quero há bastante tempo... Você não devia ficar
tão surpresa.
— Droga Clay, eu não quero ouvir falar nisso! — Christine não controlou
mais a tensão que a dominava, mesmo sabendo que sempre ficava em
desvantagem, quando levantava sua voz em discussões com Clay. — Você está
falando como um idiota.
— Gostaria que não xingasse tanto Chris.
— Oh, perdoe-me. Sua Santidade! — O olhar de Christine estava cheio de
raiva e menosprezo. — Me admira que esteja sentado tão perto de mim... Não
tem medo de sujar sua auréola? — Às vezes uma explosão era a melhor saída
para aliviar aquela pressão que parecia dominá-la constantemente, mas
naquele momento o desabafo não funcionou. Clay continuava impassível, o
que só serviu para frustrá-la ainda mais. — Droga, Clay! Já temos muitos
problemas sem essa sua loucura romântica!
Clay não estava nem um pouco abalado pelas colocações da irmã.
Simplesmente parecia não estar prestando atenção. Christine o odiava quando
ele agia assim.
— Eu não chamaria de loucura mana.
— Você sabe muito bem do que estou falando! Contas atrasadas,
empréstimos vencendo, equipamento enguiçado, geadas, muita chuva... E um
fanático religioso como administrador! Maravilhoso, simplesmente
maravilhoso! — Ela deu um soco no volante. — Senhor meu Deus,
agradecemos Sua generosidade...
— Chega Chris! — Interrompeu Clay com aspereza.
Christine ficou satisfeita em finalmente arrancar alguma reação de Clay,
mas ficou em silêncio. Respirou fundo e depois de alguns momentos tentou de
novo, com mais calma.
— O que você acha que vai acontecer a este lugar quando for embora
para seguir sua vida santificada? O que faremos sem você?
— O mesmo que fazem enquanto estou aqui. — Clay piscou os olhos
paciente. — Ora meu bem, você sabe que não ajudo muito. Papai e você é que
administram a fazenda... Eu não passo de excesso de bagagem. Não sirvo para
ficar.
— E você acha que eu sirvo? — O rosto de Christine estava vermelho
quando voltou os olhos para ele. — Bem, tenho novidades para você
irmãozinho: também tenho coisas melhores para fazer na vida...
— Oh Chris! — Clay interrompeu-a com uma intensidade que lhe
iluminava os olhos cinzentos. — Não percebe que não é uma questão de
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escolha? É um apelo, tão forte e irresistível quanto o que você e papai sentem
por esta terra! Faz parte de mim e não poderia me livrar disso, mesmo que
quisesse!
Christine não queria que ele percebesse como se sentia incomodada em
lidar com tal situação. Não estava acostumada com aquele papel. Sempre
tinha sido a forte e Clay, o irmão indefeso. Cuidava dele desde o dia em que
nascera. Porque ficava tão assustada ao sentir que ele escapava a seu
controle? Jogou a cabeça para trás com impaciência.
— Clay, quando vai crescer? Nenhum de nós estaria aqui se não
precisássemos! Você acha que papai gosta de levantar às quatro e meia da
manhã e trabalhar até a meia-noite? Você acha que ele gosta de passar
metade do ano torrando-se ao sol para ver a plantação secar quando não
chove ou congelar apenas dois dias antes da colheita? Acha que faz isso
movido por alguma dedicação mística às maravilhas da natureza? Bem, ele só
está tentando ganhar a vida, como milhares de outros fazendeiros! Pelo amor
de Deus, entenda isso Clay!
Mas Clay olhava para o acostamento, onde um homem, usando calça
preta e camisa branca, quase cambaleava. Tinha um andar cansado que
sugeria estar na estrada há bastante tempo. Quando a caminhonete o
ultrapassou, ele levantou a cabeça esperançoso, mas Christine não diminuiu a
marcha.
— Pobre homem! — Murmurou Clay.
Ela deu um longo suspiro. Era inútil tentar argumentar com Clay, e
naquele dia não estava com disposição para investir em causas perdidas. Seria
melhor esperar outra ocasião para conversar com Clay e dissuadi-lo daquela
ideia. Não era possível que o irmão estivesse falando sério. Ele não faria isso
com a própria vida... Nem com a dela.
— Como posso discutir com você, se não me dá atenção? — Murmurou e
ficou um pouco mais tranquila ao ver o sorriso amigável de Clay. Não, ele não
devia estar falando sério. Se lhe desse tempo, acabaria desistindo... Mesmo
assim, resolveu acrescentar só para lhe dar algo em que pensar: — Sabe que
dependemos de você para muitas coisas, não é? Não pode ir embora assim.
Este é o seu verdadeiro apelo — concluiu apontando para terra nos dois lados
da estrada.
— Ah, Chris, você não entende! — Clay sorriu e recostou-se no banco,
meneando a cabeça lentamente. — Você não entende mesmo.
Christine ficou gelada com o tom confiante na voz dele, com aquela
expressão que lhe deixava o rosto sem idade e inescrutável. Um arrepio a
percorria sempre que Clay ficava daquele jeito, o que estava acontecendo cada
vez mais nos últimos tempos. Tinha a impressão de que realmente não o
entendia. Afastou o pensamento incômodo imediatamente, como estava
acostumada a fazer sempre que uma situação ameaçava exigir sensibilidade.
Lidar com os sentimentos, seus ou de outras pessoas, sempre a perturbava
profundamente. Podia lidar com Clay mais tarde. Agora tinha muitas outras
coisas na cabeça.
Pierce aprendera duas lições importantes nas últimas quarenta e oito
horas, sapatos de couro feitos à mão não eram apropriados para andar em
estradas pedindo carona. E ficar sozinho era um sentimento assustador.
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
Por razões inevitáveis, passara grande parte da sua vida sozinho. Seu pai
desaparecera, logo após seu nascimento e, apesar da sucessão de "tios" e
"amigos queridos" que entravam e saíam do apartamento de um quarto, onde
morava com sua mãe, Pierce aprendera desde cedo como era se sentir só.
Uma de suas mulheres uma vez lhe disse que era seu ar de infinita solidão
que a deixava loucamente excitada. Talvez tivesse cultivado desde cedo certo
ar de indiferença, mas era pura defesa. Na verdade, Pierce sempre tomava
cuidado para planejar sua vida de modo que nunca estivesse isolado, a não ser
que quisesse. Sempre havia alguém para cuidar dele e nunca ficara realmente
só... Não como agora. Não era nem um pouco agradável estar em uma estrada
no sul do Alabama, sem dinheiro algum e com seus amigos mais próximos a
cinco mil quilômetros de distância.
Quando foi jogado no Golfo do México no meio da noite por um homem
louco que gritava obscenidades, ele pensara apenas em fugir. Caminhou sem
parar, preferindo estradas secundárias e distantes de qualquer sinal de
civilização. Quando deu por si, tinha amanhecido e estava perdido no interior
da Flórida.
Pierce caminhou mais ou menos quinze quilômetros antes de admitir que
estivesse irremediavelmente perdido e concluir que a única saída era continuar
na direção oeste, para longe do oceano.
Percorreu outros cento e cinquenta quilômetros de carona num blazer
respingado de lama, com o motorista que não tirava o revólver do colo nem
enquanto dirigia. O homem parecia uma verdadeira enciclopédia de crimes não
resolvidos. Durante todo o percurso o homem contara com indisfarçado prazer
casos de assassinatos, mutilações e canibalismo, indiferente ao fato de Pierce
transpirar o tempo inteiro.
Depois disso ficou mais resistente a aceitar caronas. Além do mais, não
tinha para onde ir. Nem havia percebido que passara da Flórida para o
Alabama, até ver uma placa indicativa.
A princípio tudo parecia uma aventura, uma novidade excêntrica. A
situação começou a ficar mais séria quando se viu obrigado a dormir num
alpendre abandonado, acompanhado por uma variedade surpreendente de
insetos e roedores. E tornou-se definitivamente desagradável quando ele
começou a ficar esfomeado.
Não pensava na mulher que deixara no iate. De certa forma, sentia pena
dela, e de todas iguais a ela, mas não era problema seu. Ela nem tinha pagado
o que lhe devia e era a responsável por ele estar agora pedindo carona nas
estradas do Alabama, só com a roupa do corpo e morrendo de fome. Conforme
o cansaço e a fome aumentavam, ficava mais deprimido e às vezes a imagem
daquele rosto machucado voltava-lhe à memória, mas não precisava de
esforço nenhum para tirá-la da cabeça. Pierce aprendera a ignorar qualquer
sentimento que o incomodasse.
No entanto, quando chegou a Gull às oito e meia da manhã, já não
conseguia se livrar dos incômodos com tanta facilidade. Era uma combinação
de várias sensações: exaustão, corpo dolorido, fome e desespero. Estava
quase dominado pelo pânico. Talvez por isso os fanáticos do naturalismo,
defendessem o jejum e as longas caminhadas: um homem sozinho aprendia
muito depressa o que é a realidade. Se pudesse optar, Pierce dispensaria essa
lição de muito bom grado...
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— Esta é minha irmã, Christine — disse Clay, sem pressa. Pierce observou
Christine rapidamente, notando os quadris moldados pela calça justa, a cintura
fina e os seios firmes que se delineavam sob a blusa de algodão. Como estava
esgotado, dirigiu-lhe apenas seu costumeiro sorriso devastador e replicou:
— Estou encantado! Meu nome é Pierce Lanson e tenho imenso prazer em
conhecê-los. — Fez um gesto para o balcão quase vazio. — Não querem tomar
uma xícara de café comigo?
Ela precisou se controlar para não rir. A coragem do homem era mesmo
admirável! Não lamentava os cinco dólares de Clay; o show tinha valido a
pena. Quando se preparava para uma recusa educada, ouviu o irmão
perguntar com um sorriso:
— Não está interessado em um emprego?
Na hora, Christine perdeu o senso de humor e lançou um olhar de
advertência para seu irmão, mas ele não se deu por achado. Apertou-lhe o
braço com força e ele continuou a ignorá-la.
O arquear de uma sobrancelha foi à única reação à proposta inesperada, e
só naquele momento Christine pôde observar melhor o desconhecido. Como
imaginava, possuía um rosto forte, decidido... Mas havia mais do que isso.
Apesar da barba por fazer e da palidez de cansaço, era um rosto bonito. O tipo
de rosto de modelos ou astros de cinema, o tipo de rosto raramente visto num
lugarejo como Gull. O rapaz tinha uma covinha no queixo e um perpétuo
cinismo insinuado nos lábios carnudos. Seus olhos eram contornados por cílios
escuros e espessos. Christine nunca tinha visto olhos tão azuis, tão azuis que
podiam ser chamados de violeta. E agora aqueles olhos estavam fixos nela
com o que parecia um misto de compreensão e divertimento. Não conseguindo
sustentar aquele olhar por muito mais tempo, virou a cabeça, sentindo um
ligeiro mal-estar.
— Bem, para ser sincero, estou desocupado no momento — respondeu
Pierce com tranquilidade, virando-se para Clay. — Que tipo de emprego está
me oferecendo?
A paciência de Christine terminou, talvez pelo olhar de compreensão que
ele lhe dirigira, talvez pelo acúmulo de aborrecimentos daquela manhã. Não
importava porque, mas não queria mais complicações.
— Oh, pelo amor de Deus, Clay! Quer parar de bancar São Francisco de
Assis e vir embora? Temos os homens que precisamos e o senhor...
— Lanson — esclareceu Pierce educadamente.
— Sr. Lanson não está interessado no emprego.
— Como você sabe? — Interrompeu Clay. — Para mim ele precisa tanto
do emprego quanto todos os homens que contratamos.
— Oh, pelo amor de Deus Clay! — Repetiu ela com impaciência. —
Reparou nas mãos dele?
Pierce estendeu as mãos. Eram macias e claras e, apesar dos dias sem
manicure, as unhas ainda estavam lixadas e polidas.
— Acho que sua encantadora irmã quer chamar sua atenção para o fato
de que são mãos de um homem que nunca teve um dia de trabalho honesto na
vida — disse Pierce para Clay.
Christine sabia que o irmão não resistiria a uma declaração tão sincera e
despretensiosa. O brilho nos olhos do estranho mostrou que era exatamente o
que esperava.
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Capítulo II
Pierce parou no pátio e olhou em volta sem muito interesse. Nunca tinha
ido a uma fazenda, mas também nunca sentira falta.
Era bonita como imaginava. Os imensos carvalhos, o som dos tratores nos
campos, os armazéns longos e baixos e a casa de madeira branca construída
com simplicidade formavam um conjunto perfeito.
Não sabia por que precisavam de todos aqueles homens para trabalhar a
pequena extensão de solo arado que viu estendendo-se atrás da casa. No
entanto, não perdeu tempo em especulações e olhou para Christine.
Ela dava as últimas instruções ao grupo de homens e, depois de deixá-los
por conta de Clay, virou para Pierce.
— Venha comigo — ordenou.
Pierce ergueu uma sobrancelha, divertido, e seguiu-a na direção dos
degraus largos da casa. Posicionou-se de forma a ter a melhor visão do corpo
dela. As curvas provocantes eram realçadas pelo andar firme e furioso, e
Pierce concluiu que era uma mulher atraente. Por um breve instante imaginou
cinicamente se a garota estava levando-o para dentro para que ganhasse seu
ordenado da maneira como estava acostumado, mas logo engoliu uma risada
quando ela lançou-lhe um olhar hostil. Ele ficou sério e entraram.
A casa não era tão grande como parecia. Havia um pequeno vestíbulo de
onde saía uma escada de madeira, dois quartos à direita e uma sala imensa à
esquerda. Christine apontou o aposento principal e subiu a escada.
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
Sem nada a fazer além de esperar, Pierce caminhou pela sala, observando
com ar distraído. Os aromas de carne assada e legumes cozidos o fariam se
ajoelhar desesperado uma hora antes. Agora eram apenas inegavelmente
agradáveis... Caseiros.
A sala tinha essa mesma característica, com uma lareira de pedra,
cadeiras confortáveis e dois sofás de couro que carregavam as marcas de
muitos corpos cansados. Havia almofadas e quinquilharias no aposento inteiro,
tapetes e luminárias que não seguiam nenhum padrão específico de decoração,
mas era um ambiente agradável. Pierce examinou as fotografias emolduradas,
que mostravam Clay e Christine na escola e em outras situações memoráveis.
Depois resolveu olhar coisas mais interessantes.
Sobre a lareira havia um relógio antigo que ainda funcionava
perfeitamente, e a seu lado algo que lhe chamou a atenção. Era um relógio de
bolso dentro de uma redoma de vidro, sem dúvida muito antigo. Curioso,
Pierce levantou a redoma e o pegou. Era pesado, com certeza de ouro. Havia
um pino lateral e, quando Pierce pressionou-o, a tampa do relógio se levantou
e começou a tocar uma música. Por dentro da tampa, em letras góticas, estava
a inscrição: "O tempo faz o homem". Devia ser uma herança de família e
estava muito bem conservada.
— É ouro puro — disse Christine atrás dele. — Pode-se conseguir
trezentos dólares por ele na casa de penhores daqui de Gull, mas o melhor
seria levá-lo a um joalheiro de uma grande cidade. Daria pelo menos dois mil
dólares, só pelo seu valor enquanto antiguidade.
Pierce fechou a tampa, interrompendo a música, e colocou o relógio
cuidadosamente na redoma. Virou-se sorrindo.
— É uma herança de família?
— Era do meu avô — esclareceu ela. Tinha nos braços um jeans, uma
camisa de algodão e um par de botas que à primeira vista pareciam grandes
para Pierce. — Tome. Use estas roupas de Clay. Provavelmente o jeans ficará
apertado e as botas largas, mas você terá que dar um jeito. — Christine mediu
as pernas e os pés de Pierce, sentindo aquele brilho malicioso nos olhos dele.
Levantou a cabeça e sustentou seu olhar com tranquilidade, sem ficar
impressionada ou intimidada. O homem parecia acostumado a se exibir; na
verdade, parecia até gostar disso.
Pierce pegou as roupas e seus olhos violeta não se desviaram de Christine
enquanto começava a desabotoar a camisa, lentamente. Havia charme em
cada um de seus movimentos; uma promessa irônica e paciente em sua
expressão. Intrigada, ela se perguntou como ele podia fazer aquilo com tanta
naturalidade, como um ator ou um modelo que jamais esquecia a platéia ou a
câmera. Mas o homem exalava tanta sensualidade que não devia ser mera
simulação. Sim, aquele devia ser o jeito dele. Pena que o charme fosse
totalmente inútil num lugar como aquele.
Comprimindo os lábios, Chris saiu da sala quando ele já havia
desabotoado metade da camisa. Os únicos corpos que a interessavam agora
eram os que podiam ser vistos atrás de um trator, transformando poeira em
dinheiro.
Pierce saiu da casa depois de se vestir.
Clay ainda estava no pátio, dividindo os homens em grupos, dando-lhes
instruções sobre o trabalho e mandando-os para partes diferentes da fazenda.
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
Para Pierce, era como se o rapaz estivesse falando em grego e, além disso,
não estava muito interessado nos detalhes do serviço. O que lhe atraiu a
atenção foi outra coisa.
Estava acostumado a ser observado e não se incomodava com isso, mas
raramente era avaliado por membros do próprio sexo, como agora. Nunca
tinha se encontrado numa situação como aquela.
Os homens que lançavam olhares hostis em sua direção deixavam claro
que o considerava um intruso. As barreiras tinham sido definidas durante a
viagem, através de olhares desconfiados e silêncios teimosos, mas ele estivera
muito envolvido no absurdo de sua situação para dar-lhes importância. No
entanto, a mensagem agora era evidente, estavam em seu próprio território e
Pierce era um estranho. Não pertencia à região, era diferente deles e de tudo o
que conheciam e só merecia desconfiança.
O alerta o advertia a agir com cuidado e por instantes sentiu-se
incomodado. Porém, quando Clay o chamou e ele desceu os degraus para
encontrar seu novo patrão, o sentimento já havia desaparecido. Já tinha
desempenhado muitos papéis em sua vida. Aquele não seria o mais difícil.
Enquanto caminhava ao lado de Clay para um imenso barracão atrás da
casa, Pierce se lembrou da explanação do rapaz sobre o funcionamento da
fazenda e que iam encontrar Hamilton Walsh, o pai dele e da garota.
Passaram por uma enorme árvore tombada, que parecia ter levantado
metade do quintal ao cair e cujas raízes chegavam à altura dos ombros de
Pierce. Clay contou que a árvore caíra no último inverno e que provavelmente
levariam o resto do verão para cavar suas raízes e cortar o tronco. Pierce ficou
impressionado, mas logo desviou sua atenção para o homem moreno que os
esperava na porta do barracão.
Atrás daquele que deveria ser Hamilton Walsh havia um enorme trator, ao
lado de outro menor sob o qual dois homens trabalhavam deitados no chão
sujo de óleo. Havia espaço para um terceiro veículo e Pierce concluiu que devia
ser o que ouvira no campo ao chegar. Três tratores, vários trabalhadores... A
operação devia ser bem maior do que imaginara a princípio.
Clay fez as apresentações e Pierce deu um passo à frente, com a mão
estendida e um sorriso simpático para cumprimentar o homem que pagaria
seu salário. Hamilton Walsh observou-o devagar, com a paciência de um
alfaiate medindo alguém para a confecção de um terno. E era exatamente
assim que Pierce se sentia: sendo medido cuidadosamente. Quando o homem
fixou os olhos cinzentos nos dele, não foi possível perceber nada através de
seu olhar: nem simpatia, nem aprovação, nem desconfiança. Apenas
perspicácia.
Uma perspicácia que o deixou embaraçado. Walsh não ofereceu sua mão,
e depois de um momento Pierce abaixou a sua. Eram pessoas estranhas
aquelas, mas, por uma jornada de trabalho e uma refeição, ele aguentaria.
Eram coisas da vida e algum dia daria muita risada de tudo aquilo.
Hamilton Walsh jogou a ponta do cigarro no chão e pisou em cima. Seus
dedos e seus dentes eram amarelados pela nicotina.
— O que sabe fazer rapaz?
— O que quer que eu faça? — Replicou Pierce, e aproximando-se do
trator, passou a mão na lataria vermelha.
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Capítulo III
Clay tinha três anos de idade quando sua mãe faleceu. Às vezes sentia-se
culpado por não conseguir lembrar-se dela, mas o que mais o fazia sentir-se
mal era saber que Chris perdera a juventude tentando cuidar dele.
Clay odiava discutir com a irmã que adorava acima de qualquer outra
pessoa. Odiava desapontá-la. Levara dois anos, talvez mais do que isso, para
tomar a decisão que sabia que não seria aprovada por Christine. Até aquela
manhã, não sabia se teria coragem de contar-lhe, mas agora o fato de ter
conseguido só servia para reforçar sua certeza de não estar agindo errado.
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— Não parece meu amigo! — Abby deu uma risada gostosa. — Sei que faz
tempo que não me beija, mas não me diga que já esqueceu como é!
Abby passou os braços em volta do pescoço de Clay e ele sorriu, ainda
tentando afastá-la. A garota pressionou o corpo contra o dele e, em seguida,
colou os lábios doces aos dele.
Não era o que Clay desejava. Sabia que não era a melhor maneira de
iniciar a discussão que devia acontecer entre eles naquele dia. No entanto,
talvez por pressentir que seria a última vez, sentiu uma necessidade intensa e
desesperada de conhecê-la plenamente, de abraçá-la, tocá-la e experimentar
cada centímetro de seu corpo, de marcá-la definitivamente na memória antes
de perdê-la para sempre.
Clay começou a acariciá-la, a acompanhar as curvas delicadas e em
seguida abraçou-a, puxando-a para mais perto. Os seios de Abby, firmes e
macios, moldavam-se contra seu peito e ela tinha o gosto de todas as coisas
frescas, novas e maravilhosas. As emoções que dominavam Clay sempre que
estava perto daquela mulher eram tão intensas que o tiravam de si, o
deixavam fraco. Ficava totalmente cego para tudo e para todos a não ser para
Abby e para o quanto a amava e desejava.
Clay aprofundou o beijo e Abby não se conteve mais. Acariciou o rosto e
as costas dele, escorregando os dedos por baixo da camisa, em busca da pele
nua. Aquele toque deixou Clay com os músculos tensos. Abaixou a cabeça
lentamente até os seios de Abby, simplesmente aspirando sua fragrância
depois os beijou com carinho. Podia senti-la estremecer em seus braços, a
respiração morna alterando-se em sua nuca.
— Amo você Abby — murmurou. — Amo muito! Quando Clay levantou a
cabeça, encontrou os olhos negros de Abby cheios de paixão. Enquanto
procuravam os lábios um do outro novamente, ele a apertou com mais força,
querendo que sentisse a força de seu desejo. Abby gemeu em sua boca e o
fogo ardia irremediavelmente, ameaçando consumir os dois. Clay sempre
tentara protegê-la do próprio desejo, amando-a com ternura, mas conhecendo
bem os limites. Agora, no entanto, havia na situação um desafio que não podia
recusar. A atração física era um demônio com quem travava uma persistente
batalha, e até aquele momento ele sempre vencera. Não que amar Abby fosse
errado, como não era entregarem-se à linguagem dos corpos e da paixão. Mas
amá-la sem comprometer-se era inconcebível. E compromisso era algo que
Clay não podia lhe oferecer.
Levantou a cabeça devagar. A respiração estava alterada e seus músculos
ardiam para tocá-la de novo. Teve que largá-la aos poucos, lutando para
sufocar as emoções enquanto assistia ao rosto bonito e apaixonado tornar-se
confuso, cheio de mágoa.
— Por que Clay? — Murmurou Abby inconformada. — Por que você
sempre para?
Clay deu um passo para trás. Olhou para a janela buscando uma
distração, mas Abby entendeu mal.
— Não estou falando de hoje. Sei que não podemos, nós... — O rosto dela
ficou mais corado, machucando o coração de Clay. — Agora não podemos,
porque a qualquer momento pode entrar alguém aqui, mas é sempre assim,
Clay... Como se você não me quisesse...
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— Você sabe que não é verdade, Abby. Você sabe que quero você, que te
amo.
A alegria que transpareceu na fisionomia de Abby foi outra punhalada no
coração de Clay.
— Clay... Sei que você quer esperar até nos casarmos, mas, se nos
amamos tanto não é pecado. — Abby aproximou-se e colocou-lhe a mão
suavemente no braço.
Clay respirou fundo e deu um passo atrás.
— Eu nunca disse que era.
— Então, o que é?
A frustração na voz da garota estava mais evidente agora. Não era a
primeira vez que tinham essa discussão, mas como Abby poderia entender se
Clay nunca tinha lhe explicado a verdade? Mas ele também nunca havia
permitido que ficassem excitados a ponto de perder a razão. A culpa era dele,
não devia ter deixado que isso acontecesse.
— O que é então, Clay? Sexo é uma palavra suja para você? Às vezes faz
com que me sinta culpada, como se meus sentimentos fossem sujos, como se
você não quisesse isso...
Clay virou-se rapidamente, silenciando-a com o apelo dolorido de seu
olhar.
— Abby não! Você sabe que não é verdade. O que sentimos um pelo outro
é bonito e natural...
— Então o que é? — Ela meneou a cabeça confusa, com os olhos cheios
de lágrimas.
— Não tem nada a ver com você, Abby. Tente entender...
— Mas eu não entendo! Não entendo nada Clay! Parece que quanto mais
amo você, mais você se afasta de mim. Nas últimas semanas...
— Abby, eu fui aceito no seminário.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, até que uma onda de alegria
iluminou-lhe o rosto. Pegou as mãos de Clay e sua felicidade transmitiu-se ao
corpo dele como um choque.
— Que bom Clay! Você esperou tanto tempo... Oh, estou tão orgulhosa de
você, querido... — Fez uma pausa pensativa. — Quer dizer que teremos de
esperar para casarmos... Não tem importância. Não precisa ficar chateado...
Eu lhe disse que esperaria e já esperei esse tempo todo, não é? Eu amo você
Clay, e nada...
Clay deu-lhe as costas. Não podia olhar para ela.
— Abby, não posso me casar com você.
Pronto, estava dito! As palavras soaram frias e ásperas, e atrás dele o
silêncio tornou-se mortal.
— O quê? — Perguntou ela afinal, com voz estrangulada.
Clay virou-se, mudo e impotente, implorando com os olhos que ela
entendesse. E Abby estava tentando entender, tentando dar sentido ao que
acabara de ouvir.
— Não podemos nos casar até você se formar. Sei disso, sempre soube
que...
— Não Abby, nunca.
Abby ficou imóvel, tão forte e corajosa quanto suas antepassadas
deveriam ter sido ao desbravarem aquelas terras. Deixou a dor invadi-la, sem
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Chris não sabia o que dizer. Nem sabia o que fazer para aceitar o que
Abby estava dizendo. Afastou-se simplesmente, deixou-a fechar a porta do
carro e ir embora.
Ouviu a porta da casa se abrir e Clay descer em sua direção, mas levou
um longo tempo para conseguir voltar-se e encará-lo.
Os olhos de seu irmão também estavam muito tristes e o rosto abatido
como ela jamais vira.
— Foi inevitável Chris — disse ele apenas.
Até aquele momento, até ver os olhos de Clay, Chris não tinha acreditado
realmente nele. Apesar da conversa que tiveram pela manhã, apesar do que
Abby lhe contara, até aquele exato momento ela havia conseguido se
convencer de que tudo não passava de uma fantasia. Seu irmãozinho só podia
estar divagando; o entusiasmo duraria uns dois dias e depois tudo voltaria ao
normal. Mas agora precisava enfrentar o fato: Clay estava falando sério.
O gostoso sol de abril de repente parecia cegar e envolver tudo num brilho
incômodo e ofuscante.
— O que diabos pensa que está fazendo Clay?
— É problema meu está bem Chris? — Respondeu ele, virando-se para
entrar na casa, mas ela segurou-lhe o braço.
— O problema não é apenas seu, maldição!
O olhar espantado de Clay foi causado pelo aperto em seu braço e pela
fúria da voz de Christine. Desesperada, ela pensou que estava lutando por sua
vida. Sua vida, agora representada pelo envelope que ainda tinha nas mãos.
Ele não tinha o direito de interferir, pelo menos não agora, quando um mundo
de possibilidades estava ao alcance de suas mãos.
No entanto, quem estava diante dela não era mais o garotinho a que se
acostumara. Ali havia um homem, terrível em sua muda obstinação.
— Você vai mesmo para o seminário, não vai? — Explodiu furiosa.
Observou-o ansiosa, em busca de alguma fraqueza, de algum sinal de que
tudo aquilo era uma brincadeira de mau gosto... Largou o braço dele e
controlou o tom de voz. — Você vai realmente fazer isso conosco?
— Eu lhe disse esta manhã, Chris. — Clay fitou-a com tristeza.
E pensar que alguns minutos antes tudo parecia tão claro, tão perfeito,
tão fácil! Clay não tinha o direito de estragar tudo. Não deixaria que a
sacrificasse... Justo agora que tinha a oportunidade de sua vida... Não podia
deixar que ele fizesse isso. Não deixaria!
— E Abby? Droga, vocês iam se casar! Sua preciosa consciência não liga
para o que fez com ela?
— Já expliquei para Abby Chris. Não preciso explicar a você. — Mas
quando reparou melhor na expressão nervosa da irmã, Clay reconsiderou: —
Não seria justo com ela. O que tenho pela frente exige toda minha dedicação e
energia emocional. Simplesmente não existe espaço para uma esposa em
minha vida.
— Não se exige celibato dos pastores protestantes!
— Não, não se exige. — De novo aquela expressão vaga dominou o rosto
de Clay. — É uma decisão pessoal.
— E a fazenda? E papai? Você vai deixar um velho trabalhando sozinho
até morrer enquanto você fica em algum lugar distante apreciando o perfume
das flores e meditando?
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Capítulo IV
Soja. Eles plantavam soja. E Pierce tinha carregado grãos suficientes para
alimentar o mundo inteiro.
O corpo de Pierce Lanson estava acostumado com saunas, massagens,
ginásticas leves. Não estava habituado a privações, a caminhadas em
estradas, a dormir em chão duro ou a trabalho pesado sob o sol. Sua cabeça
latejava e suas costas pareciam prestes a quebrar. Tinha três bolhas grandes
nas palmas de cada mão. Tirara a camisa duas horas depois de começar a
trabalhar, mas não tinha tomado um pouco de sol no iate no fim de semana
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passado? No fim de semana passado? Não era possível! Se fizesse tão pouco
tempo ele não estaria agora com as costas queimadas e ardendo. Parado no
fim de uma fila no pátio da frente, onde Clay fazia os pagamentos e agradecia
pessoalmente a cada homem pelo dia de trabalho, Pierce pensou que estava
mais próximo de um colapso físico do que jamais estivera em toda a sua vida.
O pôr do sol era cor-de-rosa e alaranjado e as cores brincavam nas
árvores, lançando sombras alongadas no pátio, lembrando pinturas de Dali.
Para os olhos cansados de Pierce, tudo parecia ter só uma dimensão: as
madeiras gastas do barracão, a casca sem cor das árvores, os corpos dos
homens na fila à sua frente. Até as vozes e as risadas a seu redor pareciam
vazias e distantes. Só uma coisa se sobressaía naquela mistura de imagens
dissociadas: um cheiro torturante que vinha da cozinha. Ele salivava sem
querer, mas se tivesse um prato diante de si talvez nem conseguisse levantar
o garfo, de tanto cansaço.
Pierce não sabia por que não tinha sido mandado embora depois do
acidente com o trator. Não teria se importado se isso acontecesse. Entretanto,
não fez nenhuma pergunta quando foi entregue aos cuidados de um homem
de costeletas e mandado para o silo. Afinal de contas, trinta dólares eram
melhores do que nada.
Os grãos de soja escoavam do silo para um latão alto e seu trabalho era
encher barris com os grãos do latão e transportá-los para uma caminhonete. O
homem de costeletas encarregava-se de dirigir a caminhonete dali até o
campo. Depois retornava e esperava que fosse carregada de novo.
Aparentemente, era só o que fazia. No começo Pierce tentou puxar conversa,
mas o homem só dava uma risada vaga e cuspia um líquido amarelado no
chão sempre que o encarava. Depois de algum tempo, Pierce começou a se
sentir um tolo e desistiu.
Em circunstâncias normais, não era de comer muito, e depois do
caprichado café da manhã não esperava ter muito apetite. A refeição do meio
dia foi levada por Christine, cuja expressão insinuava que poderia ter colocado
veneno no prato. O bom senso impediu-o de tentar flertar com a garota.
Comeu a refeição toda, em parte porque nunca tinha experimentado comida
tão deliciosa em sua vida e em parte por ficar temeroso de que o homem de
costeletas, que pegava as batatas com as mãos, roubasse seu prato caso não
se apressasse.
Depois de um almoço tão delicioso daqueles, teve vontade de acender um
cigarro. Admirado concluiu que, fossem quem fossem, aquelas pessoas eram
generosas em matéria de alimentação. Tentou imaginar quanto tempo ficaria
sem ver outra refeição daquelas. Na verdade, não conseguia acreditar que
sentiria fome de novo.
Pierce não sabia ainda que destino dar aos trinta dólares. Conforme o dia
passava e seus músculos doíam mais, só conseguia pensar que era pouco.
Talvez fossem suficientes para pagar um quarto de motel e outra refeição, mas
não daria para uma passagem de ônibus. Se existisse um cassino por ali, em
uma hora poderia transformar aquela quantia em dez vezes mais. Em todo
caso, tinha a garantia de que poderia dormir num lugar decente. Era tudo o
que lhe importava no momento.
— Dia duro filho?
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dólares que lhe restara e depois tomou a encarar o rosto implacável do homem
a sua frente.
— Que diabos...
— O pagamento justo por um dia de trabalho — interrompeu Walsh.
Em silêncio atônito Pierce observou o velho abrir uma velha carteira de
couro, guardar o dinheiro e colocá-la de volta no bolso. O cansaço
desapareceu, deixando apenas uma sensação de ofensa. Sua cabeça latejava,
seus ombros estavam em fogo e sua coluna parecia ter um nó de agonia. O
cheiro da soja parecia ter grudado em suas narinas, sobrepondo-se ao odor de
seu próprio suor. Ele tinha certeza de que jamais esqueceria aquele odor.
— Não pode fazer isso! — Agarrou o braço de Hamilton quando ele
começou a se afastar. — É um roubo! Você...
— Não é roubo receber o que é devido — respondeu Hamilton com
tranquilidade.
— E o que você me deve? — Pierce não acreditava no que estava
acontecendo. Era um pesadelo! Lembrou-se de como trabalhara o dia inteiro e
olhou a nota de cinco dólares em sua mão. — Você prometeu trinta dólares.
Todos os outros receberam trinta dólares. Eu trabalhei seu maldito! Trabalhei
como um escravo durante dez horas e você não tem o direito de reter meu
pagamento!
Pierce estava com a respiração alterada quando largou o braço de
Hamilton. Era demais! Ele era Pierce Lanson, cujos favores eram disputados e
pagos com extravagância pelas mulheres mais ricas do mundo; Pierce Lanson,
que estava habituado a sais de banho, champanha e a sentir o roçar de pele
com pele; Pierce Lanson, que vendera seu corpo por trinta dólares por um dia
inteiro de trabalho, quando costumava receber quinhentos por hora! Não era
possível! Nunca havia agredido ninguém em toda a sua vida, mas naquele
momento sentia-se tão injustiçado que sua vontade foi esmurrar o velho até
vê-lo estirado no chão.
Hamilton Walsh não se abalou. Clay continuava imóvel atrás do pai;
completamente sem graça, o que só contribuiu para aumentar a fúria de
Pierce.
— Você me deve cento e cinquenta e sete dólares pelas peças quebradas,
sem contar a mão de obra e os outros cento e vinte que pagamos para quatro
homens ficarem aqui esperando o trator ser consertado — disse Walsh
calmamente. — Você tem razão, não é justo, mas como sou um homem
caridoso, deixarei cinco dólares para você e não cobrarei o resto. Nenhuma
boa lição da vida sai barata filho, nem para o melhor dos homens.
Pierce sentiu a cabeça girar. Imediatamente compreendeu por que não
havia sido despedido. Boas lições! Ora, aquilo era apenas humor negro...
Com o canto dos olhos, viu o grupo de homens que estava perto da
caminhonete começar a se aproximar, demonstrando ainda mais hostilidade.
Pierce conhecia o tipo de código que regia aqueles homens. Tinha assistido
muitos filmes de cowboys. Se fizesse qualquer movimento em falso, poderia
acabar morto e jogado em algum buraco. Como um idiota, engoliu a raiva que
sentia de Walsh. Era sua única saída. Mas o que estava fazendo num lugar
como esse? Era um louco, só isso.
— Seu maldito! — Disse em voz baixa.
Hamilton Walsh apenas sorriu e caminhou na direção da casa.
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sabia como isso tinha acontecido. Aquele era seu filho, seu filho único. Será
que percebia o que estava fazendo? Clay não tinha pedido permissão, não
estava querendo saber de opiniões. Tinha feito uma afirmação como se
estivesse apenas contando um episódio interessante. Não era o filho de
Hamilton Walsh, era um homem no comando de sua própria vida. E resolvera
dedicar aquela vida a uma autoridade maior. Simples, claro, inquestionável.
Hamilton esforçou-se para aceitar num breve instante o que tentava ignorar a
anos; seu filho não lhe pertencia. Nunca tinha pertencido.
— Você sabia disso, Chris? — Perguntou, sem revelar na voz o que estava
sentindo.
— Ele me contou esta manhã. — Ela não precisou dizer mais nada. Seu
pai sabia como estava se sentindo.
Durante o dia inteiro nem passou pela cabeça de Christine a ideia de
desistir de seus próprios planos. Havia carregado a carta no bolso como um
talismã, à espera de uma oportunidade para falar a sós com o pai. Clay tomara
a situação mais difícil, quase impossível, mas aquela era sua única chance e,
por nada no mundo, deixaria que seu irmão a tirasse dela. Diria que estava de
partida naquela noite. Clay e seu pai que se entendessem depois. Eles não
poderiam impedi-la de ir. Não desta vez.
Entretanto, devia ter previsto que só estava adiando o inevitável.
Ouviu Clay dar a notícia e sentiu mais um aperto de raiva e de
ressentimento no estômago. Viu seu pai voltar-se atônito para ele e seu
coração encheu-se de esperança.
"Brigue com ele", desejou com fervor. "É seu filho e está nos traindo. Não
o deixe fazer isso".
Por instantes, teve certeza de que os planos de Clay não iriam adiante.
Hamilton Walsh não permitiria. Hamilton Walsh, aquele homem cheio de força
e determinação, não permitiria que seu filho e único herdeiro escapasse assim.
Ele não ficaria impassível, deixando que gerações de amor, de trabalho e de
tradição terminassem assim. Ele era seu pai e faria alguma coisa.
Mas, mesmo envolvida no fervor daquela convicção desesperada, Chris
sentiu a chama de esperança começar a se extinguir. Notou o conflito que
transparecia no rosto de seu pai. Ele odiava tal situação tanto quanto ela.
Estava furioso, magoado, sentia-se traído. E no final, em apenas alguns
segundos, notou que ele havia cedido. Sentiu o coração despedaçado quando
os olhos magoados procuraram os seus em busca de conforto. Estava acabado.
O leve sorriso no rosto envelhecido parecia um recado para ela:
"Bem, nós já sabíamos disso, não é, Chris? Não é a melhor coisa que
poderia ter acontecido, mas nós prosseguiremos. Temos que prosseguir. Agora
só resta você e eu".
Horrorizada, Chris olhou para dentro de si mesma. Não, não teria coragem
de magoar ainda mais aquele homem que a olhava com tanto amor.
— Então, quando vai partir? — Perguntou Hamilton, pegando o garfo
novamente.
Christine pediu licença e levantou-se da mesa. Quando chegou ao
vestíbulo, parou e rasgou a carta, jogando-a no lixo. Tinha vontade de gritar,
de chutar ou destruir alguma coisa. Mas não perderia o controle, não agora
que seu pai dependia dela, não agora que Clay jogara toda a responsabilidade
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em seus ombros. Christine Walsh era uma mulher forte, todos dependiam dela.
Não podia demonstrar mágoa, desapontamento ou tristeza.
Saiu da casa em silêncio, atravessou o pátio e sentou-se no banco de
passageiros da caminhonete. Só depois de fechar a porta foi que se permitiu
começar a soluçar, sozinha na escuridão.
Hamilton ouviu a filha sair. Sabia que ela estava arrasada, mas não a
seguiu. Christine teria que aprender sozinha a lidar com aquela situação. Teria
que aprender sozinha a aceitar os fatos.
Ouviu os planos de Clay, deu os conselhos que um pai dá para um filho
numa ocasião dessas, mas ficou em silêncio a maior parte do tempo. Clay
também precisava descobrir sozinho o momento de deixar a natureza seguir
seu curso.
Depois do jantar, Hamilton saiu para fumar um cigarro. Não viu Christine,
nem procurou por ela. Colocou o pé sobre uma parte do imenso tronco caído e
ficou ali, pensando nas gerações que aquele carvalho abrigara e nas
transformações a que tinha assistido. Era uma tristeza ver uma maravilha
daquelas apodrecendo no chão e todos sentiriam a falta de sua sombra, mas
assim eram as coisas. Gostaria de saber como explicar isso para sua filha.
Depois de algum tempo, Hamilton pegou um machado e começou a
golpear o tronco. Ficou logo cansado, mas conseguiu criar um ritmo lento e
estável e suportar a dor no corpo. Era uma tarefa árdua e ele sabia que levaria
o resto do verão cortando o tronco sempre que tivesse tempo e disposição.
Mas não deixaria de ser feito só por ser difícil. Esse era o único modo que
Hamilton conhecia de levar a vida: dando um passo de cada vez.
Capítulo V
A caminhonete foi embora sem ele. Pierce não tinha o menor desejo de
seguir para a cidade com aquele bando de homens desconfiados que não
paravam de observá-lo com olhares um tanto assassinos. Viu Christine sair da
casa e sumir na escuridão. Esperou calmamente até parar de ouvir as vozes
que chegavam até ele através de uma janela aberta. Observou Hamilton sair
da casa e contorná-la em direção aos fundos e continuou esperando. Começou
a ouvir o som de um machado rachando lenha, um som monótono e irritante,
que também cessou depois de alguns minutos.
Só depois que entrou na casa em silêncio foi que Pierce percebeu
claramente o que estava prestes a fazer. A raiva é um sentimento que
consome muita emoção, e Pierce nunca gostou de preservá-la por muito
tempo. Passara apenas uma hora, mas a fúria já havia cedido e a um
ressentimento duro, muito próximo do desejo de vingança.
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Na verdade, Pierce não estava querendo nem pensar no ato que estava
prestes a cometer. Não queria saber se estava agindo certo ou errado ou se
corria sérios riscos de ser apanhado em flagrante. Tudo o que almejava era
fugir o mais rápido possível daquele inferno e voltar para seu meio.
Não havia sinal de vida quando atravessou a sala de visitas. Os sons de
uma televisão no outro cômodo abafavam seus passos. O cheiro de comida
vindo da cozinha assanhou terrivelmente seu estômago e ele quase foi para lá.
Mas não, quanto mais depressa saísse daquela casa, melhor. Sem hesitar,
levantou a pequena redoma de vidro e pegou o relógio. Trezentos dólares,
dissera Christine. Aquele dinheiro o levaria de volta a Nova York e era só isso o
que importava.
Segurou o relógio com firmeza e virou-se apressado na direção da porta.
Foi nesse momento que viu Clay.
O irmão de Christine estava na escada, observando-o. No quarto degrau,
tinha uma visão excelente de toda a sala e não havia como não perceber o
brilho dourado entre os dedos dele.
Pierce estremeceu. Será que Clay tinha visto mesmo o que ele estava
fazendo? Como explicar sua presença ali na sala de visitas? Podia dizer que
estava procurando Hamilton... Ou que estava com fome... Não, Clay vira tudo,
seu olhar dizia isso.
Encarando o rapaz, Pierce colocou deliberadamente o relógio no bolso.
Clay continuou sem fazer um só movimento, apenas olhava-o. E seu olhar era
muito estranho e desconcertante... Era um olhar de perdão? De pena? Ou seria
um olhar de entendimento? Talvez apenas... Um olhar que transmitia um sinal
de permissão. Imediatamente Pierce correu para a porta.
Ainda sentia os olhos tolerantes de Clay em suas costas quando saiu e
respirou aliviado o ar puro da noite. O coração parecia saltar no peito e seu
estômago estava embrulhado. Sabia que o melhor a fazer era fugir o mais
rápido possível daquele lugar antes que o rapaz se arrependesse e viesse atrás
dele.
O que fazer? Ir embora a pé era uma temeridade, pois teria que andar
dois quilômetros. A velha caminhonete estava estacionada ali perto, embaixo
de uma árvore, e com certeza os idiotas deviam deixar as chaves no contato.
Se tivesse sorte, poderia estar numa rodoviária antes da meia noite.
Como estava tudo escuro dentro da caminhonete, Pierce só percebeu a
presença de alguém a seu lado depois de subir na cabina e bater a porta.
— Inferno... — Praguejou ele, quando seus olhares se encontraram.
As lágrimas tinham deixado Christine cansada, sem forças ou disposição
para coisa alguma. Não ficou surpresa com a entrada daquele maluco na
caminhonete, interrompendo-lhe bruscamente a solidão. Já havia acontecido
de tudo naquele dia e seria otimismo julgar que os aborrecimentos haviam
cessado. Com muito esforço, conseguiu perguntar:
— o que está fazendo aqui?
Pierce suspirou profundamente, dizendo a si mesmo que era vítima de
algum pesadelo. Mas não. A garota era real, de carne e osso, e o olhava com
ar de poucos amigos. Pois bem, ia dizer a verdade, para variar.
— Estou roubando sua caminhonete. Quero ir embora desta sua querida
fazendola o mais depressa possível!
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Ela não respondeu. Continuou a fitá-lo, sem fazer nenhuma objeção, sem
rejeitá-lo, apenas esperando.
"Calma", disse Pierce para si mesmo. "Muita calma".
Seus dedos passearam suavemente pelo rosto delicado. Pouco a pouco foi
deixando de lado seus próprios desejos, suas necessidades e frustrações para
tornar-se apenas uma extensão de Chris. Agora estava ali apenas para servi-
la, para lhe dar prazer.
Acariciou-a novamente, com suavidade, notando com prazer que a
expressão dela tomava-se diferente, que havia uma sutil aceitação naquele
olhar preso ao seu.
— Você é tão bonita...
— É claro que não sou — retrucou-a sem emoção, como se não houvesse
o que discutir.
— Seus olhos são lindos — insistiu ele, chegando mais perto e passando o
braço em volta dos ombros de Chris. Acariciou-lhe os olhos, fazendo-a fechá-
los. Nem sabia de que cor era, mas não fazia diferença.
Abraçou-a com mais força, sentindo o corpo jovem de Chris contra o dele.
Cheio de perícia aproximou os lábios do rosto dela e mordiscou-o gentilmente.
— Vai ser ótimo, meu bem. Sei o que você quer doçura, e farei tudo para
que se sinta feliz e satisfeita.
Eram palavras de amor, carinhosas. E ele as dizia com naturalidade. Chris
deixou-se levar, mesmo sabendo que nenhuma palavra era verdadeira. Como
eram boas aquelas carícias.
— Você pode tocar em mim, se quiser — convidou Pierce num murmúrio,
enquanto sua língua percorria os lábios de Christine. Pouco a pouco aquela
promessa de beijo foi se concretizando e os dois finalmente confundiram seus
hálitos.
— Você é deliciosa, meu bem...
Pierce continuou a acariciá-la. Seus lábios agora percorriam lentamente o
rosto dela em todas as direções, orelhas, olhos, queixo... E voltaram para a
boca, num beijo profundo e embriagador.
— Nós estamos mais tranquilos agora, não é meu bem? É bom a gente se
acariciar... É bom a gente se amar... — E seus lábios cobriram os dela
novamente.
Pierce sabia muito bem como encaminhar aquelas carícias preliminares. A
cabina da caminhonete de repente tinha se tornado extremamente confortável,
um oásis no meio de um universo ameaçador. Os dois foram se deitando no
banco e seus corpos se estreitaram num contato mais íntimo.
Ele sabia exatamente que carícia devia suceder a outra, onde um beijo
podia despertar mais emoções... Chris entregava-se sem muito
constrangimento àquele momento mágico e sensual.
Pierce tinha consciência absoluta de todas as emoções que devia realizar
para que tudo desse certo entre os dois. Em primeiro lugar, precisava ir com
calma, ser doce e carinhoso. Ela devia ter passado por alguma situação muito
desagradável naquele dia e por isso estava tão vulnerável, com os nervos à
flor da pele.
Estava cada vez mais receptiva às carícias, mas justamente por isso o
momento era muito perigoso. Se agisse direito, seria a melhor experiência da
vida da garota, mas se errasse seria um verdadeiro desastre.
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Era evidente que fazia muito tempo que ela não trocava nenhuma carícia
com um homem, o que tornava a situação ainda mais difícil. Havia uma ponta
de desespero em seus gestos, algo quase assustador. Pierce sentia-lhe o
pulsar agitado do coração e a pele que ardia como fogo. Quando tocou
gentilmente o bico dos seios firmes, Chris fechou os olhos de repente, pareceu
que iria explodir de paixão.
— Calma, meu bem, temos todo o tempo do mundo...
Chris o desejava terrivelmente. Se ele a possuísse naquele momento, era
capaz de morrer de prazer. Não tinha importância se depois começasse a se
sentir suja e culpada... Não, não tinha a menor importância. Dominada pelo
desejo, aconchegou-se ainda mais sob o corpo musculoso e viril de Pierce.
E foi naquele instante que a aura de magia que pairava sobre os dois
começou a se desfazer. Estavam praticamente colados um ao outro. Pierce não
saberia dizer a quanto tempo não fazia amor com uma mulher tão jovem. Não
se lembrava mais de como era bom sentir um corpo flexível e ágil sob o seu. O
perfume dos cabelos dourados o deixava quase sem ação de tão excitante e
seu desejo era ficar abraçado com ela eternamente. Pierce começara suas
carícias pretendendo satisfazê-la e agora percebia que era ela que estava lhe
dando um imenso prazer.
Tudo o que Christine desejava naquele exato instante era ser possuída por
Pierce. Era sexo o que procurava. Não entendeu quando ele parou de acariciá-
la, mas não ficou preocupada. Após todos aqueles beijos e carícias, confiava
naquele homem, tinha certeza de que ele continuaria lhe dando prazer, muito
prazer.
Prestou atenção nas batidas compassadas do coração de Pierce. O corpo
dele estava quente sobre o seu e seus braços lhe davam uma sensação
confortável e boa. Seu cérebro voava de uma fantasia para outra, sem parar.
Imaginavam-se fugindo, os dois viajando numa noite escura como aquela, sem
destino. Ela não o conhecia, não gostava dele. Seu corpo era forte e seu rosto
bonito, e só. Nada mais a impressionava. Mas só isso bastava naquele
momento. Queria fugir com ele para qualquer lugar, sair do inferno do próprio
desespero.
Aos poucos o fogo que ardia dentro dela foi se acalmando. Pierce, por sua
vez, tinha parado de murmurar frases sensuais em seu ouvido. Podia sentir a
respiração dele contra os cabelos e a pele cálida de seu rosto. Eram duas
pessoas que haviam se aproximado para compartilhar um pouco a solidão de
cada um. Por mais estranha que fosse a situação, naquele momento só tinham
um ao outro. Como náufragos.
Se fizessem amor, seria um ato vital, quente e animalesco. Uma explosão
de violência e desejo. Ela o envolveria com toda a sua plenitude de mulher e
os dois alcançariam uma tremenda satisfação física. Seria apenas sexo, mas
isso agora não tinha a menor importância.
Inesperadamente, ele a fitou com simpatia. Não era um olhar sensual, era
apenas um olhar humano, solidário.
Christine cerrou as pálpebras e foi envolvida pela escuridão. Não, não
queria fugir com aquele estranho. O que estava acontecendo com eles naquele
momento era apenas circunstancial. Eram dois solitários que de repente se
encontraram, cheios de necessidade. O mundo daquele homem era totalmente
diferente do seu. Pierce vivia no meio de mulheres ricas, tomando champanha
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Entrou na sala e foi direto para a lareira. Com cuidado, colocou o relógio
sob a redoma de vidro e, com passos pesados, caminhou para a escada.
Jogou-se vestido na primeira cama vazia que encontrou.
Capítulo VI
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Ao chegarem perto das raízes da imensa árvore, ficou claro para Pierce o
quanto teria que trabalhar. Teria sido melhor ir com Clay.
— Tem certeza de que quer ver toda essa madeira cortada? — Perguntou
meio sem graça.
— Mas é claro rapaz.
— Não seria melhor usar dinamite? Hamilton riu divertido, antes de
responder:
— Não, é muito perto da casa e, além do mais, quero aproveitar a
madeira para usar na lareira.
— Mas não sei cortar árvores...
— Você só aprenderá praticando.
Hamilton começou a se afastar, deixando Pierce indeciso diante do tronco
imenso. Desanimado, apanhou o machado e iniciou o trabalho.
No primeiro golpe, a lâmina entrou tão fundo na madeira que Pierce teve
a impressão de que nunca mais conseguiria tirá-la dali, por mais esforço que
fizesse.
Com determinação, colocou um pé no tronco e puxou o machado. Quando
a ferramenta se soltou, por pouco Pierce não caiu para trás, ferindo-se com a
lâmina afiada. Sim, teria que praticar muito para aprender...
Christine o observava da janela, divertida com sua falta de jeito e
impressionada com a beleza de seu corpo.
Tinha ficado atônita quando o pai dissera que Pierce continuaria a
trabalhar para eles e que ocuparia o quarto do andar de cima. Ficou furiosa,
mas depois se resignou. Seu pai era um homem de métodos misteriosos para
julgar as pessoas e não saberia explicar por que resolvera dar aquela chance a
Pierce.
Chegou até a argumentar com Hamilton, dizendo que era bobagem
contratar um homem estranho e totalmente inexperiente quando existiam
tantos outros desempregados na região. Mas não adiantou. Seu pai estava
decidido.
Porém, não era só por esses motivos que não queria Pierce na fazenda.
Existiam outros, mais sutis e poderosos. Ainda não esquecera o que tinha
acontecido na cabina da caminhonete. Nem um detalhe.
Como poderia esquecer aquelas carícias audaciosas que Pierce fizera e de
como estivera disposta a se entregar totalmente?
Christine suspirou. Não se envergonhava do que tinha sentido. Afinal, era
uma mulher com necessidades físicas reais e Pierce tinha tudo o que uma
mulher precisava em matéria de sexo. Mas só em matéria de sexo. Pierce
nunca a atrairia de outra maneira.
Oh, sim, ele era realmente muito bonito. Percebera isso claramente na
manhã seguinte à noite em que estiveram juntos na cabina. Quando ele
desceu para o café da manhã, lavado, barbeado e com as roupas simples de
Clay, que conseguia tomar elegantes pela maneira displicente como as usava,
ela chegou à conclusão de que realmente era um homem muito bonito. Só que
nunca pertenceria àquele mundo e era isso o que mais a intrigava.
Pierce demonstrava nos mínimos gestos que vivia outra vida,
completamente diferente da que levavam na fazenda. Seu dia a dia
provavelmente transcorria fácil e tranquilo. Devia ser interessante viver em
lugares elegantes, com milionárias dispostas a pagar para fazer amor. A
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presença dele fazia com que Chris ficasse o tempo todo consciente de que
existia outro tipo de vida em algum lugar, uma vida muito mais fascinante... E
também a deixava consciente do quanto seu quotidiano era desagradável,
monótono... A presença de Pierce a deixava irritada.
Mas assim mesmo não se envergonhava de continuar querendo fazer
amor com ele. Como poderia esquecer como Pierce a deixara excitada naquela
noite? Por que deveria sentir-se embaraçada ou com vergonha de si mesma?
Afinal, ele estava acostumado a ser usado pelas mulheres.
Fazia mais ou menos dois anos que tivera um romance completamente
insatisfatório com um professor de uma escola de Gull. Antes desse houve
outro rapaz em seus tempos de universidade, mas jamais conhecera um
homem tão experiente quanto Pierce.
No entanto, desde aquela noite, os dois nunca mais tinham ficado
sozinhos. Quem sabe agora não era uma boa oportunidade. Sem pensar duas
vezes, Chris saiu da casa e caminhou em direção ao carvalho. Pierce não notou
sua presença, pois estava novamente tentando tirar o machado fincado no
tronco da árvore.
— Você está fazendo tudo errado — disse ela, parando com a mão na
cintura.
Ele conseguiu retirar o machado e fitou-a. Estava ensopado de suor e com
ar de poucos amigos.
Chris tirou-lhe o machado da mão e começou a explicar:
— Você deve bater com o machado na madeira num ângulo agudo, não
como está fazendo. — Em seguida, lançou a ferramenta sobre o tronco com
precisão. — Está vendo?
"Era só o que me faltava!", pensou Pierce. "Todos aqui querem me ensinar
alguma coisa. O velho, o rapaz e agora esta garota". Em vez de expressar seus
pensamentos sorriu ligeiramente comentando:
— É menina, você tem estilo! Deixe-me ver de novo. Christine usou o
machado mais algumas vezes.
— Puxa, você é mesmo forte! — Ele não conseguiu controlar o desejo de
ironizar e completou malicioso: — Posso sentir seus músculos?
— Pensei em pedir para sentir os seus, mas fiquei com medo de me
decepcionar — retrucou Christine, sem se sentir embaraçada.
— Você não tem muito senso de humor, não é?
"Eu tinha. Antes”, pensou Chris, sem conseguir se lembrar de quando sua
vida havia sido tranquila e alegre. Talvez na infância. Mas já fazia tanto tempo.
— E você acha que existem muitas coisas boas para que se viva rindo, de
bom humor?
— Sim, existem muitas! A vida, este lugar... Você...
— Talvez você consiga achar tudo isso agradável; eu não! Pierce estava se
desconhecendo. Por um lado desejava que Chris voltasse depressa para o
lugar de onde tinha vindo deixando-o com o tronco e o machado. Mas, por
outro, queria que ela ficasse ali, pois no mínimo ganharia alguns minutos de
descanso. Ou talvez até outras coisas, se tivesse sorte. Além do mais, ela não
tinha aparecido só para lhe mostrar como se usava um machado, era
impossível não perceber o jeito como Christine o olhava. Afinal, quem poderia
saber o que se passava em sua cabeça?
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Christine não saberia dizer em que instante a conversa terminara para dar
lugar à sensualidade, mas também não estava interessada em saber. Como
era bom sentir-se desejada, principalmente por um homem experiente e
bonito como Pierce!
Quando Pierce passou-lhe as mãos no rosto, num afago, foi que ela viu os
curativos. As mãos dele estavam cheias de bolhas pelo trabalho no campo. De
nada adiantariam aqueles curativos malfeitos. Chocada, ela se afastou um
pouco.
Pierce entendeu tudo. Nenhuma mulher iria querer ser acariciada por
mãos feridas. Quando ela se libertou e caminhou para a casa, não fez nenhum
movimento para impedi-la.
— Lanson! — Gritou ela da janela, depois de alguns minutos. Segurava
um par de luvas.
Pierce se aproximou, pegou as luvas e ouviu-a dizer:
— Tente tomar mais cuidado com as mãos. E agora volte ao trabalho.
Capítulo VII
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Ele recolocou o galão no lugar e voltou para perto do funil, olhando para
Benson, o homem que gritara e que agora o fuzilava com o olhar de cima do
trator.
A expressão de Benson era de raiva, mas Pierce não estava nem um
pouco impressionado. Já tinha percebido que aquelas pessoas só conseguiam
demonstrar sentimentos básicos como raiva, felicidade, desdém...
— Tenho que ficar vigiando você o tempo todo, é? — Continuou o homem.
— Tudo o que você tem a fazer é prestar atenção no funil para que esteja
sempre cheio. Só assim terminaremos nosso serviço!
— Qual é o problema Benson? — A voz de Christine, clara e fria, soou
atrás de Pierce.
— Estou dizendo para esse cara prestar atenção no funil o tempo todo,
mas parece que ele não está entendendo.
— Bem, vou mandar Jordan vir ajudar você. Preciso de alguém para me
ajudar a pegar umas caixas de fertilizantes na cidade e vou levar Lanson. —
Chris olhou para Pierce e ordenou: — Venha comigo.
Pierce ficou contente. Seria uma ótima oportunidade de descansar um
pouco daquele trabalho maçante. Subiu na caminhonete ao lado de Christine e
foram procurar Clay.
Fazia uma semana que Chris não conversava com o irmão. Estava muito
magoada e achava que não tinham nada a dizer um ao outro. Durante toda
sua vida procurara aconselhá-lo resguardando-o dos perigos e jamais deixando
de respeitar-lhe os sentimentos. Mas agora ele havia escolhido sua trajetória
sozinho e sem escutar ninguém. Portanto, que continuasse sozinho dali para a
frente.
— Benson precisa de um homem para ajudá-lo — disse Chris com frieza,
ao parar ao lado de Clay. — Mande Jordan para lá.
Clay fitou-a com tristeza. Não podiam continuar daquele jeito! Gostava
muito da irmã para ficarem se agredindo daquela maneira e, se não
conseguisse uma reconciliação rapidamente, talvez nunca mais conseguisse.
— Chris, precisamos conversar.
— Estou indo para a cidade. Mantenha seus homens trabalhando se quer
acabar o serviço até o fim do dia.
Pierce não percebeu que havia algo diferente entre os dois.
Não tinha intimidade com a família para saber como era a relação entre os
dois irmãos.
Chris colocou a caminhonete em movimento. Sua postura em relação a
Pierce não havia mudado, desde a tarde em que se beijaram perto do tronco
do carvalho. Só que andava sem tempo para alimentar fantasias. É claro,
ainda gostava de admirar Pierce, como gostava de admirar um búfalo ou um
animal selvagem. E algumas vezes se divertia com a inexperiência dele em
tratar com as coisas da fazenda. Mas frequentemente estava aborrecida com
sua presença.
Pierce não passava de um incompetente e preguiçoso. Os homens da
equipe não o suportavam, pois não tinham esquecido o incidente com o trator.
Por outro lado, não lhe perdoavam a elegância e seus modos diferentes. Ele
por sua vez, não fazia nada para se defender das gozações dos outros, e isso a
deixava ainda mais irritada.
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mãos. Pierce pegou o dinheiro e foi até a farmácia. Para as mãos, comprou
apenas mais esparadrapo. Gastou o resto do dinheiro com desodorante, creme
e aparelho de barbear, xampu, escova de cabelos, pasta e escova de dente.
De lá, foi direto para o velho telefone que ficava em frente.
Pierce tinha apenas alguns conhecidos, clientes e ex-clientes. Nenhum
amigo, ninguém que o socorresse numa emergência. Assim mesmo ele discou.
A mulher que atendeu ao telefone em Nova York parecia sonolenta.
— Pierce! Onde se meteu? Pensei que na próxima vez que ouvisse falar de
você seria no noticiário da televisão, com o locutor anunciando que o
encontraram morto em algum buraco!
Mary, sempre exagerada... O fim do caso entre os dois havia sido
desagradável, pois ela chorava muito, mas Pierce nunca se esqueceria dela.
Mary o pagara direito e ainda lhe dera um Cartier de ouro de presente. Era
muito generosa.
— Onde você se meteu? — Repetiu ela.
— É uma longa história benzinho. Mas é ótimo ouvir sua voz. Escute
querida, como vão as coisas?
— O quê? Está me gozando? Só problemas! Todos os meus amigos estão
em apuros, presos ou sofrendo processos! É uma loucura! — Mary fez uma
pausa. — Você não está na cidade, não é querido?
— Não, meu amor. Mas, se me mandar algum dinheiro, estarei na porta
do seu apartamento daqui a algumas horas!
— Você está a salvo, não é? Claro que está, senão não estaria me
telefonando. — A voz de Mary tornou-se séria de repente. — Agora escute
querido, é melhor você ficar aí, seja lá onde estiver. Não apareça aqui e nem
me telefone de novo. Você sabe muito bem que meu apartamento é muito
visado, eles poderiam aparecer a qualquer momento para pegá-lo, não é?
— Do que é que está falando, benzinho? — Perguntou Pierce, sem
entender nada.
Houve um silêncio momentâneo e depois ele voltou a ouvir a voz de Mary
no outro lado da linha.
— Então você não sabe de nada? Não acredito!
— Escute aqui benzinho, estou no fim do mundo há uma semana, sem
dinheiro e sem ter para onde ir. O que mais desejo é uma passagem para ir
embora. Olhe, se você estiver complicada com algum caso de amor antigo, eu
ajudo você. Não tenho medo dos seus ex-amantes!
— Por Deus, Pierce, não é nada disso! Estão à sua procura! Se vier para
Nova York, eles te matam!
— Mas do que você está falando?
— De Cavenetti, querido. Ele está louco para pôr as mãos em você. Diz
que vai cortar o que você tem de mais lindo e precioso e jogar no meio da
Times Square.
— Cavenetti? Mas quem é esse homem Mary? Está ficando louca?
— Não foi você que passou um fim de semana com uma milionária num
iate no Golfo do México?
Cavenetti! Aquela velha era mulher de um gangster.
— Desgraçada!
— Entendeu agora por que estou dizendo para você ficar onde está
querido?
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Capítulo VIII
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— Não sei. Acho que é sinal dos tempos. Hoje em dia as pessoas
compram e vendem quase tudo. — Christine olhou-o com tanta impaciência e
descrédito que Pierce viu-se obrigado a continuar: — Bem, muitas são velhas
que não possuem nada além de dinheiro. Outras passaram a vida inteira sem
conhecer um bom... — Quase disse o que não devia, mas disfarçou com
elegância: — As pessoas que têm muito dinheiro estão acostumadas a pagar
pelo que precisam. Quando existe demanda, sempre existe a oferta. — Ele
encolheu os ombros. — É a lei da selva.
Christine não parecia satisfeita quando começou a dirigir. Pierce achou
que a curiosidade dela tinha algo de mórbido, como se ela estivesse tentando
encontrar mais razões para não gostar dele.
— Você ainda não respondeu minha pergunta.
— Veja bem, elas não pagam só pelo sexo, entende? Sexo é fácil! —
Retrucou Pierce impaciente. Em seguida enrugou a testa, tentando encontrar
as palavras. Nunca tinha parado para pensar nisso, mas entendia muito bem
do assunto. Só que nunca precisara explicar para alguém. Quase como se
estivesse pensando em voz alta, começou: — As mulheres estão acostumadas
a serem usadas, sabe? Mesmo com toda essa história de liberação, os homens
ainda continuam no comando, ou pelo menos é o que a maioria das mulheres
acha. Ainda é a mesma coisa, as mulheres tentando agradar os homens. Às
vezes uma mulher só quer ter prazer. Sentir que o mundo gira ao seu redor.
Assim, eu faço com que elas se sintam atraente, queridas, protegidas e
importantes. Elas pagam por tudo isso.
— E você? Não se incomoda de vender seu corpo?
Pierce meneou a cabeça, ligeiramente exasperado. Claro que ela não
estava entendendo nada, mas não esperava que entendesse.
— Cada um vende o que tem. Posso lhe garantir que é muito mais fácil do
que o que estou vendendo agora, músculos e suor a cem dólares por semana.
Chris ficou em silêncio, pensando naquilo tudo. Ele era um homem
estranho. Não sabia o que esperava como resposta, mas não era exatamente
aquilo.
— Eu faço as mulheres se sentirem amadas — concluiu Pierce, querendo
colocar um ponto final na discussão. — É tão ruim assim?
— É uma mentira. É um jogo. Uma maneira superficial de um ser humano
se relacionar com outro. Como se... Como se as pessoas estivessem doentes.
— A velha história de que o dinheiro não compra o amor, não é? — Ele
riu. — Bem, eu vivo a contradição dessa teoria.
— Você nem sabe o que a palavra "amor" significa.
— Sei tanto quanto posso, como qualquer outra pessoa. Vou lhe dizer
uma coisa, as mulheres que me procuram, são profundamente infelizes e na
verdade pagam por alguns momentos de esquecimento. Você acha que isso é
doença e talvez seja. Talvez o mundo inteiro seja doente. Mas, às vezes... —
Pierce não pretendia ficar tão emocionado e surpreendeu-se com o nó na
garganta. Não se lembrava de já ter passado tanto tempo conversando sobre
um assunto tão abstrato. Não sabia que era capaz disso. — Às vezes uma
pessoa precisa se sentir especial. Precisa sentir alguém ao seu lado; precisa se
sentir querida. Às vezes precisa apenas ser abraçada ou tocar alguém... — Sua
voz tinha se tornado suave e, sem perceber, pegou uma mecha de cabelos que
tinha se soltado do coque que Christine usava. — Como você, naquela noite.
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Capítulo IX
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Valorizava demais sua liberdade para ficar presa a um homem por muito
tempo.
Prometera ao pai que, no verão após a formatura, colocaria a
contabilidade da fazenda em ordem antes de confiá-la a outra pessoa e por
isso voltara. Afinal, sem o apoio financeiro e afetivo de Hamilton, não teria tido
a oportunidade de construir sua própria vida e era natural que lhe retribuísse
de alguma forma. Claro que não esperara encontrar os negócios tão confusos.
Não podia ter previsto a queda da economia nem as oscilações do mercado
internacional que afetaram a agricultura e ameaçavam os pequenos
fazendeiros com uma das piores crises da história... Não esperara que seu pai
passasse a depender tanto dela.
E, então, chegou à época de Clay ir para a faculdade.
Fazia cinco anos. Christine ficou vendo sua vida mais e mais envolvida
com aquilo tudo. A cada dia que passava seus sonhos iam ficando cada vez
mais distantes.
Não que tivesse sonhos mirabolantes. Era tudo muito simples, queria
apenas uma vida igual à de tantas outras que moravam nas grandes cidades.
Tornar-se uma mulher independente, envolvida com assuntos que a
interessassem, correndo riscos e tomando decisões. Às vezes ganhando, às
vezes perdendo, mas fazendo alguma coisa...
Se seus planos tivessem dado certo, ela agora seria apenas uma mulher,
entre milhares, ajudando a moldar o mundo de hoje. Estaria morando em um
apartamento decorado com cores alegres e muitas plantas. Sairia para fazer
compras num carro pequeno, usaria roupas de corte perfeito, trabalharia até
tarde e depois iria ao teatro ou sairia para tomar um drinque com as amigas.
De vez em quando levaria um namorado para casa e fariam amor entre lençóis
floridos. Passaria os sábados lavando roupa e cuidando da casa e os domingos,
tomando café e lendo os jornais. Passaria noites solitárias, desejando ter
alguém a seu lado, e às vezes ficaria tão aborrecida que teria vontade de
gritar. Às vezes odiaria sua vida, mas seria a vida que tinha escolhido.
Christine ouviu a porta bater e passos atravessando o vestíbulo. O som do
machado cortando madeira continuava e ela voltou a olhar os livros. Um forte
desespero dominou-a. Era tudo inútil. Estúpido e inútil.
Tinham pedido emprestado cada centavo que investiam agora na fazenda.
Às vezes sua garganta secava quando pensava em como estavam próximos do
colapso financeiro, às vezes seu rosto ficava vermelho de tanta raiva.
Tinha tentado explicar exatamente isso para seu pai na noite anterior.
— Não podemos continuar assim por muito tempo papai. Estamos
endividados até o pescoço e já não há mais de onde tirar empréstimos. No
outono passado, tentei lhe mostrar que não podíamos continuar a produzir na
mesma escala que sempre produzimos. Nossa única saída era vender parte do
equipamento...
— Não se pode gerir uma fazenda sem equipamento filha — interrompeu
Hamilton.
— Não vê que é exatamente isso o que estou dizendo? — Gritou Christine,
perdendo a paciência. Sabia que seu pai se fazia de desentendido de propósito,
como agia sempre que ela tentava discutir os negócios sob um ponto de vista
prático.
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Não duvidava de que poderiam fazer amor, se quisesse. Porém, não tinha
a menor ideia de como cativar aquela mulher como amiga.
Sentiu Christine relaxar e viu sua cabeça pender ligeiramente.
— É gostoso, não é? — Sussurrou.
Ela não respondeu, mas Pierce sentiu um leve estremecimento nos
músculos de seu pescoço. Aumentou a pressão dos movimentos e ela começou
a relaxar novamente.
— Não é gostoso? — Insistiu.
— Sim. — Christine queria que sua voz parecesse irritada e impaciente,
mas saiu apenas como um suspiro de satisfação. — É gostoso.
— Obrigado. É o primeiro elogio que você me faz.
Chris queria responder, mas de repente achou que não valeria o esforço.
As mãos dele eram macias e cheiravam a sabonete, seus dedos eram fortes e
habilidosos. Nunca alguém tinha feito isso por ela.
Por um momento desejou que a massagem fosse apenas um gesto de
ternura, que ele estivesse apenas querendo agradá-la, e não porque fosse
vantajoso subir no conceito da filha do patrão.
Desejou que o belo corpo a seu lado pertencesse a uma pessoa de
verdade, alguém em quem pudesse confiar, de quem pudesse depender.
Desejou que Pierce fosse outro homem. Não importava quem, qualquer um,
desde que fosse gentil, honesto e verdadeiro.
— Quanto você costuma cobrar por uma sessão de massagem? —
Perguntou com voz sonolenta.
Por instantes, houve hesitação nos movimentos dos dedos, mas logo
continuaram no mesmo ritmo.
— Depende do caso.
Pierce começou a cantarolar "Hotel Califórnia" novamente. Chris percebeu
que devia fazê-lo parar antes que a situação escapasse de seu controle. Logo
ele começaria a beijar seu pescoço ou tomaria qualquer outra atitude de
conquistador barato, e ela não estava disposta a nenhuma cena ridícula.
Endireitou o corpo e ficou surpresa quando Pierce aceitou seu movimento,
apenas pousando as mãos em seus ombros.
— Você cometeu um erro — disse ele simplesmente. Christine fitou-o,
mas ele olhava compenetradamente para o livro em sua frente.
— Dezessete com trinta e oito são cinquenta e cinco, e não quarenta e
sete.
Christine voltou os olhos para o papel e, aborrecida, viu que Pierce estava
certo. Devia ter apertado o botão errado da calculadora e não era de se
admirar, com tantas coisas que tinha na cabeça.
— Que é isso agora? Você também é um gênio da matemática? —
Perguntou, corrigindo a conta.
— Oh, eu tenho muitos talentos ocultos! — Garantiu, com aquele sorriso
cuidadosamente cultivado. — Vocês não me pagam nem a metade do que eu
valho.
— Ainda bem que não. Se as coisas não começarem a melhorar, pode ser
que a semana que vem a gente não possa pagar nada.
— Estão com problemas financeiros? — A voz dele tornou-se séria.
Se morder a língua ajudasse, era o que Christine teria feito.
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Capítulo X
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Jordan, o homem baixo com o rosto todo marcado por cicatrizes de acne,
que Pierce rotulara desde o primeiro dia como um criador de caso, abaixou-se
e pegou o réptil, colocando-o bem diante de seu rosto. O sorriso abriu-se
maldoso, e os olhos brilharam cheios de perigo. Pierre recuou um passo.
— Não está com medo de uma cobrinha de nada, não é gatinho? — Jordan
olhou para os companheiros, como se fossem uma platéia. — Ei, uma vez
estive num lugar onde as mulheres dançavam com cobras. Vocês não
imaginam o que faziam com elas! — Virou para Pierce, aproximando
novamente o réptil do rosto dele. — Você dança com cobras, gatinho? Não
quer nos dar um showzinho? Podemos pagar ingresso...
Pierce enfrentou-lhe o olhar o máximo de tempo que conseguiu. Depois se
afastou, acompanhado pelas risadas divertidas. Com o canto do olho, viu Clay
fazer menção de segui-lo, mas Hamilton o impediu, segurando-o pelo braço.
Atravessou o campo e chegou a uma pequena elevação que antecedia
uma colina, de onde não ouvia mais as risadas nem via os rostos gozadores.
Não tinha sido a primeira brincadeira de mau gosto, nem seria a última.
Atravessou um trecho pedregoso e subiu até o topo, observando a paisagem
que se descortinava a sua frente. Parecia uma parte do mundo que Deus se
esquecera de terminar. Dali a alguns minutos voltaria para conseguir algo para
comer, antes de recomeçar a trabalhar. Tinha certeza de que no fim do dia o
incidente já estaria esquecido.
Ouviu passos, mas não virou a cabeça. Hamilton Walsh parou a seu lado,
permanecendo em silêncio por algum tempo. Tirou do bolso a velha cigarreira
de couro, onde guardava os cigarros de palha, enrolados à mão.
— Quer fumar?
Pierce encarou-o um pouco desconfiado e hesitante, depois aceitou. Tinha
parado de fumar a alguns anos porque quase todas as mulheres não gostavam
do gosto que o cigarro deixava em sua boca. Agora não precisava mais se
preocupar com isso.
Pierce tragou com cuidado quando se inclinou para o fósforo aceso que
Hamilton segurava, mas assim mesmo engasgou e tentou não tossir. Percebeu
o olhar divertido do velho e tragou de novo. Desta vez não conseguiu conter a
tosse.
— É forte — conseguiu dizer com os olhos molhados.
— É uma seda comparada ao tabaco que eu fumava antes. Ficaram em
silêncio por algum tempo e Pierce começou a se acostumar ao gosto do
cigarro. Viu que Hamilton olhava a paisagem e tentou imaginar o que o
interessava particularmente ali. O velho parecia cansado naquele dia. Ficou um
pouco preocupado, pois encarava seu patrão e mentor como um homem
infatigável. As rugas do rosto dele, porém, estavam mais pronunciadas e sua
cor mais pálida. Percebeu a respiração alterada apenas por subir a pequena
colina. Quantos anos ele teria? Quase perguntou se também sentia dor nos
músculos e entorpecimento depois de cada dia mourejando na terra.
— Estão começando a se formar nuvens de tempestade — disse Hamilton,
com os olhos fixos no horizonte. — Teremos que trabalhar como o diabo para
terminar esse campo antes que comece a chover.
Pierce olhou para o horizonte e não viu nenhum sinal de tempestade, nem
mesmo de nuvens.
— Terminaremos sábado.
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
engraçado saber que as pessoas que construíram tudo isso são parte de você,
que pode reconstituir sua origem até tão longe.
Walsh passou por ele e avançou na mata. Caminharam alguns metros e
ele parou para esfregar a bota no chão. Curioso, Pierce viu as folhas serem
afastadas e uma pedra chata começar a aparecer. Era uma lápide.
— Veja só! — Murmurou, abaixando para examiná-la. As palavras
entalhadas eram tão antigas que não passava de um simples recorte escuro
sobre o granito, mas ali descansava um Walsh, alguém que conhecera tristezas
e alegrias, que suara ao sol e se sentava sob a sombra fresca das árvores...
— O antigo cemitério — explicou Hamilton. — Depois que a igreja foi
construída em 1865, as pessoas deixaram de ser enterradas aqui — tirou um
pedacinho de tabaco da língua com um movimento rápido. — Mudanças
ocorridas ao longo dos anos.
Hamilton deu-lhe as costas e recomeçou a caminhar, mas Pierce ficou
ajoelhado mais alguns momentos, olhando a pedra. Eles viviam ali, morriam
ali, eram enterrados ali. Nasciam, cresciam, morriam num círculo infinito. De
repente, ajoelhado no meio do mato sobre uma antiga lápide, podia sentir os
séculos atrás e os séculos à sua frente e concluiu que nunca tivera uma
definição tão precisa e tão profunda da palavra lar. Fizeram quase todo o
caminho de volta em silêncio. Pierce fumou outro cigarro e, como todo o resto,
foi mais fácil com a prática. Hamilton parou na beira da mata e olhou para o
chão. Cutucou um pinheiro mirrado e suspirou.
— Pinheiros crescem em qualquer lugar, mas veja este aqui. Nunca
conseguirá. Foi nascer bem na sombra de um carvalho. Não recebe sol e o
carvalho tira toda a sua alimentação e água — Hamilton deu uma risada seca.
— Se árvores fossem pessoas, eu diria que essa aqui não é das mais
inteligentes, você não acha?
Pierce também riu e o velho se abaixou para arrancar a pequena árvore.
— A natureza não deixa espaço para erros — disse, jogando-a para o
lado. Pierce conhecia alguns ecologistas que abominariam tal atitude, mas
Hamilton continuou com seu tom de voz costumeiro: — Pode-se lutar contra
ou trabalhar com ela. Minha Chris é uma lutadora, como este pinheirinho
estúpido! — Abaixou um pouco a voz. — Às vezes fico preocupado com ela.
Pierce não sabia o que dizer. Deu a última tragada e jogou o cigarro fora.
— Veja isso filho. — Hamilton chutou o pedaço de uma trepadeira que se
emaranhava inteira, subia nas árvores e esparramava-se como um rio pela
mata. — Um idiota em Washington comprou essa erva daninha dos japoneses
depois da guerra para impedir a erosão da terra e ela já está dominando
metade do país. Não adianta arrancar, cortar ou queimar. Ela simplesmente
continua crescendo. Desgraçada!
Pierce estava refletindo sobre o hábito engraçado de Hamilton, em
atribuir, característica humana às plantas, quando o velho lançou-lhe um olhar
furtivo e inesperado.
— Você me lembra muito mais essa erva daninha do que o pinheirinho. —
Seus olhos eram claros e serenos, deixando Pierce pouco à vontade. — Existe
algo de obstinado em você rapaz, bem lá no fundo, algo duro como aço. Você
faz o que tem que fazer e não se preocupa com o resto. Se quer saber, não me
incomodo com isso.
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
Capítulo XI
Christine ouviu passos. Estava deitada de olhos fechados sob uma árvore,
descansando um pouco. Tinha quase certeza de que era seu irmão, por isso
continuou como estava. Clay, se saíra muito bem na entrevista que havia feito,
no dia anterior para ingressar no seminário. Partiria dali a três semanas.
Se continuasse de olhos fechados, Clay pensaria que estava dormindo e
iria embora...
De repente deu um pulo, assustada, quando alguma coisa caiu em sua
barriga. Sentou-se e viu que eram morangos. O homem que estava ao seu
lado não era Clay, e sim, Pierce. Ele tirava as frutas do chapéu, que segurava
nas mãos e continuava jogando os morangos, delicadamente sobre ela.
Chris não reprimiu uma exclamação de alegria.
— Morangos! Onde os achou?
— Numa colina, lá adiante.
— Humm, que delícia! — Chris mordeu o primeiro morango. — Venha,
vamos guardar esses que você jogou.
Os dois pegaram os morangos do chão. Em seguida, Chris voltou a se
recostar no tronco da árvore e Pierce sentou-se a seu lado, com o chapéu
entre eles.
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
— Por que você culpa Clay de tudo? O que ele lhe fez?
— Oh, nada, ele não me fez nada. — Chris ficou tão tensa que Pierce
percebeu. — Ele só está indo embora e me deixando responsável por tudo.
Passarei o resto da minha vida trancafiada nesta fazenda enquanto ele estará
livre para fazer o que quiser! — Chris suspirou e mudou de tom: — Esqueça.
Isso não é da sua conta.
— Escute menina, não seja tão dura com seu irmão. Clay tem o direito de
viver a vida dele.
— E eu, não tenho o direito de viver a minha? — retrucou furiosa. —
Ninguém nunca me perguntou se eu queria passar o resto da minha vida aqui!
Mas o pobrezinho do Clay, não, ele tem uma missão espiritual a cumprir...
Bem, eu também tinha a minha missão, que era sair deste inferno o mais
depressa possível!
— E o que a mantém presa, Chris?
— Você nunca entenderia. — Ela suspirou de novo. — É uma coisa de pai
para filho, sabe? Tem sido assim há mais de duzentos anos. É responsabilidade
de Clay tocar a fazenda, e como ele não quer o que vou fazer? Dizer adeus
para papai e sumir? Dizer para ele vender esta terra que nossos antepassados
lutaram tanto para conseguir? Entregá-la de novo para os índios?
— Acho que você está é com medo de assumir a responsabilidade —
retrucou Pierce, sem olhar para ela e sem se importar com sua agressividade.
— Nossa quem ouve pensa que você sabe muito bem o que significa esta
palavra!
— Acho que aprendi um pouco sobre responsabilidade nestas duas últimas
semanas...
Chris ficou alguns instantes em silêncio, depois voltou a falar:
— Nem sei por que se interessa por um assunto que não vai afetá-lo em
nada. Você só precisa sorrir para Clay e bajular meu pai para receber direitinho
seu salário no fim da semana.
— Sabe o que eu acho? — Pierce estava vermelho de raiva. — Que você
não dá valor à família que tem, ouviu? Ela pode não ser perfeita, mas e daí?
Devia tentar preservá-la, pois é a única que tem!
Chris observou-o, impressionada com o tom apaixonado da voz dele.
— E fique sabendo que não preciso ficar bajulando ninguém! Seu pai é
uma pessoa agradável e gosto dele. Acho que Hamilton nunca fez nada para
magoar você. Vou lhe dizer mais uma coisa, seu pai trabalha muito para a
idade que tem. O cansaço já é visível em seu rosto e nos movimentos do
corpo. Talvez você devesse prestar mais atenção nisso, antes de se negar a
me ensinar a dirigir o trator, o que ele faz com bastante dificuldade... Inferno!
— Pierce jogou o cigarro fora. — Acho que sou mesmo um idiota! Não sei por
que me preocupo com uma pessoa egoísta como você!
Christine não prestou atenção nas últimas palavras. Estava fascinada com
Pierce, intrigada com essa nova faceta de sua personalidade. A maior parte do
tempo ele parecia um ator, o manequim mais superficial do mundo, mas de
repente falava com tanta paixão, com tanto ímpeto, demonstrando ser uma
pessoa de verdade, cheio de convicções profundas.
— Sabe de uma coisa Pierce? Às vezes acho que você deve ser uma
pessoa boa.
— Quem, eu?
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
Ele nunca esperaria por tal comentário. Ficou sem graça e ao mesmo
tempo satisfeito. Era agradável ouvir aquilo de Christine, que só lhe dirigia
palavras hostis.
Sem jeito, estendeu-se no chão e olhou para o céu. Hamilton tinha razão,
logo começaria a chover. Nuvens brancas e sólidas se formavam no céu.
Chris pensava em como Pierce estava diferente desde a manhã em que
ela e Clay o encontraram tomando café. Seu rosto estava mais queimado e o
corpo parecia ainda mais forte e sensual... Será que ainda desejava fazer amor
com ela?
— Você já esteve em Veneza? — Perguntou de repente, tentando fugir das
fantasias que ameaçavam dominá-la.
— Sim, há mais ou menos um ano.
— E como é?
— Suja.
Chris sorriu. Nada romântico!
— E Las Vegas? Conhece?
— Sim, é uma cidade muito estranha... Não gosto nem um pouco de lá.
— Você não gosta muito de falar, hein?
Como ele poderia explicar que todas aquelas experiências por que passara
antes de chegar à fazenda pareciam agora tão distantes?
— Às vezes tenho a impressão de que tudo o que vivi antes de vir para cá
aconteceu com outra pessoa — disse afinal.
— Por que você não roubou a caminhonete naquela noite? — Perguntou
Chris de repente.
— Porque sou covarde. — Ele não a encarou. Não tinha a menor vontade
de enfrentar ironias.
Chris observou-o atentamente. Pierce estava com a expressão séria e
seus olhos pareciam voltados para o passado, sem gostar do que viam.
— Mas o que aconteceu com você, afinal? — Perguntou curiosa. — Está
fugindo da polícia? É por isso que não vai embora daqui?
— Ei, quem pensa que sou? — Pierce sorriu, divertido. — Está me achando
parecido com algum personagem de filme de cowboy?
Christine corou, embaraçada. Não conseguia deixar de fantasiar quando
pensava na vida de Pierce.
— Não, não é da polícia que estou fugindo. Se fosse, eu estaria até
tranquilo. — Pierce decidiu ser sincero. Na verdade, sentia-se completamente
incapaz de mentir para ela. — Estou me escondendo de um homem. Um
chefão da Máfia. Ele não gostou muito do jeito como eu ganhava a vida...
Ainda mais sabendo que a esposa dele me contratou. Telefonei para alguns
conhecidos e me aconselharam a ficar o mais longe possível dos capangas
desse cara. ─ Olhou para Christine um pouco ansioso, mas não percebeu nada
revelador na expressão dela. — Mas não se preocupe. Ele não virá me procurar
aqui. Não sou importante o suficiente para que ele mande seus homens me
procurarem no interior do Alabama. Daqui a um mês ou dois ele se esquecerá
de mim e então poderei ir embora.
Christine não sabia o que dizer ou pensar. Pierce vivia uma vida de cão,
sem família, vendendo o corpo como uma prostituta, e agora perseguido por
um chefe da Máfia... Como devia ser solitário e indefeso!
— Para onde vai quando for embora daqui? — Perguntou afinal.
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Caminhos do Amanhecer — Rebecca Flanders
Capítulo XII
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Passaram três dias com pouca mão de obra e todos tiveram que trabalhar
duas vezes mais. Pierce, porém, estava cada vez mais acostumado ao calor e a
monotonia não era tão aborrecida quando entendia o que estava fazendo. Nem
se importava mais por ficar sujo, pois sabia como era bom tomar uma ducha à
noite. A vida se tornava cada vez mais suportável.
Agora tinham três trabalhadores fixos por dias, Benson, Jacobs e Jordan.
Nenhum deles o tratava com simpatia, mas Jordan era um criador de casos.
Bebia no serviço e, às vezes, já começava o dia com uma garrafa na mão.
Pierce se perguntava se Hamilton sabia, mas achava que o fato de o patrão
saber não faria diferença alguma. Tinha ouvido os homens comentarem sobre
a esposa e os filhos de Jordan e, aparentemente, existia um consenso de que
se podia tolerar tudo de um homem contanto que estivesse tentando sustentar
a família. Pierce tratava de ficar o mais distante possível de Jordan e ignorava
o que acontecia em volta dele.
Era meio dia. Pierce trabalhava com Hamilton, Christine e Jordan no
campo oeste enquanto Clay acompanhava os outros homens no campo sul.
Houve um atraso na volta ao trabalho porque um parafuso tinha se quebrado
no fertilizador e a caixa de ferramentas ficara com Clay. Pierce não podia fazer
nada, além de descansar um pouco e fumar mais um cigarro enquanto
Hamilton pegava a caminhonete e ia buscar o que precisavam.
Christine recolhia as sobras do almoço. Pelo canto dos olhos Pierce notou
Jordan aproximar-se dela e previu uma situação constrangedora. Acendeu o
cigarro, observando os dois com cuidado. Quando Jordan colocou a mão no
ombro dela, sentiu o estômago embrulhado e disse a si mesmo para não
interferir. Chris arrancou a mão do homem com um gesto irritado, só para que
ele a colocasse com insinuante intimidade em sua cintura. Ela usava a camisa
amarrada embaixo dos seios e aqueles dedos sujos começaram a acariciar a
pele macia. Pierce sentiu o coração bater acelerado e tentou desviar o rosto
para outro lado.
Ouviu a voz de Chris era rouca e irritada, e uma risada cínica de Jordan.
Indeciso, Pierce deu uns passos na direção deles. Talvez Jordan tivesse o bom
senso de largá-la se soubesse que estava sendo observado. Mas, e se ele não
a deixasse? O que deveria fazer?
Sentiu a garganta seca, vendo Jordan segurá-la pelos ombros, puxando-a
para mais perto. Christine o empurrava com o rosto vermelho de raiva e os
lábios comprimidos. Pierce teve a impressão de que seu peito ia estourar de
angústia. O que aquele desgraçado ia fazer... Violentá-la ali mesmo, na sua
frente?
"Maldito! Não fique aí parado! Faça alguma coisa!", pensou sentindo o
suor ensopar seu corpo inteiro. Não sabia como agir. Christine saberia se virar.
Afinal, o que acontecia com aquelas pessoas não era da sua conta. Por que se
envolver nas brigas deles? Era pago só para fazer o que lhe ordenavam...
Jordan começou a forçar o joelho entre as pernas dela e Christine deu um
grito abafado. Pierce não conseguia se mexer, sentindo os músculos tensos e o
estômago mais embrulhado ainda.
Finalmente jogou o cigarro fora e deu um passo decidido. Mas seu
momento de coragem aconteceu tarde demais. Ouviu o som da caminhonete
ao mesmo tempo que Jordan. Quando Hamilton saltou do veículo e bateu a
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Capítulo XIII
— Marshall Wilson esteve aqui esta tarde — disse Christine. Serviu uma
xícara de café para seu pai, pegou outra e se sentou. — Queria saber se
podemos comprar seu trator.
Era hora do jantar. Pierce tinha comido sem apetite e mal prestava
atenção na conversa. Evitava os olhos de Christine, perguntando-se se ela o
culpava pelo que acontecera com Jordan naquela tarde. Ela, porém, agia como
se nem se lembrasse do incidente. Se tinha havido alguma falha de sua parte,
ela nem notara. Chris não esperava nada dele.
Talvez fosse justamente isso que mais incomodasse Pierce. Chris não
esperava nada de melhor dele, ninguém esperava. A não ser ele próprio. Sim,
por alguma estranha razão, passara a exigir de si mesmo um comportamento
diferente, o que era uma loucura. O que acontecia naquele lugar não era de
sua conta!
— O trator é novo, Wilson nem pagou um ano de prestações —
resmungou Hamilton. — O que ele está querendo?
— Ele não tem mais condições de arcar com o trator — disse Christine
calmamente.
— O que quer dizer com isso? Ele vai descobrir que não terá condições de
arcar com mais nada caso se livre do trator. Como Wilson pensa que terá uma
boa colheita sem...
— Não terão colheita este ano — interrompeu Chris, com voz ainda calma.
Por um momento Hamilton limitou-se a sustentar o olhar da filha. Porém,
seu rosto começou a ficar vermelho, reprimindo emoções intensas que
deixaram Pierce desconcertado. Como sempre, naquelas discussões em
família, ele sentia-se ignorado e confuso. Desta vez estava feliz por ser assim.
— Está acontecendo o mesmo com muita gente — intercedeu Clay. Sua
voz estava calma e gentil como sempre, não merecendo o olhar de acusação
que o pai lhe dirigiu. — As pessoas estão vendendo as propriedades, indo
embora, fazendo o que podem. O senhor sabe disso papai. Pelo menos seis
vizinhos nossos estão lutando com dificuldades, sem saber a quem recorrer no
próximo...
— Pelo menos estão lutando! — Cortou Hamilton, e o rancor de seu olhar
foi canalizado para Clay, com um significado muito mais forte do que apenas
defender o empenho dos vizinhos. — Eles não saem correndo quando as coisas
começam a piorar ou porque têm coisa melhor a fazer na vida!
Um rubor começou a tingir o rosto de Clay e Hamilton percebeu o que
tinha dito. Houve um momento desconfortável e tenso, em seguida o velho se
levantou da mesa.
— Idiotas! — Resmungou se afastando. — O que Wilson pensa que vai
fazer sem as máquinas?
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Pierce não foi verificar o parafuso. Sem saber por que, de repente se
encontrou olhando o imenso tronco de carvalho caído. Não tinham feito muitos
progressos nas últimas semanas. As raízes eram um amontoado de nós
firmemente enterrados, embora muita terra já tivesse sido tirada em volta.
Uma fenda tinha sido aberta no tronco e lascas de madeira estavam
espalhadas por perto como dentes caídos. O tronco parecia estar rindo para
Pierce, zombando dele, dizendo que ficaria ali até depois que ele tivesse
partido... Talvez até muito depois que todos tivessem partido.
Toda a raiva e o desgosto acumulados o dia inteiro, de repente, se
canalizaram para algo concreto, aproximando-se, Pierce arrancou o machado
da madeira. Os primeiros golpes foram dados cegamente, com a única
intenção de descarregar energia. Era por isso que Hamilton golpeava a
madeira, não era? Era por isso que vinha todos os dias atacar aquele cadáver
inútil da natureza... Para afastar as coisas ruins, para sublimar a raiva, para
esquecer, mesmo que por pouco tempo, todas as coisas que não podia mudar
enquanto mudava a cada golpe a forma da árvore morta.
Mas não funcionou. Os músculos enrijecidos e o suor escorrendo só lhe
aumentaram a frustração. Redobrou a energia em cada golpe, mas o tronco
teimoso se recusava a ceder. Parecia que, quanto mais forte o golpeava, mais
a madeira endurecia e sempre seria assim. Nada que nenhum deles fizesse
mudaria as coisas. Bateu o machado vezes seguidas, e no último golpe
vigoroso o cabo quebrou em suas mãos.
Pierce praguejou com violência e jogou o machado no chão.
Ficou imóvel por um momento, olhando a ferramenta com a respiração
alterada. Depois se afastou.
Deu a volta na casa e tinha subido o primeiro degrau para entrar quando
viu uma sombra na varanda e hesitou. Hamilton estava debruçado sobre a
grade, com a cabeça abaixada e os ombros caídos. Pierce nunca o tinha visto
daquele jeito, fraco, abatido, derrotado. Viu a mão trêmula pegar um vidrinho
no bolso e tirar um comprimido. Ficou alarmado e seu desejo era se
aproximar, agarrá-lo pelo braço e perguntar o que estava acontecendo, mas o
medo o mantinha grudado no chão.
Hamilton colocou o comprimido na boca e Pierce continuou imóvel, mal
respirando. O velho estava doente? Era como dizer que o sol era azul. Era
incompreensível! Lembrou-se da fadiga do rosto do velho, que parecia ter
piorado nos últimos dias, a respiração entrecortada, os longos silêncios às
vezes fora de hora. Recusou-se a lembrar de mais coisas, recusou-se a
acreditar. Devia ser uma dor de cabeça. Todo mundo tem dor de cabeça. As
pessoas têm o costume de tomar pílulas como chupam balas, aquilo não
significava nada. Porém, nunca tinha visto Hamilton Walsh tomar
medicamentos, e isso significava alguma coisa. E o deixava apavorado.
Pierce subiu os degraus lentamente, não tentando mais disfarçar sua
presença, e viu Hamilton endireitar os ombros.
Ficaram ao lado da grade em silêncio, Hamilton ereto e com a respiração
alterada e ele apertando a madeira, tentando dominar o pânico. O velho
deixou o vidro sobre a grade e Pierce fingiu não vê-lo.
Finalmente o fazendeiro inclinou a cabeça na direção de onde Pierce tinha
vindo.
— Fez você se sentir melhor, não fez filho?
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Capítulo XIV
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Ouviu passos e não precisou virar a cabeça para saber quem entrava na
cozinha. Chris não usava perfume, mas tinha uma fragrância única, como a do
ar fresco e das flores em botão. Pierce sentiu aquele perfume como uma
promessa, e por um instante seu coração bateu mais depressa.
— O que está fazendo acordado? — Ela hesitou parada na porta, e Pierce
virou-se. Chris usava um robe de algodão até a altura dos tornozelos e uma
camisola florida por baixo.
— É o último pedaço — convidou ele, apontando a torta com o garfo. —
Quer dividi-lo comigo?
— O mundo dá muitas voltas, não é? — Chris fitou-o com um sorriso. — A
última coisa que decidimos roubar juntos no meio da noite foi uma
caminhonete. — Ao entrar na cozinha, o robe marcou-lhe ligeiramente os
quadris. Seus cabelos estavam soltos e Pierce teve uma súbita visão dela
deitada, os fios sedosos espalhados sobre o travesseiro...
Não conseguiu refrear um calor subindo-lhe pelas costas. Era difícil
prestar atenção na torta, mas ele conseguiu dar um sorriso de aparente
indiferença.
— Está vendo o que a comida de uma mulher é capaz de fazer por um
homem? Você me recuperou totalmente. — Pierce comeu outro pedaço.
— Até ir para a universidade, só eu cozinhava aqui. — Chris foi até a
janela e Pierce fitou-a. Era impossível tirar os olhos dela. — Mas depois papai e
Clay foram obrigados a contratar Mary, senão morreriam de fome. — Ela riu.
— Você acredita que quando eu voltei, queriam despedi-la? Eles não viam por
que eu não poderia cuidar dos negócios, trabalhar no campo e também limpar
a casa e cozinhar. — Encolheu os ombros. — A mulher sempre acaba
sobrecarregada.
Quando duas pessoas se encontram numa cozinha no meio da noite é
inevitável que o clima acabe ficando agradável. As normas que governam o
comportamento durante o dia deixam de ser tão rígidas, como se a noite
convidasse à intimidade. Também era fácil fantasiar, ele descobriu.
Decidido, freou seu olhar insistente e sua imaginação galopante e voltou à
atenção para a torta de morangos.
— Não conseguiu dormir? — Perguntou casualmente. Christine atravessou
a cozinha para servir-se de um copo de leite. Na verdade, tinha ouvido Pierce
descendo a escada e o seguira. Não ficava surpresa nem envergonhada de
admitir esse fato. Às vezes precisava estar com alguém que não tivesse nada a
ver com seus problemas. E ele possuía uma característica de que gostava
muito, não tinha a mania de ficar julgando as pessoas.
Veio sentar-se na frente dele, segurando o copo de leite com um sorriso
sonhador.
— Clay e eu costumávamos fazer isso. Depois que todos iam dormir,
vínhamos assaltar a geladeira e, às vezes fazíamos uma verdadeira provisão
para ficarmos assistindo algum filme de terror na televisão. Outras vezes
ficávamos aqui mesmo apenas conversando. — Chris tentou afastar a nostalgia
e bebeu um pouco do leite. — Éramos crianças.
— Acho que vai sentir falta dele.
— Ele é meu irmão — concordou Chris, quase sem emoção. — Está
tomando uma atitude horrível e egoísta e arruinando muitas vidas, mas... Sim,
sentirei muita falta dele.
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Algumas coisas tinham que ser ditas e ele se calara por muito tempo. — Talvez
você não esteja com tanta raiva de Clay por ele estar indo embora, mas sim
porque ele não precisa mais de você. Clay é um adulto e pode fazer o que
quiser sem sua ajuda.
Christine baixou os olhos, mas Pierce chegou a ver que reconheciam a
verdade. Sabia que tinha tocado no ponto, mas não estava orgulhoso. Ao
contrário, chegava a lamentar. Continuou em tom mais suave:
— Olhe você não pode controlar as pessoas da mesma maneira que não
pode controlar a plantação. — Fez um gesto, desejando não ter entrado
naquela discussão. Com a cabeça abaixada daquele jeito e os ombros caídos,
Chris parecia tão indefesa que ele tinha vontade de abraçá-la. — Você planta a
semente certa, faz o máximo que pode, mas no fim não é você que sabe o que
vai acontecer, não é? Quero dizer, até um pinheiro não se desenvolve na
sombra. Assim é a vida, entende? Algumas coisas a gente simplesmente tem
que aceitar.
Ela tentou resistir ao que ouvia. De todas as pessoas do mundo, aquele
homem era o último a quem devia dar ouvidos. Talvez ele a deixasse tão
furiosa porque via as coisas com clareza. Via coisas que não tinha o direito de
ver, dizia coisas que não tinha o direito de dizer.
— Muito bem Lanson! — Disse com sarcasmo, sem conseguir encará-lo. —
Leu algum manual de psicologia?
Pierce deu um suspiro impaciente e virou o rosto. Estava mais irritado
pelo fato de Chris ter se voltado contra ele do que pelo insulto; por ela ter
quebrado o elo que parecia estar começando a se formar e que poderia
aproximá-los. Aproximar-se de Chris se tornara muito importante para ele.
— Às vezes menina, você age como uma criança!
Ele esperava uma resposta rápida e áspera. Ficou espantado ao vê-la
apenas continuar sentada, olhando o copo de leite. E ficou mais confuso ainda
quando sentiu a raiva em seus olhos se desvanecerem lentamente.
— Às vezes eu me sinto uma criança — disse afinal levantando-se e
afastando-se.
Pierce observou-a atravessar a cozinha e parar diante da janela, olhando
o vazio. De repente, mais do que qualquer coisa no mundo, quis levantar-se e
aproximar-se dela. Queria abraçá-la, dar-lhe conforto, beijá-la, sentir seu
corpo, fazer amor com ela. Queria tanto que nem conseguia se mexer.
Sim, ele a queria. Era um sentimento que invadia sua imaginação durante
o dia e seus sonhos à noite. Mas até aquele instante, até vê-la parada em sua
frente e o desejo se tomar uma coisa viva, não sabia por que era tão
espantoso. Quando pensava em Christine, não pensava no prazer que podia
lhe dar nem na gratidão que receberia, não analisava seus pontos fracos, nem
planejava como manipulá-los. Quando pensava em Chris, a sensação que o
dominava era a do prazer que encontraria nos braços dela.
Pierce não procurava as mulheres, elas é que o abordavam. Esse desejo
novo e atordoante era uma experiência desconhecida. As mulheres precisavam
dele, sua única tarefa tinha sido satisfazê-las. Jamais pensara em seu próprio
prazer antes. Agora não conseguia pensar em outra coisa.
Com o coração acelerado, os músculos tensos, Pierce levantou-se da mesa
e se aproximou colocando as mãos nos ombros de Chris.
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Capítulo XV
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insetos, com a economia e com todas as outras coisas pelas quais se sentia
traído.
Saber tudo isso, porém, não anulava o que tinha acontecido, não
eliminava a mágoa. Pierce não era filho de Hamilton, mas acabara de ser
brutalmente punido pelo único pai que conhecera na vida e estava arrasado
com isso.
— Pegue a prancha de madeira e a corrente no outro trator e tire aquela
máquina de lá. — O fazendeiro disse afinal, antes de se virar para os outros: —
Vamos voltar ao trabalho!
Afastou-se sem olhar para Pierce, que ficou parado, dominado por intensa
angústia.
"O que estou fazendo aqui?" pensou, mal enxergando os homens parados,
parecendo à sua espera. "Não tenho nada a ver com esse lugar, não preciso
disso".
Avistou seu chapéu caído perto do trator e foi pegá-lo, afastando os
cabelos com mão cansada. Colocou-o na cabeça e olhou os outros
trabalhadores, testemunhas silenciosas da tempestade que acabara de
acontecer.
— Vocês ouviram o homem — disse, sem muita emoção e para ninguém
em particular. — Vamos voltar ao trabalho.
Capítulo XVI
Pierce não estava com a mínima vontade de ir à festa, mas como não
tinha jeito de ficar alheio a ela, acabou comparecendo.
Parecia que toda a fazenda estava mobilizada para o grande evento.
Desde a casa, com mulheres por todos os lados preparando travessas de doces
e salgados, até o pátio de estacionamento, já repleto de caminhonetes e carros
velhos do pessoal dos arredores.
Tinham colocado várias mesas ao ar livre em frente à casa e, logo à
noitinha, quando Pierce apareceu, várias pessoas já estavam por ali. As
mulheres com seus vestidos floridos conversavam animadas entre si mesmas
ou com os homens, todos com jeans mais novos que possuíam e com suas
camisas xadrez. Havia crianças por todo lado, correndo, pulando, se divertindo
de todas as maneiras possíveis.
Já de banho tomado e com uma muda de roupa limpa sobre o corpo,
Pierce observava aquela gente toda sob a luz de vários lampiões que
iluminavam a festa. Sorriu. Se fosse há alguns meses atrás, até que gostaria
de participar daquela reunião animada, pois seria uma oportunidade única para
observar a maneira de aquelas pessoas se divertirem... Mas, naquela noite,
tudo o que mais desejava era comer alguma coisa e ir para o quarto, o mais
depressa possível.
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Não era sobre a vida quotidiana dela que Clay perguntara. Ele queria
saber sobre seus sentimentos, sua vida amorosa...
— Tem saído com alguém? — Perguntou de repente.
— Você sabe que não... — respondeu Abby baixinho, deixando
transparecer naquela frase todo o amor que ainda sentia.
— Gostaria que as coisas fossem diferentes, Abby...
— Sei que sim, Clay — retrucou antes de se afastar.
Clay teve vontade de alcançá-la, mas não podia. Tinha feito uma escolha
definitiva e agora só podia seguir em frente... Por mais difícil que fosse...
Quem prestasse atenção em Chris imaginaria que ela estava, além de
linda, muito feliz por estar participando da festa de despedida de Clay. Nunca
imaginariam que na verdade ela sentia-se arrasada...
Ainda em seu quarto, enquanto se preparava para descer, mais uma vez
voltou a pensar em Pierce. Será que ele a acharia bonita?
Christine estava linda. Usava um vestido verde simples, mas
extremamente elegante. Puxara os cabelos para trás e, como única joia,
ostentava um filete de ouro no pescoço.
Pensava muito em Pierce. Constantemente. Tinha consciência de que o
que a atraíra tinha sido o corpo dele, sua profissão, os lugares que conhecera e
em que vivera.
As fantasias de Chris sempre estavam centradas em ambientes
sofisticados, em homens sensuais e bonitos, por isso Pierce prendera
inicialmente sua atenção. Mas aquela noite na cozinha tinha lhe mostrado que
ele estava mudado. Parecia que pouco a pouco estava deixando de lado a
máscara de "profissional", revelando um ser humano de muito interesse. E
aquele homem novo também a atraía... O que era uma pena.
Mais cedo ou mais tarde Pierce iria embora dali, e ela então sofreria como
a terra arrasada por falta de chuva.
Não podia acreditar nas palavras dele. Tinha que esquecê-lo, tentar fingir
que não existia nada entre os dois.
Mas, quando fechou a porta do quarto para ir receber os convidados, não
pôde deixar de se perguntar mais uma vez se Pierce a acharia bonita.
— Bem — começou Pierce, levantando o copo de limonada num brinde,
assim que Clay chegou perto dele. — Acho que devo dizer alguma coisa muito
importante. Espero que saiba o que está fazendo, rapaz!
Clay sorriu. Gostava de Pierce.
Pierce, aproveitando que não havia ninguém ao lado deles naquele
instante, resolveu saber de Clay, algo que há muito tempo o importunava:
— Por que nunca tocou no assunto do relógio, afinal?
— Achei melhor deixar você mesmo tirar suas conclusões sobre aquele
seu ato.
No fundo Pierce sabia que a resposta seria aquela. Tinha visto a cerimônia
da entrega do relógio. Embora não ouvisse as palavras, pois estava um pouco
afastado da multidão, pôde ver a expressão emocionada de Hamilton e o
nervosismo de Clay. Aquele relógio era um símbolo que passava de pai para
filho na família Walsh. E ele quase tinha sumido com a joia.
Também observara Clay conversando com Abby momentos antes.
Gostava de ver os dois juntos, pois faziam um belo par. Resolveu falar sobre
aquilo, pois o assunto do relógio o incomodava bastante.
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Capítulo XVII
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Ela usava um robe de tecido fino até a altura dos joelhos, sem nada por
baixo. Estava desabotoado, mas ela o segurava junto ao pescoço, e só quando
andou Pierce pode ver suas coxas firmes e bem torneadas. Seus cabelos
estavam soltos e brilhantes e havia uma estranha expressão em seu olhar.
— Christine, o que está fazendo aqui? — Pierce não conseguia tirar os
olhos dela.
— Não diga nada. — A voz da Chris soou tranquila. Começou a se
aproximar. — Não diga nada.
Algo estava errado. Ela não devia estar ali, vestida daquele jeito,
aproximando-se com olhar distante e calculista... Pierce fez um movimento
para se levantar da cama, mas lembrou de que estava nu. Pensou que talvez
ela estivesse embriagada. Confuso e um tanto espantado, deu um sorriso
incerto.
— Ei menina, o que é isso? Você não devia estar aqui! Andou bebendo
demais?
Chris sentou a seu lado. Não sorria e não estava embriagada. Limitou-se a
colocar o dedo sobre os lábios em sinal de silêncio, e inclinando-se, pousou a
boca sobre a dele.
Foi só nesse momento que Chris percebeu o quanto estava nervosa e não
contava com isso. Era uma mulher em busca do que queria. Apenas por uma
noite queria tocar Paris, passear nas gôndolas de Veneza, tomar champanha
admirando as luzes de Manhattan... Ser acariciada pelas mãos fortes do
homem perfeito, realizar a dança do amor com um parceiro experiente... Dizer
um adeus definitivo a tudo o que nunca teria e acordar na manhã seguinte
sentindo-se capaz de enfrentar o futuro, pois pelo menos teria vivido uma
noite.
Porém não esperava ficar nervosa, e quando seus lábios tocaram os de
Pierce nada aconteceu. Nenhuma luz mágica começou a brilhar. Quando ele
não correspondeu, Chris teve um impulso de recuar, dominada pela vergonha
e decepção, mas em seguida ele começou a acariciá-la. Chris tentou relaxar.
As emoções e conflitos que Pierce sentia eram incoerentes e indecifráveis.
Aquela era Christine, a mulher que desejava mais do que qualquer coisa que já
desejara na vida. Estava com os seios nus sobre seu peito e com os lábios
colados aos seus. Aquela era Christine, especial, diferente. Mas não devia estar
ali, se oferecendo como qualquer mulher vulgar. Estava errado. Ele não queria
isso e ela não merecia menos do que um verdadeiro ato de amor.
Porém Christine queria muito fazer amor e Pierce era treinado exatamente
para isso. Sua mente protestava, mas seu corpo começou a corresponder.
Tocou-lhe os seios com delicadeza, acariciou-lhe os lábios com a língua. Sabia
que devia dizer às palavras que as mulheres adoram, mas não conseguia
lembrar nenhuma. Tudo o que queria era pedir para que ela parasse, mas nem
conseguia fazer sair à voz.
Christine passou a língua em seu pescoço e Pierce acariciou-lhe as costas
e a cintura, mas os movimentos eram automáticos e, de repente, o corpo firme
e jovem pareceu-lhe velho e flácido. Ela não devia estar ali.
—Christine... Por quê? — Conseguiu perguntar encarando-a.
"Porque preciso me sentir amada Pierce", pensou Christine deitando em
seu ombro, sem conseguir expressar o que sentia.
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Capítulo XVIII
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dado um pequeno ventilador elétrico, mas não adiantava. Como não conseguia
dormir, ficou pensando na vida.
A colheita seria feita depois da primeira onda de frio que viesse. Mas as
plantas ainda estavam muito pequenas, mal podiam ser chamadas de mudas,
e o frio parecia muito distante. Entretanto, apenas algumas semanas antes os
campos agora verdes não passavam de um sonho louco de um velho. Pierce
tinha certeza de que teriam uma boa safra. Depois disso iria embora.
Um inesperado golpe de ar frio penetrou pela janela aberta e Pierce virou-
se agradecido. Era bom pensar em frio numa noite quente como aquela. As
estações mudariam, Cavenetti cansaria de persegui-lo e ele iria embora
daquele lugar estranhamente fascinante com a mesma facilidade com que
tinha chegado. Era difícil imaginar isso, mas sabia que iria acontecer.
Outro golpe de ar movimentou as cortinas, um relâmpago silencioso
deixou o quarto azul e Pierce sentou-se, olhando a janela. O vento estava mais
frio agora e parecia granuloso, elétrico, como...
Ouviu os primeiros pingos baterem no telhado de zinco de seu quarto e
sentiu o corpo como que percorrido por uma corrente elétrica. Levantou-se da
cama num salto e olhou pela janela.
— Meu Deus! — A exclamação foi proferida entre dentes e seu corpo ficou
mais tensionado ao perceber, horrorizado, o ritmo crescente e a força dos
granizos batendo no teto.
Sem saber como, vestiu a roupa e saiu do quarto. Desceu a escada
correndo, gritando por Hamilton e batendo nas portas. Quando chegou à
varanda, o barulho da chuva de pedras era tão alto que ele nem conseguia
pensar.
Ficou parado ali, vendo as pedras de gelo furiosas, batendo no chão,
brilhando na noite, rasgando as árvores. Não conseguia acreditar. Estava ali,
vendo com seus próprios olhos, mas não conseguia acreditar. Um minuto atrás
não havia nem uma brisa, e agora o céu tinha se aberto, despejando um
verdadeiro dilúvio.
Christine estava ao seu lado, com a camisola curta grudando no corpo, e o
rosto pálido de horror. Logo depois, Hamilton agarrou-lhe o braço e Pierce mal
conseguiu ouvi-lo:
— A caminhonete! Lona e palha de trigo! Vamos salvar o que pudermos!
Correram os três, escorregando no gelo, lutando contra o vento.
Carregaram fardos de palha e lonas na caminhonete, correram ao longo dos
canteiros das mudas de plantas já derrubadas e castigadas pelas pedras de
gelo, esparramando a palha, desenrolando as lonas. Carregaram de novo a
caminhonete e Pierce nem sabia quantas viagens fizeram, nem por quanto
tempo trabalharam.
Sentiu as costas como se tivesse sido chicoteado, um filete de sangue
escorrendo-lhe pelo rosto e foi lavado pela chuva, seus pulmões doíam e ele
não conseguia enxergar nada, escorregava na lama e o gelo cortava-lhe a
mão, mas num segundo estava em pé novamente. Não era verdade. Pierce
sabia que não era verdade, mas continuava, pois o pesadelo precisava
terminar.
De repente, sentiu a mão de Hamilton, firme em seu ombro. Ouviu o grito
mais forte do que o vento:
— Não adianta!
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— Não! — Gritou Pierce, sem reconhecer a própria voz. — Não, você está
louco! Não podemos parar agora! Vamos perder tudo...
— Leve Chris para casa! — Hamilton segurou Pierce com mais firmeza,
tentando fazê-lo voltar a si. — Acabou! Não podemos fazer mais nada!
Hamilton foi para a caminhonete e Pierce ficou imóvel, banhado pela
chuva. Dois meses de sangue e suor, dia após dia de sol escaldante, músculos
exaustos, esperança, sonhos e orgulho... E em questão de minutos estava
tudo acabado... Não era possível...
A chuva diminuiu, os granizos desapareceram com a mesma rapidez com
que surgiram.
Pierce viu Christine parada alguns metros adiante, com a camisola tão
colada ao corpo que parecia nua. Estava com os olhos arregalados, o corpo
sacudido pelos soluços, as pernas cobertas de lama, os pés sangrando e os
ombros caídos.
Aproximou-se e abraçou-a. As lágrimas quentes dos dois contrastavam
com a frieza da chuva. Segurou-a com mais força, embalando-a, sem saber se
estava tentando confortá-la ou ser confortado.
— Leve-me embora Pierce, leve-me embora daqui. — Murmurou Christine
em seu ouvido. — Não sei para onde, mas me leve embora.
Sim, de repente, mais do que qualquer coisa no mundo, era exatamente
isso que ele desejava. Estar longe dali, levá-la para longe dali. Não importava
para que lugar, contanto que o sol brilhasse e a vida fosse fácil.
— Sim — respondeu ele, não reconhecendo a voz rouca. — Nós vamos
embora daqui.
Pierce passou o braço pela cintura de Chris e começaram a caminhar
rapidamente, sem saber para onde, apenas pela satisfação de se afastarem
daquela desolação. A chuva recomeçou com súbita ferocidade e os dois
rolaram num banco de lama. Pierce ouviu Christine gritar. Talvez também
tivesse gritado de raiva e frustração. Quando pararam afinal, ficaram deitados
no chão, com a respiração difícil, procurando abrigo e segurança um no corpo
do outro.
Seus rostos estavam próximos, a respiração e os soluços dos dois se
confundiam. Suas bocas se colaram e uma súbita corrente de energia invadiu-
os ao mesmo tempo. Estavam desesperados, e era como se tivessem apenas
um ao outro no mundo.
Nem tiraram a roupa. A camisola de Christine foi levantada e o jeans de
Pierce aberto. Bocas e línguas se misturavam com desespero e eles entraram
imediatamente no mesmo ritmo. O clímax aconteceu rápido e dolorosamente
explosivo... Mas, assim que terminou a tristeza que os invadiu foi tão vasta e
desoladora quanto à morte que os cercava.
Os dois estavam cobertos de lama, tentavam tirar força um do outro
quando nenhum deles tinha o que oferecer. Sentiam-se vazios, terrivelmente
vazios...
Pierce sentou-se na lama e abotoou o jeans, fechando os olhos para o que
não suportava ver. Sentia o desespero de Christine e a dor que o dilacerava
também era horrível, como as lágrimas incontidas dela. Queria tocá-la, abraçá-
la, dividir a dor, mas a crueldade da chuva os separava. Era como se a vida
inteira tivesse sido conduzida para aquele momento... Sexo na lama, tão
rápido e desesperado que a lembrança tinha quase desaparecido antes mesmo
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de o ato ser consumado. E não mudara nada. Não adiantara nada. Apenas um
momento onde a natureza agira sozinha, utilizando-se de seus corpos como
instrumentos de seu poder. E não adiantara nada. Não mudaria nada...
Pierce ouviu Christine respirar fundo ao seu lado e arrumar a camisola.
Não conseguiu encará-la. Levantaram-se com movimentos cansados e
começaram a voltar para casa, sem se tocar, sem falar e sem olhar para trás...
Capítulo XIX
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vender a terra. Mudaria com seu pai para uma casa menor, arrumaria um
emprego em alguma cidade grande...
Duzentos anos. Quatro gerações de Walsh naquela casa e, antes delas, os
pioneiros que conseguiram a posse legal sobre a terra. Pessoas tinham morrido
por aquele lugar. Geração após geração depositara a energia de suas vidas
naquele pedaço de terra, para terminar assim...
"Vamos, Christine, tem que ter um jeito!"
Com aquelas palavras ecoando em seus ouvidos, ela endireitou o corpo e
foi para a escrivaninha. Sabia que era inútil, mas os Walsh nunca desistiam.
Passou a manhã inteira examinando os livros-caixa, telefonando para
bancos, instituições financeiras e agências federais. A cada negativa bem
educada, sentia o coração mais apertado, mas a cada uma respirava fundo,
revia suas opções e tentava outra vez.
Hamilton e Pierce voltaram depois do meio-dia e era impossível dizer
quem estava mais deprimido. Christine preparou sanduíches, mas ninguém
estava com fome. Eram interrompidos a cada cinco minutos pelo toque do
telefone, todos os vizinhos querendo saber se a fazenda dos Walsh estava tão
deplorável quanto à deles, querendo saber o que fariam. Christine não
aguentava mais e tirou o fone do gancho. No fim da tarde Hamilton resolveu ir
ver pessoalmente o estado lastimável de toda a região e Pierce recusou o
convite para acompanhá-lo. Christine se fechou no escritório e acabou por fim
adormecendo.
Estava escurecendo quando acordou. Olhou pela janela os campos
enlameados, tão diferentes do que via até o dia anterior e, sentindo um nó na
garganta, não quis ficar sozinha.
Pierce estava sentado num degrau da varanda. Parecia tão jovem, sozinho
e perdido quanto Christine.
— Papai está em casa? — Perguntou ela, sentando-se a seu lado.
Pierce meneou a cabeça e acendeu um cigarro.
— Ele voltará tarde. — Christine respirou fundo e ficou surpresa ao
perceber como o ar estava doce. — Devem estar todos reunidos no Ralph's ou
em outro lugar qualquer, pensando no que fazer.
— Teve sorte com os telefonemas?
— Ninguém está emprestando dinheiro. Mesmo que estivessem, não
temos nada para oferecer como garantia. Posso tentar de novo amanhã, mas...
"Acabou", pensou Pierce. Ainda era difícil aceitar a ideia. Na noite anterior
o sentimento dominante tinha sido raiva; durante o dia, tristeza, e agora...
Não era possível.
Ficaram em silêncio por alguns minutos, desfrutando o fato de estarem
próximos um do outro, como se fossem os únicos sobreviventes do mundo.
Ele terminou de fumar e jogou o cigarro fora. O brilho distante de uma
estrela chamou-lhe a atenção.
— Vênus. Nunca a tinha visto antes de vir para cá.
"Ele gosta daqui", pensou Christine, sem se surpreender. Mal lembrava o
rapaz metido que chegara na primavera, só causando problemas. Era difícil
pensar em Pierce em termos de passado. Tudo o que via agora era um homem
que gostava dali tanto quanto ela, que estava magoado pelas mesmas razões,
que precisava das mesmas coisas... Nem conseguia lembrar como começara
aquele elo de companheirismo entre eles. Mas não tinha importância.
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Pierce tinha passado o dia inteiro pensando no que diria a respeito do que
haviam feito, do que ele havia feito, na noite anterior. Queria que Chris
soubesse que não tinha planejado. Que não queria, que nem imaginava que
pudesse acontecer daquela maneira. Queria que ela soubesse que seu desejo
era fazer amor com delicadeza, para fazê-la feliz. Queria que soubesse que
merecia muito mais, e que ele lamentava o ocorrido. Não a culparia se o
odiasse.
— Acho que vou partir em breve — disse de repente. Apesar dos muitos
choques que Christine sofrerá nas últimas vinte e quatro horas, não esperava
por aquele. Foi como se algo comprimisse seu peito, impedindo-a de respirar.
Claro que Pierce iria embora. Para que ficaria? Estava tudo acabado!
— Eu quero você há muito tempo, você sabe — disse ela, sem encará-lo.
— Sim. — Pierce sorriu vagamente e sua resposta parecia à coisa mais
natural do mundo. — Eu também quero você. Há muito tempo.
Os dois se olharam e não havia mais nada a dizer. Sabiam a verdade e a
verdade era que, no meio de toda aquela terrível destruição, os desejos e
necessidades das pessoas perdiam a importância. Havia tristeza nos olhos de
Chris e resignação nos de Pierce.
Depois de um longo tempo, ela desviou o olhar, mas pousou a mão sobre
o joelho de Pierce. Era um gesto apenas amigável, mas ele se encorajou a
passar-lhe o braço em volta da cintura e Chris deitou a cabeça em seu ombro,
aconchegando-se. Ficaram sentados assim, vendo a noite chegar.
Christine entrelaçou os dedos nos dele e sentiu o peito de Pierce se
expandir num suspiro silencioso. Pensava em todas as mulheres que tinham
passado por sua vida, imagens sem nome, rostos que não conseguia lembrar.
Dizer adeus nunca havia sido tão doloroso assim. Quase sem querer, seus
dedos fecharam-se nos dela e abraçou-a com mais força. Teve que fechar os
olhos.
— Ah, Chris, o que vamos fazer?
Christine afastou-se um pouco e encorajou-o. Antes que respondesse ele
tinha adivinhado.
— Vamos para a cama.
Por quanto tempo ficou olhando-a? Quantas vezes tinha ouvido aquelas
palavras, de quantas maneiras? Sedutoras, impacientes, irônicas,
imperativas... Mas nunca tinham tido o poder daquela noite, ditas com tanta
simplicidade.
Pela última vez compartilhariam tudo o que tinham a oferecer. Não seria
suficiente, mas precisava ser assim.
Pierce sentia a garganta ardendo e não conseguiu dizer nada. Assentiu
depois de um momento e entraram na casa de mãos dadas.
Quando Christine afastou-se para acender a lâmpada sobre o criado
mudo, Pierce ficou desorientado por um instante. Nunca tinha visto o quarto
dela, decorado com simplicidade, como a própria Christine. Teve certeza de
que ela nunca trouxera nenhum homem a seu quarto e, de repente, sentiu que
também não devia estar ali.
Christine cerrou as cortinas, Pierce fechou a porta e trancou-a. Eram
movimentos comuns, mas pareciam novos para ele, com o poder de
intensificar a expectativa.
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— Não sei. — Pierce encolheu os ombros. — Talvez sim. Você acha que
existe possibilidade de... Manter a fazenda?
"Maldito! Por que tem que ser tão responsável Pierce?" Chris não queria
pensar na fazenda. O esforço de pensar nesse e em tantos outros problemas
era muito mais do que podia suportar. "Só mais alguns minutos de paz, de
fingimento."
Mas era inútil fingir e o tempo estava esgotado. De repente, sentiu-se
cansada, esgotada.
— Sempre existe uma chance. Pelo menos vamos tentar.
A noite estava escura e Pierce sentia-se vazio. Com súbita e
surpreendente intensidade, desejou poder estalar os dedos e mudar tudo.
Gostaria de tirar mudas tenras e fortes da terra, de fazer feliz de novo um
homem velho, de amar aquela mulher. Porém, nada podia fazer.
Uma onda de frustração o dominou. Jogou o cigarro pela janela com um
gesto impulsivo e atravessou o quarto para pegar a camisa e os sapatos. Não
adiantava ficar. Não ajudava Christine ficando ali, nada podia fazer por ela.
Quando chegou à porta, virou-se para ela. Pelo menos tinham vivido
aquela noite, e talvez fosse até mais do que tivessem direito de pedir.
— Eu sinto muito, Chris.
Não adiantava. Os dois sabiam muito bem, mas no momento era o melhor
que Pierce podia fazer.
Capítulo XX
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sorrisos calmos de seus colegas. Ainda não estava preparado para uma missão
difícil.
— Chris passou os dois últimos dias tentando levantar dinheiro —
acrescentou Pierce, depois de algum tempo. — Mas não existe dinheiro para
replantar em lugar nenhum.
E ainda assim, Hamilton se recusava a aceitar o fato. Dizia que já passara
por situações semelhantes e que sempre tinha sobrevivido. A família sempre
se recuperava e ele não conseguia ver que aquela vez era diferente. Recusava-
se terminantemente a aceitar a ideia de que era a última vez.
Bem, Pierce não tinha nada a ver com isso. Chamara Clay, o filho, a
pessoa correta. Era tudo que estava ao seu alcance para ajudá-los.
— Não sei o que devo fazer — disse Clay em voz baixa, depois de longo
silêncio.
Por um momento Pierce ficou surpreso e o olhou. Viu um garoto diante de
problemas sérios de um adulto, com expressão desajeitada e constrangida. Ele
era filho de Hamilton, devia saber o que fazer. Era um Walsh. Só precisava
tomar seu lugar ao lado do pai e fazer alguma coisa.
Mas o rapaz realmente não sabia o que fazer, ele compreendeu de
repente, sem saber se lamentava mais por Clay, por Hamilton ou por si
mesmo.
— Acho que você deve fazer o melhor que puder — conseguiu dizer afinal.
Christine estava sozinha quando encontrou Clay. Estava no escritório,
olhando o telefone que acabara de levar sua última esperança. Não havia
absolutamente nada que pudessem fazer.
Não ficou surpresa ao virar e ver o irmão parado dentro da saleta. Os
últimos dias tinham exaurido sua capacidade de se surpreender, mas não era
só isso. Estavam no fim de um ciclo, e nada mais natural que seu irmão
estivesse junto para dividir os momentos difíceis.
— Nunca fiquei realmente com raiva de sua opção de vida, Clay — disse
com tranquilidade. — Só que... Apavorava-me o fato de você crescer. — Sorriu
e baixou os olhos. — Há pouco tempo alguém me disse isso, mas acho que só
agora tenho condições de admitir. — Encarou-o. — Espero que me perdoe.
— Não há nada para perdoar. — Ele sorriu.
Pierce estava na sala quando Christine e Clay saíram abraçados e
observou-os por um instante, sentindo-se satisfeito.
Não sabia ao certo porque, mas estava feliz com aquela reconciliação.
— Clay, seu pai está lá fora. Eu não contei que você está aqui.
Demonstrando certa insegurança, Clay olhou para Pierce, depois para
Christine e sorriu. O encontro não seria nada fácil. Respirou fundo e saiu.
Christine e Pierce ficaram a sós, olhando um para o outro. Inúmeras vezes
nas últimas trinta e seis horas tinham ficado a sós com mil coisas a dizer, mas
sabendo que nada podia ser dito. Palavras de amor, promessas e segredos
eram vazios e sem sentido. Pierce não queria humilhá-la dizendo coisas sem
sentido. Era um ator que representava sempre um jogo e agora, de repente,
percebia que não havia mais jogo. Não sabia o que dizer.
Centenas de vezes desde aquela noite seus olhares se encontraram, claros
e sem medo, e também não havia nada que Christine pudesse dizer. E centena
de vezes Pierce desejou abraçá-la e nunca mais deixá-la se afastar. Mas
também não tinha sentido. No final, nada existia além de uma lembrança. Os
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ver com seus problemas, mas era impossível se controlar. — Escute aqui
pastor, todas as suas palavras parecem boas, mas não têm significado algum
porque estão distantes da vida real. De que Deus você fala? Quem é Esse que
deseja todo o amor só para ele? Também não quero saber, maldição! — Pierce
jogou fora mais um chumaço de grama e levantou-se com um movimento
brusco.
Clay o seguiu mais devagar. Estava totalmente confuso. Todas as
verdades que já sabia e todas as que evitava estavam agora tomando corpo.
Sentia-se à beira de uma crise de desespero.
— Pierce — murmurou quase em tom de súplica, ao pousar a mão no
braço dele. — Não há nada que eu possa fazer.
Pierce olhou para a mão em seu braço por tanto tempo que Clay acabou
retirando-a. Depois olhou para o rapaz, mas sem raiva ou desprezo. Em seus
olhos havia apenas uma expressão de desânimo.
— Você poderia pelo menos tentar — disse com simplicidade, antes de
afastar-se.
Clay ficou parado durante muito tempo. Começou a entender lentamente
não só as palavras de Pierce, mas tudo, tudo que questionara, tudo que
precisava aprender. A compreensão viera à duras penas, mas estava
consciente. Tinha se envolvido num mundo confortável de estudo e meditações
abstratas sem qualquer utilidade para a vida prática. Pierce estava certo. No
dia a dia, tudo o que estudava não servia para nada.
O amor não era fuga, mas compromisso. De alguma maneira, Clay
confundira tudo. Tinha respondido ao chamado para servir a Deus, mas a única
pessoa a quem servira tinha sido a si mesmo.
Ainda não sabia como ajudar sua família, como canalizar sua energia e fé
para transformar o mundo real, que era o que realmente importava. Mas tinha
certeza de que algo devia ser feito. E sabia por onde começar.
Abby estava no quintal, pendurando roupas num varal preso entre dois
carvalhos. Durante todo o caminho Clay estava com um nó na boca do
estômago, e com as mãos tão úmidas de suor que escorregavam no volante.
Havia desapontado tanta gente, magoado tanto as pessoas que amava! O que
diria para Abby agora? Como era capaz de imaginar que ela ainda o queria?
Conforme passava pelos campos devastados das fazendas, um sentimento
peculiar passou a dominá-lo. A ansiedade transformou-se em atenção e vários
pensamentos lhe ocorriam ao mesmo tempo. Dezenas de fazendeiros, toda a
região... Tudo arruinado e na mesma situação. Porém, onde Pierce via
destruição, Clay viu uma pequenina chama de esperança.
Quando estacionou a caminhonete ao lado da casa de Abby, estava tão
excitado que quase esqueceu o nervosismo. Podia dar certo, tinha certeza que
sim. Deviam pelo menos tentar.
Abby o viu, quando Clay já estava bem próximo, nesse momento, a
ansiedade voltou.
Os dois ficaram imóveis, com os olhos fixos um no outro. Abby estava
com um saco de prendedores de roupa amarrado no cós da calça e a camiseta
enrolada acima da cintura. Uma brisa jogou uma mecha de cabelos sobre seus
olhos e ela empurrou-a para trás com um movimento lento. Clay prendeu a
respiração. Pela primeira vez na vida, tinha certeza de que estava certo.
— Case-se comigo Abby — disse com calma.
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Capítulo XXI
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dava forças para lutar. Nem sempre era bom, às vezes se desejava estar longe
dali, mas nada no mundo conseguiria arrancá-los daquele lugar.
— Fique na cama e repouse, foi o que o médico me disse — resmungou
Hamilton e Pierce abriu os olhos. — Esse maldito quer que eu fique deitado
esperando a morte!
Pierce não conseguia imaginar que alguém conseguisse manter Hamilton
na cama por muito tempo. Ele estava lutando há anos e não reconhecia
quando perdia uma batalha.
— Tem que se cuidar — disse com a voz ainda um pouco embargada. —
Está se matando.
— Você não entende filho — respondeu o velho com um sorriso triste.
— O pior de tudo é que acho que entendo. — A voz de Pierce estava muito
calma e, com esforço, dirigiu-se para a porta.
Capítulo XXII
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Pierce não sabia o que dizer. Nada mais daquilo era problema seu. Tinha
feito tudo o que estava ao seu alcance para ajudá-los.
Christine ajoelhou-se e pegou um punhado de terra. Um ligeiro sorriso
atravessou-lhe os lábios.
— Uma vez você me disse que eu não odiava este lugar, que eu só estava
com medo das responsabilidades — deixou a terra escorregar-lhe por entre os
dedos. — Você estava certo. No momento em que estava para perdê-lo foi que
compreendi como amo este solo, esta terra... — Levantou-se e limpou as mãos
no jeans. Seu sorriso era triste. — Acho que nós dois ainda temos que crescer
muito. Eu jamais poderia ir embora daqui Pierce.
— Você ainda está com medo? — Perguntou ele, depois de conseguir
controlar o desejo de abraçá-la para sempre.
— Sim...
Ele desviou os olhos relutantes para o horizonte. Deus, como a queria!
Não sabia como poderia viver sem Chris.
— Eu também... — Disse apenas.
Ficaram em silêncio. Havia tanto a dizer, tanto a ser dito, no entanto
como era difícil!
— Cuide de seu pai, está bem? — Disse finalmente, e Chris assentiu. Viu
as lágrimas brilhando nos olhos dela e não suportou mais. Virou as costas e
partiu.
Pierce caminhou duas horas, mais uma vez enfrentando a estrada para
lugar nenhum, levantando o dedo automaticamente nas raras ocasiões em que
passava um carro. Ninguém parava e ele não se importava.
Era difícil acreditar que dois meses antes, estava naquela mesma estrada
sem saber o que lhe aconteceria. Tinha chegado sem nada, estava partindo
com tudo. Aprendera a reconhecer cantos dos pássaros, as várias espécies de
árvores e plantas, aprendera o que era trabalho, dedicação e honra. Sabia o
que era orgulho e esperança. Ali aprendera a amar, Hamilton, Christine e
mesmo aquele lugar. Ali se transformara num homem. As estações do ano
mudavam, o tempo passava e mais uma vez ele estava partindo. Não fazia
ideia para onde iria, mas não se importava. A estrada o levaria para algum
lugar...
Se ao menos pudesse voltar... Se ao menos tivesse coragem de assumir
de uma vez por todas que era na fazenda que desejava passar o resto de seus
dias, junto com Chris, Hamilton... Trabalhando a terra, sendo útil...
De repente notou a aproximação de um veículo em sentido contrário e
levantou o dedo mais uma vez.
A caminhonete parou alguns metros depois e Pierce aproximou-se com
passos pesados, um tanto indecisos ainda.
— Para onde vai filho? — Perguntou um velho, usando macacão e um
chapéu batido.
Hesitou com a mão na maçaneta. Nada havia em sua frente... Só uma
esperança...
— Para onde filho? — Insistiu o velho fazendeiro. Pierce sorriu, entrou na
caminhonete e bateu a porta.
— Para casa.
O sol estava se pondo no horizonte quando Pierce pisou novamente na
fazenda. Ficou parado por alguns instantes, invadido pelas lembranças de tudo
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Fim
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