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Feltran Diario Intensivo
Feltran Diario Intensivo
Feltran
adolescente em conflito com a lei
em contexto
Resumo
Apresentação
1
O que remete o debate aos temas da associação entre crime e pobreza e à
criminalização da pobreza (MISSE, 2006a; 2006b).
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E que desnaturaliza as relações preconcebidas entre as noções de violência urbana,
e de criminalidade violenta, não para colocá-las em oposição binária, mas para
diferenciar os estatutos em que se situam e, então, utilizá-las nas análises de modo
mais produtivo. A noção de criminalidade violenta, mais precisa e descritiva,
indicaria o conjunto dos atos ilegais e ilícitos nos quais se utiliza da força física de
coerção (violência), ou da ameaça de sua utilização. A violência urbana é entendida,
diferentemente, como uma representação social, ao mesmo tempo responsiva e
fundadora dos debates públicos, e que, portanto, não opera preferencialmente como
categoria de análise, ou conceito, mas sobretudo como objeto a estudar. Machado da
Silva (1993; 2003; 2004) e Misse (2006b) trabalham esta distinção e advertem sobre
os problemas analíticos que sua indiferenciação produz. Sobre a distinção entre atos
ilegais e ilícitos, ver Misse (2007). Telles parte desta discussão (entre outras) para
avançar um conjunto amplo de análises das relações sociais tecidas o formal e o
informal, o lícito e o ilícito, o legal e o ilegal, que caracterizariam as dinâmicas
capitalistas recentes (Ver TELLES, 2011 ou TELLES e HIRATA, 2007).
3
Nas pistas do que sugerem teoricamente Deleuze e Guatarri (1996), e
analiticamente Telles (2011).
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Manhã
Estava com frio nos pés, saí da sede do CAJo para tomar um
sol. Lá fora, um menino (Maicon) fumava um cigarro e aguardava o
Jorge, outro educador social da instituição, que o iria levar – com um
grupo de adolescentes – à Junta Militar para alistamento. Maicon, 17
anos, dizia estar disposto a se alistar, mas Jorge me disse, depois, que
na hora de preencher a ficha todos marcaram que não tinham
interesse. Maicon já tem um filho, de 2 anos, que mora com a mãe no
Recife. Ele chegou a viver lá por um ano (levaram-no para lá, para ver
se parava de “aprontar”, mas a tentativa durou pouco. A avó da
criança também está lá. Maicon voltou; não vive com a mãe do seu
filho porque não quer: a família dela é que não permite. “Já aprontei
muito depois que ele nasceu”, ele explica, resignado. No último
sábado viu o menino, a família dela o trouxe até São Paulo. Eles
também têm família aqui. Já voltou para lá outras duas vezes, seu pai,
o avô, o levou. Agora trabalha numa “mecânica diesel”, registrado,
está bem ali. Tem ensino médio e cursos de mecânica. Está
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também ali na zona sul, não muito distante das favelas, e trabalhando
há mais de dez anos com esses moleques, Lourdes sabia o que dizia.
Eu tinha certeza disso.
dois juntos. Que o contraste era demais, um sem família e outro com
família demais, um com muita estrutura para recebê-lo, outro nada.
Bernadete concordou. Passamos novamente pelas grades, todas, e
saímos da Unidade. Entramos rapidamente na vizinha, dos
reincidentes, onde ficava a sede administrativa. Lá estava o cara
chamado Pedro, que Lourdes buscara no início. Pele escura e cabelos
espetados, camisa, costeletas bem feitas, estilo moderno, lá pelos seus
45 anos. Lourdes queria discutir o caso do Camilo com ele – Pedro
concorda que ele tem que ir embora logo, para não ficar escolado,
porque ele está “andando com uns molequinhos mais barra pesada”, e
ele vê que ele não tem malícia para dar conta deles. Melhor ir para a
rua logo, porque esse trabalho de amadurecimento não vai se dar
dentro da unidade. A frase, nitidamente de alguém experiente, era o
cúmulo do paradoxo, para quem acredita na “reintegração”. Ir para a
rua logo, para não ficar “escolado” no crime, é a constatação da
finalidade da internação, na perspectiva de quem a conhece por
dentro. Fantástico como elemento de reflexão.
algo, mas ela não deixa, continua sua bronca. Sem exagero, ela deve
ter falado sem parar durante 20 minutos, muito tempo mesmo. Só
lição de moral, contrastando o tempo todo o comportamento esperado
numa unidade de internação, para que alguém saia logo dali, e o
comportamento que Wesley vinha apresentando. Ela explicava, em
tom de bronca, que aquilo deveria ser, para ele, a reta final do período
de internação (ele já estava há mais de um ano ali). Mas que o
[relatório] conclusivo poderia voltar, caso ele continuasse daquele
jeito. Que ele já tinha atrasado a vida dele com a tentativa de fuga, o
que tinha prejudicado muito seu processo. Por isso mesmo, se
vacilasse o relatório conclusivo poderia ser negado.
discurso sobre família, trabalho, etc. Que tudo isso é decisivo para a
elaboração do relatório final – um documento que produz consenso
entre funcionários do pátio, da pedagogia e dos técnicos (assistentes
sociais, psicólogos, advogados, às vezes médicos, enfermeiros etc.)
sobre um determinado interno. Percebi, nesse momento, que Lourdes
falava para ele, mas para mim também. Ela me fazia notar como as
coisas funcionavam ali, me ensinava.
Almoço
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Tarde
uma senhora, que nos fez sentar. Em volta dela havia muitas pequenas
mesas com mulheres atendendo pessoas, estética de secretaria de
escola pública, que me lembrou minha infância outra vez. Assistimos
à cena de uma aluna sendo escurraçada da sala. Impressionante a
brutalidade. Outra chegou à porta e, ali mesmo, ante que dissesse algo,
ouviu vindo de dentro da sala um grito forte que a mandava sair. Não
tinha visto isso, até então.
email com a mulher, ela disse para Rosana enviar o projeto mas
sabíamos que ela não encaminharia nada.
“espera aí que eles saem, fica esperando aí”. Olhei para trás para
mostrar que tinha ouvido e entendido a tiração. Segui pensando:
“babaca”. Ele possivelmente pensava o mesmo.
Sabia que, se Francisca não estava lá na UBS nem na casa
dela, ela devia estar na casa da Sandra (filha mais velha). Resolvi ir
até lá, descer na favela de vez. Desci, chamei Sandra pelo nome, no
portão: – Quem é? – Gabriel! – Gabriel de onde? (já abrindo a cortina
e sorrindo) – Tá ocupada? – Não, entra! – Não tá com cliente? (ela
trabalha como cabeleireira em casa) – Olha aí, minha cliente! – E me
mostrou sua mãe, Francisca, na cadeira de cabeleireiro. Senti-me bem
ao encontrá-las, sinto-me próximo da família, os anos criaram afeto.
Começamos a pedir notícias uns dos outros. Seus filhos estavam todos
na mesma vida – Francisca tinha cinco filhos no “crime” e três
“trabalhadores”. A novidade, nessa visita, foi saber que Cristiane, sua
segunda filha, viciada em crack há quase dez anos, estava presa de
novo. - Foi por Deus, Gabriel... ela ia se acabar5.
Começo de noite
5
A notícia não me foi simples de digerir; talvez de todas as histórias que acompanho
em Sapopemba, a de Marcela seja a que mais me causa impacto pessoal. Discuto sua
trajetória em Feltran (2007).
6
Optei por manter a forma como o plural é usualmente formulado entre os
moradores de favela, em geral restringindo-se a concordância ao artigo, como nas
frases: os menino falou; os polícia está.
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Saidinha é o nome dado a assaltos a indivíduos que fizeram saques elevados em
agências bancárias ou caixas eletrônicos. Um dos assaltantes permanece dentro da
agência, observando, e passa as informações para um outro que, do lado de fora,
persegue o cliente e o aborda quando tiver oportunidade.
11
Fernando foi encontrado morto, um ano depois, na favela em que vive. A causa da
morte foi, segundo consenso local, “overdose de lança-perfume”. Outros dois
rapazes teriam morrido pela mesma razão, no mesmo dia.
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Um deles, que não conversara com Fernando, teria lhe dito, então: –
Filha da puta do caralho! Tá pagando pau pra vagabundo? Vai pagar
pau? Esse lugar só dá bandidinho mesmo! Se quiser, eu já falo com o
Comando pra eles resolverem teu problema! Fernando me disse que
não tinha feito nada e eles mencionaram o PCC [Primeiro Comando
da Capital], o partido; disseram conhecer os caras12. Os sentidos dessa
interação, um pouco estranha e fora de lugar, me passariam
despercebidos se não tivesse sido alertado por Francisca e Alex do que
se tratava. A referência explícita que os policiais fizeram ao PCC tinha
o sentido de demonstrar que, nesse momento, já não estava em jogo
apenas o dispositivo normativo legal, mas uma referência a dois
outros dispositivos: aquele próprio dos policiais da base da
corporação, que faz a triagem entre um “trabalhador” e um “bandido”
e, diagnosticando estar tratando com “bandidos”, joga com eles o jogo
que se joga entre polícia e ladrão, na “era PCC”. A dizer em tom alto,
na rua, que conhece os caras do Comando, o policial afirmava
subliminarmente que estava inscrito no circuito de relações entre a
polícia e a facção e que, portanto, abria-se a possibilidade de mais um
acerto entre elas. A referência ao Comando era assim, para bom
entendedor, a abertura da possibilidade de acerto financeiro entre “o
crime” e os policiais, para liberar Julio.
12
O rapaz usou essas três categorias: primeiro Comando, que seria como os policiais
teriam dito, depois PCC e depois partido. Não teria sido utilizada pelos policiais a
expressão também recorrente: “irmãos”, que se refere aos membros batizados do
PCC que fazem o ordenamento da justiça nas favelas da região.
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13
Um oficial da Polícia Militar, em conversa informal noutra ocasião, contou-me
que, certa vez, nos quinze minutos entre efetuar a prisão de um traficante e
apresentá-lo à Delegacia mais próxima, recebeu três ligações de advogados e
policiais em seu telefone celular, perguntando sobre o ocorrido e informando-o
acerca de com quem ele estava lidando.
14
A família tem quatro carros, três deles roubados e um, o do Neto, comprado a
prestações.
15
Um mês depois, um jornal de grande circulação denunciou um esquema de
corrupção que envolvia roubo de carros, propinas e lavagem de dinheiro que tinha
como território privilegiado o pátio dessa mesma delegacia.
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Ainda mais porque Julio, aos 30 anos, já havia passado cinco anos
preso, em duas temporadas; detido outra vez, e naquelas
circunstâncias – havia flagrante – seu caso não seria simples. O acerto
facilitava tudo16.
16
Conversando com Julio na casa de Francisca, enquanto ele assistia ao Jornal
Nacional, vim a saber do valor pago pela liberdade: R$ 16 mil (R$15 aos policiais, o
restante ao advogado).
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sem parar. Tudo cifrado – Vocês viram a água? Minha roupa tava no
varal e molhou! - e coisas assim. Olhava para mim meio de lado.
Francisca e Bruno a autorizaram a relaxar, eu era de confiança. Ela me
olhou como que se desculpando. Prosseguiu – debatiam sobre quem
teria caguetado o Orelha (pelo que compreendi, parente dela), e a
partir daí chegado aos meninos (Julio e Orelha, a dupla que trabalha
há tempos em parceria). Era, como no caso do Wesley: o importante
era saber quem teria sido o responsável pela delação. Foi pelo 181
[Disque-Denúncia] ou direto com os policiais? Levantaram alguns
nomes, não houve consenso, eu não conhecia ninguém. Ficou para ser
decidido depois. Bruno continuava insistindo com a mãe – se a
senhora me garantir, eu não preciso correr atrás disso daí mais, já fico
tranquilo! Ela fez que sim com a cabeça, novamente sem convencê-lo.
Fomos conversando e saindo para o churrasco da Natasha, a
chuva tinha parado. Fernando e Vilma reaparecem, vindos do quarto
de cima. Mãos dadas, com cara de quem tinha transado sem parar, por
duas horas. Ela vai para a casa dela. Bruno pede ajuda para trocar dois
pneus de seu carro, um Fiesta prateado parado abaixo da casa.
Traseiro esquerdo e dianteiro direito. Alguém os teria esvaziado. Há
quatro carros na família, agora: um do Neto, o Palio vermelho em que
fomos para a delegacia, o único comprado. Dois do Bruno, um Gol e
esse Fiesta, que rodam por todos os irmãos. E um Logus do Julio e do
Orelha, esse caguetado por ter sido usado várias vezes nos assaltos.
Vamos trocar os pneus, eu e Bruno, enquanto Fernando pegava uma
blusa de frio e se despedia de Vilma. Bruno grita para mais um
vizinho vir ajudar, eu pergunto quem é, ele diz que não sabe, mas que
“ai dele se não vier”. E completa – ele vem sim, sabe quem manda
aqui! Bruno seria “irmão” [PCC] há não muito tempo, e ouvi
comentários em várias partes a respeito disso: era a esse fato que ele
se referia. De fato, o vizinho desconhecido veio, e quando chegou,
Fernando também chegava. Aí pude abandonar a missão – já tínhamos
trocado o dianteiro, faltava só um. Bruno trouxera um segundo estepe.
Enquanto eu trocava o pneu na viela escura, o chão molhado, o carro
inclinado e o macaco pesado, às 10h30min da noite, com o “irmão”, e
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Noite
Madrugada
muito intenso, e que ia subir para dormir, disse para o outro – está
vendo, é isso, esse trabalho do Gabriel, de andar entre os pobres, que
eu chamo de um trabalho de evangelização. Fiquei quieto, mudo.
Tomei uns copos de água com eles, para evitar a ressaca, e fui dormir.
Ainda tentei escrever um pouco, mas antes da segunda linha estava
caindo de sono. Ainda pensei sobre como a representação da
“violência urbana” simplificava o que eu tinha visto. Dormi pesado.
***
Referências Bibliográficas
1996.
2006b.
1999.
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2007.
Brasiliense.