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O Positivismo e o Papel Das Mulheres Na Ordem Republicana
O Positivismo e o Papel Das Mulheres Na Ordem Republicana
2002
RESUMO: Este artigo trata da influência do Positivismo nos discursos da elite intelectual e
política ocupados em avaliar e adequar o comportamento feminino à ordem desejada pela jovem
República Brasileira. Procura enfatizar a relevância da filosofia proposta por Augusto Comte para a
análise das relações de gênero estabelecidas nos diversos setores da sociedade desde o início do
século XX.
ABSTRACT: This paper is about the influence of Positivism on the intellectual and political elite
class discourses, concerned in evaluating and adapting the female behavior to the order posed by
the young Brazilian Republic. It aims to emphasize the relevance of the philosophy proposed by
Augusto Comte to the analysis of gender relationships, established in the different sectors of
society since the beginning of the 20th century.
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Mestre em História pela UNESP. Doutoranda em História pela UFMG. Professora do Departamento de
História da UNIMONTES.
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direcionados para uma Religião da Humanidade, laica, em que os elementos cívicos eram
permeados por representações religiosas.
Geneviève Fraisse demonstrou como a relação de Comte com Clotilde forneceu à sua
filosofia uma nova amplitude indispensável para a elaboração do estatuto da mulher e o seu
papel no progresso social. A autora sugere a ligação entre o público e o privado e
questiona, a partir desses fatos, a possibilidade da importância das relações de gênero nas
interrogações filosóficas. (FRAISSE e PERROT, 1991)
Esta convergência de opiniões não causa surpresa frente à consideração de que, naquele
momento histórico, o grande projeto constituído em torno da preservação da ordem, e os
valores defendidos pela oligarquia, seja pelos liberais ou pelos conservadores eram os
mesmos: patriarcalismo, moralidade extrema, religiosi-dade, hierarquização,
antifeminismo. Portanto, o ponto de convergência entre ambos, ou seja, a manutenção da
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Durante o período colonial e mesmo no Primeiro Reinado, a educação feminina não foi
alvo de uma preocupação maior, apenas em meados do século XIX esta questão começou a
preocupar a oligarquia paulista que percebeu não mais ser possível manter suas filhas no
mesmo grau de isolamento e ignorância em que viviam até então. Dirigir a própria casa e
governar os escravos não seria mais suficiente, tornava-se mais necessário educar
formalmente as jovens. No caso das classes sociais menos abastadas, a perspectiva não foi
diferente, estas também se inseriam no horizonte social e cultural do momento e
entregaram, de bom grado, a educação de suas filhas aos cuidados dos colégios
ultramontanos, alinhados com a política do clero conservador.
Mas, tornar cultas as mulheres equivaleria, neste contexto histórico, a educar as jovens e as
meninas de acordo com
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Esta preocupação teve sua gênese no início do século XIX, com a criação do Estado
Nacional e o desenvolvimento urbano. A intervenção médico-estatal sobre a sociedade
incidiu primordialmente no comportamento familiar e delegou lugares específicos a
homens e mulheres. No casamento concebido como ideal, a escolha do cônjuge estava
atrelada à saúde da prole que não dependia unicamente dos cuidados ministrados após o
seu nascimento, mas da condição física dos pais antes e após o contrato conjugal.
A preocupação dos republicanos com a ordem perpassou todos os níveis do tecido social,
incluindo-se as novas relações trabalhistas entre patrões e empregados que substituíram a
dicotomia senhor-escravo. Entre 1890 e 1930, início da industrialização no Brasil,
constitui-se paulatinamente uma vasta empresa de moralização, cujo objetivo primordial
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seria a constituição da nova figura do trabalhador urbano. (RAGO, 1985: 63) Dedicado à
produção fabril, o operário deveria ser dócil, submisso, mas economicamente produtivo.
Para tanto, setores da burguesia industrial, médicos higienistas e autoridades públicas
passaram a ocupar-se com a integração do proletariado e de suas famílias ao universo dos
valores burgueses.
Segundo a autora, a invasão do cenário urbano pelas mulheres não resultou num
abrandamento das exigências morais lançadas sobre seus ombros. O tabu da virgindade, a
responsabilidade pela conduta dos filhos e do marido, sobretudo do marido-operário
extenuado pelas horas de trabalho despendidas na fábrica, continuaram a ser cobrados
como deveres femininos. O movimento operário, por sua vez, reproduzia a exigência
burguesa com relação às mulheres e “obstaculizou sua participação nas entidades de classe,
nos sindicatos e no próprio espaço da produção” (RAGO, 1985: 64), circunscrevendo sua
atuação ao espaço doméstico. Embora a classe operaria do início do século fosse
constituída, em grande parte, por mulheres, sua ascensão profissional foi interditada em
função da construção de um modelo de mulher simbolizado pela esposa-mãe devotada, que
se realizaria como mulher por intermédio dos êxitos obtidos pelo marido e pelos filhos.
De acordo com Margareth Rago, aos discursos normativos masculinos dos industriais, do
movimento operário e dos poderes públicos, juntaram-se as falas “científicas”, que
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Nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, o estilo de vida imposto pela
capital do Império, e posteriormente da República, exigia das famílias mais abastadas
padrões de vida doméstica que implicavam a contratação de vários criados. Os servidores
domésticos representavam o elo de ligação entre a rua, espaço insalubre, e o lar, modelo de
vida saudável. Entre os criados, as amas de leite representavam o maior risco, pois eram
responsáveis diretas pelo bem-estar dos filhos dos patrões. Entendia-se que as doenças
transmitidas pelos moradores dos cortiços penetravam o cerne mais íntimo das famílias e,
desse ponto de vista, “a ama-de-leite tornou-se, para os patrões, a mais terrível e alarmante
transmissora de doenças”. (GRAHAM, 1992: 136).
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este intento implicava, num primeiro momento, conseguir uma aliada entre as mulheres, a
mãe, que foi convencida de sua importância e da abrangência de seu novo papel social.
Mas, após a consolidação da figura feminina ideal, o que fazer com seu oposto? Como
tratar as meretrizes que circulavam pelas ruas das cidades e que atentavam contra as regras
tão caras ao imaginário social republicano?
O perfil das prostitutas, preguiçoso e voltado para a busca incessante do prazer, delineado
por Parent-Duchâtelet, foi assimilado pelos sanitaristas brasileiros e teve ampla aceitação
social, tanto que o modelo da mulher mundana fortaleceu seu oposto.
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E como, apesar dos esforços, o culpado não conseguia tirar-lhe a bolsa, respondeu e
sentenciou o juiz.
• Mulher, se tu tivesses defendido tua honra como defendes tua bolsa não terias
necessidade de vir diante de mim.”1
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Referências bibliográficas
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
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FRAISSE, Geneviéve e PERROT, Michele. História das Mulheres. O século XIX. Vol. 4,
Porto Alegre: Afrontamento, 1991.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
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