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CALEIRO, R. C. L. UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes Claros, v.4, n.2, jul./dez.

2002

O POSITIVISMO E O PAPEL DAS MULHERES NA ORDEM


REPUBLICANA

POSITIVISM AND WOMEN ROLE IN THE REPUBLICAN ORDER

Regina Célia Lima Caleiro*

RESUMO: Este artigo trata da influência do Positivismo nos discursos da elite intelectual e
política ocupados em avaliar e adequar o comportamento feminino à ordem desejada pela jovem
República Brasileira. Procura enfatizar a relevância da filosofia proposta por Augusto Comte para a
análise das relações de gênero estabelecidas nos diversos setores da sociedade desde o início do
século XX.

PALAVRAS-CHAVE: Positivismo, República, mulheres, normatização

ABSTRACT: This paper is about the influence of Positivism on the intellectual and political elite
class discourses, concerned in evaluating and adapting the female behavior to the order posed by
the young Brazilian Republic. It aims to emphasize the relevance of the philosophy proposed by
Augusto Comte to the analysis of gender relationships, established in the different sectors of
society since the beginning of the 20th century.

KEY WORDS: Positivism, republic, women, legislation

A análise dos discursos que consolidaram a formação da nascente sociedade republicana


desvelam as estruturas básicas de um sistema moralizante que, recorrendo ao imaginário
social e apoiando-se no conhecimento científico, consolidaram as transformações sociais e
políticas que os intelectuais brasileiros e as classes dominantes almejavam. Esta sociedade
“civilizada à moda européia” carecia de inovações em seus padrões de comportamento e
encontrou no Positivismo de Augusto Comte o discurso ideal para a aceitação das
representações simbólicas da nova ordem e fez dos positivistas os principais
manipuladores de símbolos da República. (CARVALHO, 1990)

Os atributos essenciais ao bom comportamento feminino, alinhavados naturalmente ao


discurso da “ordem”, foram inspirados no Positivismo de Augusto Comte, que elaborou as
representações do modelo feminino ideal após sua convivência com Clotilde de Vaux,
quando se percebe também que alguns aspectos religiosos da filosofia positivista foram

*
Mestre em História pela UNESP. Doutoranda em História pela UFMG. Professora do Departamento de
História da UNIMONTES.

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direcionados para uma Religião da Humanidade, laica, em que os elementos cívicos eram
permeados por representações religiosas.

Geneviève Fraisse demonstrou como a relação de Comte com Clotilde forneceu à sua
filosofia uma nova amplitude indispensável para a elaboração do estatuto da mulher e o seu
papel no progresso social. A autora sugere a ligação entre o público e o privado e
questiona, a partir desses fatos, a possibilidade da importância das relações de gênero nas
interrogações filosóficas. (FRAISSE e PERROT, 1991)

O caráter conservador desta doutrina considerava a mulher responsável pela manutenção


moral da família e pela educação da sua prole. Educadora por natureza, poderia exercer a
profissão de professora, ensinando as crianças como se fossem seus filhos, profissão, aliás,
que redimia as solteiras, pois resgatava o papel de mãe-educadora.

Além de procriar, criar, cuidar do marido e da manutenção da ordem da casa, a mulher


deveria “servir de musa para inspirar o marido e os filhos para serem homens honrados e a
praticar o culto privado, mantendo presentes as idéias positivistas”. (ISMÉRIO, 1994: 34).
Esta corrente de pensamento pleiteava a complementaridade biológica, mental e social
entre homens e mulheres, mas apesar de companheiras, as mulheres não eram iguais aos
homens. À superioridade do caráter masculino corresponderia a superioridade afetiva
feminina, consubstanciada no instinto maternal, combinação de altruísmo e bondade. O
Positivismo, apesar de posicionar-se contra os dogmas da Igreja Católica, no que tange às
mulheres, reproduzia o mesmo discurso “com a finalidade de controlar e limitar a atuação
da mulher na sociedade como também sua sexualidade”. (ISMÉRIO, op. cit., 114)

No positivismo, a “virgem católica”, alegoria da Igreja, transformou-se na “virgem mãe”,


alegoria da Humanidade. Os positivistas possuíam consciência da tradição católica no
Brasil e da mariolatria, conseqüentemente as mulheres católicas constituíam um público
privilegiado para sua doutrina e para o projeto social que almejavam.

Esta convergência de opiniões não causa surpresa frente à consideração de que, naquele
momento histórico, o grande projeto constituído em torno da preservação da ordem, e os
valores defendidos pela oligarquia, seja pelos liberais ou pelos conservadores eram os
mesmos: patriarcalismo, moralidade extrema, religiosi-dade, hierarquização,
antifeminismo. Portanto, o ponto de convergência entre ambos, ou seja, a manutenção da

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ordem, possibilitou no que diz respeito ao controle do sistema educacional, especialmente


o feminino, a expansão e a consolidação de colégios de orientação ultramontana.

Durante o período colonial e mesmo no Primeiro Reinado, a educação feminina não foi
alvo de uma preocupação maior, apenas em meados do século XIX esta questão começou a
preocupar a oligarquia paulista que percebeu não mais ser possível manter suas filhas no
mesmo grau de isolamento e ignorância em que viviam até então. Dirigir a própria casa e
governar os escravos não seria mais suficiente, tornava-se mais necessário educar
formalmente as jovens. No caso das classes sociais menos abastadas, a perspectiva não foi
diferente, estas também se inseriam no horizonte social e cultural do momento e
entregaram, de bom grado, a educação de suas filhas aos cuidados dos colégios
ultramontanos, alinhados com a política do clero conservador.

Mas, tornar cultas as mulheres equivaleria, neste contexto histórico, a educar as jovens e as
meninas de acordo com

os conceitos elaborados pela Igreja ultramontana, de tal sorte que


elas viessem, posteriormente, a ser educadoras dos filhos de toda a
sociedade, conforme os preceitos e a doutrina do catolicismo
conservador. (MANOEL, 1996: 49)

Os positivistas republicanos também disseminaram a idéia do altruísmo feminino que se


dividia em três modalidades. A primeira seria o amor para com os seus iguais, o amor para
com os que lhe fossem superiores e a veneração e o amor para com todos que dependessem
de sua bondade. Quanto ao instinto sexual feminino, consideravam-no quase inexistente.

Ao colocar a mulher num pedestal, para ser santificada, criava-se um artifício

para mantê-la alheia aos seus próprios interesses, para convencê-la


da total prioridade de sua missão como mãe e esposa, castrando-a
como um ser autônomo voltado para seu crescimento individual.
(SOIHET, 1989:113)

A virada do século assistiu ao triunfo do Positivismo tanto no âmbito jurídico como no


campo social, marcado pela influência da medicina na vida pública e privada dos
indivíduos. A medicalização do crime caminhava par a par com a higiene social
empenhada, de acordo com a nova ordem, em fazer regredir os fatores sociais
responsabilizados pela propagação da delinqüência e das doenças físicas e morais.

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Numa decorrência direta do processo de normatização social, a preocupação com a ordem


no novo regime político – a República no Brasil – incidiu diretamente sobre as mulheres,
tanto em relação às criminosas como ao mundo feminino em geral. Adriano Luiz Duarte,
em sua pesquisa relativa ao período compreendido entre 1937 e 1945, questionou: “que
tipo de mulher e qual o modelo de família embalava as utopias do Estado Novo?”.
(DUARTE, 1995:172) O projeto de higienização da mulher e a construção da mulher-mãe
objetivava reconduzir a mulher ao lar, por intermédio do casamento indissolúvel,
comedido, recatado, em que a sexualidade tinha como objetivo a procriação.

Esta preocupação teve sua gênese no início do século XIX, com a criação do Estado
Nacional e o desenvolvimento urbano. A intervenção médico-estatal sobre a sociedade
incidiu primordialmente no comportamento familiar e delegou lugares específicos a
homens e mulheres. No casamento concebido como ideal, a escolha do cônjuge estava
atrelada à saúde da prole que não dependia unicamente dos cuidados ministrados após o
seu nascimento, mas da condição física dos pais antes e após o contrato conjugal.

A partir dele, processou-se a corrosão do matrimonio colonial. As


práticas sociais que davam corpo ao casamento de ‘razão’ foram
sendo golpeadas uma por uma. (COSTA, 1989: 29)

O casal ajustado à defesa da propriedade, as uniões consangüíneas, a diferença de idade


entre homens velhos e mulheres jovens foram combatidos pela medicina. As vantagens
econômicas, as heranças familiares, a partir de então, seriam bem vistas desde que aliadas
com a boa constituição física e moral do casal.

Destarte, os valores religiosos e patriarcais foram suprimidos ou reprimidos e, em troca,


foram concedidos aos indivíduos direitos à sexualidade e afetividade. Esta nova forma de
aburguesamento da sociedade oitocentista, e também da sociedade republicana que se
seguiu, foi possível graças ao novo enfoque dado ao amor que permitiu à higiene

realizar sua manobra mais ambiciosa e, talvez, mais bem sucedida


junto à família: converter quase completamente a figura
sentimental do homem ao personagem do pai, e a da mulher ao
personagem da mãe. (COSTA, 1989: 239)

A preocupação dos republicanos com a ordem perpassou todos os níveis do tecido social,
incluindo-se as novas relações trabalhistas entre patrões e empregados que substituíram a
dicotomia senhor-escravo. Entre 1890 e 1930, início da industrialização no Brasil,
constitui-se paulatinamente uma vasta empresa de moralização, cujo objetivo primordial

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seria a constituição da nova figura do trabalhador urbano. (RAGO, 1985: 63) Dedicado à
produção fabril, o operário deveria ser dócil, submisso, mas economicamente produtivo.
Para tanto, setores da burguesia industrial, médicos higienistas e autoridades públicas
passaram a ocupar-se com a integração do proletariado e de suas famílias ao universo dos
valores burgueses.

A interiorização desses valores requeria um novo modelo feminino, a esposa-dona-de-


casa-mãe-de-família, que deveria estar sempre atenta ao bem estar de cada um dos
membros da família. Responsável pelos mínimos detalhes que pudessem comprometer o
bom andamento da vida cotidiana, a esposa-mãe deveria ser abnegada e vigilante, afetiva
mas assexuada, frágil enquanto mulher, mas soberana dentro do lar. Para aquelas que não
podiam depender economicamente de pais, maridos ou companheiros,

as fábricas, os escritórios comerciais, os serviços em lojas, nas


casas elegantes ou na Companhia Telefônica apareciam como
alternativas possíveis e necessárias. (RAGO, 1985:63)

Segundo a autora, a invasão do cenário urbano pelas mulheres não resultou num
abrandamento das exigências morais lançadas sobre seus ombros. O tabu da virgindade, a
responsabilidade pela conduta dos filhos e do marido, sobretudo do marido-operário
extenuado pelas horas de trabalho despendidas na fábrica, continuaram a ser cobrados
como deveres femininos. O movimento operário, por sua vez, reproduzia a exigência
burguesa com relação às mulheres e “obstaculizou sua participação nas entidades de classe,
nos sindicatos e no próprio espaço da produção” (RAGO, 1985: 64), circunscrevendo sua
atuação ao espaço doméstico. Embora a classe operaria do início do século fosse
constituída, em grande parte, por mulheres, sua ascensão profissional foi interditada em
função da construção de um modelo de mulher simbolizado pela esposa-mãe devotada, que
se realizaria como mulher por intermédio dos êxitos obtidos pelo marido e pelos filhos.

O trabalho industrial feminino foi respon-sabilizado pela desintegração familiar, a baixa


escolaridade entre crianças e os jovens, pela delinqüência e o desemprego masculino. As
falhas na organização do sistema, nesse sentido, foram descaracterizadas como tal e
revertidas em direção da participação das mulheres no mercado de trabalho. (MOURA,
1978).

De acordo com Margareth Rago, aos discursos normativos masculinos dos industriais, do
movimento operário e dos poderes públicos, juntaram-se as falas “científicas”, que

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recorriam, primordialmente, à condenação da amamentação mercenária. O discurso


médico-sanitarista visava convencer as mulheres de sua “vocação natural” para a
procriação e, conseqüentemente, para sua responsabilidade social na formação de novos
cidadãos. A necessidade do trabalho fora de casa constituía-se em um obstáculo para a
amamen-tação e as mães, apenas em condições extremas, deveriam ausentar-se de seus
lares.

Frente a resistências de várias mulheres em seguirem seus “instintos naturais”, conclui-se


que a amamentação mercenária deveria ser fiscalizada pelos especialistas competentes e
vigiada atentamente. Embora o cerne de todas as questões que giravam em torno do
aleitamento materno fosse a elevada taxa de mortalidade infantil do período e a
preocupação econômica com a força de trabalho do país, a discussão se impunha vinculada
mais aos argumentos de cunho moral. O leite da nutriz foi apresentado como agente
transmissor de doenças, além de perigoso fisicamente, o contato com a ama de leite foi
moralmente condenado. Criatura portadora de hábitos duvidosos, a nutriz seria um
elemento estranho que poderia comprometer a intimidade da família nuclear.

Nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX, o estilo de vida imposto pela
capital do Império, e posteriormente da República, exigia das famílias mais abastadas
padrões de vida doméstica que implicavam a contratação de vários criados. Os servidores
domésticos representavam o elo de ligação entre a rua, espaço insalubre, e o lar, modelo de
vida saudável. Entre os criados, as amas de leite representavam o maior risco, pois eram
responsáveis diretas pelo bem-estar dos filhos dos patrões. Entendia-se que as doenças
transmitidas pelos moradores dos cortiços penetravam o cerne mais íntimo das famílias e,
desse ponto de vista, “a ama-de-leite tornou-se, para os patrões, a mais terrível e alarmante
transmissora de doenças”. (GRAHAM, 1992: 136).

Tentava-se, desse modo, dissuadir “cientificamente” as mulheres, tanto as das classes


abastadas como as das classes menos privilegiadas de sua tarefa natural como mães e de
condenar práticas femininas “populares”. Até meados do século XVIII, as mulheres
exerceram uma medicina própria, ignorada pelos médicos, cujos saberes foram
compartilhados e colocados em prática, sobretudo em relação ao parto e nos casos de
doenças infantis. Para conquistar seu espaço no mundo feminino, a “medicina oficial”
precisava acabar como o “império das comadres” e estabelecer novas práticas. Alcançar

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este intento implicava, num primeiro momento, conseguir uma aliada entre as mulheres, a
mãe, que foi convencida de sua importância e da abrangência de seu novo papel social.

Aliança proveitosa para as duas partes. O médico, graças à mãe,


derrota a hegemonia tenaz da medicina popular das comadres e, em
compensação, concede à mulher burguesa, através da importância
maior das funções maternas, um novo poder na esfera doméstica.
(DONZELOT, 1980:25)

A adequação perfeita entre a natureza feminina e a função materna como definição


essencial das mulheres foi questionada por Elizabeth Badinter. O mito do amor materno
instintivo, fruto de uma tendência inata, de acordo com a autora, seria conseqüência mais
de um comportamento social adequado às diferentes épocas e costumes do que decorrência
natural de determinismos biológicos. Nem todas as mães teriam um impulso irresistível
para cuidar de sua prole e negaram o postulado universal do amor irrestrito e absoluto.
Destarte, alerta a autora, ao abordar a questão da mulher-mãe, “em vez de instinto, não
seria melhor falar de uma fabulosa pressão social para que a mulher só se possa realizar na
maternidade?” (BADINTER, 1985:355)

Mas, após a consolidação da figura feminina ideal, o que fazer com seu oposto? Como
tratar as meretrizes que circulavam pelas ruas das cidades e que atentavam contra as regras
tão caras ao imaginário social republicano?

Os discursos dos médicos sanitaristas brasileiros, preocupados com a higienização do


espaço público e privado, foram influenciados, sobretudo, pelas concepções da medicina
social francesa desenvolvida no século XIX, em que se destacou a obra do Dr. Parent-
Duchâtelet, autor de um minucioso estudo sobre a prostituição, suas causas e efeitos e a
regulamentação para sua prática, considerada ao mesmo tempo como um mal necessário
mas perigoso. (ENGEL, 1999:55)

O perfil das prostitutas, preguiçoso e voltado para a busca incessante do prazer, delineado
por Parent-Duchâtelet, foi assimilado pelos sanitaristas brasileiros e teve ampla aceitação
social, tanto que o modelo da mulher mundana fortaleceu seu oposto.

(...) o ideal da mulher honesta, mãe dedicada e submissa se


diferenciava do contratipo repelente da meretriz. Afinal, a dona de
casa agarrou-se ao modelo da mulher casta tanto mais firmemente
quanto ele se distinguia do modelo da ‘mulher da vida’, símbolo da
perdição e da monstruosidade. (RAGO, op. cit.,89)

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A “entrada” da prostituta na “vida fácil” acontecia sobretudo após a perda de sua


virgindade, considerada como o maior símbolo da honra feminina. Na fala dos advogados
defensores dos réus nos crimes de estupro e defloramento, evidencia-se a forma como a
perda da virgindade das mulheres pobres foi tratada como hábito de prostituição. Ávidas
por dinheiro, estas mulheres não teriam nenhum escrúpulo em negociar o próprio corpo.
No interior paulista, no início de 1938, o advogado de um homem acusado de estupro
usava como reforço para a sua defesa uma alegoria muçulmana.

Para destruição completa da prova do crime de estupro, começaremos por relembrar o


apólogo típico da filosofia mussulmana. – Um dia uma mulher chega diante do cadi
(juiz) trazendo um homem atrás de si.

• Juiz, grita ela, fazei-me justiça, este homem me violou!

O juiz após um momento de reflexão diz ao acusado:

• Dá tua bolsa a esta mulher.

Este, temente dum mais severo castigo, se apressa em obedecer.

• Agora, diz o juiz, toma-lhe a bolsa.

E como, apesar dos esforços, o culpado não conseguia tirar-lhe a bolsa, respondeu e
sentenciou o juiz.

• Mulher, se tu tivesses defendido tua honra como defendes tua bolsa não terias
necessidade de vir diante de mim.”1

As palavras do advogado demonstram uma dupla crítica. As mulheres pobres necessitavam


de “ganhar o pão de cada dia”, e desse modo tornavam-se candidatas em potencial à
prostituição. Por outro lado, o moralismo recorrente acenava com a possibilidade de um
“bom casamento” para as jovens que conservassem intacta sua honra. Aquelas que, apesar
da sua condição humilde, permanecessem “dignas” conseguiriam um marido que se
responsabilizaria pelo seu sustento, pois a necessidade de “trabalhar fora” deveria ser
encarada apenas como ocupação transitória exercida por moças solteiras.

Finalmente, importa ressaltar o papel da literatura naturalista no debate das idéias


cientificistas em vigor na sociedade brasileira no princípio do século XX. Os romances de
Aluísio Azevedo evidenciam a relevância do discurso médico na constituição das idéias
do autor, devido ao estatuto de legitimidade que estes discursos adquiriam durante o
período. O repúdio de Aluísio Azevedo às práticas patriarcais que remontavam ao período
colonial não impediu que características misóginas impregnassem suas obras. Apesar do

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aparente esforço em demonstrar a importância da emancipação feminina, considerando o


papel significativo das mulheres na sociedade, este, segundo o autor, só se concretizaria
quando as mulheres assumissem compromissos normati-zadores. A antítese da mulher
ideal foi representada pela figura da histérica, da prostituta e das mulheres pobres.
(CARVALHO, 1996)

De modo abrangente, foram estes os discursos que tentaram normatizar o comportamento


feminino no período destacado para esta pesquisa, 1890-1940. Juntos, delinearam o perfil
da mulher ideal: despojada, altruísta, tendendo para a santidade e devidamente moldada
para as necessidades da ordem no regime republicano.

As representações femininas modelares contribuíram na perpetuação dos ideais misóginos


que permaneceram no imaginário social e contribuíram de forma decisiva para e a exclusão
feminina do cenário político. Evidentemente, os comportamentos periféricos de muitas
mulheres sinalizaram o caminho das mudanças posteriores, mas é impossível negar a força
das representações femininas e do imaginário social nos discursos que visavam a formação
da identidade e da cultura nacionais durante o período político denominado Primeira
República e seus reflexos que ainda subjazem na atualidade.

Referências bibliográficas

BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado. O mito do amor materno. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 1985.

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DONZELOT, Jacques. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

DUARTE, Adriano Luiz. Cidadania e Exclusão: Brasil 1937-1945. Dissertação de


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ENGEL, Magali. Meretrizes e Doutores. Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro


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MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja e educação feminina – 1859-1919. Uma face do


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MOURA, Margarida Maria. Os herdeiros da Terra. São Paulo: Hucitec, 1978.

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urbana.1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

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