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Breve Exposição Sobre o Pai Nosso Na Tradição Clássica
Breve Exposição Sobre o Pai Nosso Na Tradição Clássica
Como foi sobretudo no Evangelho de Mateus que Jerônimo focou o seu trabalho de
revisão, notamos que nos Evangelhos de Lucas e de João temos, na Vulgata, um texto muito
mais parecido com a «Vetus Latina» do que é o caso em Mateus e Marcos. O que se terá
passado? A energia daquele grande homem terá esmorecido? Ficou cansado do trabalho?
Certo é que, na Vulgata de Jerônimo, a alteração feita no Pai Nosso em Mateus não foi feita
no Pai Nosso em Lucas. Mas já lá iremos.
Antes disso, ofereçamos apenas mais esta informação sobre o termo «Vulgata». Já
referi que foi só a partir do Concílio de Trento que o termo passou a ser aplicado à Bíblia
revista por Jerônimo. No final desse mesmo século XVI, saiu em Roma, em 1590, aquilo a
que se chama a «Vulgata Sistina», publicação empreendida sob os auspícios do papa Sisto V.
O papa morreu nesse mesmo ano e a «Vulgata Sistina» foi retirada de circulação
(alegadamente devido ao número elevado de gralhas), tendo sido substituída, em 1592, pela
Vulgata Clementina, publicada no pontificado de Clemente VIII (de triste memória para
muitos de nós, por ter sido sob este papa que Giordano Bruno foi queimado em praça
pública).
A polivalência do termo «Vulgata» não fica, contudo, pelas variantes Vulgata Sistina,
Vulgata Clementina, Nova Vulgata. Em paralelo com estas Vulgatas católicas, temos edições
pensadas mais para uso académico-universitário. Aqui podemos falar na Vulgata
Stuttgartensia (também conhecida como Vulgata de Weber-Gryson, que eu próprio uso
habitualmente, embora goste também de ler o Novo Testamento na versão da Nova Vulgata
católica) e na Vulgata Oxoniensis. E há outras mais...!
Indo agora ao caso do Pai Nosso de Mateus (6:9-13): há pequenas diferenças entre o
que lemos na Nova Vulgata e na Vulgata Stuttgartensia. Separo as duas versões por « / »,
dando primeiro o texto da Vulgata Stuttgartensia:
«Pater noster quī in caelīs es / Pater noster, quī es in caelīs
sanctificētur nōmen tuum / [igual]
ueniat regnum tuum / adueniat regnum tuum,
fiat uoluntās tua sīcut in caelō et in terrā / [igual]
pānem nostrum supersubstantiālem dā nōbīs hodiē / [igual]
et dimitte nōbīs dēbita nostra / [igual]
sīcut et nōs dimīsimus dēbitōribus nostrīs / sīcut et nōs dimittimus dēbitōribus nostrīs
et nē indūcās nōs in temptātiōnem / et nē indūcās nōs in tentātiōnem
sed līberā nōs ā malō / sed līberā nōs ā Malō»
Devemos pedir a Deus «perdoa as nossas dívidas tais como nós perdoamos aos nossos
devedores», ou «perdoa as nossas dívidas tal como nós PERDOÁMOS aos nossos
devedores»? O perfeito faz sentido, na medida em que mostrámos já a Deus o bom exemplo
de sermos capazes de perdoar aos outros, antes de Lhe pedirmos que nos perdoe a nós. No
entanto, não é a opção escolhida no meio eclesiástico, ainda que seja justamente o que lemos
no Codex Sinaiticus e no Codex Vaticanus gregos, do século IV.
A grande diferença introduzida por Jerónimo no texto do «Pai Nosso» de Mateus foi
«pānem nostrum supersubstantiālem», em vez do que se lê na Vetus Latina, que é «pānem
nostrum cotīdiānum». A forma «supersubstantiālem» procura reproduzir em latim o
enigmático «epiousion» (ἐπιούϲιον) do texto grego, que ninguém sabe ao certo o que
significa. Talvez signifique «crástino» (isto é, o pão de amanhã). Mas seria imprudente pôr
as mãos no fogo.