Você está na página 1de 5

5 mitos sobre a 'Bíblia

manipulada'
Reinaldo José Lopes

É impressionante a quantidade de lendas urbanas, preconceito e


desinformação que grassa por aí quando o assunto é a maneira como a
Bíblia foi escrita, editada e transformada num cânone, ou seja, num
conjunto (mais ou menos) fechado de livros adotado por muitas religiões
como algo dotado de autoridade religiosa. Mas nada tema, mui gentil leitor
— este post abordará (e desmontará) cinco grandes mitos sobre o tema e,
espero, trará alguma luz ao debate. Vamos a eles?

Mito 1: a Bíblia que temos hoje foi “inventada” no Concílio de


Niceia
Nananinão, dileto leitor. O Primeiro Concílio de Niceia, realizado no
ano 325 d.C. na cidade romana de mesmo nome (localizada na atual
Turquia), foi uma grande reunião de bispos (cerca de 300) convocada pelo
imperador Constantino. Seu principal tema foi a cristologia, ou seja,
debates sobre a exata natureza de Jesus Cristo e sua relação com Deus Pai.
O concílio deu o passo decisivo para definir que Jesus compartilhava da
mesma natureza de Deus e existia desde o princípio dos tempos, não tendo
sido “criado” em qualquer sentido ordinário. A agenda do concílio incluía
várias questões menores, como a data correta da celebração da Páscoa
cristã. Mas em NENHUM momento incluiu discussões sobre os livros que
deveriam ou não ser incluídos na Bíblia. Repito: esse tema simplesmente
NÃO foi debatido em Niceia.
Mito puro, portanto.
Mas, se é mito, quando diabos o cânone foi fixado, afinal? Bem,
depende. De maneira geral, pode-se dizer que, no fim do século 4º d.C., uns
50 anos depois de Niceia, a maioria das igrejas cristãs aceitava mais ou
menos os textos ainda aceitos hoje. Mas alguma variação continuou
ocorrendo, e nenhum grande pronunciamento oficial e definitivo aconteceu
ao longo do milênio seguinte. No Ocidente, foi só no século 16 que
católicos e protestantes cristalizaram seus cânones ligeiramente diferentes,
com alguns livros a mais ou a menos no Antigo Testamento, como veremos
a seguir.
Mito 2: ao longo dos séculos, a Bíblia foi constantemente
manipulada e alterada. Não fazemos a menor ideia de quais eram os
textos originais
Esse mito é mais complicado porque contém alguns elementos de
verdade. Vamos examinar a questão, pensando primeiro no cânone judaico
(o nosso Antigo Testamento) e depois no cânone cristão.
Primeiro, o fato é que a tradição de manuscritos do Antigo Testamento
é muito antiga e bastante bem documentada. Os famosos Manuscritos do
Mar Morto, achados na Cisjordânia nos anos 1940 e 1950, remontam até o
século 2º a.C., em alguns casos, e vão até o século 1º da Era Cristã, ou seja,
têm cerca de 2.000 anos de idade. A maior parte desses manuscritos
corresponde a trechos de quase todos os livros da Bíblia hebraica, ou
Tanakh, como também é conhecida — só não há na coleção trechos do
livro de Ester.
Tem variação quando comparamos os textos bíblicos dos Manuscritos
do Mar Morto com os textos hebraicos preservados pela comunidade
judaica, os chamados textos massoréticos, que datam do século 9º d.C.?
Tem variação sim, e considerável – trechinhos a mais ou a menos, trocas de
letras, confusões de significado etc. Isso é especialmente verdade em textos
de natureza poética, que possuem vocabulário mais complexo e de difícil
interpretação. Mas há relativamente pouca coisa que tenha algum
significado teológico ou histórico muito importante nessa variação.
Algumas versões dos Salmos dos Manuscritos do Mar Morto, por exemplo,
parecem dar a entender a existência de outros deuses além do Deus bíblico,
Yahweh (nome geralmente traduzido como “o Senhor”). Mas essa
inferência também pode ser feita com base nos manuscritos mais
conhecidos da Bíblia, por exemplo. Não é nada propriamente bombástico.
Já falamos dos textos do mar Morto e dos massoréticos, ambos em
hebraico, que parecem concordar em muita coisa, ainda que não em tudo.
Há ainda duas outras tradições importantes de textos do Antigo
Testamento. A mais “estranha”, do nosso ponto de vista, é a dos
samaritanos, o grupo de adoradores do Deus bíblico que vive ao norte de
Jerusalém e era considerado herético pelos judeus. Os samaritanos possuem
sua própria Torá, ou seja, o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia, o
Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). De
novo, no geral, os textos batem, embora a Torá samaritana “puxe a brasa
para a sardinha” de seus copistas, dizendo por exemplo que o local correto
de adoração a Deus é o monte Gerizim, na atual Cisjordânia, e não
Jerusalém, como defendem os judeus. Mas não passa muito disso — não é
que a Torá deles diga “chutai a canela do seu pai e da sua mãe” em vez de
“honrai pai e mãe”. Mais uma vez, trata-se de uma versão em hebraico.
Finalmente, há ainda a antiga tradução da Bíblia hebraica para o
grego, a chamada Septuaginta, ou versão dos Setenta (assim chamada
porque teria sido feita por setenta sábios judeus que viviam no Egito por
volta do ano 200 a.C., segundo a tradição). De novo: há variantes
significativas entre o texto da Septuaginta e os textos em hebraico? Tem
bastante, de fato, o que indica que provavelmente os tradutores usaram um
texto-base diferente da versão massorética. Mas, outra vez, é preciso
ressaltar que essas diferenças não costumam ser radicais do ponto de vista
semântico e teológico. Um dos problemas importantes da Septuaginta
talvez seja a passagem na qual a palavra hebraica “almah”, que designa
uma jovem do sexo feminino que ainda não teve filhos, foi traduzida como
“parthenos”, que normalmente (mas nem sempre) significa “virgem” em
grego. Foi essa passagem, do livro do profeta Isaías, que serviu de base
para a ideia de que a concepção virginal de Maria nos Evangelhos cumpre a
profecia de Isaías.
Esse detalhe é teologicamente importante, sem dúvida, mas é um dos
poucos exemplos de diferenças de peso. Resumindo: no caso do Antigo
Testamento, apesar das muitas variantes, estamos falando de uma tradição
de manuscritos que manteve considerável estabilidade ao longo de muitos
séculos. Não há sinal de nenhuma conspiração para manipular em larga
escala o conteúdo desses textos. No geral, os antigos judeus (e samaritanos)
parecem ter respeitado o conteúdo tradicional de tais textos.
E no caso do Novo Testamento? Bem, os mais antigos fragmentos em
grego desses livros que chegaram até nós são do começo do século 2º d.C.
— cerca de um século, portanto, depois da morte de Jesus. Mas textos
maiores só aparecem no século 3º d.C. O consenso entre os historiadores,
no entanto, é que a maior parte do Novo Testamento foi escrita bem antes,
entre 65 d.C. e 100 d.C. Mais uma vez, existem variantes? Sim, centenas de
milhares, mas a grande maioria delas não tem grande significado. Num post
anterior já falei de uma das mais importantes, a do “final alternativo” do
Evangelho de Marcos. Outros trechos que podem ter sido alterados por
causa de disputas teológicas envolvem interpretações adocionistas, ou seja,
a ideia de que Jesus teria sido apenas adotado por Deus, e não seria seu
Filho desde sempre. No geral, porém, vale o mesmo que dizemos sobre o
Antigo Testamento: quando comparamos todos os manuscritos que
chegaram até nós, não há sinais de manipulações de larga escala dos textos.
O importante aqui, eu acho, é pensar no contexto e na maneira como
funcionavam as tradições religiosas na Antiguidade. Os textos que
acabaram compondo o cânone da Bíblia já circulavam e eram venerados
havia séculos quando o cristianismo se consolidou. Eram lidos,
comentados, estudados e muito bem conhecidos. Alterá-los totalmente
provocaria muitas brigas e não serviria a grandes propósitos. O mais lógico
era aceitá-los mais ou menos como eram e investir em interpretações que
casassem bem com a teologia cristã nascente.
Mito 3: os Manuscritos do Mar Morto contêm evangelhos
apócrifos que revelam verdades chocantes sobre Jesus
Esse mito é fácil de derrubar, em contraposição ao anterior. Não há
NENHUM texto cristão em meio a esses manuscritos, gente. A única
relevância deles para o estudo do Jesus histórico é o fato de que eles nos
ajudam a entender como era o judaísmo na época em que Cristo viveu.
Fora isso, nada.

Mito 4: os evangelhos apócrifos são uma fonte mais confiável


sobre a figura histórica de Jesus do que os que foram incluídos na
Bíblia.
Outro mito que vai ao chão com relativa facilidade. Hoje, quase todos
os historiadores concordam que é preciso ler com muito cuidado os
Evangelhos canônicos — Mateus, Marcos, Lucas e João — se a ideia é
buscar informações historicamente confiáveis, porque o interesse dos
evangelistas era fazer teologia, e não história no sentido moderno. Mas, e
esse é um grande mas, a maioria dos historiadores também concorda que,
se esses textos têm problemas do ponto de vista histórico, os evangelhos
apócrifos, ou seja, não incluídos na Bíblia, são ainda mais problemáticos,
em geral.
Isso porque tais textos foram, em geral, escritos bem depois dos
Evangelhos canônicos e estão cheios de material lendário e especulações
teológicas ainda mais ousadas do que os textos presentes na Bíblia. São
quase “fan-fic” — aqueles textos escritos por fãs de um livro ou de um
filme usando personagens criados por outra pessoa em suas próprias
histórias.
Há uma possível exceção importante nesse caso, porém. Trata-se do
Evangelho de Tomé, encontrado no Egito e feito quase que só de frases
impactantes de Jesus, ou de parábolas contadas por ele. Alguns estudiosos
importantes acreditam que Tomé preserva algumas versões das falas de
Jesus que se aproximam mais do que ele teria realmente falado em vida.
Mas muita gente discorda deles.

Mito 5: as Bíblias católicas e ortodoxas incluem textos apócrifos


que não fazem parte do cânone “correto” do Antigo Testamento
Esse é outro mito com nuances, como o mito 2. De fato, o que a Bíblia
das igrejas protestantes inclui em seu Antigo Testamento é um conjunto de
livros exclusivamente traduzidos do hebraico para as línguas modernas.
São os mesmos livros incluídos pelos judeus atuais em seu Tanakh desde
mais ou menos o ano 100 d.C. As Bíblias católicas e ortodoxas incluem
ainda outros livros, como Judite, Sabedoria e Eclesiástico, que foram
traduzidos do grego e a respeito dos quais se acreditava que tinham sido
escritos originalmente em grego e/ou nunca teriam feito parte do cânone de
qualquer grupo judaico.
Acontece, porém, que na época de Jesus o cânone judaico ainda estava
“semiaberto”, e ao menos alguns grupos de judeus parecem, sim, ter
considerado que tais livros eram canônicos. Trechos do Eclesiástico, por
exemplo, foram achados entre os Manuscritos do Mar Morto, e em
hebraico. A mesma coisa vale para o livro de Tobias – trechos em hebraico
e aramaico também constam da “coleção” do mar Morto.
Isso significa que esses livros “devem” fazer parte do cânone?
Depende. É claro que, no fundo, essa é uma discussão cultural e teológica.
Mas o que claramente não funciona muito é dizer que o judaísmo nunca
aceitou esses livros como parte das Escrituras — em alguns casos, essa
informação parece não proceder.
Ah, e pros leitores que às vezes pedem minhas fontes, alguns livros
ótimos para entender melhor os temas a seguir:
– Série “Um Judeu Marginal”, de John P. Meier, editora Imago;
– “The New Testament: A Historical Introduction to the Early
Christian Writings”, de Bart D. Ehrman, Oxford University Press;
– “Uma História Cultural de Israel”, de Júlio Paulo Tavares Zabatiero,
editora Paulus.
E dois excelentes cursos gratuitos online.
Sobre Antigo Testamento:
http://oyc.yale.edu/religious-studies/rlst-145
E sobre Novo Testamento:
http://oyc.yale.edu/religious-studies/rlst-152
Ambas da Universidade Yale, nos EUA.

Você também pode gostar