Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Jpenalva Chiado8
Jpenalva Chiado8
Jpenalva Chiado8
Chiado 8 – Arte Contemporânea, inaugurado em Janeiro de 2002, é um projecto da Companhia de Seguros Fidelidade Mundial
que, aproveitando a localização privilegiada de um dos seus edifícios centrais, decidiu participar nas iniciativas de reabilitação
do Chiado através da criação de um espaço de divulgação da arte contemporânea.
Pavlina e o Dr. Erlenmeyer
Pavlina e o Dr. Erlenmeyer, 2010
Pavlina, 2007 (projecções sincronizadas de diapositivos e
filme super 16mm transferido para dvd, 9:16, cor, som,
10’16’’); retrato do Dr. Emil Erlenmeyer, retirado da
Wikipedia; Dr. Erlenmeyer Morto, 1957 (óleo sobre tela da
autoria de Alexander von Baeyer, Londres); Cashmere Suite,
2009 (fotografias a preto e branco); Petula, Monique, Priscilla,
May, Eva, Margot e Julie (moldes de chapéu da Maison Riva-
-Marchesi, Paris, colecção Outono-Inverno de 1927); lâmpada
de farol osram de 50.000 watts, na sua embalagem original,
década de 1960; reclame, n.d. (impressão tipográfica sobre
papel); flexografias manuais sobre cartão; alcatifa, mobiliário,
tinta, giz, mdf, vidro, napa, veludo, prateleiras, esponja,
papéis impressos, impressões digitais e molduras.
A experiência expositiva e a mecânica Bruno Marchand 5
da sugestão – um itinerário
“O sistema expositivo organiza as suas repre- uma determinada dinâmica interna – o foco
sentações de forma a maximizar todas as ou o substrato de uma exposição – e, por
instâncias que o constituem: da sua arqui- outro, a estabilização e a manutenção de
tectura, que é sempre política, à coloração um modelo cultural profundamente anco-
das paredes, que é sempre psicologica- rado na economia discursiva das institui-
mente significativa; do carácter didáctico ções e suas políticas.
das tabelas (mesmo, ou especialmente, na- É já longa a história do envolvimento dos
quilo que ocultam) às exclusões artísticas, artistas na manipulação dos mecanismos
que são sempre marcadamente ideológicas; que compõem e suportam as exposições
da sua iluminação sempre dramática (e, por que visitamos. Suplantando os contributos
isso mesmo, um factor importante no esta- que artistas como Abraham van der Doort,
belecimento de narrativas e na encenação El Lissitzky ou Marcel Duchamp trouxeram
do desejo) aos dispositivos de segurança, ao campo da actividade curatorial como
que são sempre uma forma de manipulação hoje a entendemos, é no âmbito de propos-
social (por exemplo, a opção entre câmaras tas tão distintas como as que foram avança-
de vigilância ou a presença de seguranças); das pelo movimento dada, o minimalismo, a
das premissas curatoriais, que são sempre arte conceptual, o happening ou a chamada
dogmáticas, às brochuras, catálogos e ví- crítica institucional que o acto expositivo,
deos, sempre orientados por uma vocação em todas as suas valências, é entendido
pedagógica, e até mesmo à estética que como um objecto em si mesmo e, conse-
adopta, sempre especificamente perten- quentemente, passível de ser convertido
cente ao lugar e ao momento em que a expo- num medium artístico de pleno direito.
sição é apresentada, em detrimento dos A experiência expositiva, os seus meca-
contextos históricos e produtivos que viram nismos e os dispositivos que a sustentam,
nascer os objectos expostos.” 1 têm merecido uma atenção particular por
parte de João Penalva (Lisboa, 1949) nas últi-
Se dúvidas houvesse sobre a complexidade mas duas décadas. Algumas das obras que
dos sistemas expositivos, a descrição produziu durante este período apropriam-se
quase pornográfica que Bruce W. Ferguson do aparato expositivo para estabelecer con-
elabora sobre a mecânica que lhes subjaz textos onde se insinuam narrativas, cuja
rapidamente as faria dissipar. De facto, não operatividade depende tanto da anuência
existe tal coisa como uma exposição ino- ou da cumplicidade do espectador para com
cente. Todo e qualquer acto expositivo é um o que lhe é apresentado, quanto da autono-
elaborado exercício de indução, cujo su- mia ou da capacidade deste para assumir a
cesso depende, em grande medida, e na responsabilidade pela condução da su a pró-
maioria das ocasiões, da sua capacidade pria experiência. Nestas obras – de resto,
para se tornar absolutamente transparente como acontece em todas as exposições –,
aos olhos do espectador. Resultando de um os silêncios, as ausências e os intervalos
apurado sentido crítico em relação a uma desempenham uma função tão decisiva
parte significativa das instâncias envolvidas como aquela levada a cabo pelos objectos
no agenciamento de uma exposição, a enu- que as compõem e nos quais se funda a sua
meração de Ferguson é reveladora do modo realidade material, mas também simbólica e
como estas se prestam a uma manipulação estética. Pavlina e o Dr. Erlenmeyer assume-
que serve, por um lado, a construção de -se como o último desenvolvimento numa
6
linhagem de obras onde a cuidadosa or- narrativa, não existe enredo, mas isso não
questração de todos os elementos expositi- significa que não exista emoção – essa está
vos, a par da criteriosa gestão do equilíbrio lá, a dos bailarinos a fazer o que fazem: dan-
entre o que se torna explícito e o que se çar; e aquilo que existe entre o espectador
deixa implícito, entre o que se revela e o que e o intérprete.”4
se oculta, sustentam a construção de com- A influência do programa de Cunningham
plexos enredos onde ficção e realidade con- na obra de João Penalva não se resumia a
vivem e se contaminam mutuamente. uma questão meramente tutelar. Os seus
efeitos concretos podiam ser observados
Uma possível genealogia desta vertente de na forma como a aplicação de um vasto
trabalho na obra de João Penalva leva-nos leque de expedientes técnicos e a conjuga-
a 1990, ano em que o artista apresenta um ção de recursos tão díspares como elemen-
conjunto de pinturas numa exposição que tos decorativos, padrões geométricos,
teve lugar no Centro de Arte Moderna da estilizações de objectos, marcações ges-
Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. tuais, superfícies abstractas ou motivos
Tendo concentrado toda a sua produção no caligráficos não implicavam, contudo, que
campo da pintura desde a conclusão dos o artista deixasse de promover também, e
seus estudos na Chelsea School of Art, no através de hábeis jogos de disjunção e con-
início dos anos de 1980, as obras que de- traste, uma muito consciente nivelação dos
senvolveu durante essa década assumiam signos que na sua pintura convergiam e,
o carácter de repositório das mais variadas com ela, a consequente transformação do
expressões e tendências da história da pin- espaço pictórico num campo livre de hierar-
tura moderna. Nas suas composições con- quias materiais, formais e perceptivas.
viviam, sem quaisquer pruridos, elementos Como nota Pedro Lapa num importante
figurativos e abstractos, igualmente filtra- texto sobre o artista, nestas obras os signos
dos por uma deliberada concepção antinar- pictóricos são entendidos “não como unida-
rativa e anti-simbólica do exercício des independentes mas como elementos
pictórico2, cuja origem se encontrava na in- de um sistema que promove diálogos entre
fluência que o coreógrafo norte-americano pinturas distintas ou mesmo entre imagens
Merce Cunningham exercia sobre o pro- distintas dentro da mesma pintura”5.
grama artístico de João Penalva. De facto, Na referida exposição – exemplar pelo
a objectividade, a racionalidade e o estatuto quanto revelava das estratégias pictóricas
concreto que este procurava para as suas e das opções programáticas da pintura de
pinturas radicava ainda na herança seminal João Penalva – uma obra ganhava destaque
que o trabalho daquele coreógrafo lhe havia pelo modo como contrastava com as restan-
legado durante os anos em que João Pe- tes. Intitulada Coleccionador (1990), assumia
nalva desenvolveu uma carreira como baila- a forma de um painel composto por 14 telas
rino profissional3: “Como sabe, depois do de diferentes formatos que, agrupadas e so-
ballet clássico, estudei a técnica Cunning- brepostas, desenhavam uma forma irregular,
ham e, hoje em dia, diria que foi esse sis- tanto em termos da sua expressão bidimen-
tema racional que veio marcar o resto da sional como tridimensional. Igualmente colo-
minha vida de artista. Para Cunningham, ridas num tom castanho-chocolate, e sem
a dança é simplesmente movimento no es- qualquer outra inscrição nas suas superfí-
paço e no tempo, e nada mais. Não existe cies, os únicos elementos que abalavam a
11
De facto, mais que uma mera semelhança, Penalva intervém estabelecendo nexos,
esta peça era a cópia exacta da obra de provocando desdobramentos e introdu-
Craig-Martin – cuja conivência, aliás, foi es- zindo novos elementos. Deste exercício re-
sencial para o rigor desta operação – pese sultam frequentemente elaboradas
embora a supressão deliberada de uma das instalações, onde instâncias dos mais di-
suas partes. Na versão original da referida versos meios interagem e se contaminam,
obra, ao copo e à prateleira é acrescentado estabelecendo um território ambíguo entre
um texto, na forma de diálogo, no qual se a realidade e a ficção.
ensaia uma argumentação que, em última Em A Colecção Ormsson Apresentada por
instância, pretende pôr a nu o sistema de João Penalva, exposição que o artista reali-
crença que sustenta toda e qualquer expe- zou no Pavilhão Branco do Museu da Cidade
riência artística10. Baseada no conceito de de Lisboa em 1997, estas estratégias foram
transubstanciação – fenómeno pelo qual aplicadas numa dimensão inédita. Logo nos
tomamos um determinado corpo por outro momentos iniciais da visita, e através de um
(isto é, a hóstia pelo corpo de Cristo ou, no texto presente na primeira sala, era apre-
caso em análise, um copo de água numa sentada ao espectador uma nota biográfica
prateleira por um carvalho) – a evocação do coleccionador a que o título da exposição
desta peça não só introduzia discretamente aludia – o islandês Loftur Ormsson – e onde
o mecanismo da citação como reforço da se lia o seguinte: “Coleccionador desde os 17
produção de sentido na intervenção de João anos, a sua colecção viria a somar, segundo
Penalva, como instalava também uma dú- as suas próprias contas, 987 objectos,
vida estrutural que apontava para o carác- abrangendo artesanato, pintura, escultura,
ter volátil e arbitrário das noções de desenhos arquitectónicos e de engenharia,
verdade, objectividade ou representativi- manuscritos, fotografias, livros, mobiliário,
dade, uma vez enquadradas no âmbito de etc. Como coleccionador, Loftur Ormsson
processos artísticos11. distingue-se dos demais pela peculiaridade
As questões equacionadas em Arquivos do propósito que o levava a coleccionar: o
e Café, a par dos métodos aplicados pelo desejo de, para cada objecto adquirido, lhe
artista para a sua exploração, marcavam encontrar o seu par.”
um definitivo virar de página na sua prática. Durante o percurso pela exposição, o vi-
Embora não tivesse abandonado a pintura, sitante era confrontado, então, com vários
o trabalho que João Penalva desenvolveu a desses pares, escolhidos e dispostos por
partir de 1993 pautou-se pela abertura a um João Penalva ao longo do espaço, e cuja
leque cada vez mais abrangente de meios única característica comum era o facto de
(sejam eles a fotografia, o vídeo ou a palavra um ou ambos os objectos terem sido adqui-
escrita) e por uma diversificação de estraté- ridos em Portugal. Entre estes pares encon-
gias processuais com vista à criação de si- travam-se um conjunto de alcatruzes
tuações de pendor narrativo. A sua portugueses do século XVI e uma peça es-
metodologia passou também a incorporar cultórica de Pedro Cabrita Reis; uma gra-
extensas fases de pesquisa sobre referen- vura flamenga do século XVIII, representando
tes de base, nas quais são coligidos docu- uma vista de Lisboa durante o terramoto de
mentos, memórias, relatos, histórias e 1755, e uma pintura de Harold Rippingham
outros materiais que delimitam um amplo retratando Alfred Wegener, o primeiro pro-
universo informal, no interior do qual João ponente da teoria da deriva continental; ou
17
um papel dactilografado de Hanne Darboven vel para o espectador – haviam sido mani-
e um cartucho de papel com uma conta de pulados pelo artista com o exclusivo propó-
somar inscrita na superfície, cuja autoria era sito de sustentar uma dupla ficção: a ficção
atribuída à merceeira D. Dolores. Sem que da colecção Ormsson e a ficção da activi-
fossem revelados os mecanismos pelos dade curatorial. O facto de esta obra poder
quais Ormsson havia consagrado aqueles “reinscrever a dúvida onde a instituição
pares – o que evitava que quaisquer veleida- funciona como entidade que garante a cer-
des didácticas ou instrutivas se imiscuíssem teza”12 seria possivelmente um efeito dife-
no decurso da experiência – o espectador rido; assim como diferida seria, certamente,
era deixado a sós com o convite tácito para a resolução de uma experiência artística vi-
desenvolver associações puramente sub- vida a dois tempos: o tempo da ficção e o
jectivas entre os pares expostos. tempo da descoberta da ficção.
Porquanto não chegasse ao final da ex-
posição – cujo percurso fora estrategica- A exposição que João Penalva agora apre-
mente definido por João Penalva – a maioria senta no Chiado 8 partilha com A Colecção
dos visitantes vivê-la-ia nos termos em que Ormsson as suas duas características basi-
ela lhe fora apresentada. Sob a alçada insti- lares: a conversão de uma grande parte da
tucional do Museu da Cidade, aqueles eram actividade artística em prática curatorial e a
os objectos coleccionados pelo misterioso transformação de uma experiência exposi-
Loftur Ormsson, e o papel de João Penalva tiva em obra. Porém, ao passo que A Colec-
ter-se-ia circunscrito à cuidadosa apresen- ção Ormsson se apropriava das estruturas
tação daquelas peças e ao rigoroso agen- e do modelo que actualmente conotamos
ciamento das micronarrativas que delas com a exposição de artes visuais, em Pav-
emanavam. Um trabalho eminentemente lina e o Dr. Erlenmeyer a experiência que se
curatorial, portanto. Apenas no final da vi- vê simulada é a de um protocolo cultural
sita, e por intermédio da eventual leitura da caído em desuso.
lista de obras – também presente no es- De facto, ao entrar na primeira sala de
paço –, poderia o visitante aperceber-se Pavlina e o Dr. Erlenmeyer o espectador é
de que as peças provinham, de facto, de um confrontado com a replicação de um apa-
vasto conjunto de colecções privadas e ins- rato que se tornou cada vez mais raro nas
titucionais, dado que lhe indicaria que toda cidades contemporâneas: a exposição de
a estrutura sobre a qual se alicerçava a ex- foyer. Em virtude das profundas transforma-
posição – Ormsson, a sua colecção e a ló- ções que os circuitos e os equipamentos
gica dos pares – era fruto de uma ficção. culturais conheceram nas últimas décadas,
Evidentemente, para que esta revelação a vivência desta tipologia de exposição é
se processasse, não só era necessário ler a hoje um privilégio reservado apenas aos vi-
referida lista de obras, mas também tomá-la sitantes de um muito restrito número de tea-
como verdadeira, em detrimento das res- tros e cinemas no nosso país. No espaço do
tantes informações expressas. Mais que foyer – habitualmente um hall contíguo à
isso, era preciso reconhecer a forma como sala de espectáculos propriamente dita – é
todos os instrumentos que assistiam à expectável encontrar-se uma panóplia de
construção daquela exposição – desde o materiais alusivos à obra em cartaz – desde
seu título aos textos de parede, passando textos críticos a biografias, fotografias e car-
pela definição de um único percurso possí- tazes, objectos promocionais e curiosidades
19
várias – cujo objectivo mais directo é a intro- sentes nos textos, para além de estabelecer
dução do espectador ao universo da obra, perturbadoras disrupções na leitura, é o
quer seja no que respeita ao seu conteúdo, elemento através do qual se desfaz a apa-
quer seja no que concerne à história da sua rente posição subsidiária destes para com
feitura ou dos seus intervenientes. A distri- os objectos expostos na vitrina. Ao deixar
buição destes materiais pelo foyer é habi- perfeitamente manifestas as incongruên-
tualmente discricionária e frequentemente cias dos textos (algumas delas risíveis), o
livre das convenções expositivas mais orto- artista força uma cisão que contribui para
doxas. Vitrinas, placards, bancas ou mesmo que os encaremos não como adendas expli-
mobiliário doméstico são igualmente utiliza- cativas ou didácticas, mas como objectos
dos como suportes, configurando disposi- em si mesmos: intervenientes de pleno di-
ções fragmentárias e informais que reito na relação cumulativa que se estabe-
convidam a percursos arbitrários. lece entre todos os elementos e que é, em
O foyer de Pavlina e o Dr. Erlenmeyer recu- última instância, o suporte estrutural de
pera muitos destes dispositivos e deste ima- uma narrativa intermedia13.
ginário, incluindo a sua carga anacrónica. Já sem espaço para grandes equívocos,
Efectivamente, à apurada estratégia cénica este foyer revela-se como o lugar de uma gi-
desenvolvida pelo artista presidiu a opção gantesca colagem. A nivelação e os méto-
deliberada por um conjunto de característi- dos associativos que nele ocorrem trazem à
cas estéticas e formais capazes de nos memória obras como Coleccionador, peças
transportar para o tempo em que alcatifas e estratégias anteriormente aplicadas pelo
e veludos, cores escuras e luzes soturnas artista – a mais evidente das quais será o
foram sinónimo de uma amplamente aceite desdobramento do mecanismo de citação
ideia de sofisticação e conforto. Mais que presente na cópia de An Oak Tree, aqui im-
uma mera operação de acerto estilístico, a pulsionado pela colocação de um frasco
cuidadosa recriação deste espaço é o meio “erlenmeyer” numa das prateleiras da vi-
pelo qual se produz a suspensão de reali- trina –, ou mesmo os processos alegóricos
dade que sustenta a complexa ficção que desenvolvidos em Café. Agora, como então,
João Penalva desenvolveu para o Chiado 8. é por intermédio da justaposição dialéctica
Dominado por uma impositiva vitrina, o de fragmentos, bem como da apropriação e
espaço deste foyer é populado por uma mi- dispersão dos seus sentidos originais14, que
ríade de objectos que remetem para um a experiência deste conjunto de elementos
universo ambíguo. Girando em torno das fi- escapa a quaisquer leituras determinísticas
guras da naftalina e do Dr. Emil Erlenmeyer – que se pudessem procurar numa eventual
reputado químico alemão do século XIX que, intenção do artista. Não que João Penalva
entre outros méritos, terá sido o responsá- se demita ou pretenda eclipsar a sua função
vel pela composição daquela substância – neste estado de coisas. Ao invés, e como
aqui concorrem imagens, textos e artefac- nota Mark Gisbourne, os espaços por si
tos das mais diversas origens e proveniên- criados permitem uma “fluida liberdade de
cias, cujas relações são orientadas por movimentos dentro dos parâmetros pré-
correspondências numéricas, e a partir dos -ordenados do projecto que, contudo, terá
quais se estabelece uma narrativa fraccio- de permanecer sempre em aberto para que
nária e, a espaços, incongruente. O cariz possa ser completado por cada espectador
absurdo de algumas das passagens pre- individualmente”15.
20
Talvez nunca tão claramente como agora carácter modelar, Pavlina é um espelho a re-
nos possamos aperceber do alcance que a flectir a expressão da autonomia.
noção de intervalo detém na sustentação da Retrospectivamente, é muito claro que
experiência proposta por João Penalva. Por- Pavlina e o Dr. Erlenmeyer é fruto de um crite-
que, no âmbito das operações sinestésicas rioso trabalho de equilíbrio. O seu sucesso
e cumulativas que governam a interacção procede de uma cuidadosa articulação
entre os elementos desta exposição, é entre presenças e ausências, estímulos e
exactamente no intervalo que entre eles omissões, remissões e envios; a sua uni-
persiste, no espaço vago entre dois estímu- dade depende intimamente do cálculo pre-
los, que se funda o lugar essencial da sub- ciso da distância entre fragmentos, da justa
jectividade do espectador. Neste contexto, o medida da sua contaminação, e da negocia-
intervalo é, simultaneamente, o instrumento ção sensível dos seus respectivos pesos na
que faz deflagrar a nossa capacidade pro- estrutura narrativa. Nenhum pormenor foi
jectiva e a oportunidade que João Penalva deixado ao acaso, senão aqueles que lhe
nos lega para a produção de sentido. pertencem por inerência, e que participam
Estas noções vêem-se reforçadas pela no jogo reactivo em que o artista investe e
natureza da peça a que se subordina a ex- cujas regras determinou. Na pele do curador,
posição de foyer: Pavlina (2007). Apresen- João Penalva não subtraiu a sua função
tada num enquadramento que se aproxima como artista; pelo contrário, apropriou-se
de uma sala de cinema de pequena escala, de um sistema e de uma expectativa para
esta peça recorre ao vídeo, à projecção de fazer obra, certo de que o veículo para a sua
diapositivos e ao som para propor uma ex- partilha subsiste na forma de um processo
periência compósita que tem por base o re- heurístico, sólida e magistralmente anco-
lato de um sonho, cuja personagem principal rado na mecânica da sugestão.
é uma traça. Nas palavras de Pavlina – uma
entomologista reformada que participa num
estudo científico intitulado “Os sonhos na
população reformada – estudos de caso” –
pode o espectador ler, não só o relato do
sonho em si mesmo, mas uma menção ob-
jectiva ao fenómeno que, de entre todos os
que habitam o nosso imaginário comum,
mais directamente associamos à ideia de
absurdo, de inconclusividade, mas também
de uma intensa liberdade face às conven-
ções da lógica e da racionalidade. O reino do
inconsciente, foi-nos dito, é o espaço licen-
cioso da imaginação; e mais do que a análise
do conteúdo do sonho ou do esforço inter-
pretativo que ele possa impulsionar, é a ideia
de uma subjectividade perfeitamente exi-
mida da sua relação funcional com a reali-
dade exterior, aquela que mais profunda e
imediatamente retemos desta peça. No seu
22
1 9
Bruce W. Ferguson, “Exhibition rhetorics: material speech and Para uma descrição detalhada dos componentes desta
utter sense”, in Reesa Greenberg, Bruce W. Ferguson, Sandy instalação, ver Pedro Lapa, Op. Cit., pp. 50-61.
Nairne (eds.), Thinking About Exhibitions, New York: Routledge,
2003, pp. 178-179. 10
“Considerei que em An Oak Tree tinha desconstruído a obra
2 de arte de forma a revelar o seu elemento mais básico e
A respeito do alcance desta concepção, ver “João Penalva essencial: a crença; isto é, a convicção do artista na sua com-
em conversa com Ruth Rosengarten”, in José Sommer petência para falar e a disponibilidade do espectador para
Ribeiro et. al., João Penalva, cat. exp., Lisboa: Centro de Arte aceitar o que ele tem para dizer. Por outras palavras, a crença
Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, s. p. está na base de toda a nossa experiência de arte [...].” Michael
Craig-Martin, Landscapes, cat. exp., Dublin: Douglas Hyde
3 Gallery, 2001, pp. 19-20.
Neste plano, destaque para a colaboração de João Penalva
com as companhias de Pina Bausch e Gerhard Bohner, bem 11
como a parceria que estabeleceu com o coreógrafo Jean A este respeito, vale a pena acrescentar que um dos mais ex-
Pomares, no âmbito de cujas actividades desenvolveu fun- tremos e provocatórios exemplos desta estratégia pode ser
ções de cenógrafo, aderecista ou figurinista. encontrado no famoso retrato da galerista Iris Clert, elaborado
em 1961 por Robert Rauschenberg – uma outra referência im-
4 portante para João Penalva –, e que consistia num telegrama
João Penalva, “Diálogo entre João Fernandes e João Penalva”, contendo o texto “This is a portrait of Iris Clert if I say so.”
in João Penalva, cat. exp., Porto: Fundação de Serralves, (Isto é um retrato de Iris Clert se eu assim o afirmar).
2005, p. 12.
12
5 João Penalva, “Portanto, continuas a não acreditar em mim...
Pedro Lapa, “João Penalva, repetition against the law”, in Uma conversa entre João Penalva e Andrew Renton”, in João
João Penalva, Lisboa: Ministério da Cultura – Instituto de Arte Penalva, cat. exp., Lisboa: Centro Cultural de Belém, 1999, p. 59.
Contemporânea, 2001, pp. 24-25.
13
6 Aqui seguimos o sentido que Dick Higgins avançou para este
Sobre as questões de que se reveste a prática coleccionista, termo no texto “Intermedia”, publicado em 1965 no primeiro
sugere-se a consulta de Susan Pearce, On Collecting – An In- número de Something Else Newsletter. Consultável em
vestigation Into Collecting in the European Tradition, London/ http://muse.jhu.edu/journals/leonardo/v034/34.1higgins.html
New York: Routledge, 1995, e Joseph Alsop, The Rare Art Tradi-
tions – The History of Art Collecting and its Linked Phenomena 14
Wherever These Have Appeared, New York: Princeton Univer- Cf. Benjamin Buchloh, “Allegorical procedures: appropriation
sity Press, Harper&Row Publishers, 1982. and montage in contemporary art”, in Artforum, Setembro,
1982, pp. 43-56.
7
As manchas de Rorschach são a base do teste projectivo 15
desenvolvido por Hermann Rorschach no início do século XX, Mark Gisbourne, “In the absense of Absalom”, in João Penalva,
cujo objectivo é traçar um perfil da dinâmica psicológica do Lisboa: Ministério da Cultura – Instituto de Arte Contemporâ-
indivíduo através da análise das suas respostas quando nea, 2001, p. 149.
confrontado com o carácter ambíguo das referidas manchas.
Mais informações em www.rorschach.com.
8
Exposição comissariada por Andrew Renton e apresentada
na Fábrica de Moagens Harmonia, no Porto.
24
Catálogo
Texto
Bruno Marchand
Desenho
Pedro Falcão
Proporção
[A5] – 14,8 × 21 cm
Tipo de letra
New Rail Alphabet; Verdigris
Fotografia
DMF, Lisboa [pp. 4, 15]
Coordenação editorial
Rosário Sousa Machado (Culturgest)
Revisão de provas
am edições / antónio alves martins
Impressão e acabamento
Gráfica Maiadouro
Tiragem
1000 exemplares
ISBN
978-972-769-074-9
16.04
25.06.2010
João Penalva nasceu em Lisboa, em 1949. (1999), Frac Languedoc-Roussillon,
Vive e trabalha em Londres desde 1976, ano Montpellier (1999), Camden Arts Centre,
em que ingressou na Chelsea School of Art, Londres (2000), Contemporary Art Centre,
onde se licenciou e concluiu o Mestrado Vilnius (2000), Galerie im Taxispalais,
em Belas-Artes (1976-1981). É professor na Innsbruck, (2000), Tramway, Glasgow
Academia de Arte de Malmö, Universidade (2000), fig-1, Londres (2000), Rooseum,
de Lund, Suécia, desde 2002. Foi artista Malmö (2002), Institute of Visual Arts,
convidado do programa de residências da Milwaukee (2003) e The Power Plant,
DAAD, Berlim, em 2003 e 2004. Representou Toronto (2003), Museu de Serralves, Porto
Portugal na XXIII Bienal Internacional de (2005), Ludwig Museum, Budapeste (2005),
São Paulo (1996), e na XLIX Biennale di Irish Museum of Modern Art, Dublin (2006),
Venezia (2001). Expôs na I Melbourne DAAD Gallery, Berlim (2007), Mead Gallery,
International Biennial (1999), na Berlin Biennale University of Warwick, Coventry (2007),
2 (2001) e na Biennale of Sydney (2002). Solar – Galeria de Arte Cinemática,
As suas exposições individuais incluem: Vila do Conde (2008), Lunds Konsthall,
Galeria de Arte Moderna, SNBA, Lisboa Lund, (2010). João Penalva é representado
(1983), Cooperativa Árvore, Porto (1984), pela Galeria Filomena Soares, Lisboa,
CAM, Fundação Calouste Gulbenkian, Galerie Thomas Schulte, Berlim, Barbara
Lisboa (1990), Museu da Cidade, Lisboa Gross Galerie, Munique, e Simon Lee
(1997), Centro Cultural de Belém, Lisboa Gallery, Londres.
Pavlina e o Dr. Erlenmeyer