Jpenalva Chiado8

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João Penalva

Chiado 8 – Arte Contemporânea, inaugurado em Janeiro de 2002, é um projecto da Companhia de Seguros Fidelidade Mundial
que, aproveitando a localização privilegiada de um dos seus edifícios centrais, decidiu participar nas iniciativas de reabilitação
do Chiado através da criação de um espaço de divulgação da arte contemporânea.
Pavlina e o Dr. Erlenmeyer
Pavlina e o Dr. Erlenmeyer, 2010
Pavlina, 2007 (projecções sincronizadas de diapositivos e
filme super 16mm transferido para dvd, 9:16, cor, som,
10’16’’); retrato do Dr. Emil Erlenmeyer, retirado da
Wikipedia; Dr. Erlenmeyer Morto, 1957 (óleo sobre tela da
autoria de Alexander von Baeyer, Londres); Cashmere Suite,
2009 (fotografias a preto e branco); Petula, Monique, Priscilla,
May, Eva, Margot e Julie (moldes de chapéu da Maison Riva-
-Marchesi, Paris, colecção Outono-Inverno de 1927); lâmpada
de farol osram de 50.000 watts, na sua embalagem original,
década de 1960; reclame, n.d. (impressão tipográfica sobre
papel); flexografias manuais sobre cartão; alcatifa, mobiliário,
tinta, giz, mdf, vidro, napa, veludo, prateleiras, esponja,
papéis impressos, impressões digitais e molduras.
A experiência expositiva e a mecânica Bruno Marchand 5
da sugestão – um itinerário

“O sistema expositivo organiza as suas repre- uma determinada dinâmica interna – o foco
sentações de forma a maximizar todas as ou o substrato de uma exposição – e, por
instâncias que o constituem: da sua arqui- outro, a estabilização e a manutenção de
tectura, que é sempre política, à coloração um modelo cultural profundamente anco-
das paredes, que é sempre psicologica- rado na economia discursiva das institui-
mente significativa; do carácter didáctico ções e suas políticas.
das tabelas (mesmo, ou especialmente, na- É já longa a história do envolvimento dos
quilo que ocultam) às exclusões artísticas, artistas na manipulação dos mecanismos
que são sempre marcadamente ideológicas; que compõem e suportam as exposições
da sua iluminação sempre dramática (e, por que visitamos. Suplantando os contributos
isso mesmo, um factor importante no esta- que artistas como Abraham van der Doort,
belecimento de narrativas e na encenação El Lissitzky ou Marcel Duchamp trouxeram
do desejo) aos dispositivos de segurança, ao campo da actividade curatorial como
que são sempre uma forma de manipulação hoje a entendemos, é no âmbito de propos-
social (por exemplo, a opção entre câmaras tas tão distintas como as que foram avança-
de vigilância ou a presença de seguranças); das pelo movimento dada, o minimalismo, a
das premissas curatoriais, que são sempre arte conceptual, o happening ou a chamada
dogmáticas, às brochuras, catálogos e ví- crítica institucional que o acto expositivo,
deos, sempre orientados por uma vocação em todas as suas valências, é entendido
pedagógica, e até mesmo à estética que como um objecto em si mesmo e, conse-
adopta, sempre especificamente perten- quentemente, passível de ser convertido
cente ao lugar e ao momento em que a expo- num medium artístico de pleno direito.
sição é apresentada, em detrimento dos A experiência expositiva, os seus meca-
contextos históricos e produtivos que viram nismos e os dispositivos que a sustentam,
nascer os objectos expostos.” 1 têm merecido uma atenção particular por
parte de João Penalva (Lisboa, 1949) nas últi-
Se dúvidas houvesse sobre a complexidade mas duas décadas. Algumas das obras que
dos sistemas expositivos, a descrição produziu durante este período apropriam-se
quase pornográfica que Bruce W. Ferguson do aparato expositivo para estabelecer con-
elabora sobre a mecânica que lhes subjaz textos onde se insinuam narrativas, cuja
rapidamente as faria dissipar. De facto, não operatividade depende tanto da anuência
existe tal coisa como uma exposição ino- ou da cumplicidade do espectador para com
cente. Todo e qualquer acto expositivo é um o que lhe é apresentado, quanto da autono-
elaborado exercício de indução, cujo su- mia ou da capacidade deste para assumir a
cesso depende, em grande medida, e na responsabilidade pela condução da su a pró-
maioria das ocasiões, da sua capacidade pria experiência. Nestas obras – de resto,
para se tornar absolutamente transparente como acontece em todas as exposições –,
aos olhos do espectador. Resultando de um os silêncios, as ausências e os intervalos
apurado sentido crítico em relação a uma desempenham uma função tão decisiva
parte significativa das instâncias envolvidas como aquela levada a cabo pelos objectos
no agenciamento de uma exposição, a enu- que as compõem e nos quais se funda a sua
meração de Ferguson é reveladora do modo realidade material, mas também simbólica e
como estas se prestam a uma manipulação estética. Pavlina e o Dr. Erlenmeyer assume-
que serve, por um lado, a construção de -se como o último desenvolvimento numa
6

linhagem de obras onde a cuidadosa or- narrativa, não existe enredo, mas isso não
questração de todos os elementos expositi- significa que não exista emoção – essa está
vos, a par da criteriosa gestão do equilíbrio lá, a dos bailarinos a fazer o que fazem: dan-
entre o que se torna explícito e o que se çar; e aquilo que existe entre o espectador
deixa implícito, entre o que se revela e o que e o intérprete.”4
se oculta, sustentam a construção de com- A influência do programa de Cunningham
plexos enredos onde ficção e realidade con- na obra de João Penalva não se resumia a
vivem e se contaminam mutuamente. uma questão meramente tutelar. Os seus
efeitos concretos podiam ser observados
Uma possível genealogia desta vertente de na forma como a aplicação de um vasto
trabalho na obra de João Penalva leva-nos leque de expedientes técnicos e a conjuga-
a 1990, ano em que o artista apresenta um ção de recursos tão díspares como elemen-
conjunto de pinturas numa exposição que tos decorativos, padrões geométricos,
teve lugar no Centro de Arte Moderna da estilizações de objectos, marcações ges-
Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. tuais, superfícies abstractas ou motivos
Tendo concentrado toda a sua produção no caligráficos não implicavam, contudo, que
campo da pintura desde a conclusão dos o artista deixasse de promover também, e
seus estudos na Chelsea School of Art, no através de hábeis jogos de disjunção e con-
início dos anos de 1980, as obras que de- traste, uma muito consciente nivelação dos
senvolveu durante essa década assumiam signos que na sua pintura convergiam e,
o carácter de repositório das mais variadas com ela, a consequente transformação do
expressões e tendências da história da pin- espaço pictórico num campo livre de hierar-
tura moderna. Nas suas composições con- quias materiais, formais e perceptivas.
viviam, sem quaisquer pruridos, elementos Como nota Pedro Lapa num importante
figurativos e abstractos, igualmente filtra- texto sobre o artista, nestas obras os signos
dos por uma deliberada concepção antinar- pictóricos são entendidos “não como unida-
rativa e anti-simbólica do exercício des independentes mas como elementos
pictórico2, cuja origem se encontrava na in- de um sistema que promove diálogos entre
fluência que o coreógrafo norte-americano pinturas distintas ou mesmo entre imagens
Merce Cunningham exercia sobre o pro- distintas dentro da mesma pintura”5.
grama artístico de João Penalva. De facto, Na referida exposição – exemplar pelo
a objectividade, a racionalidade e o estatuto quanto revelava das estratégias pictóricas
concreto que este procurava para as suas e das opções programáticas da pintura de
pinturas radicava ainda na herança seminal João Penalva – uma obra ganhava destaque
que o trabalho daquele coreógrafo lhe havia pelo modo como contrastava com as restan-
legado durante os anos em que João Pe- tes. Intitulada Coleccionador (1990), assumia
nalva desenvolveu uma carreira como baila- a forma de um painel composto por 14 telas
rino profissional3: “Como sabe, depois do de diferentes formatos que, agrupadas e so-
ballet clássico, estudei a técnica Cunning- brepostas, desenhavam uma forma irregular,
ham e, hoje em dia, diria que foi esse sis- tanto em termos da sua expressão bidimen-
tema racional que veio marcar o resto da sional como tridimensional. Igualmente colo-
minha vida de artista. Para Cunningham, ridas num tom castanho-chocolate, e sem
a dança é simplesmente movimento no es- qualquer outra inscrição nas suas superfí-
paço e no tempo, e nada mais. Não existe cies, os únicos elementos que abalavam a
11

estabilidade deste monocromo composto quais se contavam o curador Andrew Ren-


eram pequenas manchas de tinta branca e ton e as artistas Paula Rego e Ana Jotta –
encarnada assinalando a localização das havia produzido versões das referidas man-
chapas que possibilitavam a aglutinação das chas, às quais se juntavam as dez em que se
telas e, em última instância, a estrutura e a baseia o referido teste, e outras sete da au-
estabilidade de todo o conjunto. Um duplo toria do próprio João Penalva. Ao contrário
movimento parecia despontar desta obra: das restantes, que se encontravam expos-
por um lado, a redução do programa pictó- tas no espaço da galeria, estas sete pinturas
rico de João Penalva à utilização da mesma faziam-se representar por intermédio de
cor e à aplicação do mesmo tratamento da fotografias a preto e branco, junto às quais
superfície para todas as 14 telas sublinhava figurava uma tabela informando que as mes-
a noção de que, uma vez integrados numa mas tinham sido removidas da exposição e
colecção, elementos díspares são alvo de que para mais informações deveria o visi-
uma erosão da sua identidade própria a tante dirigir-se à Galeria Nasoni, do outro
favor da identidade colectiva que passam a lado da rua. Àqueles que se dispusessem a
integrar6; por outro, a sinalização das chapas seguir a inusitada sugestão, ser-lhes-ia indi-
de união fazia concentrar a atenção do es- cado que as pinturas estavam acessíveis
pectador na natureza artificial do gesto que num outro andar da galeria, onde as viriam
força a coexistência destes elementos, bem a encontrar rodeadas do aparato fotográfico
como no intervalo que os separa e que é, que fora utilizado para as reproduzir.
precisamente, o espaço onde se forma o De entre as múltiplas questões levanta-
substrato identitário de qualquer colecção. das em 7 Pinturas, encontravam-se muito
O contraste entre Coleccionador e as claramente enunciadas as problemáticas
restantes obras desta exposição ganhava das operações interpretativa e projectiva
maior expressão por via da economia pictó- suscitadas pelo confronto do espectador
rica que a caracterizava. Contrariamente ao com estruturas visuais estrita e declarada-
que acontecia com as restantes, esta era mente ambíguas, mas também as temáti-
dotada de um aparente mutismo, de uma cas do acaso implícita na produção das
quase total ausência de referentes, pare- manchas, do estatuto do documento, da
cendo querer anular a sua (eventual) função proactividade do visitante na resposta aos
declarativa. O desconforto ou a perplexidade desafios que lhe são apresentados, da dilui-
que este tipo de propostas ainda suscita de- ção, fragmentação ou dispersão autoral, e
corre de uma muito enraizada expectativa mesmo da conversão de uma parte signifi-
que prevê a experiência artística como um cativa da intervenção artística em prática
fenómeno isento de qualquer manobra pro- curatorial. Rompendo com a circunscrição
jectiva – facto que assumia uma relevância às estratégias de construção pictórica que
particular numa outra exposição, desta feita o haviam ocupado na década anterior, esta
realizada na Galeria Atlântica, no Porto, em exposição era já sintomática das profundas
1993. Intitulada 7 Pinturas, esta exposição alterações que o trabalho de João Penalva
era composta por um largo conjunto de viria a conhecer daí em diante.
obras que apresentavam variações das
célebres manchas do teste de Rorschach 7. No mesmo ano de 1993, João Penalva parti-
Respondendo a um repto lançado pelo cipou nas II Jornadas de Arte Contemporâ-
artista, um grupo de pessoas – entre as nea, no Porto. Para esta exposição fora-lhe
12

reservado o espaço da antiga Alfândega da assumia uma relevância determinante no


cidade – um gigantesco armazém que alber- seu percurso enquanto veículo para a pro-
gava os arquivos de anos de intenso labor dução de obra.
burocrático – para o qual o artista desenvol- Por seu lado, Café tomou a forma de um
veu as obras Arquivos e Café. Esta seria a lugar habitável. Prolongando o café da Al-
primeira vez em que João Penalva aplicaria fândega para um corredor adjacente, a ins-
estratégias que partem da especificidade e talação emulava aquele espaço através da
da história do lugar para desenvolver um ampliação das suas mesas e balcão origi-
conjunto extraordinariamente diverso de in- nais, aos quais se juntavam, emoldurados
tervenções que suportam ou sugerem a e expostos nas paredes, cartazes alusivos
presença de narrativas – porventura a maior às II Jornadas de Arte Contemporânea e a
de todas as rupturas com o programa que A Pasta de Walter Benjamin8, diversos docu-
aplicava no campo da pintura. Na primeira mentos, fotografias, emblemas, cartas de
destas obras, os próprios arquivos da Alfân- jogar e outros objectos que pareciam reme-
dega (uma outra tipologia de colecção) ter para a história da utilização do edifício,
foram abordados pelo artista como a maté- bem como uma descrição textual dos mate-
ria base para um trabalho que consistiu, em riais envolvidos na construção desta obra
larga medida, na redistribuição do mobiliário (em vinil autocolante sobre a parede) e um
e das inúmeras pilhas de ofícios e formulá- televisor transmitindo a captação directa do
rios que preenchiam o espaço. Pontuada relógio presente na fachada do edifício (em-
pela introdução de elementos discretos que bora com um ligeiro atraso)9. Resultado evi-
indiciavam a presença de actividade recente dente de uma aturada investigação levada a
(uma bacia com água e uma toalha, por cabo pelo artista, a memorabilia reunida em
exemplo), esta intervenção via o pesado si- Café proclamava o seu próprio estatuto de
lêncio de um arquivo morto ser entrecortado eleição dentro de um vasto leque de opções
por breves assomos de humanidade – a ma- que ficava por mostrar, funcionando aque-
nifestação subtil de uma história em curso, les objectos, à primeira vista, como instân-
sem princípio, objectivo, nem fim determina- cias ilustrativas de uma narrativa que,
dos. Condicionando a circulação e barrando embora sugerida, não deixava de permane-
o acesso a diversos espaços, a situação de- cer oculta. Não seriam, portanto, inocentes
senhada pelo artista forçava o espectador as justaposições que o artista forçou entre
a experienciar a instalação a partir de uma documentos e emblemas, fazendo colidir a
distância calculada, facto que o afastava de suposta condição probatória dos primeiros
uma vivência espacial efectiva, relegando-o com a qualidade alegórica dos segundos,
para uma pura experiência visual. Como se assim fundando uma dialéctica que oscilava
nessa interdição o espaço se tornasse na entre ambos os pólos.
sua própria imagem. Esta ideia era reforçada Neste ponto, importa referir a forma como
pela presença de um livro à entrada da ins- a presença, naquele espaço, de um copo
talação, no qual figurava um ensaio visual de água assente sobre uma prateleira inusi-
desenvolvido a partir de fotografias a preto e tadamente colocada acima da altura da
branco de pormenores ou tomadas de vista cabeça, remetia muito claramente para a
do espaço. Não era a primeira vez que João célebre obra de 1973 do artista britânico
Penalva recorria a esta tecnologia, mas seria Michael Craig-Martin, intitulada An Oak Tree
certamente a primeira em que a fotografia (Um Carvalho, na tradução portuguesa).
14

De facto, mais que uma mera semelhança, Penalva intervém estabelecendo nexos,
esta peça era a cópia exacta da obra de provocando desdobramentos e introdu-
Craig-Martin – cuja conivência, aliás, foi es- zindo novos elementos. Deste exercício re-
sencial para o rigor desta operação – pese sultam frequentemente elaboradas
embora a supressão deliberada de uma das instalações, onde instâncias dos mais di-
suas partes. Na versão original da referida versos meios interagem e se contaminam,
obra, ao copo e à prateleira é acrescentado estabelecendo um território ambíguo entre
um texto, na forma de diálogo, no qual se a realidade e a ficção.
ensaia uma argumentação que, em última Em A Colecção Ormsson Apresentada por
instância, pretende pôr a nu o sistema de João Penalva, exposição que o artista reali-
crença que sustenta toda e qualquer expe- zou no Pavilhão Branco do Museu da Cidade
riência artística10. Baseada no conceito de de Lisboa em 1997, estas estratégias foram
transubstanciação – fenómeno pelo qual aplicadas numa dimensão inédita. Logo nos
tomamos um determinado corpo por outro momentos iniciais da visita, e através de um
(isto é, a hóstia pelo corpo de Cristo ou, no texto presente na primeira sala, era apre-
caso em análise, um copo de água numa sentada ao espectador uma nota biográfica
prateleira por um carvalho) – a evocação do coleccionador a que o título da exposição
desta peça não só introduzia discretamente aludia – o islandês Loftur Ormsson – e onde
o mecanismo da citação como reforço da se lia o seguinte: “Coleccionador desde os 17
produção de sentido na intervenção de João anos, a sua colecção viria a somar, segundo
Penalva, como instalava também uma dú- as suas próprias contas, 987 objectos,
vida estrutural que apontava para o carác- abrangendo artesanato, pintura, escultura,
ter volátil e arbitrário das noções de desenhos arquitectónicos e de engenharia,
verdade, objectividade ou representativi- manuscritos, fotografias, livros, mobiliário,
dade, uma vez enquadradas no âmbito de etc. Como coleccionador, Loftur Ormsson
processos artísticos11. distingue-se dos demais pela peculiaridade
As questões equacionadas em Arquivos do propósito que o levava a coleccionar: o
e Café, a par dos métodos aplicados pelo desejo de, para cada objecto adquirido, lhe
artista para a sua exploração, marcavam encontrar o seu par.”
um definitivo virar de página na sua prática. Durante o percurso pela exposição, o vi-
Embora não tivesse abandonado a pintura, sitante era confrontado, então, com vários
o trabalho que João Penalva desenvolveu a desses pares, escolhidos e dispostos por
partir de 1993 pautou-se pela abertura a um João Penalva ao longo do espaço, e cuja
leque cada vez mais abrangente de meios única característica comum era o facto de
(sejam eles a fotografia, o vídeo ou a palavra um ou ambos os objectos terem sido adqui-
escrita) e por uma diversificação de estraté- ridos em Portugal. Entre estes pares encon-
gias processuais com vista à criação de si- travam-se um conjunto de alcatruzes
tuações de pendor narrativo. A sua portugueses do século XVI e uma peça es-
metodologia passou também a incorporar cultórica de Pedro Cabrita Reis; uma gra-
extensas fases de pesquisa sobre referen- vura flamenga do século XVIII, representando
tes de base, nas quais são coligidos docu- uma vista de Lisboa durante o terramoto de
mentos, memórias, relatos, histórias e 1755, e uma pintura de Harold Rippingham
outros materiais que delimitam um amplo retratando Alfred Wegener, o primeiro pro-
universo informal, no interior do qual João ponente da teoria da deriva continental; ou
17

um papel dactilografado de Hanne Darboven vel para o espectador – haviam sido mani-
e um cartucho de papel com uma conta de pulados pelo artista com o exclusivo propó-
somar inscrita na superfície, cuja autoria era sito de sustentar uma dupla ficção: a ficção
atribuída à merceeira D. Dolores. Sem que da colecção Ormsson e a ficção da activi-
fossem revelados os mecanismos pelos dade curatorial. O facto de esta obra poder
quais Ormsson havia consagrado aqueles “reinscrever a dúvida onde a instituição
pares – o que evitava que quaisquer veleida- funciona como entidade que garante a cer-
des didácticas ou instrutivas se imiscuíssem teza”12 seria possivelmente um efeito dife-
no decurso da experiência – o espectador rido; assim como diferida seria, certamente,
era deixado a sós com o convite tácito para a resolução de uma experiência artística vi-
desenvolver associações puramente sub- vida a dois tempos: o tempo da ficção e o
jectivas entre os pares expostos. tempo da descoberta da ficção.
Porquanto não chegasse ao final da ex-
posição – cujo percurso fora estrategica- A exposição que João Penalva agora apre-
mente definido por João Penalva – a maioria senta no Chiado 8 partilha com A Colecção
dos visitantes vivê-la-ia nos termos em que Ormsson as suas duas características basi-
ela lhe fora apresentada. Sob a alçada insti- lares: a conversão de uma grande parte da
tucional do Museu da Cidade, aqueles eram actividade artística em prática curatorial e a
os objectos coleccionados pelo misterioso transformação de uma experiência exposi-
Loftur Ormsson, e o papel de João Penalva tiva em obra. Porém, ao passo que A Colec-
ter-se-ia circunscrito à cuidadosa apresen- ção Ormsson se apropriava das estruturas
tação daquelas peças e ao rigoroso agen- e do modelo que actualmente conotamos
ciamento das micronarrativas que delas com a exposição de artes visuais, em Pav-
emanavam. Um trabalho eminentemente lina e o Dr. Erlenmeyer a experiência que se
curatorial, portanto. Apenas no final da vi- vê simulada é a de um protocolo cultural
sita, e por intermédio da eventual leitura da caído em desuso.
lista de obras – também presente no es- De facto, ao entrar na primeira sala de
paço –, poderia o visitante aperceber-se Pavlina e o Dr. Erlenmeyer o espectador é
de que as peças provinham, de facto, de um confrontado com a replicação de um apa-
vasto conjunto de colecções privadas e ins- rato que se tornou cada vez mais raro nas
titucionais, dado que lhe indicaria que toda cidades contemporâneas: a exposição de
a estrutura sobre a qual se alicerçava a ex- foyer. Em virtude das profundas transforma-
posição – Ormsson, a sua colecção e a ló- ções que os circuitos e os equipamentos
gica dos pares – era fruto de uma ficção. culturais conheceram nas últimas décadas,
Evidentemente, para que esta revelação a vivência desta tipologia de exposição é
se processasse, não só era necessário ler a hoje um privilégio reservado apenas aos vi-
referida lista de obras, mas também tomá-la sitantes de um muito restrito número de tea-
como verdadeira, em detrimento das res- tros e cinemas no nosso país. No espaço do
tantes informações expressas. Mais que foyer – habitualmente um hall contíguo à
isso, era preciso reconhecer a forma como sala de espectáculos propriamente dita – é
todos os instrumentos que assistiam à expectável encontrar-se uma panóplia de
construção daquela exposição – desde o materiais alusivos à obra em cartaz – desde
seu título aos textos de parede, passando textos críticos a biografias, fotografias e car-
pela definição de um único percurso possí- tazes, objectos promocionais e curiosidades
19

várias – cujo objectivo mais directo é a intro- sentes nos textos, para além de estabelecer
dução do espectador ao universo da obra, perturbadoras disrupções na leitura, é o
quer seja no que respeita ao seu conteúdo, elemento através do qual se desfaz a apa-
quer seja no que concerne à história da sua rente posição subsidiária destes para com
feitura ou dos seus intervenientes. A distri- os objectos expostos na vitrina. Ao deixar
buição destes materiais pelo foyer é habi- perfeitamente manifestas as incongruên-
tualmente discricionária e frequentemente cias dos textos (algumas delas risíveis), o
livre das convenções expositivas mais orto- artista força uma cisão que contribui para
doxas. Vitrinas, placards, bancas ou mesmo que os encaremos não como adendas expli-
mobiliário doméstico são igualmente utiliza- cativas ou didácticas, mas como objectos
dos como suportes, configurando disposi- em si mesmos: intervenientes de pleno di-
ções fragmentárias e informais que reito na relação cumulativa que se estabe-
convidam a percursos arbitrários. lece entre todos os elementos e que é, em
O foyer de Pavlina e o Dr. Erlenmeyer recu- última instância, o suporte estrutural de
pera muitos destes dispositivos e deste ima- uma narrativa intermedia13.
ginário, incluindo a sua carga anacrónica. Já sem espaço para grandes equívocos,
Efectivamente, à apurada estratégia cénica este foyer revela-se como o lugar de uma gi-
desenvolvida pelo artista presidiu a opção gantesca colagem. A nivelação e os méto-
deliberada por um conjunto de característi- dos associativos que nele ocorrem trazem à
cas estéticas e formais capazes de nos memória obras como Coleccionador, peças
transportar para o tempo em que alcatifas e estratégias anteriormente aplicadas pelo
e veludos, cores escuras e luzes soturnas artista – a mais evidente das quais será o
foram sinónimo de uma amplamente aceite desdobramento do mecanismo de citação
ideia de sofisticação e conforto. Mais que presente na cópia de An Oak Tree, aqui im-
uma mera operação de acerto estilístico, a pulsionado pela colocação de um frasco
cuidadosa recriação deste espaço é o meio “erlenmeyer” numa das prateleiras da vi-
pelo qual se produz a suspensão de reali- trina –, ou mesmo os processos alegóricos
dade que sustenta a complexa ficção que desenvolvidos em Café. Agora, como então,
João Penalva desenvolveu para o Chiado 8. é por intermédio da justaposição dialéctica
Dominado por uma impositiva vitrina, o de fragmentos, bem como da apropriação e
espaço deste foyer é populado por uma mi- dispersão dos seus sentidos originais14, que
ríade de objectos que remetem para um a experiência deste conjunto de elementos
universo ambíguo. Girando em torno das fi- escapa a quaisquer leituras determinísticas
guras da naftalina e do Dr. Emil Erlenmeyer – que se pudessem procurar numa eventual
reputado químico alemão do século XIX que, intenção do artista. Não que João Penalva
entre outros méritos, terá sido o responsá- se demita ou pretenda eclipsar a sua função
vel pela composição daquela substância – neste estado de coisas. Ao invés, e como
aqui concorrem imagens, textos e artefac- nota Mark Gisbourne, os espaços por si
tos das mais diversas origens e proveniên- criados permitem uma “fluida liberdade de
cias, cujas relações são orientadas por movimentos dentro dos parâmetros pré-
correspondências numéricas, e a partir dos -ordenados do projecto que, contudo, terá
quais se estabelece uma narrativa fraccio- de permanecer sempre em aberto para que
nária e, a espaços, incongruente. O cariz possa ser completado por cada espectador
absurdo de algumas das passagens pre- individualmente”15.
20

Talvez nunca tão claramente como agora carácter modelar, Pavlina é um espelho a re-
nos possamos aperceber do alcance que a flectir a expressão da autonomia.
noção de intervalo detém na sustentação da Retrospectivamente, é muito claro que
experiência proposta por João Penalva. Por- Pavlina e o Dr. Erlenmeyer é fruto de um crite-
que, no âmbito das operações sinestésicas rioso trabalho de equilíbrio. O seu sucesso
e cumulativas que governam a interacção procede de uma cuidadosa articulação
entre os elementos desta exposição, é entre presenças e ausências, estímulos e
exactamente no intervalo que entre eles omissões, remissões e envios; a sua uni-
persiste, no espaço vago entre dois estímu- dade depende intimamente do cálculo pre-
los, que se funda o lugar essencial da sub- ciso da distância entre fragmentos, da justa
jectividade do espectador. Neste contexto, o medida da sua contaminação, e da negocia-
intervalo é, simultaneamente, o instrumento ção sensível dos seus respectivos pesos na
que faz deflagrar a nossa capacidade pro- estrutura narrativa. Nenhum pormenor foi
jectiva e a oportunidade que João Penalva deixado ao acaso, senão aqueles que lhe
nos lega para a produção de sentido. pertencem por inerência, e que participam
Estas noções vêem-se reforçadas pela no jogo reactivo em que o artista investe e
natureza da peça a que se subordina a ex- cujas regras determinou. Na pele do curador,
posição de foyer: Pavlina (2007). Apresen- João Penalva não subtraiu a sua função
tada num enquadramento que se aproxima como artista; pelo contrário, apropriou-se
de uma sala de cinema de pequena escala, de um sistema e de uma expectativa para
esta peça recorre ao vídeo, à projecção de fazer obra, certo de que o veículo para a sua
diapositivos e ao som para propor uma ex- partilha subsiste na forma de um processo
periência compósita que tem por base o re- heurístico, sólida e magistralmente anco-
lato de um sonho, cuja personagem principal rado na mecânica da sugestão.
é uma traça. Nas palavras de Pavlina – uma
entomologista reformada que participa num
estudo científico intitulado “Os sonhos na
população reformada – estudos de caso” –
pode o espectador ler, não só o relato do
sonho em si mesmo, mas uma menção ob-
jectiva ao fenómeno que, de entre todos os
que habitam o nosso imaginário comum,
mais directamente associamos à ideia de
absurdo, de inconclusividade, mas também
de uma intensa liberdade face às conven-
ções da lógica e da racionalidade. O reino do
inconsciente, foi-nos dito, é o espaço licen-
cioso da imaginação; e mais do que a análise
do conteúdo do sonho ou do esforço inter-
pretativo que ele possa impulsionar, é a ideia
de uma subjectividade perfeitamente exi-
mida da sua relação funcional com a reali-
dade exterior, aquela que mais profunda e
imediatamente retemos desta peça. No seu
22

1 9
Bruce W. Ferguson, “Exhibition rhetorics: material speech and Para uma descrição detalhada dos componentes desta
utter sense”, in Reesa Greenberg, Bruce W. Ferguson, Sandy instalação, ver Pedro Lapa, Op. Cit., pp. 50-61.
Nairne (eds.), Thinking About Exhibitions, New York: Routledge,
2003, pp. 178-179. 10
“Considerei que em An Oak Tree tinha desconstruído a obra
2 de arte de forma a revelar o seu elemento mais básico e
A respeito do alcance desta concepção, ver “João Penalva essencial: a crença; isto é, a convicção do artista na sua com-
em conversa com Ruth Rosengarten”, in José Sommer petência para falar e a disponibilidade do espectador para
Ribeiro et. al., João Penalva, cat. exp., Lisboa: Centro de Arte aceitar o que ele tem para dizer. Por outras palavras, a crença
Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, s. p. está na base de toda a nossa experiência de arte [...].” Michael
Craig-Martin, Landscapes, cat. exp., Dublin: Douglas Hyde
3 Gallery, 2001, pp. 19-20.
Neste plano, destaque para a colaboração de João Penalva
com as companhias de Pina Bausch e Gerhard Bohner, bem 11
como a parceria que estabeleceu com o coreógrafo Jean A este respeito, vale a pena acrescentar que um dos mais ex-
Pomares, no âmbito de cujas actividades desenvolveu fun- tremos e provocatórios exemplos desta estratégia pode ser
ções de cenógrafo, aderecista ou figurinista. encontrado no famoso retrato da galerista Iris Clert, elaborado
em 1961 por Robert Rauschenberg – uma outra referência im-
4 portante para João Penalva –, e que consistia num telegrama
João Penalva, “Diálogo entre João Fernandes e João Penalva”, contendo o texto “This is a portrait of Iris Clert if I say so.”
in João Penalva, cat. exp., Porto: Fundação de Serralves, (Isto é um retrato de Iris Clert se eu assim o afirmar).
2005, p. 12.
12
5 João Penalva, “Portanto, continuas a não acreditar em mim...
Pedro Lapa, “João Penalva, repetition against the law”, in Uma conversa entre João Penalva e Andrew Renton”, in João
João Penalva, Lisboa: Ministério da Cultura – Instituto de Arte Penalva, cat. exp., Lisboa: Centro Cultural de Belém, 1999, p. 59.
Contemporânea, 2001, pp. 24-25.
13
6 Aqui seguimos o sentido que Dick Higgins avançou para este
Sobre as questões de que se reveste a prática coleccionista, termo no texto “Intermedia”, publicado em 1965 no primeiro
sugere-se a consulta de Susan Pearce, On Collecting – An In- número de Something Else Newsletter. Consultável em
vestigation Into Collecting in the European Tradition, London/ http://muse.jhu.edu/journals/leonardo/v034/34.1higgins.html
New York: Routledge, 1995, e Joseph Alsop, The Rare Art Tradi-
tions – The History of Art Collecting and its Linked Phenomena 14
Wherever These Have Appeared, New York: Princeton Univer- Cf. Benjamin Buchloh, “Allegorical procedures: appropriation
sity Press, Harper&Row Publishers, 1982. and montage in contemporary art”, in Artforum, Setembro,
1982, pp. 43-56.
7
As manchas de Rorschach são a base do teste projectivo 15
desenvolvido por Hermann Rorschach no início do século XX, Mark Gisbourne, “In the absense of Absalom”, in João Penalva,
cujo objectivo é traçar um perfil da dinâmica psicológica do Lisboa: Ministério da Cultura – Instituto de Arte Contemporâ-
indivíduo através da análise das suas respostas quando nea, 2001, p. 149.
confrontado com o carácter ambíguo das referidas manchas.
Mais informações em www.rorschach.com.

8
Exposição comissariada por Andrew Renton e apresentada
na Fábrica de Moagens Harmonia, no Porto.
24

Projecto de exposições (2009-2012)


Miguel Wandschneider (Culturgest)
Coordenação
Gabinete de Comunicação e Imagem (Fidelidade Mundial)
Curador
Bruno Marchand
Coordenação de produção e de montagem
António Sequeira Lopes (Culturgest)
Montagem
André Lemos
Heitor Fonseca

Catálogo

Texto
Bruno Marchand
Desenho
Pedro Falcão
Proporção
[A5] – 14,8 × 21 cm
Tipo de letra
New Rail Alphabet; Verdigris
Fotografia
DMF, Lisboa [pp. 4, 15]
Coordenação editorial
Rosário Sousa Machado (Culturgest)
Revisão de provas
am edições / antónio alves martins
Impressão e acabamento
Gráfica Maiadouro
Tiragem
1000 exemplares

ISBN
978-972-769-074-9

A Culturgest agradece ao OPART, E.P.E. / Teatro Nacional de


São Carlos, pela contribuição prestada a esta exposição.
O artista e o curador agradecem a colaboração de Jürgen
Bock, Escola Maumaus, Francisco Cajada, Ana Castro, David
Cunningham, Conceição Domingos, Adrian Fogarty, Henning
Lundqvist, Rafael Ortega, Terje Östling, Nuno Penedo, Niklas
Persson, Fernanda Rosa, Roberto Rubalcava, Inês Sena, Sarah
Shalgosky, Carlos Vargas e Luisa Yokochi.

CHIADO 8 – ARTE CONTEMPORÂNEA


Largo do Chiado, n.º 8 / 1249-125 Lisboa
Tel. 213.237.346 / www.fidelidademundial.pt

16.04
25.06.2010
João Penalva nasceu em Lisboa, em 1949. (1999), Frac Languedoc-Roussillon,
Vive e trabalha em Londres desde 1976, ano Montpellier (1999), Camden Arts Centre,
em que ingressou na Chelsea School of Art, Londres (2000), Contemporary Art Centre,
onde se licenciou e concluiu o Mestrado Vilnius (2000), Galerie im Taxispalais,
em Belas-Artes (1976-1981). É professor na Innsbruck, (2000), Tramway, Glasgow
Academia de Arte de Malmö, Universidade (2000), fig-1, Londres (2000), Rooseum,
de Lund, Suécia, desde 2002. Foi artista Malmö (2002), Institute of Visual Arts,
convidado do programa de residências da Milwaukee (2003) e The Power Plant,
DAAD, Berlim, em 2003 e 2004. Representou Toronto (2003), Museu de Serralves, Porto
Portugal na XXIII Bienal Internacional de (2005), Ludwig Museum, Budapeste (2005),
São Paulo (1996), e na XLIX Biennale di Irish Museum of Modern Art, Dublin (2006),
Venezia (2001). Expôs na I Melbourne DAAD Gallery, Berlim (2007), Mead Gallery,
International Biennial (1999), na Berlin Biennale University of Warwick, Coventry (2007),
2 (2001) e na Biennale of Sydney (2002). Solar – Galeria de Arte Cinemática,
As suas exposições individuais incluem: Vila do Conde (2008), Lunds Konsthall,
Galeria de Arte Moderna, SNBA, Lisboa Lund, (2010). João Penalva é representado
(1983), Cooperativa Árvore, Porto (1984), pela Galeria Filomena Soares, Lisboa,
CAM, Fundação Calouste Gulbenkian, Galerie Thomas Schulte, Berlim, Barbara
Lisboa (1990), Museu da Cidade, Lisboa Gross Galerie, Munique, e Simon Lee
(1997), Centro Cultural de Belém, Lisboa Gallery, Londres.
Pavlina e o Dr. Erlenmeyer

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