A Fotografia Vernacular No Sistema Da Arte2

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Universidade de São Paulo –

Museu de Arte Contemporânea –


2019 Disciplina EHA 5727 –
Espaços da Arte: arquitetura, fotografia e museus

Docente responsável: Profa. Dra. Helouise Costa

A fotografia vernacular no sistema da arte

Eder da Sila Ribeiro 2019


A fotografia vernacular no sistema da arte

Pelo seu caráter abundante e prosaico, a fotografia vernacular ocupa, dentro


do regime de imagens, uma posição de alteridade: ela é a outra da arte.
Clément Chéroux1

resumo

A fotografia vernacular, depois de alguns anos, começa a ser integrada à história da fotografia e
também ao mercado de arte. Exposições, livros, artigos e seminários foram produzidos nos
últimos anos e que, sob diferentes formas, revelam toda a riqueza e complexidade dessa nova
área de estudo que apenas começa a ser escrutinado. Transcorridos quase oitenta anos desde a
primeira exposiçao do gênero (The American snapshot, 1944) pretendemos investigar as causas
da inserção e validação desse tipo de fotografia, que ficou à margem da história do meio
fotográfico e sobretudo do sistema de arte por longo tempo, e também como se manifestam os
espaços discursivos dos museus.

Superada a etapa de sua legitimação ao longo do século XX e de sua e consolidação nos últimos
vinte anos, com a proliferação de exposições em museus de arte, podemos avançar a hipótese
que estamos vivenciando a fase de constituição de coleções publicas e privadas e a consequente
formação de um mercado comercial, formado por galeriais e comerciantes, perfeitamente
integrada ao mercado de arte global.

Esta monografia, parte desse estudo maior, se limitará a traçar e revisar os conceitos ligados à
fotografia vernacular, sua origem, definição, para em seguida, avançar um primeiro inventário das
exposições ligadas ao tema, bem como analisar criticamente algumas das principais exposições
que, sob diferentes abordagens, promoveram a redefinição do status dessas imagens,
contribuindo para sua incorporação ao circuito de arte.

introdução

A fotografia levou um longo período para ser integrada e reconhecida como meio autônomo
dentro do sistema das artes, tendo atravessado todo o século XIX como um apêndice técnico das
artes plásticas para em seguida desenvolver-se como expressão calcada nos preceitos estéticos
das belas artes, caso do pictorialismo. A criação do departamento de fotografia do MoMA,
seguida da primeira exposição individual de um fotografo: Walker Evans: Photographs of 19th
Century Houses, em 1933, inicia o processo de legitimação e incorporação da fotografia, ao longo
do século XX, ao sistema de arte. Esse desenvolvimento é também associado à criação das
primeiras galerias comerciais dedicadas exclusivamente à fotografia e a introdução de normas,
tais como autoria e edição limitada e controlada. Esses mesmos fatores, que permitiram a entrada
da fotografia em um sistema comercial da arte já regulado e com regras precisas, é também um
dos fatores da exclusão de toda produção fotográfica, de uso amador, funcionalista, que não se
enquadrasse nesses requisitos, e sobretudo que não tivesse uma intenção artística, caso
precisamente da fotografia vernacular.

Como a fotografia vernacular se tornou o objeto do momento a ser explorado pelo circuito de arte,
incluindo museus, colecionadores e galerias? Como ele é recuperada e exibida pelo espaço
                                                                                                               
1
Chéroux, Clement, Vernacularaires, essais d’histoire de la photographie, Paris, Le Point du Jour, 2013, p.13, minha
tradução.
discursivo dos museus? Que discursos são gerados? Que estratégias curatoriais adotadas? Para
responder essas questões serão analisadas algumas exposições em museus de arte, assim como
os outros componentes do sistema da arte: colecionismo, galerias, produção editorial.
Quais são e como se desenvolvem esses processos, quais atores e instituições envolvidas?
Quando podemos situar o inicio desse processo? Essa incorporação é permanente? ou ao
ascender a um novo status, o objeto pode perde-lo ao fim de um evento especifico, por exemplo
uma exposição, e retornar ao status de origem? Estaríamos então diante de uma
legitimação/artificação transitória?2

Este projeto se justifica pela ainda incipiente pesquisa sobre esse fenômeno. Considerando os
exemplos de processos de artificação, analisados ao longo dos textos de Shapiro e Heinich, a
fotografia está presente apenas de maneira marginal e mesmo na obra De l’artification, organizada
pela dupla, o artigo La photographie, éternelle aspirante à l’art de François Brunet analisa os
processos de reconhecimento e legitimação da fotografia mas não o fenômeno especifico e
recente da fotografia vernacular/anônima, posterior justamente à legitimação da fotografia
autoral.

Dentro de um estudo mais amplo pretendemos identificar a origem e a extensão desse processo,
através da análise dos principais eventos que têm participado dessa inserção, tais como:
exposições, estudos críticos, publicações; estabelecendo as interconexões entre eles, além das
resistências que já se fazem sentir a esse processo (BATCHEN, 2008, KRAUSS, 1990, ZUROMSKI,
2008). Iremos ainda identificar seus principais agentes: críticos, artistas, curadores,
colecionadores, para finalmente avançar os possíveis desdobramentos no sistema de arte como
um todo e da fotografia em particular.

Este projeto de pesquisa será desenvolvido de maneira interdisciplinar, ele permeia de início a
história da fotografia, ao estudar a recente incorporação da fotografia vernacular à essa
disciplina. Ele se apoia evidentemente na disciplina da estética, por entender que sua entrada nos
sistemas de arte, colecionismo incluído, está evidentemente relacionada a suas qualidades
estéticas específicas. As recentes pesquisas desenvolvidas no campo da sociologia sobre os
processos de artificação e as teorias da cultura visual, conferem o contraponto teórico necessário
à compreensão de um fenômeno que a nosso entender extrapola o campo das artes visuais.

vernacular,

Convém neste momento rever a origem da palavra vernacular, que poderá nos dar pistas do seu
significado aplicado à fotografia: ela se origina do latim vernaculus, que se utilizava para referir-se
a tudo aquilo referente a um país, que por sua vez tem sua origem em verna, que era o vocábulo
para se referir ao escravo doméstico, nascido inclusive dentro da própria casa dos proprietários.
Ela está portanto ligada à uma atividade humana, a um serviço, poderíamos dizer que têm uma
utilidade 3. Assim o termo, que em arquitetura se refere à produção local de uma dada região, em
fotografia poderíamos circunscrever este termo à uma fotografia que tem uma utilidade, que serve
a alguma coisa, ela é antes de tudo funcional, caso da maior parte da produção fotográfica com
seus usos diversos: identificação, uso militar, técnico/científico, cartográfico, histórico,
documental, etc. Retomando o sentido original da palavra, a fotografia vernacular encontra sua
forma principal na produção doméstica, familiar, em geral anônima.

                                                                                                               
2
categoria adicional aos quatro tipos de artificação sugeridos por HEINICH e SHAPIRO: durável, parcial, contínua e inalcançável
3
 Ibid.p ?  
Se a maior parte das fotografias vernaculares foram feitas sem uma intenção artística, isso não
quer dizer que elas não possuam um valor estético intrínseco, independente da sua função inicial,
além disso o que define verdadeiramente a fotografia vernacular é o deslocamento da sua
condição/uso original em direção a um novo território, de valores e significados distintos, como
sugeriu C.Cheroux: As imagens utilitárias ou domésticas somente se tornam outras, logo que elas
deixam seu meio de origem e começam a serem levadas em consideração pelos artistas e pelos
profissionais da arte. Não é que a partir do momento em que as imagens entram na esfera cultural
que elas se tornam a outra da arte. 4

A definição de fotografia verncaular sugerida por Geoffrey Batchen evoca os lugares de circulação
desse tipo de fotografia e sua significação, entre artefato cultural e objeto de valor artístico:

fotografias comuns, as que são feitas ou compradas, ou algumas vezes compradas e


refeitas, por pessoas comuns de 1839 até agora, as fotografias que ocupam o lar e o
coração, mas raramente o museu ou a academia.5

O evento mais significativo para o desenvolvimento de uma produção em massa e de uma cultura
visual do snapshot foi a introdução da câmera Kodak # 1 em 1888, era uma câmera de em
formato de caixa, que vinha carregada com um rolo de filme de 100 exposições, que ao ser
concluído, a máquina inteira era enviada à fábrica em Rochester, onde o filme era revelado e
devolvido junto com uma nova câmera carregada com um novo filme. Isso permitiu a
popularização e o aparecimento do snapshot, com a finalidade primeira de documentar o dia-a-dia
da vida doméstica, férias e eventos ai inclusos.

A fotografia vernacular se desenvolveu na periferia do campo teórico da fotografia e da história da


arte, ao menos até há pouco tempo. Artistas d’avant-garde dos anos 1920 e 30, já a haviam
incorporado às suas obras, através das fotomontagens dadaistas, caso de Hannah Höch,6 entre
outros. L.Moholy-Nagy e Man Ray foram alguns dos artistas que defenderam o uso e o valor da
fotografia vernacular 7, contra a corrente pictorialista que pretendia inserir a fotografia no campo
das artes plásticas, a partir das referências da pintura e das “belas artes”. Man Ray será um dos
primeiros a descobrir a fotografia documental de Eugène Atget, e o publicará no número 7 (1926)
da revista La Révolution surréalistee. Podemos ainda notar que na sua Pequena História da
Fotografia8, publicada originalmente em 1931, Walker Benjamin, inclui sete fotografias de Atget,
entre as vinte e quatro imagens que fazem parte desta obra.

Berenice Abbott, a partir da aquisição do fundo fotográfico de Atget, difundirá sua obra nos EUA.
Ela aliás, tomando por referência a fotografia científica produzirá, para o MIT (Massachusetts
Institute of Technology) em 1958 uma série de imagens abstratas documentando fenômenos
físico-químicos e que servirá como ilustração pedagógica do instituto, obra, a um só tempo
documental e autoral. Walker Evans é outro, que influenciado por E.Atget, desenvolverá ao longo
                                                                                                               
4
Ibid.p14
5
BATCHEN, Geoffrey, Each wild idea: Writing, photography, history. Cambridge, The MIT Press. 2001, citado por Robertson, Megan
Allison, Networks of Memory: Vernacular Photography, (New) Media, and Meaning Making, thesis, Simon Fraser University, 2017.
6
Hannah Höch em paralelo às suas colagens constroi um corpus de imagens na forma de atlas, que até hoje gera
dúvidas sobre o status desse material, obra autônoma, ou apenas banco de imagens para uso posterior, no primeiro
caso estaríamos diante de um dos primeiras do gênero a utilizar fotografias vernaculares de forma direta e sem
intervenções, para construir uma obra. Ver Hannah Höch, Album Ed. Gunda Luyken, Berlinische Galerie, text(s) by Gunda
Luyken
German, English, French, 2004. 132 pp.,
7
Importante observar que esse termo obviamente nao era empregado na época para se referir a esse tipo de fotografia, Man Ray faz
uso do termo snap-shot para se referir a esse tipo de fotografia.
8
BENJAMIN, Walker, Petite Histoire de la Photografie, Editions ALLIA, Paris, 2014, publicado originalmente na Alemanha em 1931.
de sua carreira uma produção fortemente marcada pelo estilo documental e vernacular.

Nos anos 1960 e 1970, a arte conceitual incorpora a iconografia vernacular para reativa-la e
produzir novas interpretações, é o caso de artistas como John Baldessari ou Christian Boltanski,
além de Sophie Cale e Cindy Sherman, que adotam a estética da fotografia vernacular para
criarem suas própria obras. No Brasil Rosângela Rennó, para citar apenas o caso mais
emblemático, será uma das artistas que constroem sua obra a partir dessa fonte, podemos citar
por exemplo sua obra Menos valia (leilão), onde através do processo de reapropriação de imagens
vernaculares, inicialmente desprovidas de valor, ela questiona o valor de mercado das obras de
arte.

Outros artistas, se não utilizam diretamente essas imagens como parte de sua obra, se servem
delas como referência, é o caso especialmente do artista alemão Gerard Richiter. Ele aliás as
organiza em pranchas, a exemplo da já citada H.Höch; formando o que ele denominou de atlas.
Sintomático do fenômeno que pretendemos estudar, essas imagens anônimas garimpadas na
imprensa ou em mercados de pulgas foram objeto de diversas exposições desde 1972 e de uma
publicação9.

Esses casos são o prelúdio de um movimento, que através de uma operaçao de ressignificação,
irão expor e, de uma certa maneira, iniciar o processo de legitimação dessas imagens.
Entendemos que na prática de re-uso elas funcionam como meros suportes à manipulação pelo
artista, operação que permitiu sua circulaçao, para além do seu campo inicial e sua inserção
dentro das práticas artísticas estabelecidas. Desta maneira, embora a reapropriaçao de imagens
anônimas, enquanto processo artístico, não seja o objeto deste estudo, podemos considerar que
essas práticas possam ter contribuído, ao lhe dar visibilidade, para os processos posteriores de
inserção e legitimação da fotografia vernacular.

Os EUA, devido a seu protagonismo na ascensão e aceitação da fotografia como expressão


artística autônoma, promoverá também a gradual visibilidade e legitimação artística da fotografia
vernacular. Assim a primeira história da fotografia publicada nos EUA, Photography 1839-1937 10,
já fazia referência a esse tipo de imagem. Em 1944 realiza-se primeira exposição de fotografia
amadora em um museu: The American snapshot. Um evento importante na valorização e
visibilidade de diversos campos até então marginais e ausentes do que se entendia como alta
cultura foi a publicação de Made in America, The Arts in Modern Civilization em 1948, de autoria de
John Atlee Kouwenhoven, que traça um panorama da produção vernacular nos campos da
arquitetura, do desenho e da pintura e que influenciou o curador John Szarkowski na elaboração
da exposição The Photographer’s Eye, de 1964 no MoMA. Nos agradecimentos do catálogo, ele
explicita essa referência e a importância de trazer para o mesmo campo a fotografia autoral e a
funcional, em referência à fotografia vernacular/ anônima:

Segundo a tese desta obra o estudo da forma fotográfica deve considerar sua tradição
“artística” e sua tradição “funcional” como aspectos intimamente ligados a uma só e mesma
história. Talvez esta abordagem nos tenha sido sugerida pela primeira vez pelo livro de John
A. Kouwenhoven: Made in America, The Arts in Modern Civilization (1948), que estudou a
relação de nossas tradições vernaculares e oficiais nos domínios da arquitetura, do design e
da pintura.11

                                                                                                               
 RICHITER, Gerard, Atlas, D.A.P., New York, 2006.  
9
10
NEWHALL, Beaumont, Photography 1839-1937, New York, 1937
11
SZARKOWSKI, John, L’Œil humain du Photographe, 5 Continents Editions, Paris, 2007,p.4, ediçao original : The Photographer’s Eye,
MoMA, New York,1964.
exposições:

A escolha da análise de algumas das exposições para compreender o fenômeno amplo da


incorporação da fotografia vernacular aos museus de arte se deve ao caráter representativo desse
tipo de evento. O espaço de exposição, no contexto da arte moderna e contemporânea, se
apresenta como espaço de seleção (inclusão ou exclusão) preferencial, em que tudo o que é ai
incluído acaba adquirindo um valor especifico no plano do estatuto artístico. Jean-Claude
Lebensztejn ao analisar a função do museu pontua que:

O Museu desempenha uma função dupla e complementar: excluir o resto, constituir, por
meio dessa exclusão, o que entendemos pela palavra arte. E não é exagero dizer que o
conceito da arte sofreu uma profunda transformação quando se abriu e tornou a fechar o
espaço destinado a sua definição.12

Portanto ao nos questionar sobre a incorporação da fotografia vernacular ao sistema de arte, nada
mais natural que faze-lo através da sua principal ferramenta de legitimação: a exposição, incluído
os dispositivos que a constituem : expografia, catálogo, textos críticos, sua recepção, entre outros.

The Photographer’s Eye, 1964, MoMA, NY, curador: John Szarkowski,

John Szarkowski tem uma trajetória,


como curador de fotografia do MoMA,
reconhecidamente marcada pelo seu
interesse pela fotografia vernacular. A
exposição, de maio a agosto de 1964,
reuniu 200 fotografias selecionadas para
definir a característica única dessa arte13,
segundo anuncia o texto do material de
imprensa da mostra. Esse enunciado já
resume sua intenção de tentar definir
algumas características próprias ao meio,
e sobretudo fazer um balanço da
produção fotográfica desde sua origem
até aquele momento, elegendo em grande medida quem faria parte ou não da historia da
fotografia, disciplina ainda em construção nesse momento. Szarkowski tenta assim se confrontar
com a questão ontológica do que é a fotografia, sua essência, potencialidades, com o objetivo
claro de afirma-la como um meio autônomo, com características próprias.

As habilidades especiais e limitações do novo sistema significa que soluções pictoriais


tradicionais foram frequentemente inúteis, a fotografia foi forçada a encontrar novas
maneiras de tornar sua mensagem clara. 14

A exposiçao The Photographer’s Eye marca em muitos aspectos o inicio do processo de


legitimação da fotografia vernacular. No total a exposição reuniu 100 fotógrafos, autores
incontornáveis como Jacques Henri Lartigue, André Kertéz e Henri Cartier-Bresson, Eugéne Atget,
                                                                                                               
12
LEBENSZTEIN, Jean-Claude, L’espace de l’art, Zigzag, Paris: Flammarion, 1981, P. 81.
Press releas, p.1, consultado no site do MOMA NY em 15/05/2019 : https://www.moma.org/calendar/exhibitions/2567  
13
14
ibid. p.1:
e à época, jovens fotógrafos, Lee Friedlander e William Klein, em sua maioria norte americanos e
europeus, com apenas duas exceções o mexicano Manuel Alvares Bravo, e o Japonês Iroshi
Hamaya. As obras são provenientes sobretudo de empréstimos dos fotógrafos ou da própria
coleção do Museu, evidenciando assim a ausência de dois atores principais no sistema de arte
atualmente: as galerias e os colecionadores. Os anônimos, foram selecionados a partir de
coleções diversas, em geral museus de historia e a Biblioteca Nacional.

A expografia de Kathleen Haven levou às últimas consequências a indistinção entre obras de


autores conhecidos e os anônimos, ao colocar lado a lado obras desses dois grupos. Embora
visualmente repita o modelo de distribuição espacial já estabelecido no MoMA, distribuição linear
das obras, em alguns momentos ela estabelece conexões em forma de constelação.

Embora a maioria das obras tenha apresentação tradicional nos formatos até 30x40 cm em
molduradas brancas, outras extrapolam essa configuração e se apresentam de forma ampliada,
em grandes proporções sem moldura, contracoladas, é o caso especialmente da imagem de autor
anônimo, que abre a exposição e é também capa do catálogo. Esse recurso de ampliação das
imagens para além dos tamanhos tradicionais da época é usado especialmente, nas fotografias
anônimas, ou de autores documentaristas, entendemos que nesses casos a questão da autoria, e
portanto da materialidade da obra permitiam esse tipo de intervenção.

Em The Photographer’s eye Szarkowski analisa as características principais da fotografia


colocando lado a lado obras de fotógrafos conhecidos, como Cartier-Bresson, Kértez e Robert
Frank, e fotografias que poderíamos considerar como vernaculares, provenientes especialmente
dos estúdios comerciais do séc.XIX, do fotojornalismo e os de instantâneos amadores, grande
parte delas classificadas como anônimas, são vinte de um total de duzentas obras expostas. Essa
ausência de autoria é uma característica própria à maior parte da fotografia funcional, desde a
origem da fotografia até meados do séc.XX, sendo prática comum a identificação apenas da
empresa comercial que a produzia, e no caso da fotografia de família (snapshots), dificilmente
recebia qualquer identificação de autoria.

Esse corpus de imagens tão heterogênicas se explica pela maneira como J.Szarkowski pretende
organizar a sintaxe da fotografia, não por gêneros extraído da tradição da historia da arte:
paisagem, retrato, etc, mas pelas características inerentes ao próprio meio: o enquadramento, o
tempo de exposição, o ponto de vista, o objeto de seleção, todos relacionados à maneira de
relacionar do operador e o aparato fotográfico. Ele tenta assim construir uma historia da
fotografia como parte de um processo radicalmente novo de produção de imagens: um processo
fundado não mais sobre a síntese, mas sobre a seleção.15

Partindo desse principio, todas as imagens fotográficas teriam então um vocabulário em comum,
e compartilhariam um mesmo universo, sendo portanto perfeitamente legítimo a incorporação de
fotografias utilitárias às do universo dito artísticos, pois antes de uma escala de valores estéticos
e de intenção artística, prevaleceria as particularidades inerentes ao meio, como podemos
constatar o posicionamento o curador ao justificar a escolha de imagens de procedências tão
diversas, incluindo ai as vernaculares:

Elas na verdade possuem pouca coisa em comum, se não que o sucesso que elas
encontraram e a linguagem que elas compartilham: estas imagens são seguramente todas
fotografias. A visão que elas compartilham não pertence a nenhuma escola nem à nenhuma
teoria artística, se não precisamente à fotografia. 16

Ao longo do texto que abre o catalogo da exposição, J.


Szarkowski coloca ênfase, ao construir sua versão particular
da historia da fotografia, não na historia particular de
correntes tendências, ou autores específicos, sintomático
desta abordagem: nenhum autor em particular é citado. Ele
prefere reafirmar o caráter próprio da fotografia de ser desde
seus primórdios um campo praticado por profissionais de
procedências diversas, portanto sem possuírem
necessariamente referências artísticas. Esta prática
heterogênea foi a principal responsável pelo distanciamento
em relação às regras e normas estabelecidas pela tradição
das belas artes, o que constituiu uma enorme vantagem na
afirmação e construção de uma gramatica estética da fotografia:

Se a fotografia constituía um problema artístico novo, estes homens tinham ao menos a


vantagem de não ter que desaprender o que quer que fosse.17

Podemos assim considerar o interesse do curador pela fotografia vernacular por essa dupla
abordagem: de um lado ela é fotografia, ou seja compartilha as mesmas características do meio, e
por outro lado estava isenta de qualquer influência normativa pictória, podendo assim configurar o
novo meio por suas características inerentes.

Os dois grupos, fotógrafos reconhecidos com trabalhos autorais em ruptura com a tradição
pictorial, e a fotografia aplicada, em geral anônima, demonstrariam o estabelecimento da
fotografia como um meio autônomo, com linguagem própria, assim segundo J.Szarkowski:

Estas novas vias podiam ser exploradas por homens dispostos a esquecer a fidelidade às
normas pictoriais tradicionais e também por analfabetos em arte, que por isso mesmo não
tinham nada a trair.18

                                                                                                               
15  ibid  p.  6  
16  ibid  p.  7  
17
ibid p. 8
18
ibid p. 8
A ideia da fotografia vernacular como expressão eminentemente original, por não se repousar em
preceitos das belas artes, com preocupações e referências de outra ordem, constituiriam a
principal razão de sua incorporação à historia do meio, constituindo assim uma espécie de marco
zero de uma linguagem própria. Essa abordagem já havia sido evoca por Laszlo Moholy-Nagy ao
justificar seu interesse pela fotografia utilitária, sem pretensões artísticas:

... nos domínios onde ela (a fotografia) é empregada sem ambições artísticas, na pesquisa
científica, o trabalho da policia e de reportagem, os resultados são remarcáveis: ela
conheceu um desenvolvimento original, própria à ela, a preocupação de saber se deveria dar
o noeme de “arte” não se colocava.19

O curador estrutura a exposição em cinco núcleos temáticos, que pretendem definir alguns dos
aspectos constituintes da fotografia: “ A coisa, por ela mesma”, “ O detalhe”, “O enquadramento”,
“Tempo de exposição”, “O ponto de vista”20 Categorias arbitrarias, permeáveis, parecendo uma
tentativa do historiador de organizar material tão heterogêneo. Abordagem, por pioneira, tem sido
recentemente passada por um crivo critico com referência ao discurso produzido pelo museu e o
esvaziamento de sentido dessas imagens, de Geoffrey Batchen à historiadora de arte Catherine
Zuromskis:

Szarkowski tentou legitimar a fotografia como uma forma de arte, destilando toda a
fotografia, independentemente do gênero ou função prática, para um vocabulário formal de
"moldura", "tempo", "detalhe", "ponto de vista"... Embora a função destorizaçao do
vocabulário formal de Szarkowski tenha sido profundamente criticada tanto por Krauss
quanto por Phillips, essa abordagem, no entanto, aparece bem e viva em “Other Pictures”.21

Snapshots : The Photography of Everyday Life, 1888 to the Present (MoMA, San Francisco,1998),

A exposição reuniu 260 snapshots22, em grade parte oriundas de


coleções privadas e algumas publicas, incluindo o próprio SF
MoMA e Museum of Photography and Film, Rochester, N.Y, de
1880 até a década de 90. Logo nas primeiras linhas do texto do
catálogo, se questiona o por quê de fazer entrar esse tipo de
fotografia não artística em um museu de arte:

Os snapshots, uma fotografia amadora usualmente


tomadas para documentar um evento do dia-a-dia, parece a
primeira vista uma categoria de prática fotográfica fora do
escopo de um museu de arte ... então , por que um museu
de arte dedica um catálogo e uma exposição a esse tema?
23

                                                                                                               
19  MOHOLY-NAGY, Laszlo, “On Art and the Photograph”, The Thecnology Review, vol.47, n°8, junho 1945, p.491-522, citado por

Chéroux, Clément, Vernacularaires, essais d’histoire de la photographie, Paris, Le Point du Jour, 2013, p.14  
20
"The Thing Itself," “The Detail," "The Frame,""Time Exposure," e "Vantage Point" no original.
21
ZUROMSKIS, Catherine, Ordinary Pictures and Accidental Masterpieces: Snapshot Photography in the Modern ArtMuseum, Art Journal,
CAA, vol.67, n°2, 2008, p.110.
22
Para efeito deste estudo será mantida a expressão original em inglês “snapshot” , por não termos em português um termo
semelhante, podemos defini-lo como a fotografia “instantânea” doméstica, amadora.
23 FOGARTY,  Lori.  The  Photography  of  Everyday  Life,  1888  to  the  Present,,  San  Francisco,  San  Francisco  Museum  of  Modern  Art,  1998.  p.  7  
Ela faz parte de um projeto do museu de investigar o meio fotográfico como um objeto da cultura
visual. A exposição foi precedida de duas outras: Crossing the Frontier: Photographs of the
Developing West, 1849 to the Present e Police Pictures: The Photograph as Evidence, que misturou
a fotografia artísticas de autores reconhecidos com fotografia vernacular, comerciais, documental,
frequentemente anônima. “Snapshot...” representou um passo além ao selecionar apenas este
último tipo de fotografia, tentando olha-la como um importante fenômeno cultural com
consequências inclusive no campo das artes visuais.

O curador Douglas Nickel , embora sustente um discurso de aproximação da fotografia vernacular


levando em consideração seus componentes de artefato cultural, não esconde a vontade de
absolver esse tipo fotografia pela instituição ao mesmo tempo que pretendem dar um status de
obra de arte à essa produção anônima, e implicitamente sugerir que a cada expectador e dado a
possibilidade de produzir suas própria “obras primas”, paradoxalmente o discurso se revela aqui
mais efetivo que a própria seleção de obras, muito mais banais e domésticas que em outras
exposições (The Potographer’s Eye, Other Pictures...), onde o caráter formar vanguardista se
impunha:

Esta exposição explora a fotografia doméstica amadora em um contexto de museu,


examinando a fronteira entre o que os museus exibem e o que os visitantes podem por eles
mesmos criar com uma câmera. O grupo exemplar de fotografias anônimas demonstram o
potencial de “obras-primas” não intencionais, feitas sem nenhum acompanhamento,
possíveis apenas com o meio fotográfico.24

                                                                                                               
24
NICKEL  ,  Douglas  B.  The  Snapshot,  some  notes,  em  Snapshots  :  The  Photography  of  Everyday  Life,  1888  to  the  Present,,  San  Francisco,  San  
Francisco  Museum  of  Modern  Art,  1998.  p.  7  
Não conseguindo obter imagens da exposição, nossa análise foi construída a partir do catálogo,
textos e imagens, cerca de 70 e da recepção crítica da mesma. O que primeiramente chama
atenção na seleção feita pelo curador Douglas B. Nickel, é a heterogeneidade de tipo de imagens,
com isso ele consegue fugir à principal armadilha desse tipo de exposição. As imagens
inconguentes, os “erros”, às referências à fotografia modernista estão representadas, mas o que
prevalece é a banalidade das imagens do dia a dia: um bebê dormindo um homem enfrente a sua
casa, e muitos outros exemplos compõem a maior parte do corpus apresentado. Essas
fotografias estão em acordo com a elaboração teórica que abre o catálogo da exposição. O
curador traça a historia técnica, lançamento das primeiras Kodaks, que permitiu a emergência de
uma prática fotográfica de massa, representada pelos instantâneos domésticos (snapshots). Ele
confirma a importância desse tipo de fotografia como parte aparato cultural e antropológico, ao
mesmo tempo que revindica as possibilidades inerentes ao meio de se abrir à novas
interpretações e usos, especificamente seu deslocamento do campo doméstico ao publico de
uma instituição de arte.

Não deixa de ser irônico constatar que elencado entre os agradecimentos se encontra o teórico da
fotografia Geoffrey Batchen, um grande critico desse tipo de exposição, e expecialmente desta:

...Diante de um grande leque de escolhas possíveis, Walther e Nickel decidiram que a melhor
solução era de repetir algumas imagens relativamente interessantes, dentro da infinidade
disponível, como se eles quisessem defender a causa de uma corrente paralela de avant-
garde popular, lutando por nós - pobres pessoas banais – por uma inovação pictorial. O
snapshot como “Art Outsider”.25

Se é inegável que, ao menos no catálogo, as imagens são desprovidas de contextualização, a seu


favor podemos dizer que a seleção, ao contrário da coleção de Walther, contém exemplos muito
mais banais e ordinários de snapshots, e não a coleção de erros, incidentes, situações inusitadas
e reflexos que formam a quase totalidade da exposição oriunda da Coleção de Thomas Walther,
que associamos facilmente às correntes de avant-garde.

Ao menos teoricamente podemos perceber uma percepção aguda por parte do curador sobre as
especificidades inerentes à fotografia vernacular, seu caráter inegável de aparato cultural, e os
problemas que essas imagens colocam à historio da arte e particularmente do meio fotográfico.
Afinal estamos diante de uma questão relativamente nova: a incorporação desse tipo de

                                                                                                               
25
BATCHEN, Geoffrey, Les snapshots L’histoire de l’art et le tournant ethnographique, Paris, Études photographiques, n° 22, 2008, p.14,
originalmente publicado em Snapshots: Art History and the Ethnographic Turn, Photographies, 2008, London, pp 121-142.
fotografia pelo sistema de arte, sendo que a assimilação da própria fotografia autoral é um dado
ainda recente nos anos 90. Aborda-la de maneira teórica e critica parece inevitável, como sugere o
curador Douglas B. Nickel:

O snapshop coloca um problema para o historiador. Sua definição como um objeto cultural
depende de vários, intricados, fatores sobrepostos, entre eles autoria, tema, social
circunstâncias da sua criação, estética, tecnologia, intenção, função, e o seu lugar em uma
comunidade mais ampla de figuras linguísticas e visuais...O snapshot resta como a mais
popular classe de objeto fotográfico e ainda sem uma teoria própria.26

Other Pictures: Vernacular Photographs from the Thomas Walther Collection (Metropolitan
Museum of Art, New York, 2000),

Com curadoria de Mia Fineman e do próprio Thomas Walther a exposição reuniu 90 fotografias
vernaculares proveniente da coleção deste último. O texto de Fineman que abre o catálogo da
exposição do Metropolitan Museum of Art/New York não poderia ser mais explícito sobre a
ambição de transformar imagens produzidas por amadores em obras de arte:

Fotografias de amadores anônimos cujo "feliz acidentes "e" falhas bem-sucedidas


"resultaram em surpreendentes tentadoras obras de arte são o assunto de
Other Pictures: Vernacular Photographs from the Thomas Walther Collection27

                                                                                                               
26
NICKEL  ,  Douglas  B.  The  Snapshot,  some  notes,  em  Snapshots  :  The  Photography  of  Everyday  Life,  1888  to  the  Present,,  San  Francisco,  San  
Francisco  Museum  of  Modern  Art,  1998.  p.  9  

27  Metropolitan Museum of Art, press release, consultado no site do Metropolitan Museum :

https://www.metmuseum.org/press/exhibitions/2000/other-pictures-vernacular-photographs-from-the-thomas-walther-collection,
consultado em 27/05/2019
As barreiras entre umas e outras são suspensas, e a
pretensão curatorial vai mais além ao identificar nas
imagens sem autoria definida, a sombra de autores
canônicos, assim, não é de uma “obra de arte” genérica
que se trata, mas obras de autores definidos, como fica
claro neste enunciado:

Ha Eugène Atgets, Alexander Rodchenkos, May


Rays, Roberts Franks, Eugene Meattyards, Diane
Arbus e Gerhard Richters- todos anônimos, todos
desperdiçados.28

Todas as fotografias faziam parte da coleção de


Thomas Walther, um dos maiores colecionadores
privados de fotografia. E’ irônico perceber que somente
em 2015, as “obras de arte” do mesmo colecionador, que
serviram de comparação às imagens vernaculares
seriam exibidas na exposição Modern Photographs from
the Thomas Walther Collection, 1909–1949, no MoMA-NY.

The Pictures não deixa duvida do caráter artístico, de avante garde dessas imagens vernaculares,
estabelecendo o interesse do colecionador por esse período especifico da fotografia e a ideia de
que as obras reunidas fazem parte de um mesmo campo artístico, apenas produzidas por autores
desconhecidos, sem formação artísticas, praticamente artistas outsiders:

A exposição reflete o interesse de longa data do Sr. Walther pela mais inovadora arte de
avant-garde do período - seja por mestres estabelecidos ou amadores desconhecidos.29

                                                                                                               
28
FINEMAN, Mia, Other Pictures: Vernacular Photographs from the Thomas Walther Collection, N.Y. Twin Palms Publishers edition e
Metropolitan Museum of Art, New York, 2000, p.147.
29
Metropolitan Museum of Art, press release, consultado no site do Metropolitan Museum :
https://www.metmuseum.org/press/exhibitions/2000/other-pictures-vernacular-photographs-from-the-thomas-walther-collection,
consultado em 27/05/2019
A exposição tenta fazer do fotógrafo anônimo, um artista
do acaso, com seus erros e descuidos que dão origem a
imagens com uma qualidade estética que rivalizam com o
melhor da produção artística modernista. O que parece
paradoxal é que se não temos a figura do gênio artista
presente, posto que estamos lidando com obras de autoria
anônima, essa posição é ocupada pelo colecionador, que
ao longo do tempo teve a capacidade de identificar essa
produção “genial”. Assim Walther, que a curadora do
Metropolitan Maria Morris Hambourg, chamou de “ olho
genial”, pela sua seleção, substituiria o autor
desconhecido como o grande responsável pelo
aparecimento das obras de arte, reveladas por ele. Nao
podemos deixar de concordar com sobre o novo papel que
o colecionador assume nesse tipo de exposição, C.
Zuromskis:

“Other Pictures” revela-se um projeto altamente


intencional, com Walther como um Duchamp moderno,
aumentando o prestígio do curador e o colecionador e
elevando erros fotográficos ao nível de belas artes. 30

Toute photographie fait énigme (Maison Européene de la Photographie, Paris, 2015/2016),

Michel Frizot é historiador e critico de fotografia francês. Ele é autor, entre outros, da “ Nouvelle
Histoire de la photographie”, de1994 e se interessa particularmente pela fotografia excluída da
historia tradicional do meio, especialmente as de uso popular, fotos de identidade, amadoras, de
uso da imprensa, ou seja basicamente os vários tipos de fotografia vernacular. Para além de seu
interesse teórico , ele constituiu ao longo do tempo uma grande coleção deste tipo de fotografia.
Cédric de Veigy, é professor e pesquisador em historia da fotografia e do cinema, tendo publicado
diversas obras em co-autoria
com M. Frizot.

                                                                                                               
30
ZUROMSKIS, Catherine, Ordinary Pictures and Accidental Masterpieces: Snapshot Photography in the Modern ArtMuseum, Art Journal,
CAA, vol.67, n°2, 2008, p.114.
A exposição, reunindo 170 fotografias, foi ocasião para os dois pesquisadores , e aficionados pela
fotografia vernacular de sistematizar e mostrar ao grande público, uma coleção particular, do
próprio M.Frizot, conforme enunciado no catálogo da exposição:

Esta exposição é constituída a partir de uma coleta pessoal de imagens de amadores, de


anônimos, de autores esquecidos, escapando às categorias instituídas pela noção de autor-
fotógrafo, reunidas ao longo do tempo por Michel Frizot.31

O título Toute photographie fait énigme (Toda fotografia é um enigma) faz referência a
característica intrínseca à fotografia de permanentemente colocar uma interrogação ao
espectador sobre a defasagem entre a imagem fotográfica e a realidade que lhe deu origem, como
sugere os autores:

O enigma ontológico inerente ao processo fotográfico resulta da distância irredutível entre a


percepção humana e a capacitação fotossensível de um aparelho, ela nasce da ruptura entre
a percepção visual e o processo fotográfico. Toda fotografia é enigma para o olhar.

Em se tratando de um corpus de imagens sem referências precisas temporais, espaciais ou de


autoria, é evidente que cada fotografia se reveste de um enigma em si sobre o que de fato elas
representam. A descontextualizarão aqui é a principal aliada ao estabelecimento de uma relação
de dúvida e surpresa diante da maior parte das imagens, assim não são as características
estéticas ou técnicas que primam, mas interrogação que elas propõem.

Podemos situar o interesse de M.Frizot pelas fotografias anônimas recuperadas em feiras e


antiquários, a partir da sua trajetória como historiador da fotografia, sobretudo a partir de sua
descoberta dos arquivos de Etienne-Jules Marey, em 1972, desconhecidos e inexploradas até
então, um corpus de fotografias feitas com finalidades cientificas e não artísticas. Assim ele
descreve o inicio do seu interesse pela fotografia vernacular:

E’ uma atividade de coleta, ligada à uma abordagem de descoberta e espanto face à


fotografia em uma época em elas eram consideradas um subproduto.32

                                                                                                               
31
FRIZOT, Michel e VEIGY, Cédric de, Toute photographie fait énigme , Paris, Hazan, 2016,p.4
32
ibid. p.208
Evidentemente que o cenário artístico da época, sobretudo a emergência da arte conceitual,
contribuíram para esse interesse por uma fotografia, que embora desprovida de intenção artística,
ou justamente por essa razão, despertava um interesse pelos seus aspectos de documento sem
referência, que provocava uma desorientação com relação ao seu significado. O seu primeiro
texto sobre Marey apareceu na revista Chroniques de l’Art vivant, Spécial Photographie de 1973,
junto com trabalhos de Le Gac e Jochen Gerz.

A incorporação dessa fotografia à história do meio, foi o inicio de outros projetos ligados aos
arquivos de várias instituições publicas, em grande parte fotografias anônimas. A exposição
Identités de 1985, por exemplo pretendeu rastrear a noção de identidade através da fotografia,
utilizando como fonte os arquivos da policia, das maquinas automáticas, fotografias de grupos
escolares, etc.

Esse interesse pela fotografia vernacular está também relacionado ao seu método de estudo e
compreensão da historia da fotografia, ligada intimamente à materialidade do objeto fotográfico.
Este corpus de imagens, estando distantes dos cânones da historiografia, permitia à M.Frizot um
estudo do meio através de sua materialidade, de seus aspectos técnicos, além dos aspectos
estéticos:

Eu sentia a necessidade de me apoiar sobre elementos concretos, de fazer a minha própria


ideia, de apreender a história através de objetos fotográficos verdadeiros, mesmo modestos,
ao invés de reproduções, Isto me permitiu de manter à margem da história canônica já
escrita.33

Toda exposição, composta em sua totalidade por fotografias vernaculares, é obrigada a se


defrontar com a questão de como ordena-las, reagrupa-las, enfim formar um sentido para um
corpus, por sua própria origem, obrigatoriamente heterogêneo. Nesse sentido é nítida a
dificuldade dos curadores em criar categorias, como caixas para conter um grupo de imagens, e
além disso unifica-las pelo fio condutor do enigma provocado pela imagem fotográfica.

Os três eixos temáticos, com subdivisões, em que a exposição é dividida parecem artificiais e os
textos que as acompanham, parecem apenas confirmar a artificialidade do todo, como por

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
 
FRIZOT, Michel e VEIGY, Cédric de, Toute photographie fait énigme , Paris, Hazan, 2016  
33
exemplo na primeira parte intitulada captura tal qual, cujo título nos faz lembrar a subdivisão a
coisa por ela mesma, da exposiçao The Photographer’s Eye, comentada anteriormente. Esta seção
é por sua vez subdividida em três outras. A primeira, O espirito do lugar, é dedicada basicamente
às vistas topográficas, neutras, frontais, e portanto facilmente identificáveis nessa classificação.
Na segunda, O espaço do olhar, o curador agrupa fotografia que só forma sentido a partir do
percurso do olhar, que explora pontualmente a imagem,34 nessa categoria cabe o retrato de uma
menina sentada em uma cadeira, banhistas em uma praia, difícil imaginar uma fotografia que não
se enquadrasse nessa categoria. Na terceira parte, as opções do fotógrafo, lembra outra seção (o
ponto de vista) da exposição do MoMA, citada anteriormente. Ela reúne as imagens onde a
escolha do ponto de vista, o enquadramento, ponto de vista, em geral inusuais do fotografo
formam a tônica. Podemos constatar porém que em muitas imagens o que é surpreendente,
inusitado, não é o ponto de vista do fotografo, mas o objeto fotografado em si, como por exemplo
uma onça fotografada em um estúdio, ou o retrato de um rapaz em pé preso por uma armadilha.

Percebemos, pelas escolhas de M. Frizot, e


por extensão de sua própria coleção, que
ele não busca imagens que pudessem
simular as dos fotógrafos canônicos, e um
pretenso formalismo modernista, ao
contrário ele seleciona as fotografias onde
os erros, e as incongruências são a tônica.
Ele chega mesmo a negar a noção de
coleção ao conjunto de imagens que ele
tem acumulado ao longo do tempo: ... este
conjunto de imagens singulares que,
voluntariamente, não foi concebida como
uma coleção. A ideia de coleção supõe uma
orientação histórica, um fio diretor, uma
temática. 35

A exposição e o catálogo que a acompanha refletem assim um ponto de vista do crítico e


sobretudo do historiador da fotografia, coletor de imagens vernaculares, que tem a clara pretensão
de inscrever esse tipo de fotografia, que esteve esquecida ou relegada, à historiografia do meio, ou
ao menos trazer à público essa produção. Se o mote da exposição é o enigma e a surpresa que
algumas imagens, desprovidas de contexto, podem nos suscitar, sua classificação e ordenamento
em seções estanques, arbitrárias e pouco esclarecedoras sob a natureza das mesmas, nos deixa
a impressão de um esforço curatorial, em oposição ao próprio processo de formação desse
corpus de imagem. Elas são ao contrario heterogêneas, inclassificáveis, conforme o próprio
curador reivindica ao negar o status de coleção ao conjunto de imagens que ele tem acumulado
ao longo do tempo.

                                                                                                               
34
ibid. p.50
35
ibdi. P.208
La Boîte de Pandore, , une autre photographie par Jan Dibbets (Musée d’Art Moderne de la Ville de
Paris, 2016)

A exposição foi concebida pelo artista conceitual holandês Jan


Dibbets, tendo como ideia principal a de escrever uma historia
particular da fotografia, baseado em suas referências e
afinidades. Ele a elabora a partir da constatação de que a
fotografia antes de ser considerada uma arte foi por longo tempo
vista essencialmente como uma técnica. Influenciado pelas ideias
do filosofo Vilém Flusser36, Dibbets convoca igualmente a
fotografia do século XIX produzida com fins científicos
(Muybridge, Etienne Jules Marey), passando pelos artistas de
avant-gardes do inicio do século (Man Ray e Alexandre
Rodtchenko), além dos conceitualistas, como por exemplo John
Bardessari, até chegarmos aos contemporâneos como Thomas
Ruff. E’ portanto a historia da fotografia, vista através do olhar e
das referências de um artista.

O curador reserva um lugar importante à fotografia vernacular, através da obra de cientistas, que
as produziram longe das preocupações próprias ao campo artístico, o que as fizeram originais em
relação à grande parte da produção sob influência pictorial, característica do final do século XIX.O
fato de não ser um historiador de arte, lhe abriu a possibilidade de explorar todas as vertentes da
fotografia. Segundo Dibbets:

Depois de uma semana de leitura, eu cheguei a conclusão, que a fotografia científica era,
com raras exceções, bem mais interessantes que sua vertente artística.

                                                                                                               
36
Vilém Flusser é autor de Por uma filosofia da fotografia,
Invertendo a lógica das outras exposições de fotografias vernaculares, que sugeriam a filiação
destas às “obras primas” da fotografia, Dibbets evoca a influência que este tipo de fotografia,
sobretudo as que fazem uso da serialização e repetição (Muybridge), tiveram nos artistas
minimalista e conceitualistas. Estes últimos aliás a utilizaram sobretudo pelo caráter técnico da
imagem, por ser de fácil manipulação e isenta de qualquer traço de intervenção artística, que
pudesse se sobrepor ao conceito da obra, um documento em suma capaz de registar uma ação
ou um processo. Ora essa era exatamente a função da fotografia nos seus primórdios quando
utilizada com fins científicos. A historia da fotografia montada por Dibbets religa, de maneira
original todas essas “historias” da fotografia, a partir do como a fotografia foi utilizada e não o que
ela registrou.

O que me interessa é fazer de uma maneira que a fotografia gere uma reflexão sobre o meio,
e não sobre seu conteúdo, no sentido descritivo ou narrativo do termo.37

A originalidade da visão e do uso da fotografia


vernacular por Dibbets , se repousa no fato de que ele
não pretende incorpora-la à logica da historiografia do
meio, ou analisa-las segundo aspectos estéticos
tradicionais. O fato de não ter a aparelhagem teórica e
o discurso do historiador de arte, lhe permitiu construir
uma proposição de historia, a partir de bases intuitivas,
buscando o sentido ontológico da fotografia, o que a
constitui em sua essência e como ela se manifesta,
uma exploração do meio fotográfico nas suas
possibilidades situadas além da expressão narrativa e
artística, de intencionalidade original. O que é visado é a
fotografia como experimentação...38

                                                                                                               
37
DIBBETS, Jan Dibbets, Arrêtez de photographier !, entrevista a Erik Verhagen, em La Boîte de Pandore , une autre photographie par Jan
Dibbets, entrevista a Paris, Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 2016, p.19.
38
AMELUNXEN, Hubertus von, La Soupe de Daguerre ou Comment les fins touchent aux origines, em La Boîte de Pandore , une autre
photographie par Jan Dibbets, Paris, Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, 2016, p.135.
Les Adoptés, (galeria Honoré Visconti, Paris, 2016),

A exposiçao Les Adoptés, foi realizada, entre 20 de abril e 8 de maio de 2016, no espaço cultural e
galeria Honoré Visconti, no quadrilátero de galerias que funcionam nas cercanias da Escola de
Belas Artes de Paris. Nesta exposição em uma galeria, onde todas as obras estão à venda, o
processo de deslocamento da fotografia vernacular para o sistema de arte e sua conseguente
mercantilização, é revestido de um caráter ético, pelo fato de faze-las “reviver”, conforme o
enunciado da galeria:

Nos dias atuais onde tantas imagens são produzidas, este trabalho próximo da reciclagem,
não se reveste finalmente de uma certa ética? “salvar” certas imagens do esquecimento, não
é antes de tudo uma maneira de fazer viver um patrimônio?

Contorcionismos verbais a parte, podemos confirmar que o processo iniciado na metade do


século XX, com a incorporação da fotografia vernacular encontra aqui a expressão mais direta e
explicita da incorporação desse tipo de fotografia pelo mercado.

Com curadoria de Laure Flammarion a exposição reuniu sete artistas/colecionadores que criaram
obras a partir de imagens pré-existentes: Katrien De Blauwer, Inès de Bordas, Sébastien
Girard, Dina Kelberman, Thomas Sauvin, Joachim Schmid, John Stezaker et Thierry Struvay, este
ultimo um colecionador belga que podemos considerar como paradigmático do sistema comercial
que já se estabelece em torno da fotografia vernacular.

Thierry Struvay (1961) vive e trabalha em Bruxelas. Ele coleciona fotografias anônimas ha mais de
30 anos, e é representado pela galeria de arte contemporânea belga Sorry We’re Closed tendo
realizado suas primeiras exposições de fotografia vernacular em 2016, primeiro em N.Y. e em
seguida esta em Paris. Embora receba a alcunha de artista, sua intervenção sobre as imagens se
resume a enquadra-las e instala-las espacialmente, porém o que confere a autoria é o olho
“expert” em selecionar e reagrupar um corpus de imagens, entre a infinidade disponíveis no
mercado de pulgas do mundo. A autoria é então deslocada do objeto, já que anônimo, para o
colecionador com seu olhar único e qualificado para identificar “obras primas”. Assim o valor da
mercadoria, não se faz pelo objeto em si, em todo caso fotografias quase banais, mas pelo valor
agregado por ter sido selecionada por este ou outro colecionador/expert, este é aliás o caso da
Coleção de Thomas Walther visto anteriormente.
resistência à artificaçao

A resistência ao processo de artificaçao da fotografia vernacular já se faz sentir e ela visa


basicamente a reservar esse tipo de imagens ao campo da antropologia, da sociologia e da esfera
cultural, questionando os processos que pretendem adicionar aura a artefatos culturais.
Pierre Bourdieu39 em 1965, já analisara, a produção crescente da fotografia familiar associando-a
ao desenvolvimento das esferas do lazer, da diversão, a maior disponibilidade do tempo livre, das
viagens e do turismo. Se esses estudos podem ser considerados os primeiros a se interessar por
esse tipo de imagens, eles claramente as situam como artefato cultural típico da emergência de
uma sociedade de massas do pós guerra, e não como objetos estéticos passiveis de uma
legitimação artística.

Precisamos ainda situar temporalmente a emergência da artificação da fotografia vernacular, mas


estudos recentes já anunciam uma resistência a esse processo. Em 2008 a revista francesa
Études photographiques (n° 22) dedica um número especial ao tema, com o titulo sugestivo de
Histoires d’un art moyen / Les réseaux de l'art, referência direta ao titulo da publicação organizada
por P.Bourdieu. Nesse número o historiador da fotografia Geoffrey Batchen publicará o artigo Les
snapshots, L’histoire de l’art et le tournant ethnographique, onde analisa os catálogos das
exposições Snapshots : The Photography of Everyday Life, 1888 to the Present, publicado pelo
MoMA de São Francisco em 1998, e Other Pictures, catálogo da exposição publicado em 2000
com “snapshots”40 provenientes da coleção Thomas Walther, que ocorreu no Metropolitan
Museum of Art de Nova York. G.Batchen constrói uma análise crítica ao processo de
deslocamento e descontextualizarão dessas imagens que a artificação promove:

Nos dois casos, as imagens selecionadas são apresentadas com um mínimo de aparelhagem
crítica, à razão de uma imagem por página, sem ordem cronológica particular, como um monte de
objetos preciosos de arte. E por que não? Isolados, desprovidos de sentido que poderiam lhes dar
seu contexto original, estas imagens se tornam preciosas e mesmo extraordinárias.41

Ele argumenta ainda sobre a maneira como a história da arte, ao remodelar o estudo da fotografia,
em prol de uma inserção no sistema de arte, esvazia o sentido cultural e social dessas imagens
vernaculares:
Estas publicações nos ensinam algo sobre os snapshots enquanto fenômeno cultural ou
social, ou mesmo enquanto experiência pessoal? Resposta: quase nada. Por outro lado,
sobre o que elas nos informar largamente, é a influência persistente de um certo tipo de
história da arte sobre o estudo da fotografia42

Rosalind Krauss é outra crítica a essa passagem da não arte para arte e o consequente
esvaziamento de conteúdo e significação por que passam as imagens a serem submetidos a um
processo de deslocamento para o sistema das artes:
Hoje, em todo lugar, tenta-se desmantelar o arquivo fotográfico, quer dizer, o conjunto das
práticas, instituições, relações das quais surgiu inicialmente a fotografia do século 19, para
reconstruí-lo no quadro das categorias já constituídas pela arte e sua história. Não é difícil
imaginar quais os motivos de semelhante operação, mas o que é mais difícil de entender é
a indulgência para com o tipo de incoerência que isso produz. 43
                                                                                                               
39
BOURDIEU,Pierre et alii,, Un art moyen Essai sur les usages sociaux de la photographie, Paris, 1965.
40
« Snapshot », termo em inglês para fotografia amadora realizada no âmbito familiar/doméstico.
41
BATCHEN, Geoffrey, Les snapshots, L’histoire de l’art et le tournant ethnographique, em: Études photographiques, n° 22, Paris, 2008,
p.13
42
ibid. p.14.
43
KRAUSS, Rosalind, Os espaços discursivos da fotografia, revista de Programa de Pos-Graduaçao em Artes Visuais, EBA, UFRJ, 2006
C. ZUROMSKIS, por sua vez, em um artigo no periódico Art Jornal, de 2008, se posiciona
criticamente contra o esvaziamento do sentido cultural dessas imagens pela ação discursiva dos
museus de arte, ela analisa nesse artigo especialmente as exposições Other Pictures e
Close to Home:An American Album , J. Paul Getty Museum's (2004):

Ambas, apesar de abordagens drasticamente diferente, estão presas entre a função da


imagem e a estética rarefeita do museu. Independentemente da visão curatorial, parece que
o snapshot que entra no museu é consistentemente enquadrado pela retórica institucional
da fotografia de arte modernista. Snapshot são percebidos para capturar, embora de forma
efêmera e acidental, a visão da fotografia de arte modernista. 44

conclusao

As varias exposições analisadas, permitiu formar um panorama das diversas abordagens


curatoriais e institucionais, com o objetivo de compreender o fenômeno da incorporação da
fotografia vernacular pelos museus e a consequente redefinição do status dessas imagens,
contribuindo para sua incorporação ao circuito de arte.
Pudemos observar que J.Szarkowski (The Photographer’s Eye) pretendeu organizar a sintaxe da
fotografia do Séc.XX, conferindo legitimidade à fotografia vernacular ao expo-las lado a lado com
os cânones modernistas. Essa estratégia, pioneira em um museu de arte, se teve o mérito de
recuperar esse tipo de fotografia, o fez às expensas do esvaciamento de seu conteúdo cultural
original.
Trinta anos depois Douglas Nickel (Snapshots : The Photography of Everyday Life), decide expor
somente snapshots, sem o contraponto das obras de autores reconhecidos, inserido em um
projeto de resgate da cultura visual através da fotografia verncaular. Embora não negue a
importância desse tipo de fotografia como parte aparato cultural e antropológico, ele nao deixa de
colocar em valor seus aspectos estéticos relacionados com a fotografia modernista, reivindicando
as possibilidades inerentes ao meio de se abrir à novas interpretações e usos, especificamente
seu deslocamento da esfera privada à fruição pelo grande público em uma instituição de arte.
Mia Fineman e Thomas Walther (Other Pictures), são os que vão mais além, não só nas escolhas
das obras quanto no discurso, na vontade de transformar o fotógrafo anônimo em um artista além
de revelar pela primeira vez a figura do colecionador/co-autor das imagens, pelo processo de
descoberta e seleção das imagens, atribuindo um valor agregado às imagens originalmente
desprovidas de valor comercial ou estético.
Michel Frizot e Cédric de Veigy (Toute photographie fait énigme), retomam a linhagem dos
colecionadores, aqui adicionado da visão própria ao historiador de arte, assim a exposição, ao
recuperar imagens, em sua grande maioria que colocam um enigma pelo estranhamento ou pelo
inusitado. Ela refletem assim um ponto de vista do crítico e historiador da fotografia, coletor de
imagens vernaculares, que tem a vontade de inscrever esse tipo de fotografia à historiografia
oficial e ao mesmo tempo traze-la à público.
Jan Dibbets (La Boîte de Pandore), a partir de sua visão de artista recria a sua própria historia da
fotografia, convocando a fotografia vernacular cientifica do século XIX como a iniciadora da
linhagem da fotografia, provocando uma reflexão sobre o meio fotográfico, considerado por ele
como um preferencialmente experimental antes que narrativo. Assim ele privilegia a fotografia
técnica, documental em detrimento da fotografia amadora doméstica.
Finalmente em Les Adoptés, temos a consolidação do processo iniciado na metade do século XX,
                                                                                                               
44
ZUROMSKIS, Catherine, Ordinary Pictures and Accidental Masterpieces: Snapshot Photography in the Modern ArtMuseum, Art Journal,
CAA, vol.67, n°2, 2008, p.122.
com a recuperação da fotografia vernacular pelo discurso do espaço expositivo, via museus de
arte, e que nesta exposição e venda em uma galeria de arte encontra a expressão mais direta e
explicita da incorporação desse tipo de fotografia pelo mercado.

publicações

Em paralelo ao campo das artes visuais é no campo das publicações que essas imagens ganham
nova vida, assim o livro configura-se em um novo suporte para essas imagens, que na maior parte
foram originalmente abrigadas em um álbum de família.
Autores como Joachim Schmid, Joan Fontcouberta, Erik Kessels se servem do suporte livro para
construir novas narrativas a partir de imagens de autores anônimos. Outras publicações restituem
o crescente interesse de estudiosos e colecionadores pelo tema: Vernaculaire (Clément Chéroux),
Anonymous: Enigmatic Images from Unknown Photographers e Being Human: Enigmatic Images of
People by Unknown Photographers (Robert Flynn Johnson). Catálogos de exposições são outra
forma de inscrever essas imagens no suporte impresso.

bibliografia

BATCHEN, Geoffrey,2008, Les snapshots L’histoire de l’art et le tournant ethnographique, Paris,


Études photographiques, n° 22, 2008, pp 4-37, originalmente publicado em Snapshots:
Art History and the Ethnographic Turn, Photographies, 2008, London, pp 121-142.
BRUNET, François, La photographie, éternelle aspirante à l’art, em: De l’artification, Enquêtes sur le
passage à l’art, HEINICH, Nathalie e SHAPIRO, Roberta (org, Éditions de l’École des
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A lista abaixo, não exaustiva, enumera algumas das exposições, dos últimos setenta anos, em que
a fotografia vernacular fez parte, em caráter único ou associadas a imagens já possuidoras de um
status artístico.

The American snapshot, 1944

The Family of Man (1955)

The Photographer’s Eye, 1964, MoMA, NY, curador: John Szarkowski

Atlas, Gerard Richiter, (Documenta X, Kasel, 1997)

Crossing the Frontier: Photographs of the Developing West, 1849 to the Present, (MoMA, San
Francisco)

Police Pictures: The Photograph as Evidence, (MoMA, San Francisco),

Snapshots : The Photography of Everyday Life, 1888 to the Present (MoMA, San Francisco,1998),

Other Pictures, (Metropolitan Museum of Art, New York, 2000),

Close to Home:An American Album , J. Paul Getty Museum's (2004).

Joachim Schmid, Various portraits, (Artothèque Les arts au mur, Pessac, 2011),

Photos trouvées, photographies d'amateurs du 20ème siècle (Maison Doisneau, Paris, 2014/2015),

Snap Noir: Snapshot Stories, from the Collection of Robert E. Jackson. Pace/MacGill Gallery, 2013.

Toute photographie fait énigme (Maison Européene de la Photographie, Paris, 2015/2016),


`
Les Adoptés, (galeria Honoré Visconti, Paris, 2016),

La Boîte de Pandore : histoire de la photographie conceptuelle, (Musée d’Art Moderne de la Ville de


Paris, 2016)

Papiers s’il vous plaît! (Maison Doisneau, Paris, 2016),

Images à charge, la construction de la preuve par l'image (Le Bal, Paris, 2016),

no Brasil:
Interior profundo: Mestre Júlio (Pinacoteca, São Paulo, 2012),

Fotopinturas, Coleção Titus Riedl (Galeria Estação, São Paulo, 2011)


Retrato Popular - do vernáculo ao espetáculo ( Sesc Belenzinho, São Paulo, 2011)

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