Latusa Digital, Ano 3, N. 22, Maio 2006 - BARROS, Maria Do Rosário Collier Do Rêgo. Interpretar o Inconsciente Hoje

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Latusa digital – ano 3 – N° 22 – maio de 2006

Interpretar o inconsciente hoje*

Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros**

Interpretar o inconsciente hoje é visar no trabalho de análise à construção


do sinthoma. O sinthoma não espera a análise para se construir. Mas a
forma como ele se apresenta no início, conjugando gozo e significante, está
com freqüência a serviço da determinação mortífera do sujeito, à mercê do
empuxo ao gozo. Visar no sujeito o sinthoma, desde o início de uma
análise, requer pensar a interpretação como corte.

O trabalho da Oficina sobre Interpretação e inconsciente que nomeamos:


“Dizer além do pai” tem buscado situar o efeito do corte na invenção e
transformação do sinthoma. Existem várias maneiras de se fazer corte
numa análise. Estamos mais habituados a situá-lo entre os significantes da
cadeia, entre S1 e S2. Mas o desafio que se coloca hoje para o analista, ao
lidar com situações clínicas nas quais o empuxo ao gozo tende a se
infinitizar numa repetição que não produz seu ponto de basta, é conseguir
situar o corte entre S1 e a. Nesse caso o corte visa o acontecimento do
corpo e o sujeito é convocado a dizer ou a produzir sua forma singular de

*
Este texto é fruto das discussões da Oficina I - Dizer além do pai: Inconsciente e
interpretação, coordenada por Cristina Duba e Maria do Rosário do Rêgo Barros, que
também faz parte da Comissão Científica das XVII Jornadas Clínicas da EBP-Rio. Participam
dessa oficina: Andréa Araújo; Astréia Gama e Silva; Ana Beatriz Bernat; Ana Lúcia
Lutterbach Holck; Ana Tereza Groisman; Ana Ma Ferreira da Silva; Angela Bernardes; Angela
Batista; Clarissa Ramalho; Cristina Bezerril; Cristina Lutterbach; Denize Prad; Deborah Uhr;
Eliana Barros; Fernanda Dias Andrade; Fernanda Dias Campos; Fernando Coutinh; Flávia
Brasil; Glória Maron; Hena Lemgruber; Inês Lamy; José Alberto Marques Affonso Ferreira;
Lenita Bentes; Maria Angela Maia; Maria Lúcia Petraglia; Marilena Cambeiro; Mônica Rolo;
Norberto Pires; Paula Borsoi; Selma Ranieri; Simone Avolio; Vanda Assumpção Almeida.

**
Analista praticante – AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação
Mundial de Psicanálise (AMP).

1
se virar com ele. O ponto de basta aí será a própria construção do sinthoma
como índice da não relação sexual, como índice da impossibilidade de
absorver o sujeito na cifra mortífera do seu gozo. O sinthoma se constrói a
partir dessa cifra, transformando-a. Há uma diferença entre o “tu és isso”
da determinação primordial do sujeito, que conjuga significante (S1) e gozo
(a), e o “tu és teu sinthoma”, que inscreve entre os dois uma perda, uma
hiância. Para produzir a passagem de um ao outro é preciso resgatar o
sujeito dividido entre a letra, marca sem sentido, e a interpretação
enquanto ela articula gozo e sentido. O corte introduz entre as duas um
vazio, um silêncio, uma pausa, e então o sujeito pode se responsabilizar
pelo seu gozo porque não fica mais à mercê do imperativo pulsional
mortífero.

Isso nos leva a pensar a interpretação pelo seu avesso, que permite a
articulação entre corte e construção. No ensino de Lacan, a interpretação é
apresentada desde o início como algo diferente de uma metalinguagem.
Dizer que a interpretação não é uma metalinguagem é colocar, na base de
todo trabalho interpretativo, o corte com o referente. O referente não é
algo já dado e articulado, a ser apreendido por uma linguagem de nível
diferente. O referente é um gozo sem sentido, que deixa marcas de uma
perda inevitável para todo ser falante. A interpretação não é suplementar;
ela faz parte do próprio trabalho do inconsciente por haver defasagem
entre escutar e dizer, entre escrever e ler. Em seu curso Os signos do gozo,
Jacques-Alain Miller se pergunta o que é a interpretação analítica quando
situamos o inconsciente levando em conta o significante não só a partir do
seu efeito de significação, mas também do seu efeito de gozo. Ele explora
as indicações do ensino de Lacan nas quais a dimensão de signo do
significante é proposta como letra. Lacan se diferencia aí de Pierce, ao
situar a letra como significante despojado de qualquer valor de significação
e não como o que representa alguma coisa para alguém, que estaria
relacionado à consciência.

Lacan reintroduz o signo, depois de ter proposto o significante como o que


representa um sujeito para outro significante. Aqui o sujeito é a variável

2
que desliza na cadeia, sempre evanescente. A questão de Lacan será como
manter a dimensão do sujeito a partir do signo que implica o corpo e
produz gozo fora da cadeia S1-S2. O signo lacaniano não elimina o sujeito
em prol da consciência, mas lhe dá um lugar no efeito de perplexidade
diante do encontro traumático, em que há excesso sem significação, sem
possibilidade de subjetivação. O sujeito aparece no próprio lugar onde se
produzirá o enigma.

O inconsciente é, então, aquilo que se escreve nas marcas de gozo


deixadas pelo encontro com o significante traumático. No capítulo XVI de
Os signos do gozo1, Miller apresenta a interpretação como leitura, que se
refere à apreensão do cifrado fora de sentido, fora da significação e,
portanto, fora de toda compreensão, de toda comunicação.

Apreender o significante como escritura permite dar ao que se enuncia na


fala uma leitura diferente de efeito de significação. A leitura produzirá não
uma significação, mas uma redução. É importante articular a relação da
redução com a interpretação como corte, que é o que J.-A. Miller indica
como o avesso da interpretação2. O corte produz uma extração de gozo, e
assim restitui a dimensão de extimidade do objeto, evitando que se caia no
engodo, muitas vezes catastrófico, de visar à subjetivação impossível do
excesso de gozo pela via equivocada de uma suposta retificação subjetiva
ou de uma pretensa responsabilização do sujeito. Lacan disse bem que se
responsabilizar é responder pela não relação sexual.

É preciso, portanto, dar chance ao sujeito de extrair da experiência


traumática de gozo aquilo que não faz relação sexual, o que não é
complementaridade de gozo. Com isto se visa restaurar a relação do que é
contingente na experiência traumática com a perda de gozo, que é
inevitável. A leitura que faz corte, faz também marca a partir da perda que
produz. Ela produz o sujeito como corte em relação ao objeto, que se

1
MILLER, J.-A. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós, 1998.

2
MILLER, J.-A. “A interpretação pelo avesso”. Em: Opção Lacaniana, n° 15. São Paulo: Eolia,
abril de 1996.

3
constitui como extimidade e dá, assim, a chance de se construir uma ficção
que vise à separação.

A interpretação pensada no nível da lalíngua se relaciona com uma nova


abordagem do sintoma. O conceito de sintoma atualizado a partir da
alíngua ganhará uma nova escrita: sinthoma, que se refere ao que cai
junto, ao que coincide. Isso indica que o sinthoma é construído a partir da
contingência de uma coincidência, que articulou significante e gozo de
forma totalmente sem sentido. O sinthoma como novo conceito, como
noção transclínica, inclui sintoma e fantasia, sintoma e gozo.

Faz parte da definição de sinthoma que gozar do corpo é gozar do


inconsciente3. Isso não quer dizer que graças ao inconsciente há gozo do
corpo, mas que ao gozo do corpo corresponde um gozar do inconsciente. E
isso, diz Miller, entranha a nova definição do sinthoma. O sintoma depende
de como cada um goza do inconsciente. O inconsciente é então essa
ausência de significação prévia, essa fenda que se abre e pede
interpretação, o que pode levar a um trabalho sem fim, pois cada
decifração pode constituir um enigma que pede mais decifração.

Mas pode acontecer também que o inconsciente não interprete e que o


sinthoma não consiga se constituir, pois o signo não se deixa decifrar e,
assim, não cede algo do gozo que está entranhado nele. Temos, então,
numa prática que visa o sinthoma, um trabalho duplo: o de introduzir a
decifração e o de produzir seu ponto de basta.

A concepção do inconsciente e da interpretação como leitura4 produz uma


revirada no trabalho de decifração. Este não estaria apenas a serviço de
uma nova cifração, princípio da análise interminável, mas produziria um

3
MILLER, J.-A. Los signos del goce, op. cit., p. 272.

4
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor,
1985. Lacan formula aí que o inconsciente é antes de tudo o que se lê, o que é distinto de
dizer que o inconsciente fala. Miller, J.-A. Op. cit., p. 281: “Afirmar que o inconsciente é
antes de tudo o que se lê, é formular que ele é da ordem do que se escreve. [...] Enquanto a
fala só capta de forma lateral o referente, a escrita oferece um acesso direto a ele, na
medida em que a referência que conta para nós é o gozo”.

4
ponto de basta, que seria a própria construção do sinthoma. Pensá-lo dessa
forma leva a dar mais um passo, seguindo a indicação de Lacan retomada
por Miller5, para pensar a letra como borda, como limite, que é o que
escreve o sinthoma.

Nesse trabalho de decifração o analista não pode interpretar da mesma


forma que o inconsciente, rivalizando com seu potencial interpretativo.
Quando isso acontece o analista nutre a forma como cada um delira em
suas interpretações. A leitura, ao contrário, localiza o gozo do sujeito na
interpretação, que fixa sua frase fantasmática. A brecha que ela introduz
entre a letra – “destino escrito” – e a interpretação situa o sentido gozado
no domínio da ética, da escolha, e não no domínio implacável de uma
determinação, como se ela fosse absoluta. A operação analítica pode
introduzir a dignidade ética do sujeito em seu sintoma, onde ele goza do
inconsciente que o determina.

Uma prática que visa no sujeito o sinthoma, quando ele é pensado levando
em conta o jouissens da fantasia, não pode interpretar à maneira do
inconsciente. Para interpretar na contramão do inconsciente, para além do
princípio de prazer, não se pode contar com a eficácia do poder de
metaforização do gozo pelo pai, ou da construção do saber que falta à
cadeia. Não basta a busca da verdade. Será necessário pensar a
interpretação como corte na conjunção significante e gozo, entre S1 e a,
como também na conjunção do imaginário com o sentido, para restabelecer
ao mesmo tempo a conexão e a divisão entre o sujeito e seu gozo. O gozo
que divide o sujeito pode estar então na causa da separação. O corte é
importante porque faz aparecer a dimensão ética da escolha naquilo que
liga gozo e sentido e assim faz aparecer o que do sentido toca o real.

Tal como o sinthoma, a fantasia não se interpreta, não se decifra, mas se


constrói. E sua construção já indica um trabalho de redução. Situar a
interpretação apenas do lado do analista impediu, por muito tempo,

5
MILLER, J.-A. Cours de L´Orientación Lacanienne (2004-05), Pièces détachées. Inédito,
aula de 12 de Janeiro de 2005.

5
perceber que a interpretação é primordialmente do inconsciente, no sentido
de que é o inconsciente que interpreta. O delírio é uma forma de
interpretação. A equivalência inconsciente/interpretação nem sempre
produz o sujeito suposto saber. Ela pode se fixar e proliferar como certeza
nas variadas formas que as interpretações se impõem, na psicose, na
experiência das palavras impostas.

Lacan foi buscar na psicose o que faz ponto de basta quando não se pode
contar com o significante da metáfora paterna para amarrar significante e
significado, significante e gozo. Ele encontra na psicose elementos não
standards que fazem amarração de forma singular. Interpretar na
contramão do inconsciente é buscar, nos significantes propriamente
elementares a partir dos quais cada um alimentou seu próprio delírio, suas
interpretações, o que faz ponto de basta. A leitura será situada então como
o que reconduz o sujeito ao fenômeno elementar que se encontra na
lalíngua.

É importante lembrar o que Lacan diz sobre a lalíngua: ela não é senão os
equívocos na íntegra, esses que a história deixou persistir. Trata-se então
de aprender a manejar uma decifração que não produz sentido, mas que
faz ressonância a partir dos equívocos da lalíngua que indicam o ponto no
qual o inconsciente se cala, pois pode dizer “é isto”, está nomeado. A
nomeação faz corte, pois cava um vazio que indica que não há decifração
absoluta, que existe algo impossível de cifrar. O equívoco interpretativo não
abre a todos os sentidos, não apela para o incompreensível. Como lembra
Laurent, em seu texto “Interpretar a psicose no cotidiano”, “o equívoco
quer dizer que o jogo com o sentido é suficiente para que haja silêncio,
para que o significante possa se decompor, ser quebrado, para que ele não
se produza nem pela concatenação sem fim, nem pela significação
congelada”.6

6
LAURENT, É. “Interpréter la psychose au cotidien”. Em: Mental, n° 16. Paris: NEL, outubro
de 2005.

6
O analista se situa como pivô de um duplo movimento: religar o sujeito ao
lugar do Outro para permitir dele separar-se. Visar o ponto de separação é
apreender o ponto em que o analista “terá estado” quando se produziu o
desligamento do Outro, ponto em que o sujeito se experimentou separado
do Outro e que aparece como significante sem sentido, que produz
perplexidade. No artigo citado, Laurent lembra que “em sua interrogação
do ato analítico, Lacan nota que a verdadeira originalidade do método
psicanalítico é constatar que o analista já está lá na história do sujeito, em
algum ponto de sua história”7. É nesse ponto que faz ruptura, no qual o
analista “terá estado”, que ele deve advir para produzir separação. Mas
para que isso possa acontecer será necessário enganchar o sujeito no
trabalho da transferência, instalando pelo dispositivo analítico o lugar do
Outro de maneira que a tradução feita pelo inconsciente inclua seu ponto
de basta, de silêncio.

O lugar do Outro implica um vazio, um silêncio que dá estofo e


credibilidade aos significantes que nomeiam, que não é absoluto nem
relativo, mas singular. O sujeito não se reduz a um efeito de significação,
mas é aí resposta do real. Para obter essa resposta é necessário introduzir
no campo do Outro a castração como furo impossível de ser anulado,
preenchido. Lacan demonstra isto em seu Seminário De um Outro ao
outro8, no qual propõe uma nova topologia do sujeito e do Outro, que
articula a consistência lógica do objeto a com o mais-de-gozar. Assim, ele
abre caminho para pensarmos a interpretação como corte que visa o
sinthoma pela construção das bordas do furo que, ao mesmo tempo, liga e
separa o sujeito e o Outro, o que é possível, mas de forma diferente, tanto
na neurose como na psicose.

7
Idem, p. 23.

8
LACAN, J. Le Séminaire, livre XVI: D´un Autre à l´autre. Paris: Seuil, março de 2006.

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