(20240300-PT) National Geographic

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N AT I O N A L G E O G R A P H I C .

P T | MARÇO 2024

ALERGIA AO

A epidemia imparável do século XXI


N.º 276 MENSAL

ENTRE AS HIENAS M AT E R N I DA D E TA R D I A , ESTARÁ UM QUADRO


MALHADAS, AS FÊMEAS A R E VO LU Ç ÃO DE EDWARD HOPPER
OCUPAM O PODER R E P RO D U TO R A EM PORTUGAL?
NotíciasFlix

N AT I O N A L G E O G R A P H I C MARÇO 2024

S U M Á R I O

2 26
Na capa
Imagem microscópica
de um grão de pólen
de carvalho-branco.
O aumento da produção
Pólen, porque há Hienas-malhadas: de pólen tem
tantas alergias? as últimas a rir desencadeado uma
Há poucas décadas, a alergia Entre as hienas-malhadas, epidemia de alergias.
ao pólen era um doença típica as fêmeas é que mandam e © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2016,
COM O APOIO DO INSTITUTO DE
das classes mais favorecidas, talvez seja esse o segredo PATOLOGIA DO HOSPITAL
mas afecta agora muito mais do seu sucesso. Vivem em UNIVERSITÁRIO DE BASILEIA
E BIO-EM LAB, BIOZENTRUM,
indivíduos e a tendência está clãs socialmente complexos de UNIVERSIDADE DE BASILEIA
claramente em crescimento em 6 a 130 aninais. Embora pareçam
grande parte do mundo à cães, são parentes mais
medida que as alterações próximos dos gatos e, contraria-
climáticas, o aumento da mente à crença popular, não
poluição e os estilos de vida são apenas necrófagas:
cada vez mais sanitizados são caçadoras eficientes.
exacerbam as crises polínicas. T E X T O D E C H R I S T I N E D E L L’A M O R E
T E X T O D E E VA VA N D E N B E R G F OTO G RA F I A S D E J E N G U Y TO N

KURT OBERROSLER / GETTY IMAGES


R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S

52
A S UA F OTO

VISÕES

EXPLORE
Maternidade tardia: Viver com albinismo
a revolução da reprodução
A ciência e a tecnologia estão Inscrito na pele
a revolucionar os limites da Fernando Trujillo
fertilidade humana. Graças a Armaduras para animais
novas técnicas de reprodução
assistida, cada vez mais mulheres GRANDE ANGULAR
são capazes de dar à luz em
idades tardias. E isto parece ser Uma janela indiscreta
o início de um novo processo.
E D I TO R I A L
T E XTO D E R E B E C C A T U H U S - D U B ROW
F OTO G R A F I A S D E JAC K I E M O L LOY
BASTIDORES
Portal no deserto

78
P RÓX I M O N ÚM E RO

Galeria de areia e pedra:


arte rupestre na Argélia
O desconhecido e recôndito Parque
Nacional de Tassili n’Ajjer, situado
no Saara argelino, encontra-se
entre as maiores zonas protegidas
de África e esconde um tesouro
geológico e histórico perdido no
tempo: está aqui o maior museu
de arte rupestre do mundo.
T E X T O D E H E N R Y W I S M AY E R
F O T O G R A F I A S D E M ATJ A Ž K R I V I C

92
Em busca de naturezas vivas
Uma fotógrafa viajou pelo
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Canadá, criando retratos de w página de Internet:
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V I S Õ E S | A SUA FOTO

J O S É A LV E S A coruja-do-nabal é uma espécie que se instala em Portugal durante o Inverno em zonas húmidas. Sabendo
da sua presença nas salinas da Figueira da Foz, o fotógrafo escondeu-se no interior de uma ruína e esperou pela sua sorte.
J O S É F E R R E I R A Na praça de touros Celestino Graça, em Santarém, o autor encontrou na imagem deste espectador
anónimo, isolado na bancada, uma metáfora para o problema crónico da solidão e isolamento dos mais velhos.

C A R L O S A N T U N E S O fotógrafo e líder de viagens visita recorrentemente a Namíbia, mas nunca se cansa da paisagem
dinâmica do Parque Nacional Namib-Naukluft, o deserto mais antigo e com as dunas mais altas do mundo.
V I S Õ E S
Canadá
Uma mulher observa a
aurora boreal nas margens
do lago Maligne, no
Parque Nacional de
Jasper. Esta área protegida
repleta de lagos, picos
e cumes no extremo
setentrional das
montanhas Rochosas
está classificada como
Património Mundial.
ISTOCK
Indonésia
As formigas-verdes-
-arborícolas (Oecophylla
smaragdina) utilizam
o próprio corpo para
formar uma ponte de
ligação entre duas folhas.
Estes insectos estabelecem
enormes colónias e
constroem formigueiros nas
copas das árvores, tecendo
estruturas com a seda
produzida pelas larvas.
ISTOCK
China
Filas de lanternas
vermelhas iluminam a
antiga Rua Jinli, na cidade
de Chengdu, no centro do
país, por ocasião da
celebração do Festival das
Lanternas. A festa conclui
as celebrações do Ano
Novo Chinês cujas raízes
remontam há mais de dois
mil anos até à época
da dinastia Han.
PHILLIPPE LEJEANVRE / GETTY IMAGES
E X P L O R E

VIVER COM
ALBINISMO
Uma condição hereditária, rara e irreversível.

O QUE É? Q U E M A F E C TA? Q UA I S O S R I S C O S ?
É uma distúrbio que con- Embora existam casos A Organização das Nações
siste na redução ou falta em todas a regiões do pla- Unidas calcula que, em
de produção de melanina, neta afectando populações África, 98% das pessoas
o pigmento que protege fenotipicamente muito albinas morram antes de
a pele da luz ultravioleta e distintas, é na África Sub- completar 40 anos. Ao
que colora a pele, cabelo saariana que se encontra cancro de pele, a principal
e olhos. Em pessoas com a maior prevalência. Aqui, causa de morte, somam-se
albinismo, a pele assume em pequenas comunida- as mortes violentas cau-
diferentes tonalidades des rurais, com elevada sadas pelo preconceito e
dependendo da quanti- consanguinidade e baixa superstição. No Malawi,
dade de melanina. Além diversidade genética, os um dos países com maior
dos riscos associados às casos de albinismo podem incidência de albinismo
lesões cutâneas por falta de ser dez vezes superiores calcula-se que existam
protecção contra a radiação à média global. 134.000 casos e em 2019
solar, as pessoas afectadas Calcula-se que uma o serviço de saúde
têm com frequência pro- em cada 17.000 pessoas dispunha de apenas
blemas graves de visão. sofrerá deste distúrbio. quatro dermatologistas.

F OTO G RA F I A D E MAG RODRIGUE S

T E X T O D E A L E X A N D R E VA Z
“Muitas pessoas não
sabem que sou albina e
acham que sou russa ou
alemã. Procuro sempre
informar as pessoas sobre
o conceito e quais os
cuidados a ter com a
pele”, diz Gabriela Filipe,
angolana de 24 anos
residente em Lisboa.

OS NUMEROS
´

30
VA L O R M E N S A L D O C U S T O D O
PROTECTOR SOLAR (EM EUROS)

209
ALBINOS VÍTIMAS DE HOMICÍDIO
EM ÁFRICA ENTRE 2008 E 2018

75.000
VA L O R E M E U R O S Q U E P O D E M
AT I N G I R O S R E S T O S M O RTA I S D E U M
A L B I N O N O M E RC A D O DA F E I T I Ç A R I A

FONTES: NAKKAZI, E. (2019). PEOPLE WITH ALBINISM IN AFRICA: CONTENDING WITH SKIN CANCER. THE LANCET, 394. TAMBALA-KALIATI T. ET AL.(2021). LIVING WITH ALBINISM IN
AN AFRICAN COMMUNITY: EXPLORING THE CHALLENGES OF PERSONS WITH ALBINISM IN LILONGWE DISTRICT, MALAWI.
E X P L O R E | D E S C O B E RTA S

Seguir o líder
O plástico e a poluição luminosa
nas linhas de costa dificultam a
chegada das tartarugas mari-
N OT Í C I A S DA L I N H A nhas recém-nascidas ao oceano,
DA F R E N T E DA C I Ê N C I A mas um pequeno robot tarta-
ruga, concebido por investiga-
E D A I N O VA Ç Ã O dores da Universidade de Notre
Dame, pode guiá-las por cami-
nhos seguros. — A N N I E R O T H

SAUDE
´ E MEDICINA

Ouvir mal
por falta de
um dente
Um implante
dentário faz o
trabalho de um
dente real, aju-
dando a masti-
gar, a falar e a sorrir,
mas também tem
o potencial de as
ajudar a ouvir. Um
estudo desenvol-
vido na Universi-
dade de Tongji,
em Xangai, revelou
que o osso maxilar
transmite sons ao
GENÉTICA ANIMAL
ouvido interno tão
bem como o osso

INSCRITO NA PELE mastóide. A desco-


berta pode levar ao
D U A S G I R A F A S , U M A E M E S TA D O S E LVA G E M E O U T R A desenvolvimento
E M C AT I V E I R O , F O R A M V I S TA S S E M A S S U A S P I N TA S . de aparelhos audi-
tivos com implan-
Os traços característicos de uma girafa são o pescoço comprido,
a cabeça com protuberâncias e a pelagem manchada. Mas nem
tes dentários que
sempre isso acontece. Uma girafa sem manchas foi recentemente sejam confortáveis
fotografada pela primeira vez na natureza numa reserva de caça e discretos. — A R
privada na Namíbia (em cima). O avistamento ocorreu poucas
semanas depois de ter nascido outro animal com uma coloração
semelhante num zoológico do Tennessee. Não há dados que
sugiram que a pelagem castanha sólida esteja a surgir com maior
frequência do que no passado, mas é uma coincidência surpreen-
dente, explica Sara Ferguson, coordenadora de saúde da Fundação
para a Conservação das Girafas. O último avistamento de uma
girafa castanha ocorrera em 1972, num zoológico de Tóquio.
Os animais não parecem estar em desvantagem, contrapõe Derek
Lee, co-autor de um estudo de 2018 que descobriu que alguns
aspectos das marcas de girafa são transmitidos de mãe para filho.
As girafas castanhas não têm qualquer mancha? Para Derek, tec-
nicamente são “girafas de uma mancha só”. — D I N A F I N E M A RO N

A PARTIR DO TOPO: YASEMIN OZKAN-AYDIN: ECKART DEMASIUS E FUNDAÇÃO PARA A CONSERVAÇÃO DAS GIRAFAS; EDWARDOLIVE, GETTY IMAGES/ISTOCKPHOTO
O FUTURO DA

publirreportagem
BIOECONOMIA LEVA-NOS
DE VOLTA À FLORESTA
Apesar da crescente consciência da necessidade de
uma economia mais circular, os sistemas económicos
dominantes permanecem alicerçados na mentalidade de
“extrair-produzir-descartar” e na crescente sobre-exploração
dos recursos. Segundo dados do Circularity Gap Report
(2020), apenas reutilizamos 8,6% dos mais de 100 mil milhões
de toneladas de materiais que extraímos anualmente.
Para conseguirmos cumprir as metas estabelecidas para
o aquecimento global, é imperativo fazer a transição
para uma economia circular, cujo princípio seja
extrair/reciclar-produzir-reutilizar/reciclar. A solução mais
eficaz é substituir os recursos não renováveis por renováveis,
isto é, por matérias-primas que têm a capacidade de ser
regeneradas de forma sustentável, aumentando o potencial
de nos permitir satisfazer as necessidades da Humanidade,
permanecendo dentro dos limites do Planeta – é a chamada
bioeconomia circular.
Num modelo de bioeconomia que inclua a floresta –
bioeconomia circular de base florestal –, os recursos
biológicos têm origem em florestas plantadas geridas de
forma responsável, permitindo atuar em três frentes que se
reforçam mutuamente: aumentar o armazenamento de
carbono nas florestas; melhorar a saúde e a resiliência da
própria floresta, através da gestão florestal; e utilizar os
recursos da madeira de forma sustentável, para substituir
materiais não renováveis e intensivos em carbono.
Os novos bioprodutos que podem nascer da bioeconomia
de base florestal vão desde os aditivos alimentares
aos biocompósitos, e dos biocombustíveis avançados à
nanocelulose, substituindo materiais de origem fóssil em
setores como embalagens, materiais de construção, têxteis,
bioenergia, produtos farmacêuticos e componentes de
automóveis.
As florestas são a maior fonte de recursos biológicos
renováveis não alimentares, isto é, que não competem com a
produção de alimentos. Trazê-las de novo para o centro das
nossas vidas vai permitir-nos reconstruir a relação perdida
entre ecologia e economia, entre tecnologia e natureza.

A ciência e a tecnologia, que em tempos nos afastaram


da natureza, estão agora na linha da frente rumo a uma
bioeconomia circular, que nos leva de regresso ao
coração da floresta.

As florestas sustentáveis da The Navigator Company apoiam a


National Geographic Portugal a diminuir a sua pegada ecológica.
E X P L O R E | C O N S E RVAÇ ÃO

INOVADOR
FERNANDO TRUJILLO

Fernando Trujillo segura o bico de um golfinho do Amazonas enquanto a sua equipa mede e examina o animal antes de o
devolver à água. O biólogo marinho colombiano passou mais de trinta anos a trabalhar na protecção dos golfinhos de rio.

A defesa dos “embaixadores


cor-de-rosa” da Amazónia
Os sinais de alarme no lago de Tefé, no Brasil, chega- que a súbita atenção para esta mortalidade pode aju-
ram a Fernando Trujillo por telefone em Setembro de dar as pessoas a compreender outras ameaças, como
2023. Alguns colegas ligaram-lhe então em pânico. a perda de habitat, as águas contaminadas, a pesca
O brutal Verão de 2023 aumentara a temperatura da excessiva e o abate, que põem em perigo os golfinhos
água do lago da Amazónia para níveis muito supe- de rio nos 14 países onde estes existem.
riores aos registados anteriormente e, tal como se O biólogo trabalha neste tema desde a época em que
temia, algo estava a acontecer aos golfinhos cor-de- era estudante universitário e o venerado oceanógrafo
-rosa do Amazonas. “Três golfinhos mortos”, recorda Jacques Cousteau visitou a sua turma. (“Perguntei-lhe
Fernando. “Depois, cinco golfinhos mortos. Depois, o que seria importante estudar. E ele disse: ‘Golfi-
70 mortos num só dia.” nhos’. Foi uma espécie de ordem”). Fernando integra
Para este biólogo marinho colombiano e explo- a Expedição Amazónia do Projecto Planeta Perpétuo
rador da National Geographic, o desastre de Tefé da Rolex, uma série de campanhas de investigação
deve ser entendido como uma tragédia e uma lição científica que abrangem a bacia do rio Amazonas.
muito necessária sobre a vulnerabilidade destes Está também a ajudar a coordenar compromissos
embaixadores de água doce. Em apenas alguns dias, internacionais de conservação, como a Declaração
157 golfinhos (correspondentes a 10% da população do Global para a protecção dos golfinhos de rio. “Não se
lago) morreram na água, cuja temperatura ultrapassou trata apenas dos golfinhos”, diz. “Trata-se dos rios e
38ºC. A causa exacta ainda estava a ser investigada dos 1,5 mil milhões de pessoas que vivem neles. Os gol-
dois meses depois, mas o stress térmico parecia ser a finhos ligam o público em geral a todos os problemas
explicação mais provável. Fernando Trujillo acredita da região. E o público está a ouvir.” — C Y N T H I A G O R N E Y

Este artigo foi apoiado pela Rolex, que trabalha em parceria com a National Geographic Society em expedições
científicas para explorar, estudar e documentar as alterações em curso nas regiões mais prístinas do planeta.

THOMAS PESCHAK
NOVA EDIÇÃO

DESCOBRIMENTOS
PORTUGUESES

RBA

JÁ NAS BANCAS
1. Compassos 2. Punções 3. Adesivo 4. Serra
Garantem a simetria De vários calibres para Semelhante a alcatrão, As diferentes lâminas
quando se medem moldar cúpulas de metal mantém a folha de metal permitem a De Boer cortar
superfícies curvas como num novo elemento no lugar enquanto os variados materiais com
a viseira do capacete. de armadura. é decorada. enorme precisão.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O G ATO E O R ATO são eternos rivais nos desenhos animados, mas
e se estes dois guerreiros estivessem equipados como os com-
batentes humanos da história – como samurais japoneses ou
cavaleiros da era Tudor? O artista canadiano Jeff de Boer explora
esta ideia e cria notáveis armaduras para gatos e ratos, não para
serem usadas pelos animais, mas para serem apreciadas pelos
visitantes humanos. Desde a década de 1980 criou cerca de oito-
centos fatos, transformando metal em obras-primas “pequenas,
mas poderosas”. — H I C K S WO G A N

5. Martelo de ourives 6. Suporte de modelagem 7. Martelos e limas 8. Maçarico


É utilizado para entalhes Ferramenta feita à medida Os primeiros são usados O calor torna o metal
em superfícies metálicas, que ajuda a moldar ligas para moldar e rebitar e os mais maleável. Para ver
que acrescentam e metais como o latão, o segundos para fresar, como De Boer trabalha,
texturas à peça. níquel, a prata ou o aço. arredondar e aparar. visite natgeo.com/armor.

MARÇO 2024
G R A N D E A N G U L A R

Numa sala do Museu


Nacional de Arte Antiga,
a conservadora-restauradora
Glória Nascimento analisa
a pintura através de um
exame de luz transmitida,
que permite perceber as
camadas de tinta utilizadas
e pormenores invisíveis
com iluminação normal.
UMA JANELA
INDISCRETA
HISTORIADORES DA ARTE E QUÍMICOS TÊM ANALISADO UM
Q U A D RO Q U E E S T E V E E X P O S TO N U M R E S TA U R A N T E D U R A N T E
T R Ê S D É C A DA S S E M Q U E S E S U S P E I TA S S E DA S U A A U TO R I A . U M A
H I P ÓT E S E C O M E Ç O U, E N T R E TA N TO, A G A N H A R F O R M A : P O D E R Á
A OBRA PERTENCER A UM DOS MESTRES DO SÉCULO XX?
G R A N D E A N G U L A R | UM A JA N E L A I N D I S C R E TA

TEXTO E FOTOGRAFIAS DE ANTÓNIO LUÍS CAMPOS

restaurante que tinham recentemente aberto e não


desconfiavam do que poderiam estar a comprar.
De cabelo grisalho e sorriso franco, confessam-se
coleccionadores amadores de arte desde tenra idade
e relembram esse dia com entusiasmo: “Estávamos
à procura de quadros para decorar o espaço”, conta
Pedro Frazão. “Surgiu esta hipótese, aqui em Espi-
nheiro, gostámos do que vimos e, por instinto, com-
prámos esta tela pela módica maquia de 20 contos
[cerca de 100 euros à cotação actual, sem correcção
à inflação]. Nem moldura tinha!”
A tarefa seguinte foi encontrar uma moldura que
se adequasse ao estilo e, uma vez encontrada, foi
mostrada aos frequentadores do restaurante
O Malho durante quase 30 anos. Estava exposta no
canto esquerdo oposto à porta principal do salão,
iluminado difusamente pela luz rasante do fim da
tarde. Era um estabelecimento bem acolhido pelo
público e chegou a receber a visita de presidentes
da República. O ceramista e artista plástico Manuel
Cargaleiro era cliente habitual e escolhia sempre
NOS BASTIDORES DAS SALAS de exposições do Museu uma mesa contígua à pintura.
Nacional de Arte Antiga (MNAA), uma sala técnica Ao longo dos anos, a curiosidade sobre a origem
fervilha de vida. Figuras de bata branca e luvas azuis e autoria da obra foi crescendo. Vários agentes liga-
mostram-se atarefadas à volta de uma pintura, dos ao meio artístico defendiam que não era uma
rodeadas de equipamento de aspecto futurista. obra banal, nem uma cópia. A amizade dos proprie-
Tendo por companhia os imponentes Painéis de tários com Pedro Mesquita da Cunha, especialista
São Vicente, uma das mais reconhecíveis obras de em arte e fundador da empresa Selo Branco, reve-
arte portuguesas, também ela em estudo pela lou-se providencial. De olhar inquisitivo e jovial,
mesma equipa, a nova pintura chegou incógnita ao por detrás dos óculos metálicos arredondados,
museu, marcada por alguma expectativa. Pedro abraçou o desafio de descobrir mais sobre a
Num gélido dia de Inverno, os visitantes do origem desta pintura.
MNAA espreitam a agitação, curiosos com as ope- Inicialmente a pesquisa incidiu sobre artistas euro-
rações de restauro, mas não desconfiam do que está peus, mas nada parecia substanciar essa hipótese...
em causa. Retirado com cuidado extremo, a quatro até ao dia em que o especialista leu um artigo sobre
mãos, de uma caixa de transporte translúcida, o Edward Hopper que documentava o trabalho de pin-
quadro repousa agora numa ampla mesa branca, tores que retrataram a Cidade-Luz na sua obra, muitos
em redor da qual toda a equipa se reúne. Sente-se dos quais de maneira anónima. Poderia o quadro do
a antecipação do que está em causa, dado o sigilo restaurante O Malho encaixar na categoria restrita das
em que este projecto tem estado envolvido nos últi- obras de Edward Hopper? Parecia improvável.
mos meses e que começa a ser tornado público com Como a tela não está assinada, a validação de
este artigo. E, no entanto, a saga começou em 1993, autoria implica sempre recurso a um aturado estudo
há 31 longos anos. de história de arte e a exames materiais e físicos do
Na pequena aldeia de Malhou, no concelho de quadro. Com a concordância dos proprietários,
Alcanena, uma pintura não assinada foi adquirida Pedro Mesquita da Cunha contactou o Laboratório
numa loja de velharias local pelos irmãos Jorge e HERCULES, da Universidade de Évora, e o Labora-
Pedro Frazão. Pretendiam decorar as paredes do tório José de Figueiredo.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Na sala de exames materiais do MNAA, António Candeias (em baixo, à direita), responsável pelo estudo técnico
do Laboratório HERCULES, prepara o exame de espectrometria de raios X (XRF Crono) que permite realizar o
mapeamento químico dos pigmentos utilizados pelo autor, que mais tarde confirmariam a coincidência de datas
entre a estada de Hopper em Paris e a data de produção de um dos pigmentos utilizados. Em cima, resultado do
exame, mostrando a distribuição dos elementos Cobalto (Co) e Zinco (Zn).

MARÇO 2024
G R A N D E A N G U L A R | UM A JA N E L A I N D I S C R E TA

o químico António Candeias,


D E VO LTA AO M N A A , De pista em pista, Pedro
membro do laboratório eborense e director do Labo-
Mesquita da Cunha construiu
ratório Associado IN2PAST, transporta a pintura
com delicadeza, com a ajuda da conservadora-res- um puzzle que parece apontar
tauradora Glória Nascimento. Preparam sofistica- para uma história tecida há
dos equipamentos de análise que permitirão o um século num apartamento
estudo dos materiais usados na obra, das técnicas
de Paris.
do artista e da evolução da pintura ao longo do
tempo. Através destes dispositivos, durante alguns
dias, realizam-se diferentes exames, como a reflec- O prédio parisiense onde coabitaram foi uma peça
tografia de infravermelhos e de fluorescência de fulcral para a investigação sobre a obra conduzida por
raios X, com recurso a espectrómetros de XRF Pedro Mesquita da Cunha, que visitou o local. Com-
CRONO e TRACER. A intenção é detectar pigmen- provou ali que o quarto e a janela retratados na obra
tos que possam ter sido utilizados na produção de são coerentes com as características do edifício.
tintas comerciais na transição do século XIX para “Nesta pintura, surgem duas mulheres a costurar, em
o XX. É uma espécie de assinatura química que posição contida e sem comunicação aparente: Enid
ajuda, em primeiro lugar, a datar a obra. pode ser a figura da direita e Marie Elizabeth Kuntzler,
As análises permitiram a identificação de Viridian, neta do fundador da Igreja Baptista da Rue de Lille, a
um pigmento à base de crómio patenteado em 1859. figura mais velha, à esquerda”, propõe o especialista.
Análises complementares efectuadas pela equipa A pastora Anniel Hatton da mesma Igreja confirmou
por espectrometria de infravermelhos confirmaram igualmente que a morfologia da divisão da casa coin-
a utilização de uma variante deste pigmento produ- cide com o espaço retratado na obra.
zida pelo fabricante francês Lefranc, que contém “As propostas de identidade são sustentadas pela
borato de crómio como subproduto e que foi produ- relação próxima de ambas e pela presença confir-
zido apenas no início do século XX.A presença de mada neste espaço no início do século passado.
um pigmento amarelo limão (o cromato de estrôn- Apesar de as roupas remeterem para o século XIX,
cio) reforçou depois a convicção de que as tintas a justificação está no facto de ambas serem baptis-
datam do final do século XIX ou do início do século tas, que se vestiam de forma conservadora”, explica
XX, o período em que Edward Hopper se radicou em o especialista. “A divisão da casa retratada coincide
Paris, no início da carreira de artista. com o estudo que fizemos do edifício, apesar das
Além destas primeiras validações, os exames transformações posteriores do imóvel em creche,
químicos permitiram detectar uma enigmática biblioteca e agora em casa de banho.”
inscrição no verso do quadro: um “13” manuscrito, Um estudo genealógico conduzido pelo mesmo
escondido no verso da pintura, que só se tornou autor permitiu também o contacto com descenden-
visível após a remoção da fita que o tapava. O sig- tes das personagens retratadas, que forneceram
nificado é ainda desconhecido. Estes são os dados fotografias históricas pertinentes. Destaca-se a sin-
científicos do projecto, mas há todo um novelo his- gularidade das feições da personagem Enid, não
toriográfico que foi preciso desenrolar. identificadas noutras obras de Edward Hopper e
É sabido que Hopper esteve várias vezes em Paris, talvez representada de costas na obra posterior Soir
a primeira das quais em 1906-1907. Viveu na Rue Bleu. A comparação da figura do quadro agora ana-
de Lille, n.º 48 durante oito meses e encontrou ali, lisado com fotografias de 1908 desta mulher tão
a poucos metros do Museu d’Orsay, uma fonte de relevante na biografia inicial do pintor é igualmente
inspiração. No ano seguinte, regressou aos Estados sugestiva. Estaria Pedro Mesquita da Cunha mais
Unidos para trabalhar e amealhar fundos e, em próximo de atribuir uma autoria à obra?
1909, voltou à capital gaulesa, movido pela paixão
por Enid Marion Saies, uma inglesa que viajara para acredita
O H I STO R I A D O R DA A RT E A N TÓ N I O C A ST RO
Paris para estudar Literatura na Sorbonne e que se que “esta interpretação traz uma nova visão sobre a
tornara sua vizinha no n.º 48. obra de Hopper, tornando-a autobiográfica e filosó-
Nem tudo lhe correu de feição. Neste período de fica, fruto da educação religiosa que o marcou e levou
ausência, e talvez fruto de uma carta de Enid que a refugiar-se na filosofia transcendental e na teoria
ficou sem resposta, a sua musa acabaria por casar- da interpretação dos sonhos de Freud”. Aliás, Pedro
-se com o sueco Nils Buhre, mudando-se por isso e António defendem que a mesma abordagem pode
para Malmö. Hopper ficou devastado quando soube. ser observada em obras posteriores.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
UMA VERDADEIRA
HISTÓRIA DE AMOR
Na transição para o século XX, Edward
Hopper (1882-1967) tinha 18 anos e, apesar
de se dedicar ao desenho e à pintura desde
a infância e de ter fantasiado transitoria-
mente com a hipótese de se tornar
engenheiro naval, estava determinado a
focar-se nas artes. Por insistência dos pais,
que se preocupavam com as suas perspec-
tivas de futuro, ingressou numa escola de
arte e design. Concluído o curso, trabalhou
numa agência de publicidade, na qual
produziu ilustrações para cartazes e
revistas, mas o trabalho desiludiu-o e
decidiu viajar para a Europa. Foi em Paris
que conheceu Enid (em cima, à direita,
numa fotografia dos arquivos familiares
recuperada por Pedro Mesquita da Cunha).
A sua musa ficou alojada em casa de
Marie Elizabeth Kuntzler (à direita), num
prédio onde o artista também viveu.
São essas figuras que parecem estar no
quadro agora investigado. Enid viria a
casar-se em 1908 com um professor sueco (à direita)
para desgosto do pintor. Kuntzler, por seu lado, teve
dois filhos, um dos quais, Jean Casimir (1888-1970) viria
a negociar em arte e imobiliário. Poderá ter sido ele o
proprietário do quadro enquanto viveu, legando-o
depois à mulher, que faleceu em 1991, nos arredores
de Paris.
Pedro Mesquita da Cunha conseguiu rastrear o
paradeiro de várias gerações das personalidades
envolvidas nesta trama histórica e apurou que, em
1990, os porteiros do prédio da nora de Marie
Elizabeth Kuntzler eram portugueses, naturais da
região Centro. Poderão ter sido eles a trazer o quadro
para Alcanena em algum momento da
sua vida, ignorando por completo a sua identidade
e possível valor? Talvez nunca se saiba.
Edward Hopper, por seu lado, regressou aos
Estados Unidos. Aos 36 anos desenhou um poster
para a propaganda da Grande Guerra e a sua sorte
começou a mudar. Nos anos seguintes, expôs
individualmente e ganhou notoriedade. Apesar de
se celebrizar com telas enigmáticas de uma América
perdida e nostálgica, o artista deixou uma extensa
obra gráfica com mais de oitocentos óleos, aguarelas,
gravuras e ilustrações, muitos dos quais não Em cima, Edward Hopper numa fase
assinados. Após a sua morte (curiosamente, quatro tardia da sua vida. Na coluna do meio,
anos exactos sobre o dia de aniversário da sua amada Enid em 1907; Marie Elizabeth Kuntzler,
Enid), a sua obra começou a ser reintepretada como com o filho Jean Casimir ao colo, c. 1888;
o casamento de Enid com Nils Buhre em
um processo mais autobiográfico do que
1908; e o quadro Chop Suey, de 1929,
inicialmente se pensara. Hopper pintou cidades e pintado por Hopper e vendido
realidades que viveu, figuras que conheceu e cenas recentemente por uma soma
do quotidiano a que assistiu. astronómica.

FOTOGRAFIAS DOS ARQUIVOS FAMILIARES GENTILMENTE CEDIDAS POR PEDRO MESQUITA DA CUNHA;
OSCAR WHITE / GETTY IMAGES (RETRATO DE HOPPER); E STEPHANE DE SAKUTIN / GETTY IMAGES (QUADRO CHOP SUEY)
G R A N D E A N G U L A R | UM A JA N E L A I N D I S C R E TA

No mundo real, Hopper foi uma personagem onde viveu a maior parte da vida. Fez do quotidiano
cheia de profundidade, com uma história de vida a sua tela, o que contribuiu para a sua afirmação
rica e interessante. Nascido numa família abastada, como uma das figuras maiores da corrente do rea-
em 1882, no estado de Nova Iorque, estudou ilus- lismo. A sua influência ao longo dos séculos XX e
tração, design gráfico e pintura, viajando para a XXI é imensa, perdurando décadas após a sua morte
Europa diversas vezes no início da sua vida profis- e afecta inclusivamente outros campos da expressão
sional. Veio mais tarde a tornar-se conhecido pelas artística e criativa, como a fotografia, de que o tra-
representações realistas do quotidiano da sociedade balho do fotógrafo Gregory Crewdson é exemplo.
norte-americana. Pintou ruas, lojas, estações de
combustível, hotéis e ferrovias, em particular na NUM TERRITÓRIO BEM MENOS COSMOPOLITA, à sombra
cidade de Nova Iorque, epicentro do seu trabalho e da serra de Aire, a pandemia deu a estocada final

N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Conscientes da relevância de Edward Hopper
como pintor e do estratosférico valor que muitas
das suas obras alcançam em leilões (em 2018, a pin-
tura Chop Suey, de 1929, foi vendida em leilão pela
Christie’s por um recorde de 91,9 milhões de dóla-
res e os seus desenhos são transaccionados regu-
larmente acima de 100.000 dólares por peça), os
actuais proprietários do quadro sabem que a certi-
ficação da autenticidade desta obra é um assunto
delicado e que em muito condicionará o seu valor.
Em última instância, dada a inexistência de assi-
natura ou de documentação inequívoca que subs-
tancie a autoria, poderá não haver uma validação
absoluta e será deixado ao mundo da história da
arte e ao mercado a derradeira resposta.
Devido aos montantes que as obras de Hopper
atingem, são compreensivelmente comuns as rei-
vindicações de autoria deste autor. No entanto,
poucas vêm acompanhadas de estudos tão com-
pletos que sugiram a alegada autoria.
Além da opinião dos especialistas de arte, a aná-
lise material pode ser um factor decisivo na valida-
ção deste processo. Segundo António Candeias, a
forma mais cabal de fazer “o estudo comparativo
seria analisar fisicamente outras obras do autor,
levando a cabo a mesma bateria de testes, o que
permitiria uma avaliação comparada e minuciosa”.
Se os materiais e as técnicas forem os mesmos e
coerentes entre diferentes telas, poderia ser dada
uma palavra final. Mas para tal seria necessário o
Os irmãos Pedro acesso a outras obras de Hopper, para o qual tem
(à esquerda) e Jorge
Frazão, proprietá- sido mostrada pouca abertura, sobretudo aten-
rios do quadro adqui- dendo ao facto de boa parte do seu corpo de traba-
rido há 30 anos numa lho estar do outro lado do oceano Atlântico.
pequena loja de velha-
rias na zona de Alca- Segundo Pedro Mesquita da Cunha, já existem
nena. Os irmãos posam indicadores europeus de aceitação da proposta de
no salão do antigo res- Hopper como autor da obra: a correspondência tro-
taurante “O Malho”,
hoje o espaço que aco- cada com France Nerlich, directora de pesquisas do
lhe a sua colecção par- Instituto Nacional de História da Arte, em França,
ticular de antiguidades. aponta nesse sentido. “E todas as peças genealógicas,
estilísticas e técnicas parecem substanciar esta pro-
posta”, diz. Do lado dos Estados Unidos, país de ori-
no negócio dos irmãos Frazão, em 2020. O antigo gem de Hopper e em torno do qual gira o seu legado
restaurante, um amplo edifício térreo, de cores material e artístico, a hipótese de que esta poderia ser
quentes, encontra agora uma nova vocação, recon- uma obra criada por Hopper no início do seu percurso
vertendo-se num espaço que acolhe as múltiplas artístico tem sido recebida por ora com silêncio.
obras de arte que integram a colecção particular de Poderão então duas personagens femininas, silen-
antiguidades de Jorge e Pedro, tão ecléctica ciosas e introspectivas, pintadas há um século, dar
que, além de várias telas, inclui uma escultura resposta a este enigma? Esta é, por definição, uma
pré-românica de granito, jarrões de porcelana do história incompleta. Como nas investigações foren-
período dos Descobrimentos, delicado mobiliário ses, há provas circunstanciais bastante sugestivas,
de madeiras nobres e grandes tapeçarias portugue- mas ainda não definitivas. Por ora, fica uma certeza:
sas antigas, entre muitas outras peças. ainda vamos ouvir falar muito deste quadro. j

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Grão a grão
T E X TO D E GONÇALO PEREIRA ROSA F OTO G R A F I A D E SVEN TRAENKNER/SENCKENBERG

É P O U C O P R O VÁV E Lque, de cada vez


que espirra com uma alergia primaveril,
se lembre que está a ser vítima de um
dos mais engenhosos processos da bio-
logia. Há milhões de anos, as plantas
angiospérmicas e gimnospérmicas
desenvolveram um sistema de reprodu-
ção que só requer o transporte de grãos
de pólen até ao órgão feminino da planta.
É aquilo a que chamamos polinização
e tanto pode suceder por acção do vento
ou da água como por intervenção de
outros seres vivos.
Em 2014, o paleontólogo alemão
Gerald Mayr surpreendeu a comunidade
científica com o anúncio de uma curiosa
descoberta na jazida de Messel Pit: o fós-
sil de uma ave polinizadora de há
47 milhões de anos. No estômago do Pumi-
liornis tessellatus (à direita), que não teria
mais de oito centímetros, detectaram-se
fragmentos de insectos iridescentes e
centenas de grãos de pólen. Conhecem-se
fósseis mais antigos de insectos polini-
zadores, mas a ideia de um vertebrado já
capaz de transferir pólen entre plantas
foi provocadora. Não se sabe qual a planta
que produziu aqueles grãos, mas a evo-
lução claramente já a adaptara a pelo
menos uma ave compatível num momento
tão precoce da linhagem das aves.
Como digo, é pouco provável que, se
sofrer de alergias, tenha simpatia por este
maravilhoso processo que um botânico
descreveu como um aperto de mão entre
o reino animal e o reino das plantas. Mas
talvez a reportagem desta edição lhe possa
abrir o horizonte para a intrincada beleza
das escalas milimétricas. Só conhecemos
a existência do pólen desde 1827, ano em
que um botânico inglês apontou o seu
microscópio para alguns grãos que repou-
savam na água adjacente a uma planta.
E hoje, tal como há dois séculos, quando
Temos mais para lhe contar.
ampliamos um único grão de pólen,
Aponte o telefone a este
maravilhamo-nos com a perfeição das código e leia conteúdos
formas mais simples. exclusivos no nosso website.
T E X TO D E E VA VA N D E N B E RG

PÓLEN:
PORQUE
HÁ TANTAS
ALERGIAS?
HÁ POUCAS DÉCADAS, A ALERGIA AO

PÓLEN ERA UMA DOENÇA DAS CLASSES

M A I S FAVO R E C I DA S . AC T UA L M E N T E ,

A S D O E N Ç A S A L É RG I C A S A F E C TA M

CERCA DE UM TERÇO DA POPULAÇÃO

E A T E N D Ê N C I A E STÁ A I N T E N S I F I C A R-S E

EM GRANDE PARTE DO MUNDO.

2
Imagem microscópica de
um grão de pólen de
carvalho-branco (Quercus
petraea). O aquecimento
global prolongou o
período de polinização de
muitas espécies e também
aumentou a produção de
pólen em alguns casos – a
das árvores do género
Quercus quase quintupli-
cou em algumas áreas
do território ibérico.
© M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2016,
COM O APOIO DO INSTITUTO DE PATOLOGIA
DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DE BASILEIA
E BIO-EM LAB, BIOZENTRUM, UNIVERSIDADE
DE BASILEIA
Quando as plantas
libertam os grãos de
pólen, um elemento
decisivo na reprodução
vegetal, estes são
dispersos por diversos
vectores de polinização:
o vento, a água (em
menor grau) e os animais
polinizadores, como a
abelha, que nas suas
deslocações facilitará a
transferência do pólen
para o óvulo de uma flor.
KURT OBERROSLER / GETTY IMAGES
Os espruces da Noruega
(da família Pinaceae)
não são especialmente
alergénicos, mas na época
natalícia, quando é
habitual ter um em casa,
causam picos de alergia
que se conhecem como
“síndrome da árvore de
Natal”. Na imagem, um
exemplar fotografado em
Berlim expele grandes
quantidades de pólen.
WOLFGANG KUMM / GETTY IMAGES
8 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
no início da Pri-
S TA M O S E M M A R Ç O,
mavera. Activos desde Fevereiro no
interior dos estames, nos órgãos flo-
rais masculinos de numerosas plantas
superiores como ciprestes e plátanos,
milhões de grãos microscópicos de
pólen concluem o seu processo de
amadurecimento dentro dos sacos
polínicos. Diferentes consoante a espécie, as suas
formas são tão belas como assombrosas.
Os grãos de pólen são as células que albergam os
gâmetas masculinos. Têm uma parede celular for-
mada por duas camadas, a interna (chamada intina)
e a externa (ou exina), uma carapaça dura composta
por um biopolímero denominado esporopolenina,
excepcionalmente resistente e impermeável.
A esporopolenina é tão estável que permite aos pali-
nólogos recuperar grãos de pólen de tempos antigos
em excelente estado de conservação dos sedimen-
tos. O pólen, aliás, tem sido protagonista de vários
estudos relevantes de arqueologia e paleontologia,
ajudando a reconstituir o ambiente vegetal de há
milhares ou milhões de anos.
O escudo protector de cada grão preserva as célu-
las sexuais de qualquer inclemência ambiental para
que cumpram o seu fim evolutivo de alcançar o
óvulo de um exemplar da sua espécie vegetal,
situado dentro do pistilo, ou órgão feminino da flor,
através do estigma, a porta de entrada do pólen.
A rinite alérgica é uma Caso existam circunstâncias ambientais propí-
resposta imunitária a um cias, uma parte do estame, a antera, rompe-se
alergénio como o pólen.
Os sintomas com que se para libertar o pólen. A dispersão maciça dos
manifesta são comichão no grãos vai garantir que pelo menos uma percenta-
nariz e nos olhos, lacrimejo, gem relevante consiga fecundar a maior quanti-
congestão nasal, secreção
aquosa e espirros repetitivos. dade de óvulos possível e, consequentemente,
HANS SOLCER / GETTY IMAGES produzir frutos e sementes.

ALERGIA AO PÓLEN 9
Para alcançar o objectivo, milhões de grãos irão os níveis actuais destes alergénios e prever as ten-
depois disseminar-se. Alguns não se afastarão mais dências futuras.
do que poucos metros, enquanto outros percorre- O aumento do pólen na atmosfera e as suas impli-
rão centenas de quilómetros, em função das suas cações para a saúde humana são fenómenos corre-
próprias características e do meio de transporte lacionados há relativamente pouco tempo. Em
que lhes calhe em sorte: animais polinizadores Portugal, a história da alergologia começou na
(insectos, aves, mamíferos, especialmente morce- década de 1950, numa altura em que era uma área
gos) ou agentes abióticos como o vento e a água. da medicina pouco destacada. Um pequeno grupo
Durante essa “viagem de uma vida”, os grãos de de médicos juntou-se e, no dia 10 de Julho de 1950,
pólen vão libertando diferentes proteínas através criou a Sociedade Portuguesa de Alergia que depois
das aberturas da exina, algumas das quais muito evoluiu para a Sociedade Portuguesa de Alergologia
alergénicas para uma fracção cada vez maior da e Imunologia Clínica (SPAIC). O actual secretário-
população de todo o planeta. Embora pessoas de -geral é Pedro Carreiro-Martins que, à beira de com-
qualquer condição possam sofrer de alergias, os pletar 50 anos de vida e 25 de experiência nesta área,
adolescentes e os adultos jovens, cujo sistema imu- gosta de explicar os marcos evolutivos na consoli-
nitário é mais reactivo, são o sector populacional dação da disciplina. “No início da década de 1980,
mais afectado, juntamente com pessoas com pro- médicos como Antero da Palma-Carlos contribuí-
blemas respiratórios. Estima-se que, actualmente, ram para o reconhecimento da imunoalergologia
30% da população mundial sofra um episódio de como especialidade, porque existia uma base imu-
alergia em algum momento da sua vida e a Organi- nológica muito intrincada com os processos alérgi-
zação Mundial da Saúde prevê que, daqui a poucas cos”, diz. “Depois, destacou-se José Rosado Pinto,
décadas, essa percentagem chegue a 50%. presidente da comissão instaladora da especiali-
dade. Foram dois nomes incontornáveis no processo
a
É E S S E N C I A L C O N H E C E R , E M C A DA MOM E N TO, de criação da especialidade no país em 1983.”
quantidade e o tipo de pólen presente na atmos- Até 2002, a monitorização de aerobiologia não
fera para enfrentar este problema de saúde com estava integrada, mas, nesse ano, criou-se formal-
proporções globais. Por esta razão, em todo o pla- mente a Rede Portuguesa de Aerobiologia, que é
neta, existem cerca de novecentas estações de um serviço público gratuito exclusivamente finan-
monitorização, a maioria das quais situadas na ciado pela SPAIC. “A questão da aerobiologia des-
Europa e nos EUA. Os dados permitem conhecer perta sempre muito interesse na opinião pública,
mas pouco interesse por parte dos financiadores”,
diz Pedro Carreiro-Martins. “Nós temos nove cap-
tadores espalhados pelo continente e ilhas onde
são registados diariamente os pólenes do ar.”
Utiliza-se sobretudo o colector Hirst na maioria
das estações de amostragem e, após duas décadas

ALTERAÇÕES
de recolhas regulares, a Rede começou a eviden-
ciar o aumento dos pólenes das árvores no Inverno
e no início da Primavera, em especial das Cupres-

CLIMÁTICAS, saceae (ciprestes) e plátanos, e também de olivei-


ras e das espécies do género Quercus. “Apesar de
Portugal ser um país relativamente pequeno, há

POLUIÇÃO E UMA diferenças significativas nos calendários políni-


cos. A polinização começa de sul para norte e do

VIDA CÓMODA: EIS


litoral para o interior e portanto é expectável que
as queixas se iniciem mais precocemente nestas
regiões”, diz o especialista. “Mas é a região de

OS DETONADORES
Évora e no Alentejo em geral que há maior diver-
sidade de pólenes com níveis elevados, o que tem
impactes significativos em doentes alérgicos, por

DAS ALERGIAS.
exemplo, aos pólenes das gramíneas e das olivei-
ras”, um problema clinicamente relevante em toda
a região do Mediterrâneo.
PINHEIRO-SILVESTRE
(Pinus sylvestris)
Esta árvore e todos os
pinheiros e abetos, em
geral, produzem grãos de
pólen com sacos aéreos nas
áreas laterais que favorecem o seu
transporte aéreo. Na Península FORMA: VESICULADO
Ibérica, a alergia ao pólen de pinheiro
Tamanho: 60-80 micra
não é muito frequente, excepto em
Ornamentação da exina: verrugosa
algumas zonas com concentrações Aberturas: inaperturado
desta árvore, como o Pinhal Interior.

AMARANTO
(Amaranthus sp.)
As amarantáceas são uma família
de plantas herbáceas ou arbustivas,
anuais ou perenes. A sua polinização é
realizada pelo vento da Primavera até ao
Outono. Este período tão prolongado é
consequência da alternância na floração FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL

das diferentes espécies que integram


Tamanho: 10-28 micra
este tipo polínico. Embora comum na Ornamentação da exina:
Europa, as concentrações de pólen microequinada
Aberturas: pantoporado
aerotransportado de amarantáceas
nunca alcançam valores elevados na
Península Ibérica.

ROBERT SCHNEIDER / SHUTTERSTOCK (PINHEIRO-SILVESTRE); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2023, COM O APOIO DE H. HALBRITTER, R. BUCHNER E
PALDAT, DEPARTAMENTO DE BOTÂNICA E BIODIVERSIDADE DA UNIVERSIDADE DE VIENA (PÓLEN DE PINHEIRO-SILVESTRE); KOBRYN TARAS / SHUTTERS-
TOCK (AMARANTO); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2023, E L . HOWARD, DARMOUTH COLLEGE (PÓLEN DE AMARANTO)
O MECANISMO DE
UM ATAQUE DE ALERGIA
Quando o sistema imunitário revela hipersensibilidade
perante a exposição a um agente alergénico (uma
substância inócua para a maioria da população como
o pólen), sofre uma reacção que designamos por alergia.
Isto é o que sucede no organismo.

O pólen penetra
no organismo
através da boca,
do nariz e dos olhos.

CONTACTO COM O PÓLEN


As espécies vegetais libertam
milhares de grãos de pólen
em diversas épocas do ano
que, por sua vez, se dispersam
na atmosfera e são inaladas.
Para os pacientes alérgicos
ao pólen, inicia-se uma
reacção em cadeia.

Depois, continua a penetrar,


podendo chegar às vias aéreas
inferiores. O organismo
trata o pólen como
um invasor e começa
a produzir anticorpos.

80 RISCO MODERADO E ELEVADO


70 Nas medições dos quatro tipos polínicos
mais alergizantes, verifica-se que Évora
60
somou 79 dias de concentrações elevadas
50 e moderadas de gramíneas, ao passo
40 que Lisboa totalizou 72 de urticáceas.
30
Oliveiras
20 Urticáceas (inclui parietária)
10 Gramíneas
Ciprestes
0
Vila Real Porto Coimbra Castelo Lisboa Évora Portimão Ponta Funchal
Branco Delgada Soma de dias de risco elevado e moderado.

Oliveira RISCO SAZONAL


Olea O período de polinização afecta a
alergenicidade. Alguns tipos polínicos
Urticáceas ocorrem durante quase todo o ano, mas,
(inclui parietária)
pesando todas as estações de amostra-
Gramíneas gem, a Primavera é o período mais crítico.
Poaceae Elevado
Moderado
Ciprestes
Cupressaceae Leve
Muito Leve
Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Risco para os doentes alérgicos. Os valores
de referência variam para cada tipo polínico.
SENSIBILIZAÇÃO ALÉRGICA REACÇÃO ALÉRGICA IMEDIATA REACÇÃO ALÉRGICA TARDIA
Perante a invasão dessa partícula intrusa, Os mastócitos libertam histamina Seis a oito horas depois da
o sistema imunitário inicia a sua defesa, e outras potentes substâncias reacção imediata, pode ocorrer
recrutando um exército de anticorpos. inflamatórias que provocam uma uma reacção alérgica tardia.
Dá início à sensibilização alérgica. resposta no organismo. Atraem-se outras células
Inicia-se o quadro alérgico pró-inflamatórias que se rompem,
com sintomas como irritação libertando mais substâncias
do nariz e olhos, espirros, inflamatórias e perpetuando a
lacrimejo e obstrução nasal… sintomatologia alérgica.
Grão de
pólen

Célula Grão
apresentadora de de pólen Célula
antígeno (CPA) pró-inflamatória

O grão de pólen
é interceptado
por células imunitárias
chamadas
"apresentadoras
de antígenos".
Linfócito T

Linfócitos
TeB
Mastócito
O alergénio é
apresentado aos Histamina
linfócitos T e B,
que produzem
imunoglobulina
específica (IgE).
A segunda
exposição ao
alergénio recruta
novas células
Linfócito B inflamatórias
Basófilo que perpetuam
a reacção.
Anticorpo
IgE
Com a primeira
exposição ao alergénio,
os mastócitos e os
Célula
basófilos da mucosa
Depois, actuam apresentadora
fixam IgE e, em
os mastócitos, de antígeno
contacto com o pólen,
fixando os (CPA)
libertam histamina.
anticorpos IgE.

Mastócito
Linfócito T

VARIAÇÕES ANUAIS 22.500


Estudando a aerobiologia do
pólen de oliveira em Portugal, um 20.000
grupo de investigadores
portugueses constatou que,
embora seja dos tipos polínicos 17.500
mais abundantes no país, regista
variações significativas de ano
15.000
para ano e de distrito para distrito.
A oliveira caracteriza-se por ser
uma espécie com um ciclo de 12.500
polinização de carácter bianual:
nos anos com terminação em
número impar, a produção de 10.000
pólen é bastante mais elevada do
que nos anos com terminação par.
7.500

Vila Real
Porto 5.000
Coimbra
Castelo Branco 2.500
Lisboa
Évora
0
Portimão
2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Pólen/m3/ar

ANYFORMS DESIGN. FONTES: JUAN JOSÉ ZAPATA; SEAIC (MECANISMO DA ALERGIA); "AEROBIOLOGY OF OLIVE POLLEN IN THE ATMOSPHERE OF PORTUGAL", PENEDOS ET AL.
(VARIAÇÕES ANUAIS); SOCIEDADE PORTUGUESA DE ALERGOLOGIA E IMUNOLOGIA CLÍNICA, REDE PORTUGUESA DE AEROBIOLOGIA (TABELAS DE RISCOS)
Os gráficos que mostram a evolução da quanti- neste tema. ”A hipótese higiénica para explicar a
dade de pólenes ao longo dos últimos 45 anos não natureza quase epidémica das doenças alérgicas já
deixam dúvidas sobre a correlação entre o aumento não faz muito sentido”, diz. “Não são as alergias que
das temperaturas e a taxa de polinose. Em Portugal, estão a aumentar – é a sua gravidade. Um pólen
o aumento de pólenes tem-se verificado no início associado à poluição, e nomeadamente à poluição
do Inverno. Anteriormente, as temperaturas nessa por queima de combustíveis fósseis, vai ser um
época do ano eram suficientemente baixas para pólen que altera a sua conformação, desidrata, fica
impedir a polinização das espécies. Actualmente, mais pequeno, consegue penetrar mais profunda-
porém, verifica-se que algumas plantas estão a ante- mente na via aérea e provoca mais asma do que
cipar a sua estação polínica devido à subida da anteriormente, quando se limitava a afectar os
temperatura. Os dados não constituem uma linha olhos e o nariz e provocava uma rinoconjuntivite.”
cronológica extensa, mas parecem revelar uma alte- Este alergologista português abraçou uma espe-
ração de padrões. Por ora, Pedro Carreiro-Martins cialidade que o fascinou desde o início pela sua
revela prudência: “Não sabemos se o crescente natureza particular. Por um lado, a alergologia é uma
número de doentes que chegam à consulta resulta das poucas especialidades que lida com adultos e
de maior consciencialização para a doença ou de crianças porque a doença alérgica afecta o paciente
maior prevalência, mas os doentes têm aparecido em idade pediátrica, persiste na adolescência e na
cada vez mais precocemente na Primavera”, conta. idade adulta e continua a fazer-se sentir nos últimos
“No início de Fevereiro já temos doentes a queixa- anos de vida. Por outro lado, “é uma disciplina sis-
rem-se de alergia a pólenes, que habitualmente témica – os pacientes têm queixas no pulmão, na
surgiam só em Março e não só os picos são anteci- pele, no nariz, nos olhos, sofrem alergias alimenta-
pados como também se tornam mais longos e cau- res, medicamentosas, a insectos, a pólenes, a ácaros.
sam crises alérgicas mais agudas. Isso deve-se É uma área fascinante para mim e avançou tremen-
claramente às alterações climáticas e ao aumento damente nestes últimos trinta anos”.
do dióxido de carbono na atmosfera.” Parte da estratégia de combate passou pela difu-
Na Universidade de Évora, o falecido biólogo Rui são do conhecimento pelo público, incluindo os
Brandão coordenou e teve um papel instrumental profissionais de saúde. Quando presidiu à SPAIC,
na Rede Portuguesa de Aerobiologia, procurando Mário Morais de Almeida coordenou, em colabo-
fazer ligações entre o conhecimento dos biólogos, ração com especialistas como Carlos Nunes e Ana
capazes de medir e identificar os pólenes que mais Todo-Bom, a estratégia de difundir regularmente
afectam a saúde pública, e o dos médicos com a os dados obtidos pela Rede Portuguesa de Alergo-
missão de mitigar os impactes deste problema na logia através dos órgãos de comunicação. “Foi por
saúde dos pacientes. Desse projecto pioneiro ainda ouvirem todos os meses que há concentrações ele-
se colhem frutos na investigação clínica deste tema. vadas de pólen na atmosfera que muitos portugue-
ses perceberam que o problema existe e que é
“NO INÍCIO DO SÉCULO XX, a alergia ao pólen importante procurar ajuda.”
era um problema das classes sociais mais favore- Esta é uma área onde persistem percepções e
cidas”, explica Ignacio Davila, professor da Uni- mitos nem sempre comprovados pela ciência.
versidade de Salamanca, centro de referência de Mário Morais de Almeida gosta de contar a história
alergologia no país vizinho. “No entanto, a partir de como a SPAIC recebia com frequência contactos
da segunda metade do século, registaram-se de autarquias que partilhavam as reclamações dos
aumentos exponenciais e, actualmente, um terço seus munícipes. “Habitualmente, escutavam-se
da população é susceptível a sofrer um quadro dois tipos de reclamações: metade alegava que
alérgico ao longo da vida, sobretudo nos países havia pouco arvoredo num concelho e a outra
desenvolvidos e industrializados. Quanto mais metade defendia que existia verde a mais e que isso
qualidade de vida temos, mais alergias sofremos”, desencandeava alergias”, brinca. “Na verdade, as
afirma. E o nosso sistema imunitário enfrenta populações 'incriminam' com frequência espécies
situações muito diferentes das que imperavam vegetais que não dão problemas, porque nem sem-
nas gerações anteriores, quando as pessoas lida- pre percebem que o foco alergénico não provém
vam com mais problemas de saúde. de uma árvore de grande porte que está nas ime-
Pelo mesmo diapasão alinha Mário Morais de diações ou mesmo de um jardim repleto dessas
Almeida, presidente eleito da Organização Mundial árvores, mas sim dos pólenes que circulam pelo ar,
de Alergia e especialista há mais de três décadas sem serem vistos, em concentrações nocivas.”

14 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
AMIEIRO
(Alnus glutinosa)
Comuns na Europa e no Sudeste
Asiático, os amieiros são uma
espécie introduzida em grande parte
do continente americano, África do Sul,
Austrália e Nova Zelândia. São
abundantes na Península Ibérica, onde FORMA: SIMPLES E OVULADO

têm vasta distribuição no Norte e na Tamanho: 22-34 micra


Estremadura. Da família das betuláceas, o Ornamentação da exina:
verrugosa
amieiro encontra-se sobretudo junto dos Aberturas: pantoporado
rios e é comum em parques e jardins.
Liberta pólen entre Janeiro e Março e não
é muito alergénico.

AMBRÓSIA
(Ambrosia artemisiifolia)
Esta planta herbácea da família
das asteráceas liberta grandes
quantidades de pólen é a primeira
causa de rinite alérgica nos Estados
Unidos, de onde é nativa. Também
provoca fortes reacções alérgicas nos FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL

locais onde é uma espécie invasora já


Tamanho: 22-24 micra
naturalizada, como é o caso do Centro Ornamentação da exina:
equinada
e do Leste da Europa. Está incluída
Aberturas: tricolporado
nas listagens de espécies exóticas e
invasoras em Portugal e prolifera
especialmente no litoral do Minho.

SHUTTERSTOCK (AMIEIRO); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2016, COM O APOIO DO INSTITUTO DE PATOLOGIA DO HOSPITAL UNIVERSI-
TÁRIO DE BASILEIA E CCINA, BIOZENTRUM, UNIVERSIDADE DE BASILEIA (PÓLEN DE AMIEIRO); SHUTTERSTOCK (AMBRÓSIA); © M.
OEGGERLI (MICRONAUT) 2023, IMAGEM DO CENTRO DE ALERGIA E MEIO AMBIENTE (ZAUM), MUNIQUE (PÓLEN DE AMBROSIA)
a Rede Espanhola de Aerobiolo-
N O PA Í S V I Z I N H O, Mas porque somos alérgicos a determinado tipo
gia segue na mesma direcção. Agrega especialistas polínico? A pergunta é mais complicada do que
em alergologia, botânica, técnicas de laboratório e poderia parecer e obriga à ponderação de vários
farmácia de instituições científicas e universidades factores. Juan José Zapata defende que a origem
para avisar a população sobre os níveis polínicos da das alergias é parcialmente genética e parcialmente
atmosfera e as tendências esperadas para que ambiental. “Se os seus progenitores não forem pes-
tomem precauções. “Nos captadores, as partículas soas alérgicas, terá aproximadamente 15% de pro-
aderem a uma fita que pode dividir-se em faixas babilidades de o ser. Se um deles for, a percentagem
horárias, permitindo-nos assim conhecer as horas sobe para 30% e duplica se forem os dois”, explica.
de incidência máxima”, explica Juan José Zapata, No entanto, essa predisposição genética é modu-
o médico alergologista que lidera a comissão de lada por factores ambientais variáveis, consoante
Aerobiologia Clínica a partir de Almería. as características geográficas, climatológicas e botâ-
Com frequência, ao longo do ano, os especialistas nicas de cada zona, bem como pelos padrões meteo-
aconselham as pessoas com hipersensibilidade a usa- rológicos, muito variáveis devido ao aquecimento
rem máscaras FFP2 para mitigar a inalação de grãos global e aos fenómenos climáticos extremos.
de pólen e que protejam os olhos com óculos de sol. Quando as chuvas são frequentes, as alergias ao
As horas da concentração máxima de pólen ocorrem pólen baixam significativamente porque os grãos
de manhã, quando os grãos sobem com as correntes pesam mais e não se levantam do solo. Por outro
de ar quentes, e há um novo pico à tarde, quando des- lado, as secas prolongadas favorecem a sua perma-
cem devido à diminuição das temperaturas. nência maciça no ar durante muito mais tempo.
No entanto, para uma determinada espécie de O vento também desempenha um papel, pois
pólen causar sintomas, basta uma concentração pode manter o pólen em suspensão por períodos
mínima (a chamada concentração de reactivação) mais prolongados. Nesse caso, irá dispersá-lo por
que, no caso da oliveira, por exemplo, é de 100 a 200 grandes superfícies, diminuindo a sua concentra-
grãos de pólen por metro cúbico de ar. Não é muito, ção e, por conseguinte, o potencial alérgico. Não é
se compararmos esse volume com o que se verifica por acaso que as zonas mais húmidas do planeta,
em regiões como o Alto Alentejo, onde a grande como os trópicos, não são afectadas por polinoses.
proliferação destas árvores em culturas intensivas As regiões do planeta mais afectadas são a Europa,
já causa concentrações de até 20.000 grãos por a América do Norte e, na Ásia, países como o Japão.
metro cúbico em alguns anos. Os níveis de poluição atmosférica também
influenciam as alergias. “As partículas poluentes
provenientes dos motores a gasóleo transportam
grãos de pólen e alteram a sua estrutura, aumen-
tando o efeito alergénico. A poluição, por si, já
agrava problemas respiratórios como a asma, pelo
que a combinação é fatal”, sublinha Zapata. As

EM SITUAÇÕES
horas que passamos em espaços fechados, onde
embora não os vejamos proliferam ácaros, fungos,
substâncias químicas derivadas do tabaco, formal-

ADVERSAS, deído e muitas outras, também não ajudam.


Entre outros factores de diferente índole, desta-
cam-se algumas infecções virais das vias respirató-

AS PLANTAS rias, capazes de desencadear um quadro alérgico


que até então se mantinha latente, ou o auge das
cesarianas: está provado que os bebés que nascem

PRODUZEM por cesariana têm uma microbiota muito diferente


dos que nascem pelo canal vaginal. “A cesariana

PROTEÍNAS MUITO
impede os recém-nascidos de terem contacto com
a microbiota vaginal e rectal materna, que num
parto natural iria parar ao seu tracto digestivo, con-

ALERGÉNICAS.
solidando o seu equilíbrio imunológico. Sem esse
primeiro contacto, as suas probabilidades de desen-
volver alergias aumentam”, diz Zapata.
MIMOSA
(Acacia dealbata)
Proveniente do Sudeste
da Austrália e da Tasmânia,
esta espécie da família das
leguminosas foi introduzida em
muitas regiões do mundo através da
jardinagem, enquanto árvore ornamental.
Em Portugal, está referenciada como FORMA: POLÍADA

espécie exótica e invasora e é considerada Tamanho: 25-52 micra


uma praga no Minho e em Trás-os-Montes. Ornamentação da exina:
verrugosa
Devido às suas grandes dimensões, o pólen Aberturas: inaperturado
dispersa-se pouco no ar.

BÉTULA-ARBUSTIVA
(Betula humilis)
Esta árvore da família das
betuláceas é muito abundante
em grande parte da Europa e também
na Península Ibérica, sobretudo nos
Pirenéus, no Sistema Central, no Sistema
Ibérico e no Maciço da Serra da Estrela.
As suas flores são polinizadas pelo FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL

vento entre Fevereiro e Maio, sendo Tamanho: 18-28 micra


as concentrações de pólen mais elevadas Ornamentação da exina:
verrugosa
no mês de Abril. O pólen desta bétula Aberturas: triporado
é uma das principais causas de polinose
na Primavera.

SHUTTERSTOCK (MIMOSA); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2023, COM O APOIO DO INSTITUTO DE PATOLOGIA DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DE
BASILEIA E SNI, BIOZENTRUM, UNIVERSIDADE DE BASILEIA (PÓLEN DE MIMOSA); VIKTOR LOKI / SHUTTERSTOCK (BÉTULA-ARBUSTIVA); © M.
OEGGERLI (MICRONAUT) 2020, COM O APOIO DE H. HALBRITTER E R. BUCHNER, UNIVERSIDADE DE VIENA (PÓLEN DE BÉTULA-ARBUSTIVA)
As concentrações
de pólen podem ser
tão grandes que formam
manchas visíveis a partir
do espaço. É o caso
desta imagem, captada
no mar Báltico no dia
16 de Maio de 2018 com
a Câmara Multiespectral
(cuja sigla em inglês
é MSI) do satélite
Sentinel-2A, da Agência
Espacial Europeia.
NASA
Por norma, a vida moderna incentiva essas reac- campos de cultivo, são igualmente focos potenciais.
ções de hipersensibilidade nos países mais desen- Mas há quase sempre espécies a produzir pólen
volvidos. “Têm-se poucos filhos e estes vivem em alergénico em algum sítio.
ambientes nos quais o sistema imunitário não Entre Dezembro e Janeiro começa a polinização
precisa de se defender muito. Ou seja, em compa- da artemísia. Logo em seguida, entre Fevereiro e
ração com as crianças que vinham ao mundo há Março, a dos plátanos e dos ciprestes. Em Abril, é
um século, as de hoje têm poucas doenças, per- altura das gramíneas e, em Maio, ocorre a das oli-
manecem muito menos tempo ao ar livre, têm veiras, cujo pólen contém a proteína Ole e 1, espe-
muito menos contacto com animais e o nível de cialmente alergénica, e a barrilheira, uma planta
higiene é extremo.” Poderíamos dizer que o seu herbácea que, após uma pausa no final do Verão,
sistema imunitário “não tem demasiado trabalho”, volta a polinizar em Setembro. Nesse mês, além
o que pode levá-lo a reagir de forma exagerada a do Verão e de Outubro, ocorre a máxima emissão
substâncias às quais, se estivesse mais activo, não de esporos de um fungo, a Alternaria, que contém
prestaria atenção. “É o preço a pagar por uma vida outra proteína muito alergénica, a Alt a 1, embora
confortável”, comenta Juan José Zapata. na realidade a presença dos seus esporos na
atmosfera seja registada durante todo o ano. Na
no
O P R O B L E M A E S TÁ L O N G E D E S E C O N C E N T R A R Primavera, surgem também ervas daninhas, como
Mediterrâneo. Nos Estados Unidos, registou-se a tanchagem ou a parietária, que podem produzir
um aumento de 46% nas contagens de pólenes e, pólen durante a maior parte do ano. Por outras
na Europa, observa-se uma tendência crescente palavras: há quase sempre pólen na atmosfera.
nas concentrações totais anuais de pólen para a
maioria dos taxa, mais pronunciadas nas zonas nas
Q UA N D O A L G U M D E S T E S G R Â N U L O S P E N E T R A
urbanas do que nas rurais, por as primeiras serem nossas vias respiratórias, a maioria das pessoas
mais povoadas e os níveis de poluição serem mais nem se apercebe, mas para outras será o início de
altos. O caso da ambrósia é muito claro: esta her- uma reacção alérgica. “Cinquenta por cento das
bácea originária da América do Norte, espécie consultas de alergia devem-se a rinite polínica e
invasora na Europa, duplicou a sua produção de entre 12 e 14% são por causa da asma, igualmente
pólen em apenas 24 anos. A principal causa? de origem polínica”, diz Juan Jose Zapata.
O CO2 atmosférico, um fertilizante magnífico que Quando o sistema imunitário de um paciente
aumenta em 131% a produção deste pólen. com hipersensibilidade a essa substância se aper-
Mas não é só o CO2 que exacerba a actividade cebe da presença desse “intruso”, reage de forma
vegetal. Sob condições de stress, muitas espécies exagerada, activando um exército de anticorpos.
geram proteínas defensivas muito alergénicas, que O “soldado” mais aguerrido nas alergias é a proteína
se encontram no pólen, mas também nas folhas, IgE, umas das cinco imunoglobulinas existentes no
flores, frutos e sementes. Resistentes, permitem à organismo. Quando é necessário eliminar estes
planta subsistir em situações adversas. Isto foi cons- patógenos, a IgE manda determinadas células liber-
tatado por um estudo realizado em La Palma após tarem substâncias tóxicas para os eliminar –
a erupção vulcânica de 2021, no qual Juan José fazendo o mesmo para combater o pólen, que é uma
Zapata participou. “Os gases emanados pelo vulcão substância inócua.
causaram alterações na expressão das proteínas dos A IgE é como um interruptor que põe em marcha
pinheiros das Canárias próximas da zona afectada. diferentes células, incluindo os mastócitos, que
Os grãos de pólen expostos a essa toxicidade con- libertam substâncias como a histamina, entre
tinham maior número dessas proteínas altamente outros mediadores, indutoras dos sintomas de aler-
alergénicas”, explica o alergologista espanhol. gia. Para inibi-las, são administrados anti-histamí-
Embora seja na Primavera que um maior número nicos orais e corticóides inalados (que podem ser
de plantas realiza a polinização, este fenómeno associados a anti-histamínicos inalados), sendo
ocorre ao longo de todo o ano. Dependendo da espé- estes os fármacos mais utilizados no controlo da
cie, a produção de pólen ocorre até em mais do que rinite alérgica. E se algumas reações alérgicas são
uma estação. As plantas que mais polinose causam localizadas, de gravidade variável, como é o caso
na Península Ibérica são as gramíneas, cuja polini- da rinite, outras podem ser mais graves, colocando
zação começa em Abril. As de crescimento espon- a vida em risco, como acontece em reacções alér-
tâneo, como as herbáceas que proliferam nas gicas a alimentos, a medicamentos e a veneno de
bermas dos caminhos, nos descampados, nos himenópteros, como o de abelhas ou vespas.

20 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
TANCHAGEM MENOR
(Plantago lanceolata)
O pólen da tanchagem é um dos
que causa alergias em Portugal.
Trata-se de uma planta herbácea da
família das plantagináceas, considerada
daninha devido à sua capacidade de
prosperar em todo o tipo de solos. A sua
FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL
época de produção de pólen é a
Tamanho: 22-28 micra
Primavera, coincidindo com a das Ornamentação da exina:
gramíneas — ainda mais prolíferas. Muitas verrugosa
Aberturas: pantoporado,
pessoas são hipersensíveis a ambas as com 8 ou mais poros
famílias de plantas, que lhes provocam
quadros alérgicos com sintomas intensos.

POA DOS PÂNTANOS


(Poa palustris)
A poa é uma gramínea, uma das
famílias de plantas com os pólenes mais
alergénicos do nosso meio natural. O seu
nome deriva do grego poa, que significa
erva. A família das gramíneas, entre as
quais se encontram os cereais, inclui FORMA: SIMPLES E POR NORMA
plantas anuais e perenes, agrupando cerca ESFEROIDAL

de 1.200 espécies que ocupam 20% da Tamanho: 22-80 micra


superfície do planeta. A poa poliniza ao Ornamentação da exina:
granulada
longo da Primavera e no início do Verão e Aberturas: monoporado, com
é frequentemente utilizada como relva em um anel em volta do poro

parques e jardins.

SHUTTERSTOCK (TANCHAGEM-MENOR); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2020, COM O APOIO DO INSTITUTO DE PATOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE BASILEIA E BIO-EM
LAB, BIOZENTRUM, UNIVERSIDADE DE BASILEIA (PÓLEN DE TANCHAGEM-MENOR); SHUTTERSTOCK (POA DOS PÂNTANOS); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2023, COM
O APOIO DE H. HALBRITTER, S. ULRICH E PALDAT, DEPARTAMENTO DE BOTÂNICA E BIODIVERSIDADE DA UNIVERSIDADE DE VIENA (PÓLEN DE POA DOS PÂNTANOS)
Esta reacção sistémica do organismo a uma subs- convencional de tratamento para doenças alérgicas
tância à qual o indivíduo é alérgico chama-se ana- custaria apenas 125 euros por paciente anualmente.
filaxia e pode afectar a pele, causando prurido e
urticária; o sistema respiratório, provocando falta ao pólen causa preocupação
O T E M A DA A L E R G I A
de ar e asma; o sistema cardiovascular, diminuindo à comunidade científica porque a rinite alérgica
a tensão arterial e provocando palpitações; e o sis- moderada ou grave não é uma doença banal: inter-
tema digestivo, causando dor abdominal, vómitos fere na qualidade de vida, afecta o sono, o rendi-
e diarreia. No entanto, nem todos os pacientes alér- mento escolar e laboral, as interacções sociais, a
gicos à mesma substância desenvolvem reacções capacidade de concentração e a actividade física.
com o mesmo grau de gravidade. Um indivíduo Além disso, muitas destas pessoas também têm
alérgico a nozes pode só apresentar urticária, asma, rinoconjuntivite e outras comorbilidades.
enquanto outro pode sofrer um choque anafiláctico “A rinite e a asma estão interligadas, diz Pedro Car-
que põe a sua vida em risco. Estima-se que na reiro-Martins. “A doença alérgica respiratória inclui
Europa, cerca de 3% dos pacientes alérgicos sofra as duas e nós sabemos que cerca de 80% dos doen-
uma anafilaxia em algum momento da sua vida, tes com asma terão rinite alérgica e os doentes que
embora felizmente a mortalidade seja reduzida. E têm rinite alérgica têm maior probabilidade de
estes doentes devem ser sempre portadores de dis- desenvolver asma. A rinite é o principal motivo de
positivos para auto-administração de adrenalina. consulta em alergologia mas não é muito valorizada
A elevada prevalência das alergias a nível mundial porque não mata… mas mói. Por isso há até quem
torna-as um problema de saúde pública global. lhe chame o patinho feio da alergologia porque
Existe até uma aplicação, a MASK–Air (www.mask- felizmente não tem impactes fatais.”
-air.com) através da qual os pacientes registam os Especialistas de todo o mundo trabalham para
sintomas que depois são cruzados com os níveis de abordar a problemática de forma cada vez mais inte-
pólenes nesse momento e que permitem relacionar grada e pedem programas de prevenção para iden-
a incidência de alergias com os níveis polínicos. “Os tificar os pacientes de alto risco. É fundamental
dados desta aplicação mostram que as alergias inter- concentrar recursos no diagnóstico precoce que
ferem cada vez mais com o trabalho e com a produ- identifique o grau de afectação e perfil de sensibili-
tividade”, diz Pedro Carreiro-Martins. Na União zação de cada paciente para saber como evitar o
Europeia, calcula-se que os custos indirectos por agente causador da alergia. Em seguida, há que esco-
absentismo de um doente de alergias não tratado lher a medicação a administrar na época de exposi-
sejam de 2.405 euros por pessoa. Um programa ção ao pólen para controlar os sintomas do paciente.
Em terceiro lugar, vem a imunoterapia com alergé-
nios, um tipo de vacinas que modifica a resposta
imunológica do organismo e induz o desenvolvi-
mento de tolerância a esse componente, embora não
seja actualmente comparticipado em Portugal.

A LUTA CONTRA
Os novos métodos de diagnóstico permitem um
conhecimento profundo das componentes molecu-
lares dos pólenes e dos mecanismos alérgicos para

A ALERGIA distinguir se um paciente com polinose está sensi-


bilizado a componentes específicos de um tipo de
pólen ou a moléculas presentes em vários, o que

BASEIA-SE NA exige uma imunoterapia mais rigorosa. Mário Morais


de Almeida costuma dizer que “é preciso viver com
a alergia, mas sem perder a alegria. Saber conviver

PREVENÇÃO com ela é essencial, mantendo-a controlada”.


A ciência está a fazer avanços neste campo. Con-

E NA MEDICINA
tudo, o problema exige também acções e políticas
ambientais que preservem a qualidade da atmosfera.
Não só para os seres humanos. Também para a

PERSONALIZADA.
grande variedade de organismos que, tal como nós,
sofrem as consequências de respirar um ar… como
dizer… demasiado humanizado. j
CARVALHO-BRANCO
(Quercus petraea)
Carvalhos, sobreiros, carrascos
e azinheiras são representantes
do género Quercus e constituem
a paisagem florestal autóctone
mais comum em Portugal.
O carvalho-branco, uma árvore de folha
caduca da família das fagáceas pode FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL

ultrapassar 45 metros de altura Tamanho: 22-38 micra


e floresce entre Abril e Maio. Ornamentação da exina:
granulada
Encontra-se distribuído pelo Norte Aberturas: tricolporado
de Portugal, com particular incidência
na região transmontana.

CEDRO-JAPONÊS
(Cryptometria japonica)
Esta árvore de folha perene
endémica do Japão, onde é
conhecida como sugi, é uma das que
mais polinose causa nesse país, onde
a alergia ao pólen afecta mais de 40%
da população. De grande porte, é
utilizada como espécie ornamental
FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL
na Península Ibérica e noutras regiões
temperadas da Europa e da América do Tamanho: 26-50 micra
Ornamentação da exina:
Norte. Os bosques desta conífera granulada
libertam nuvens de pólen que o vento Aberturas: inaperturado

desloca através de longas distâncias.

HARTMUT GOLDHAHN/SHUTTERSTOCK (CARVALHO-BRANCO); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2016, COM O APOIO DO INSTITUTO DE PATOLOGIA DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DE
BASILEIA E BIO-EM LAB, BIOZENTRUM, UNIVERSIDADE DE BASILEIA (PÓLEN DE CARVALHO-BRANCO); ACI (CEDRO-JAPONÊS); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2011, COM O APOIO DO
INSTITUTO DE PATOLOGIA DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DE BASILEIA E DA ESCOLA DE CIÊNCIAS DA VIDA, FHNW, MUTTENZ (PÓLEN DE CEDRO-JAPONÊS)
Na Weathernews Inc., uma
empresa de informação
meteorológica do Japão,
dezenas de dispositivos
esféricos medem os níveis
polínicos da atmosfera.
Estes “robots de pólen”
aspiram o ar através de
uma abertura e, à medida
que a concentração
aumenta, os “olhos”
brancos mudam de cor
para azul, amarelo,
vermelho e roxo.
THE ASAHI SHIMBUN / GETTY IMAGES

ALERGIA AL POLEN 25
No mundo das hienas-malhadas,
as fêmeas é que mandam. Talvez seja
esse o segredo do seu sucesso.
Texto de C H R I S T I N E D E L L ’ A M O R E
Fotografias de J E N G U Y T O N
27
Hienas-malhadas PÁ G I N A S A N T E R I O R E S
chegam à beira de Uma fêmea chamada
uma charca para beber Moulin Rouge
pouco depois de o Sol impõe-se sobre outra
nascer no ecossistema de estatuto inferior
de Masai Mara, no chamada Palazzo
Quénia. Dos desertos que mostra os dentes
a florestas ou cidades, em sinal de submis-
os predadores prospe- são. As fêmeas
ram numa variedade dominantes exercem
de habitats. A fotógrafa o seu poder de forma
Jen Guyton captou bastante agressiva
este retrato de família e são sempre
com um robot coman- as primeiras a
dado à distância. alimentar-se.
Nuvens de tempestade
rolavam sobre a savana de Masai Mara, no Qué- estatuto mais elevado, e levantava-se, dando
nia, enquanto crias de hiena-malhada brinca- o seu melhor para parecer intimidante. O ges-
vam, rebolando umas sobre as outras na erva to parecia cómico, mas ambos os animais esta-
molhada. A progenitora descansava nas ime- vam cientes do seu lugar. A cria mais velha, mas
diações, levantando-se ocasionalmente para de menor estatuto, detinha-se, baixava a cabeça
desencorajar uma cria maior, com 1 ano, a jun- e afastava-se.
tar-se à brincadeira. Quando o animal mais A fotógrafa Jen Guyton registou esta cena
velho voltava a aproximar-se, uma das crias com uma câmara de infravermelhos, que per-
mais corajosas seguia a dica da progenitora, de mite documentar o comportamento nocturno

30 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
das hienas. Ao fazê-lo, abriu-nos uma pequena
janela para a estrutura intrigante da sociedade
das hienas, na qual todos os membros herdam
a sua posição na hierarquia por via materna.
As fêmeas é que mandam e o estatuto signi-
fica tudo. É um sistema matrilinear que tem
contribuído para a ascensão da hiena-malhada
como o carnívoro de grande porte mais abun-
dante de África.
Estes e outros conhecimentos sobre o com-
portamento das hienas não seriam possíveis
sem a investigação de campo conduzida ao lon-
go de 35 anos por Kay Holekamp, fundadora do
Projecto das Hienas de Mara. Os seus esforços
contribuíram para revelar uma criatura que se
destaca pela sociabilização, cognição avançada
e capacidade de se adaptar a novos ambientes.
Esta bióloga da Universidade Estadual do
Michigan estuda a espécie africana em Masai
Mara desde 1988, uma das investigações mais
longevas alguma vez realizadas sobre qualquer
mamífero. “Achei que iria ficar por dois anos”,
afirma. “Fiquei viciada.”
Viciada em hienas? A maioria das pessoas
costuma retrair-se assim que o seu nome é men-
cionado. Aristóteles descreveu-as como “exces-
sivamente apreciadoras de carne putrefacta”.
Theodore Roosevelt chamou-lhes uma “mistura
de cobardia abjecta com a mais absoluta fero-
cidade”. Em África, as hienas são consideradas
maléficas, gananciosas e associadas a bruxaria
e desvios sexuais. Até o filme “O Rei Leão”, de
1994, as retratou como astutas e maliciosas.
Embora existam quatro espécies de hienas (a
parda, a raiada, a malhada e a protelos), na Áfri-
ca Setentrional e Subsaariana, a malhada tem
sido a mais difamada. Uma das razões para tal
talvez seja o facto de se aproximar demasiado
As hienas com para o nosso conforto.
crias, como a Empress “Ratazanas, baratas, coiotes… Temos cada
Cicada, são progenito-
ras dedicadas, amamen- vez mais contacto com eles”, afirma Christine
tando a descendência Wilkinson, exploradora da National Geogra-
com leite rico em proteí- phic e ecologista especializada em carnívoros
na, gordura e cálcio
– por norma durante da Universidade da Califórnia, que estuda hie-
mais de um ano. nas no Parque Nacional do Lago Nakuru, no
Quénia. “As espécies mais vilificadas são as que
vivem junto das pessoas, pois são generalistas e
adaptáveis.”
Enquanto Christine, Kay e outros investiga-
dores desvendam mais sobre a biologia e o com-
portamento das hienas-malhadas, vão mudan-
do também o nosso conhecimento sobre quem
manda no reino selvagem e como o faz.

HIENAS 31
Soup, uma fêmea alfa,
traz a carcaça de uma
jovem girafa para
partilhar com duas crias.
O crânio e as mandíbu-
las de uma hiena
demoram três anos a
desenvolver a força
esmagadora de ossos
necessária para caçar,
exercendo pressão
sobre as progenitoras
para garantir o sustento
dos filhotes.
C I DA DE
PAE V I V Ê
R

D EC I A
SOB A

N
C

DESTREZA
NA CACA

num safari: um leão


É U M M O M E N T O C L Á́ S S I C O
ergue-se sobre uma carcaça acabada de matar,
enquanto as hienas se agrupam à sua volta, de
cabeça baixa. O leão fez a matança e as hienas
estão à espera de vez para comerem os restos,
certo? Nada disso.
Quando o biólogo Hans Kruuk começou a es-
tudar hienas na Tanzânia no final da década de
1960, descobriu que a sua reputação de necrófa-
gas cobardes era um mito. De acordo com a suas
observações, quando as hienas-malhadas e os
leões partilham uma carcaça, mais de metade
das vezes foram as hienas a matá-la. Mais recen-
temente, investigadores do Quénia descobriram
que as hienas de Masai Mara obtêm cerca de dois
terços do seu alimento principalmente através
da caça, trabalhando com frequência em grupo
para capturar gnus, zebras, búfalos e outras pre-
sas de grande porte.
A forma como coreografam estas caçadas ain-
da é um mistério. Por isso, Kay Holekamp e a sua A alfa do clã, Silver
colega Ariana Strandburg-Peshkin, da Universi- Nugget, e a sua irmã
Stardust (em primeiro
dade de Konstanz, equiparam um clã inteiro com plano, ao centro e
coleiras de GPS munidas de microfones e aceleró- à direita) visitam
metros para analisar os seus movimentos e vo- uma toca comunitária
depois do pôr do Sol.
calizações, incluindo o típico riso da hiena, que Jen Guyton usou luz
provavelmente exprime uma grande excitação. infravermelha, invisível
“As coleiras permitem-nos saber onde todos para hienas e seres
humanos, para
estão, quem está a dizer o quê e a quem, que ele- documentar comporta-
mentos do grupo respondem e quais não respon- mentos nocturnos.
dem, bem como o que cada hiena está a fazer”,
diz Kay Holekamp. Todos estes dados estão a ser
analisados por algoritmos de inteligência artifi-
cial para decifrar comportamentos específicos.
Uma conclusão já foi há muito definida: as hie-
nas “rainhas” são a “espinha dorsal da sociedade

34 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
das hienas”, diz Kay. Parte desse domínio matri- “São como uma quimera, uma mistura de di-
linear é fisiológico. Os fetos, sejam machos ou fê- versos organismos”, acrescenta Kay Holekamp.
meas, que se encontram no útero de fêmeas de es- “Alguns dos seus comportamentos são forte-
tatuto elevado possuem um reforço de hormonas mente masculinizados e outros não o são de
sexuais, como a testosterona, que provavelmente todo.” As fêmeas cuidam das crias ao longo de
aumenta a agressividade. Outra componente é vários anos, mais do que qualquer outro preda-
anatómica: sendo o único mamífero sem uma dor africano documentado.
abertura vaginal externa, as fêmeas de hiena-ma- Durante esse tempo, o crânio da jovem hiena
lhada possuem um clítoris alongado pendurado ainda está a desenvolver-se, pelo que ela é in-
entre as patas que se assemelha a um pénis. Du- capaz de caçar e matar presas de grande porte.
rante o acasalamento, a fêmea recolhe este “pseu- Kay Holekamp conjectura que esta dependên-
dopénis” para o abdómen, tornando impossível cia prolongada poderá ser uma das razões pelas
que o macho a penetre sem a sua colaboração e quais as fêmeas de hiena evoluíram de modo
assegurando que é ela quem escolhe o pai da sua a serem mais agressivas do que os machos,
descendência. Igualmente impressionante é o que não desempenham qualquer papel activo na
facto de a fêmea também parir através do clítoris. prestação de cuidados parentais.

HIENAS 35
Embora as crias dos dois sexos herdem o do que isso: enquanto as hienas urbanas ten-
estatuto de progenitora, vão descendo na hie- dem a alimentar-se de restos mortais de gado, as
rarquia à medida que novos irmãos nascem. hienas rurais caçam e matam mais daquilo que
Os estudos com recurso a identificadores e mo- comem, o que exige um pensamento mais ino-
nitorização também revelaram que a maioria vador e maior destreza motora.
dos machos abandona o seu clã de nascença a Nas primeiras experiências, incluindo uma
partir dos três anos, para se juntar a outro, au- na qual Kay Holekamp acompanhou o compor-
mentando assim as suas probabilidades de aca- tamento de um animal há muito testado na re-
salar e transmitir genes. solução de quebra-cabeças chamado Gucci, tor-
nou-se claro que as hienas também conseguem
lembrar-se da forma como resolveram proble-
mas anteriores.
“Assim que Gucci nos via a pôr a caixa com
C I DA DE
PAE V I V Ê o isco no solo, levantava-se do seu local de re-
R
D EC I A
SOB A

N
C

2 pouso, dirigia-se directamente à caixa e abria-a


em poucos segundos, deslizando o ferrolho que
mantinha a porta fechada para trás com os den-
tes até a caixa se abrir”, conta Kay.
INTELIGENCIA Arjun Dheer, ecologista especializado em vida
selvagem e explorador da National Geographic
PURA que estudou hienas na cratera de Ngorongoro,
na Tanzânia, também está impressionado com
as capacidades cognitivas da espécie. “Quan-
do olhamos para uma hiena, vemos que está a
acontecer muito por trás daqueles olhos”, diz.
H Á́ M U I TO S A N O S , Lily Johnson-Ulrich, uma ecolo- “Nós subestimamo-las.”
gista cognitiva da Universidade de Zurique e colega Os dentes e as mandibulas potentes das hie-
de Kay Holekamp, chegou de carro à cidade de nas permitem-lhes caçar uma grande variedade
Mekele, no Norte da Etiópia, onde as hienas convi- de presas e comer tanto delas quanto possível –
vem com pessoas há séculos. Aqui, identificou um até os ossos mais duros. Mas foi a sua capacidade
local de estudo apropriado e instalou uma “caixa de resolução de problemas que levou à dissemi-
com um quebra-cabeças”, um contentor quadrado nação e ao sucesso no continente.
de metal com 37 centímetros de lado e quatro por- O tamanho dos clãs depende sobretudo da
tinholas. No interior, havia um pedaço de carne crua abundância de presas e varia entre menos de
ou leite em pó e a abertura de cada porta implicava dez membros em algumas zonas desérticas até
o recurso a uma capacidade motora diferente: cerca de 130 animais em locais ricos em recur-
empurrar, puxar, deslizar ou remover. sos como Masai Mara e a cratera de Ngorongoro.
A sua equipa conduziu testes em três locais: Independentemente dos seus números, as hie-
uma cidade há muito habitada por hienas, uma nas mantêm uma sociedade de fissão-fusão, nas
reserva natural protegida e uma vila recente à quais os grupos de animais se separam (fissão)
beira da reserva, onde as hienas só viviam há ou juntam (fusão), dependendo das necessida-
cerca de 20 anos. A equipa filmou os testes, ocul- des momentâneas. Por exemplo, alguns animais
tando-se atrás do seu veículo. podem descansar e forragear isoladamente ou
Quando analisaram os resultados, ficaram em grupos mais pequenos e depois juntarem-se,
estupefactos. Com base em testes múltiplos, os abruptamente, num grupo maior para caçar ou
animais rurais eram mais hábeis a abrir as portas defender-se de ataques de leões.
do que os da vila ou da cidade. Esta descoberta, Esta fluidez faz parte daquilo que torna as hie-
publicada em 2021, contraria a teoria segundo a nas-malhadas “os carnívoros mais socialmente
qual os animais urbanos são melhores na resolu- complexos do mundo”, diz Arjun. Ao contrário dos
ção de problemas. mabecos e de muitos outros predadores, as hienas
Embora as hienas sejam inteligentes à parti- acasalam em qualquer altura e em qualquer local
da, independentemente do lugar onde vivam, e conseguem criar os seus filhotes em habitats de-
Lily suspeita que a resposta é mais complicada gradados pelas pessoas e pelo seu gado.

36 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O reino da hiena
Adaptadas a quase todos os habitats, quatro espécies de hienas fizeram
de África o seu lar. O carnívoro de grande porte mais abundante
do continente é a hiena-malhada.

MAURITÂNIA
MA LI
NÍGER ERIT.
CHADE Mekele
B.F. SUDÃO
GUINÉ
NIGÉRIA Harar
GANA SUDÃO ETIÓPIA
REP. CENT. AF. DO SUL

IA
CAM. ÁL M
UGANDA QUÉNIA SO
O
NG

GABAO
CO

R. D.
CONGO Cratera
Ngorongoro
~
D I M E N S ÃO
DA FA M Í L I A DA S H I E N A S
( H YA E N I DA E ) ANGOLA
MAL.

Hiena-malhada (Crocuta crocuta) ZÂMBIA MOÇ.


Habitando a maioria da África
Subsaariana, são conhecidas pelo
oportunismo, apropriando-se de NAMÍBIA ZIMB.
presas caçadas por outros animais.
BOTS.
Hiena-raiada (Hyaena hyaena)
Maioritariamente necrófagas, também
matam presas e sobrevivem em
desertos do Norte e Leste de África,
chegando até à Ásia.

Protelo (Proteles cristatus) 500 km


Este mamífero insectívoro evita
a competição, alimentando-se
de térmitas: até 250.000
numa refeição.

Hiena-parda
(Parahyaena brunnea) Esta necrófaga
de pêlo curto vive no deserto, em
zonas semidesérticas e em pradarias
da África Austral.
C O O P E RAT I VA S E ST RAT É G I C A S
As hienas-malhadas podem caçar As técnicas de caça incluem escolher o
sozinhas, mas a caça cooperativa aumenta elemento mais fraco de uma manada,
a probabilidade de capturarem presas usar a topografia para emboscar ou
de grande porte como gnus, búfalos e encurralar as presas e caminhar contra o
girafas. A maioria das caçadas dura vento num padrão de ziguezague para
menos de um minuto. detectar o cheiro de presas escondidas.

Gnu

Cacadoras
'
natas
As hienas-malhadas vivem em clãs
socialmente complexos, dominados por
fêmeas que podem variar entre seis
e 130 animais. Embora pareçam cães, são
parentes mais próximos dos gatos.
Ao contrário da crença popular, não são
apenas necrófagas. Também são caçadoras
altamente eficientes que matam até 95%
do seu alimento. Das mandíbulas potentes
às estratégicas de comunicação avançadas,
as hienas reinam nas caçadas.

Ilustração de M O N I C A S E R R A N O
e K E L S EY N OWA KOWS K I

ARTE: MAURICIO ANTÓN. FONTES: KAY HOLEKAMP, UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MICHIGAN; LILY JOHNSON-ULRICH,
UNIVERSIDADE DE ZURIQUE; CYBIL NICOLE CAVALIERI, MUSEU DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MICHIGAN
F O RT E S S ÁB I A S
As patas dianteiras fortes ajudam as São conhecidas por esconderem carcaças
hienas a segurar uma carcaça na vegetação ou na água. A ocultação de
enquanto arrancam a carne. Os alimento reduz a probabilidade de
animais dependem das suas muscula- detecção por necrófagos. Em inteligência
das pernas anteriores para transportar social, as hienas posicionam-se ao nível
os pedaços de carne e ossos. dos babuínos.

O estatuto, herdado
da progenitora,
define acesso
prioritário ao
alimento.

Cada hiena tem um


chamamento caracterís-
tico. As fêmeas possuem
as vozes mais graves.
As vozes são usadas
para recrutar parceiros
do clã para defender o
alimento e o território.

~
A L I M E N TAÇ ÃO
A DA P TÁV E L
A dieta das hienas abrange
alimentos desde térmitas a ovos e
elefantes. Elas são capazes de
digerir qualquer matéria orgânica,
excepto pêlos e cascos.
Ovo de
avestruz
PODER FEMININO
As fêmeas são mais agressivas e 10%
maiores do que os machos. O sexo
só pode acontecer com o consenti-
mento da fêmea: ela tem de retrair
completamente a sua genitália para
permitir o acesso do macho.

Macho

Útero

Vagina

Canal reprodutor
em forma de L Fêmea

Genitália
feminina

Cria

C R I A F RAC A ,
P RO G E N I TO RA F O RT E
Os dentes pequenos e um crescimento
lento do crânio tornam as crias dependen-
tes durante três anos. Este desenvolvi-
mento gradual pode ter favorecido a
evolução de progenitoras mais agressivas.

Uma crista longa e ossuda


fornece área adicional para
músculos mais potentes que
aprenderão a morder.
Músculo
temporal

Pré-molar para
esmagar ossos
Músculo
F O RÇ A DA D E N TA DA masséter
Músculos fortes nas mandíbulas
e um esmalte especial em dentes
que se entrelaçam em forma de
W ajudam as hienas a quebrar
ossos sem partir os dentes.

Esmalte Esmalte
da hiena- do leão
-malhada
40
A plasticidade das hienas pode ser a razão pela dação, as hienas fazem aquilo a que Christine cha-
qual a espécie não decresceu da mesma forma ma, em tom de brincadeira, a “posição de hiena
que outros carnívoros africanos menos capazes invertida” para se esgueirarem através dele.
de lidar com factores inesperados de stress. O seu trabalho de campo demonstra que,
quando os vigilantes arranjam a vedação, as hie-
nas desfazem rapidamente o remendo, abrindo
o mesmo buraco. As câmaras instaladas na ve-
C I DA DE dação também capturaram momentos diverti-
PAE V I V Ê
R dos, como hienas deslizando facilmente sob o

D EC I A
SOB A

N
C

3 perímetro no início da noite, mas esforçando-se


para fazê-lo no regresso por terem as barrigas
protuberantes.
A investigação de Christine Wilkinson de-
ADAPTABILIDADE monstra a rapidez com que as hienas-malhadas
conseguem adaptar-se a viver ao lado dos seres
URBANA humanos e quão agilmente ultrapassam obstá-
culos (nomeadamente encontrando formas de
contornar as vedações) com que outras espécies
não conseguem lidar tão facilmente.
À medida que os povoados humanos foram
Christine Wilkinson con-
N U M D I A Q U E N T E E S E C O, restringindo o habitat das hienas, os animais
duz um velho veículo de tracção às quatro rodas aprenderam a evitar activamente as pessoas
através da Zona de Conservação de Soysambu, em algumas situações. O estudo de Arjun Dheer
uma área rural nos arredores da cidade queniana revelou que as hienas que vivem na cratera de
de Nakuru. A longa seca que aflige o país é evi- Ngorongoro não se sentiam incomodadas pe-
dente. A erva apresenta-se quebradiça devido à los pastores que passeiam o gado na paisagem.
falta de chuva e o lago Elmenteita, conhecido Os seus níveis de cortisol, a hormona do stress,
pelos seus bandos de flamingos-pequenos que eram os mesmos quando comparados com os
por vezes são caçados pelas hienas, está calmo das hienas da cratera que não viviam perto de
e silencioso, sem aves à vista. pessoas e a sua fertilidade e capacidade de criar
Cerca de 37 mil pessoas vivem junto da Zona os filhotes não eram afectadas.
de Conservação, popularizada pelo seu turismo Com efeito, as hienas de Ngorongoro aprende-
de vida selvagem, mas pelo menos um animal ram a prever e evitar o movimento das pessoas,
continua a causar alguma preocupação. “Quan- tornando-se mais activas de noite. “Nem todos
do entrevistamos a comunidade local e lhe per- os animais conseguem fazer uma alteração des-
guntamos sobre as suas experiências de conflito, tas sem consequências negativas, mas as hienas
as hienas são as primeiras mencionadas em qua- conseguem-no”, conta Arjun. “São capazes de
se todas as conversas”, diz a bióloga. utilizar cada centímetro da paisagem e encon-
Num estudo recente, Christine colocou coleiras trar uma forma de sobreviver e persistir mesmo
de GPS em sete hienas e agora prepara-se para li- em locais onde são realmente detestadas.”
gar o computador portátil e verificar para onde se É óbvio que as hienas entraram em habitats
deslocaram durante a noite. Analisando os dados humanos quando as suas presas selvagens fo-
de GPS e milhares de imagens captadas por arma- ram praticamente eliminadas, como é o caso do
dilhas fotográficas, ela descobriu que, durante a Norte da Etiópia, onde as florestas foram trans-
noite, as hienas saem regularmente do Parque Na- formadas em explorações agrícolas e zonas de
cional do Lago Nakuru (um dos únicos dois par- pasto ao longo dos séculos. Nestes locais, porém,
ques nacionais integralmente vedados do Quénia) as hienas convivem com humanos numa paz re-
e dirigem-se para comunidades vizinhas entre o lativa, em parte porque os autóctones crêem que
parque e a zona de conservação para comerem os os animais consomem os espíritos malignos.
restos dos talhos e os resíduos das carcaças. Oca- Durante o dia em Mekele, por exemplo, as hie-
sionalmente, também matam e comem gado mal nas permanecem, na sua maioria, escondidas
guardado, regressando à segurança do parque já nas secções de floresta ainda existentes nos ar-
de manhã. Quando encontram um buraco na ve- redores da cidade e perto dos adros das igrejas.

HIENAS 41
As hienas aparecem com a escuridão para os animais desinteressantes e preferia ver pre-
se alimentarem de carcaças de equídeos e aves dadores “a sério”, como leões ou chitas.
descartadas em aterros a céu aberto e junto das Essa antipatia teve efeitos negativos. Existem
estradas devido ao fraco serviço de recolha de re- provavelmente mais de 50.000 hienas-malhadas
síduos da cidade. a correr pela África Subsaariana, mas o seu núme-
Ao observar o comportamento alimentar e o ro está a diminuir. As hienas-malhadas enfrentam
tamanho da população de hienas em Mekele, e as mesmas ameaças que outros predadores africa-
introduzindo os dados num modelo de transmis- nos de grande porte, mas as espécies – cuja prin-
são de doenças, Chinmay Sonawane, da Univer- cipal causa de morte é o abate por seres humanos
sidade de Harvard, com alguns colegas fizeram – são visadas de formas que os leões e outros car-
uma descoberta seminal: as hienas removem nívoros não são. São mortas não só em gestos de
mais de 200 toneladas de carcaças portadoras de retaliação por devorarem o gado, mas por serem
doenças por ano. Isto traduz-se em menos mor- consideradas pragas e veículos da magia negra.
tes devido a antrax e tuberculose bovina e um Como a fêmea alfa é a primeira a alimentar-se,
certo “serviço de controlo de doenças” prestado é provavelmente a primeira a morrer quando a
pelas hienas que poupa cerca de 45.000 euros à carcaça está envenenada, desencadeando o caos
economia local por ano ao reduzir as perdas de no clã até um novo membro assumir a liderança.
gado e os custos com tratamentos humanos. As crias da progenitora envenenada, privadas
Embora se saiba que os animais já morderam do seu privilégio matrilinear, não são adoptadas
pessoas, estes incidentes costumam estar rela- por outras fêmeas e morrem à fome. “O maior
cionados com o facto de estas deixarem os re- obstáculo à conservação das hienas é as pessoas
cintos do gado desprotegidos ou de dormirem ao não gostarem de hienas”, resume Kay.
relento. Nas palavras de Christine Wilkinson, os Isso pode estar a mudar. Num estudo com as
conservacionistas estão “a tentar mudar a narra- comunidades pastorícias do Quénia, Miquel Tor-
tiva, enfatizando as vantagens” historicamente rents-Ticó, ecologista da Universidade de Hel-
menosprezadas. sínquia e explorador da National Geographic,
descobriu que em algumas terras não vedadas
de pastores tradicionais na comarca de Laikipia,
na região central do Quénia, onde as zonas de
conservação e outras reservas privadas fazem in-
C I DA DE
PAE V I V Ê vestimentos elevados na conservação de vida sel-
R
D EC I A
SOB A

N
C

4 vagem, alguns pastores tinham mais probabilida-


des de ver com bons olhos as hienas-malhadas do
que os de Ileret Ward, no Norte do Quénia, onde o
Parque Nacional de Sibiloi promove iniciativas de
RELACOES conservação “mais pobres”. As comunidades dos
dois lugares que têm parentes a trabalhar em con-
PUBLICAS servação ou turismo atribuem mais vantagens às
hienas, começando pelas receitas turísticas.
Em 2022, certo dia de manhã bem cedo, Kay
Holekamp observou um grupo de turistas que
participava num safari. Os turistas concentra-
Kay Holekamp realiza um
A C A DA C I N C O A N O S , ram-se num grupo de hienas numa matança du-
teste em particular. Utilizando um cronómetro e rante mais de 20 minutos – e o tempo médio de
um lápis, observa os turistas dos safaris que param observação é agora superior a quatro minutos.
junto dos clãs que ela está a estudar. Os animais Isto pode representar um passo pequeno, mas
podem estar a devorar um gnu acabado de matar notável no sentido de se respeitar mais o “estilo”
ou uma girafa jovem – ou simplesmente deitados, destes carnívoros, diz a bióloga. Quanto mais de
em grupo, na erva. perto as pessoas olharem, melhor verão quem é
No início da década de 1990, o tempo que a verdadeira rainha da selva.ഩj
os turistas despendiam, em média, a observar
hienas era um minuto e 38 segundos. Durante Esta reportagem foi elaborada com informação
anos, a maioria das pessoas parecia considerar recolhida no Quénia por Ayenat Mersie

42 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
RAINHAS
PODER FEMININO
D O M U N D O N AT U R A L

Muitas outras espécies sobrevivem e prosperam graças a líderes


fêmeas fortes que ensinam capacidades de sobrevivência, resolvem
conflitos e até sacrificam os seus corpos para bem do grupo.

ELEFANTE-AFRI- FORMIGA- LOBO


CANO-DA-SAVANA -CORTADEIRA DA ETIOPIA
Entre os elefantes- As formigas-cortadeiras (cada O lobo da Etiópia é o
-africanos-da-savana, colónia pode ter oito milhões canídeo mais raro de África.
as matriarcas são repositó- de indivíduos) prestam contas Por norma, só a fêmea alfa
rios de sabedoria na a uma rainha que pode viver acasala, mas a alcateia
derradeira sororidade 20 anos e produzir 200 inteira ajuda a cuidar
animal. milhões de ovos. das crias.

Descubra como estas


fêmeas de animais
ascenderam ao
poder e alcançaram
a liderança com
BONOBO ORCA “Rainhas”, uma nova
Um dos parentes mais Nos grupos de orcas, a avó é série de sete
próximos do ser humano, o que manda. A sua presença episódios da
bonobo vive em socieda- aumenta a probabilidade de National Geogra-
des lideradas por fêmeas. sobrevivência das crias. Vive phic, que estreia a 5
Forma relações próximas e, décadas para lá da sua de Março no
por norma, é pacífico. idade fértil. Disney+.

ILUSTRAÇÕES: MUHAMMAD BAGUS PRASETYO HIENAS 43


Uma das crias de
Palazzo, do sexo
masculino, olha de alto
para uma fêmea de
maior porte, mas
menor estatuto numa
toca comunitária. As
crias de ambos os sexos
herdam o estatuto da
progenitora, embora a
maioria dos machos
deixe os clãs natais
para encontrar
companheiras após a
puberdade, perdendo
assim o seu estatuto.
Numa fotografia
captada com o robot,
hienas alimentam-se
de um gnu acabado
de matar. As hienas são
caçadoras e necrófagas
e, neste último papel,
ajudam a remover
patógenos como antrax
e tuberculose bovina do
ecossistema.
Kay Holekamp,
bióloga da Universi-
dade Estadual de
Michigan e a sua equipa
tratam de um macho
provavelmente ferido
durante uma luta. Os
estudos desta investi-
gadora perduram há
décadas e revelaram
que as hienas são
bastante inteligentes,
possuindo capacidades
sociais ao nível dos
primatas.
Nuvens de tempestade
espalham-se sobre
Masai Mara enquanto
hienas-malhadas
patrulham a savana
em busca de presas.
Os animais caçam de
dia ou de noite e
comem quase tudo
– duas das principais
razões pelas quais
são os predadores
mais bem-sucedidos
de África.
Um mês depois de
ter dado à luz, Tania
Dimitrova, de 41 anos,
abraça a sua filha, Deva,
durante uma refeição da
bebé às 2 horas da
manhã. Tania, mãe
solteira por opção,
é directora de negócios
de uma empresa
de biotecnologia.
“A evolução da tecnolo-
gia ajudará muitas
mulheres a engravida-
rem mais tarde, a terem
carreiras e a escolherem
o parceiro certo”,
comenta.

T E X TO D E H;8;997 JK>KI#:K8HEő • F OTO G R A F I A S D E JACKIE MOLLOY


Há muitos anos que a ciência viabiliza a possibilidade de ter filhos
em fases mais tardias da vida. Agora, métodos mais avançados
poderão prolongar ainda mais a fertilidade.

53
Tania extrai leite materno
com uma bomba,
enquanto lê e-mails,
depois de deitar Deva,
na cidade de Nova Iorque.
Graças ao seu trabalho
no sector médico, estava
bem informada sobre
as opções da tecnologia
reprodutiva, o que
lhe deu confiança para
decidir engravidar por
inseminação intra-uterina,
recorrendo a um dador
de esperma.

54 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 55
Susie Troxler, de 52 anos,
o marido Tony, de 63,
e a filha Lily, no quintal
da sua casa no estado da
Carolina do Norte. Depois
de anos a tentarem
engravidar, os Troxler
souberam que Tony tinha
problemas de fertilidade.
Como Susie já passara
a barreira dos 40 anos,
acabaram por recorrer
ao óvulo de uma dadora
e Tony foi submetido a
um procedimento
cirúrgico para recolha do
seu esperma. “É preciso
adaptarmo-nos ao
processo, tal como ele é”,
afirma Susie.

56 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 57
Duas semanas
antes do seu 48.º
aniversário, Eboni
Camille Chillis estava
deitada no hospital,
pronta para dar à luz
pela primeira vez.

Enquanto aguardava com nervosismo que os médicos des-


sem início ao parto por cesariana, iniciou uma lista de músi-
cas que preparara para a ocasião, constituída por canções que
a acalmavam e lhe davam força, entre as quais “I’m Coming
Out” de Diana Ross e “Lovely Day” de Bill Withers. Com o te- Eboni Camille Chillis, de
48 anos, pega na filha
lemóvel junto do ouvido, começou a cantar. Algumas enfer- recém-nascida ao colo,
meiras juntaram-se a ela. em sua casa, em Atlanta.
Eboni sempre desejara ser mãe. Até aos 40 anos, esperou Quando decidiu ter um
filho como mãe solteira,
pelo final feliz típico das comédias românticas. “Pensei que me viu-se confrontada com
apaixonaria, que casaria e que teria um bebé”, contou-me esta a realidade da escassez
educadora e empresária residente em Atlanta. “Mas a vida não de dadores negros de
esperma e de óvulos.
foi assim.” Quando a pandemia a obrigou a abrandar e a reflec- Escreveu um artigo em
tir, decidiu ter um filho sozinha. Tinha quase 45 anos. Aten- co-autoria sobre esta
dendo à sua idade e aos resultados dos testes, foi-lhe dito que a questão para a revista
“Psychology Today”.
probabilidade de conceber a partir dos seus próprios óvulos era O nome da filha foi
inferior a 1%, o que a levou a procurar uma dadora de óvulos. omitido, a seu pedido.
Ao longo de um ano, examinou perfis de dadores de óvulos e
de esperma, inspeccionando as suas fotografias em bebés, his-
torial médico e filmes preferidos.

58 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Depois de escolher dadores que se encaixavam za dos anos anteriores dissipou-se e a nova mãe
no perfil desejado, chegou a altura de preparar pensou: “Vai correr tudo bem!”
o seu útero para uma transferência de embrião. Eboni integra-se numa mudança em curso nas
Durante duas semanas, administrou a si própria últimas décadas: cada vez mais pessoas adiam a
injecções de progesterona, antes do procedimen- parentalidade. Em 1970, nos Estados Unidos, a
to de transferência, prosseguindo as injecções ao idade média com que uma mulher dava à luz pela
longo do primeiro trimestre da gravidez. primeira vez era de 21,4 anos. Em 2021, já evoluí-
Em Janeiro de 2023, a filha nasceu, ao som de ra para 27,3. Segundo os Centros para o Contro-
“Isn’t She Lovely?” de Stevie Wonder. Uma en- lo e Prevenção das Doenças (CDC), entre 1985 e
fermeira pousou a bebé no peito da mãe e a sua 2022 a taxa de fecundidade das mulheres de 40
boquinha procurou imediatamente a mama de a 44 anos cresceu de 4 para 12,5 partos por cada
Eboni. Assim que começou a mamar, a incerte- mil mulheres. (Continua na pg. 64)
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 59
60 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Eboni e a filha
encontram-se com
amigos para almoçar.
Antes de ter a bebé,
Eboni viajava com
frequência. Agora, a
principal prioridade é a
filha. “Não ando atrás
da carreira, nem ando
atrás de promoções.
Ela é o meu trabalho,
ela é a minha felici-
dade, ela é o meu
derradeiro objectivo.”

R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 61
O primeiro nascimento bem-sucedido de um bebé concebido a
partir de um ovo doado foi em 1984. Confirmou-se que a idade não
era um impedimento para o útero, mesmo depois da menopausa.

62 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
N O T O P O, À E S Q U E R D A

O médico Mark Sauer


posa diante de uma
projecção de recortes
de imprensa da vasta
cobertura mediática
que lhe foi dedicada
por revistas e jornais
devido à sua investiga-
ção e técnicas de
reprodução assistida
que permitiram dar à
luz numa fase mais
tardia da vida, mesmo
após a menopausa.
REBECCA HALE

E M B A I X O, À E S Q U E R D A

Bob Wilson, Barbara


Strong (ao centro) e a
sua filha Cristie folheiam
artigos sobre o
nascimento de Cristie
em 1990. Paciente de
Mark Sauer, Barbara deu
à luz aos 41 anos,
recorrendo ao óvulo de
uma dadora, uma vez
que os seus óvulos
tinham sido danificados
pelos tratamentos de
quimioterapia que
recebeu para curar o
cancro da mama. Além
de Cristie, o casal
adoptou dez filhos e
teve mais um através de
uma barriga de aluguer.

À ESQUERDA

Morgan Mitchell abraça


a mãe, Jonie Mosby
Mitchell, que o teve aos
52 anos. “Eu e ele somos
mesmo bons amigos”,
afirma Jonie, actual-
mente com 84 anos.
A antiga cantora de
música country foi
a primeira paciente
de Mark Sauer a ter
um filho depois
dos 50 anos.

R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 63
Menos filhos 35
Idade média da mãe
ao nascimento
do primeiro filho

e cada vez O atraso da maternidade


em Portugal 30,9

mais tarde 30
Desde 1960 que a idade
média das mães
portuguesas ao nascimento
do primeiro filho tem
aumentado substancialmente.
média
mais alta
2021

O casamento tardio, o uso


Em 2014, superou pela
de contraceptivos e o acesso primeira vez os 30 anos.
mais amplo à interrupção da
gravidez contribuíram para
uma diminuição acentuada
das taxas de fecundidade nos 25
países mais industrializados. Nas
23,5
últimas décadas, esse declínio
foi desencadeado por outros média
mais baixa
factores, como a entrada de mais 1982-1983
mulheres na força de trabalho e
a circunstância de mais mulheres
adiarem a maternidade. 20
1970 1980 1990 2000 2010 2020

Entre as mulheres com mais de 45 anos, a taxa um filho. A existência de mais oportunidades
de fecundidade manteve-se baixa em 2022 (1,1 por para as mulheres e a evolução dos papéis desem-
cada mil mulheres), mas esse valor representava penhados por cada género têm sido factores de-
um aumento de 12% face ao ano anterior. Embo- cisivos. Entretanto, as tecnologias de reprodução,
ra estes números variem de país para país, muitas como a fertilização in vitro (FIV), permitiram ter
regiões do planeta apresentam uma tendência se- filhos em circunstâncias impossíveis no passado.
melhante. Em Portugal, a idade média das mulhe- O resultado? Pelo menos 12 milhões de crianças
res ao nascimento de um filho foi de 31,7 anos em nasceram em todo o mundo graças à FIV e regis-
2022 e, desde 2014, esse indicador tem-se mantido tou-se uma profunda transformação na repro-
sempre acima da fasquia dos 31 anos. dução humana. A comunidade científica segue
Convém esclarecer que algumas mulheres actualmente novos rumos de investigação que
sempre tiveram filhos em fases tardias da vida. parecem capazes de revolucioná-la ainda mais.
Em 1940, a taxa de natalidade nos EUA das mu-
lheres de 40 a 44 anos, e mesmo de mulheres de O P R I M E I RO B E B É concebido através de FIV nasceu
idade superior a 45 anos, era ligeiramente mais no dia 25 de Julho de 1978 na cidade de Oldham, em
elevada do que em 2022. Nessa época, porém, Inglaterra. O procedimento consistiu em fertilizar
estes nascimentos correspondiam por norma ao um óvulo com esperma numa caixa de Petri,
terceiro, quarto ou quinto filhos dessa mãe. criando um embrião transferido para o útero de
Actualmente, começa a constituir-se família uma mulher. Inicialmente utilizada em casos de
mais tarde e, em alguns casos, sem companhei- obstrução das trompas de Falópio, a FIV revelou-se
ros. É uma narrativa bem conhecida: com acesso capaz de resolver outros problemas de esterilidade.
a métodos contraceptivos fiáveis, muitas mulhe- Apelidadas de “bebés-proveta” na época, as crian-
res dão prioridade à formação e à carreira (para ças concebidas por este método inspiraram admi-
nem sequer referir a liberdade de compromissos) ração e alarme. Os receios variavam entre a
antes de assumirem as responsabilidades de criar possibilidade de defeitos congénitos e as

64 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Primiparidade tardia
No início do século XX,
já havia mulheres que
davam à luz com mais de
40 anos, mas raramente
o faziam para o primeiro
filho. Em 1920, apenas
3% das mães com mais
de 40 anos eram primípa-
ras. Em 2022, essa percenta-
gem já era de 23%.

preocupações religiosas relativas à intervenção no Mitchell já tinha quatro filhos de um casamen-


processo reprodutivo. Pouco depois, porém, o pro- to anterior e uma filha adoptada com o seu novo
cedimento vulgarizou-se e foi aceite. marido, mas queria gerar um bebé com ele. Numa
Em Portugal, o processo não demorou muito a conversa que tivemos recentemente, ela lem-
impor-se. No dia 25 de Fevereiro de 1986, o mé- brou-se de ter lido num jornal o nome de Mark
dico António Pereira Coelho criou condições para Sauer, então pioneiro da técnica de doação de
o nascimento do primeiro bebé nascido por este óvulos. Quando o contactou, perguntando-lhe se
método. Os pais deram-lhe o nome de Carlos e a conseguiria ter um bebé com a sua idade, recor-
criança não só cresceu com saúde, como se tor- da-se de ele lhe ter respondido: “Sabe, Jonie? Não
nou profissional de futebol, chegando a jogar na há nenhuma razão que a impeça de ter um bebé.”
divisão principal com o nome de Carlos Saleiro. A cantora deu à luz um filho, Morgan. O nasci-
Em alguns casos, os óvulos das pacientes não mento mereceu ampla cobertura jornalística.
eram viáveis, devido à idade ou outros factores. Os processos bem-sucedidos de gravidez atra-
Por isso, a investigação médica começou a aper- vés de doação de óvulos demonstraram que a ida-
feiçoar a doação de óvulos. O primeiro bebé nas- de não era um impedimento para o útero, mesmo
cido com sucesso a partir de um ovo doado foi depois da menopausa. O desafio residia nos ová-
documentado em 1984. No dia 3 de Fevereiro, o rios, que envelhecem a um ritmo muito acelera-
cabeçalho de um jornal de Los Angeles proclama- do, por comparação com o de outros órgãos do
va: “Mulher Dá à Luz Bebé de Dadora”, frase que corpo. A reserva ovárica é a quantidade e quali-
gerava alguma confusão quanto à identidade da dade dos óvulos de uma mulher. Com o tempo,
mãe. Em Março de 1992, a antiga cantora de mú- o número de óvulos diminui acentuadamente
sica country Jonie Mosby Mitchell dava à luz aos e os remanescentes vão acumulando danos no
52 anos, recorrendo ao óvulo de uma mulher mais ADN e problemas cromossómicos, tornando a
nova. Nessa época, afirmou-se que era a mulher fertilização mais difícil e os abortos espontâneos
mais velha dos EUA a ter um bebé através de FIV. mais prováveis. (Continua na pg. 70)
JASON TREAT. KELSEY NOWAKOWSKI; NGM-PT.
FONTE: CDC, ESTATÍSTICAS DO CENTRO NORTE-AMERICANO DE SAÚDE; PORDATA 65
Nova luz sobre
o embrião
humano
À medida que uma mulher envelhece,
os óvulos e embriões desenvolvidos a
partir desses óvulos correm um risco
crescente de anomalia genética. Isto pode
provocar infertilidade ou abortos espontâ-
neos, riscos que aumentam significativa-
mente após os 35 anos de idade.
Recentemente, recorrendo a corantes Ovários
fluorescentes e microscópios a laser, os Trompas de
Falópio
investigadores captaram as mais pormeno-
Útero
rizadas imagens alguma vez observadas
de embriões humanos crescendo em
laboratório. Esta técnica de imagiologia
avançada permitiu aos médicos melhorar
a selecção de embriões durante o processo
de fertilização in vitro (FIV), aumentando
as taxas de gravidez e diminuindo as taxas
de aborto espontâneo.

Número de folículos por idade


10.000.000 O número de óvulos que as
mulheres possuem é definido à
nascença e esgota-se numa
T O

fase tardia da vida.


1.000.000 Os óvulos acabam por crescer a
N

partir de um número finito de


folículos que se desenvolvem
M E

quando a mulher ainda é um feto.


Alguns fetos têm mais de um milhão
100.000
de folículos, todos formados durante
I

os primeiros meses do desenvolvi-


C

mento fetal. Quando o ciclo


S

menstrual se inicia, os folículos


A

10.000 transformam-se em óvulos. À medida


N

que a mulher vai envelhecendo, o


número potencial de óvulos diminui
gradualmente, através da ovulação e
da morte celular. Existem, em média,
cerca de cem mil folículos no início da
puberdade e mil na menopausa.
Desenvolvimento Idade da
mulher
100 JASON TREAT. KELSEY NOWAKOWSKI.
0 9 0 10 20 30 40 50 60 ARTE: MAGIC TORCH
FONTES: ANA DOMINGO-MUELAS, BLAKE HERNANDEZ
meses anos E ROBIN SKORY, UNIVERSIDADE DA PENSILVÂNIA
Uma mórula é um óvulo um nível de pormenor
fecundado nas fases inédito”, afirma Nicolas
iniciais da divisão Plachta, especialista em
celular, blindando-se biologia celular da
contra os espermatozói- Universidade da
des tardios. “Esta foi a Pensilvânia. O corante
primeira vez que azul ilumina o núcleo e o
conseguimos ver todas ADN de cada célula: o
as células existentes laranja revela o córtex
dentro de um embrião protector de cada célula.
humano vivo, intera- A imagem cinzenta
gindo umas com as (à direita) mostra as
outras e mudando de limitações dos microscó-
forma e de posição com pios convencionais.

IMAGENS DE EMBRIÕES: NICOLAS PLACHTA, UNIVERSIDADE DA PENSILVÂNIA


0 minutos 10 minutos 20 minutos 30 minutos 40 minutos 50 minutos

3
Divisão celular
O óvulo fecundado (o zigoto) continua a
deslocar-se através da trompa de Falópio. Após
cerca de 30 horas, divide-se em duas células, depois
em quatro e assim sucessivamente, dividindo-se
continuamente com intervalos de 12 horas. O ADN
das células (representado a azul) é copiado e
dividido de forma equitativo.
Nucleus
Núcleo

2
Fecundação
As dezenas de milhões de
espermatozóides libertados CÉLULA
durante a ejaculação nadam
através do útero até às
trompas de Falópio, onde
ocorre a fecundação e as
primeiras etapas do
desenvolvimento embrionário.
O ADN do espermatozóide PA DE
OM
e do óvulo combinam-se, TR
formando o genoma FA

do óvulo fecundado. PIO

D IA 2
Fase das duas células
DIA 1
Primeira divisão
D IA 3
8 a 10 células

Óvulo fertilizado
(zigoto) Corpus
Folículo luteum
com o
Esperma oócito

OVÁR I O

DIA 0
Fertilização Ovulação

1
Ovulação
Óvulo não fertilizado
Os óvulos imaturos (ovócitos)

A viagem de um desenvolvem-se no interior


dos folículos. Uma vez
amadurecido, um deles é
libertado para a trompa de

óvulo até se converter Falópio a cada quatro semanas


– é o processo da ovulação.
As restantes células do folículo
transformam-se no corpus

num embrião luteum, que segrega as


hormonas necessárias à gravidez.
4
Formação do blastócito
As células do embrião em desenvolvimento continuam
a dividir-se, formando uma estrutura carregada de
líquido denominada blastócito, cerca de cinco a seis
dias após a fecundação. O blastócito contém 100 a 200
células, segregadas de maneira a transformarem-se no
futuro feto ou na futura placenta.

Futuras
células
da placenta

Futuras células
fetais

Perspectiva Perspectiva
exterior interior

5
D IA 4 Eclosão
32 células
Um a três dias depois de alcançar o útero,
o blastócito liberta-se da camada externa
para poder implantar-se na parede uterina.
As células internas do blastócito transfor-
DIA 5 mam-se no feto e as externas na placenta.
Blastócito inicial
(No processo de fecundação in vitro, é
habitual transferir o embrião para o útero
nesta fase).

ÚT E RO

DI A S 6 -7
Última fase do
blastócito

D I AS 8 -9
Implantação

JASON TREAT. KELSEY NOWAKOWSKI. ARTE: MAGIC TORCH


IMAGENS DE EMBRIÕES: NICOLAS PLACHTA, UNIVERSIDADE DA PENSILVÂNIA
FONTES: ANA DOMINGO-MUELAS, BLAKE HERNANDEZ E ROBIN SKORY, UNIVERSIDADE DA PENSILVÂNIA
Mark Sauer assinou em co-autoria uma série
de artigos em revistas científicas sobre os seus E se os
primeiros trabalhos no campo da FIV, que culmi-
naram em 1993 com um artigo na revista “Lan-
cientistas
cet” intitulado “A gravidez depois dos 50 anos.” conseguirem
A atenção dispensada pelos órgãos de comunica-
ção social atraiu novas pacientes vindas de todo
descobrir uma
o mundo. Embora tenha enfrentado reacções ne-
gativas, o médico conta que foi gratificante ajudar
maneira de
pacientes a concretizarem os sonhos de paterni- abrandar ou
dade. Lembra-se de amigos de filhos seus o terem
visitado em casa e dizerem-lhe: “A minha mãe
reverter o
disse-me para lhe agradecer por ter o meu irmão.” relógio biológico,
rápido do ovário há muito que
O E N V E L H E C I M E N TO
prolongando a
constitui um mistério. Há diversas teorias para sua vida fértil?
explicá-lo. “Para alguns investigadores, talvez exista
alguma vantagem evolutiva na menopausa”, afir-
mou Rebecca Robker, professora de Biomedicina
na Universidade de Adelaide, especialista no campo
da biologia reprodutiva feminina. “Como a hipótese
da avó, está a ver? Será benéfico para as sociedades
que existam estas mulheres mais velhas e mais
sábias a ajudarem as famílias?” Segundo outra teo-
ria, a maior parte dos seres humanos não sobrevivia
muito para lá dos 40 anos antes de os progressos da
medicina terem prolongado a esperança de vida.
Nesse caso, porém, porque será que os outros órgãos
se mantêm saudáveis durante mais tempo e por que
razão a produção de esperma continua?
O envelhecimento do ovário é diferente da di-
minuição da quantidade e qualidade dos óvulos,
mas os dois factores estão relacionados. Para já,
a comunidade científica ainda não compreende
bem porquê. E ambos se relacionam com a produ-
ção de hormonas que afecta não só a fertilidade,
Sarah McKnight,
mas também quase todos os aspectos da saúde de 42 anos, é piloto
– do funcionamento cognitivo à densidade óssea. de aviação comercial e
A doação de óvulos, bem como a prática do con- mãe solteira por opção.
Recorrendo a fertiliza-
gelamento de óvulos, pode permitir que mulheres ção in vitro (FIV) e ao
mais velhas utilizem óvulos mais jovens. Mas e esperma de um dador,
se os cientistas conseguirem descobrir uma ma- teve uma filha em 2019
e um filho em 2021.
neira de abrandar ou reverter o relógio biológico, Sarah está sentada com
de modo a prolongar a fertilidade das mulheres, a filha, que apanhou
reduzindo simultaneamente os efeitos negativos uma constipação,
enquanto um humidifi-
que acompanham o envelhecimento ovárico? cador ajuda a libertar
Nos últimos anos, um número crescente de as vias respiratórias.
investigadores começou a debater esta questão. Os nomes dos filhos
foram omitidos
Em 2016, Francesca Duncan, professora de ciên- a seu pedido.
cia da reprodução, e a sua equipa da Universidade
do Noroeste fizeram uma descoberta. A equipa
observou que o ovário se torna mais rígido, ou “fi-
broso”, com o passar dos anos. “O ovário é muito

70 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
dinâmico”, conta a especialista. Há muitos facto- David Pépin, biólogo especialista em reprodu-
res em jogo, desde o crescimento dos folículos, ção no Hospital Geral de Massachusetts, desenvol-
a ruptura de um folículo para libertar um óvulo ve a sua investigação numa perspectiva diferente.
durante a ovulação e a morte e reabsorção dos oó- Está a estudar a pouco conhecida hormona anti-
citos não libertados. mulleriana (AMH), produzida pelos folículos nos
Esta actividade significa que há tecido constan- ovários. Na sua opinião, a AMH poderá contribuir
temente reparado que gera fibroses. Francesca e para activar e desactivar a fertilidade. David formu-
outros cientistas estão a investigar possíveis tera- lou uma versão sintética da AMH que será testada
pias capazes de tornar os ovários mais “flexíveis” em animais. Descobriu que, em níveis elevados, a
e prolongar a vida fértil. Segundo um artigo pu- AMH previne a activação do crescimento folicu-
blicado na “Science Advances”, do qual Rebecca lar. Quando uma dose desta hormona é adminis-
Robker é co-autora, os fármacos antifibróticos trada, “poucos folículos são activados e, aqueles
disponíveis permitiram restaurar a ovulação em que o são, não crescem nem amadurecem”. Por
fêmeas de rato com 15 meses de idade, equivalen- consequência, é possível que a AMH actue como
tes a cerca de 50 anos nos seres humanos. contraceptivo. (Continua na pg. 76)
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 71
Betsy McKnight toma
conta dos netos, enquanto
a sua filha, Sarah, se
prepara para trabalhar.
Depois do nascimento do
seu primeiro filho, Sarah
mudou-se de um pequeno
apartamento na cidade de
Nova Iorque para uma casa
com quatro quartos no
estado de Nova Jersey,
para ter espaço para a sua
família em crescimento e
para a mãe, que vive com
eles para os ajudar.

72 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 73
"Percebi que era algo que eu tinha
de fazer sozinha, se queria mesmo
que acontecesse.”
– SARAH MCKNIGHT

74 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
N O T O P O, À E S Q U E R D A À ESQUERDA EM CIMA

Sarah McKnight ajuda a Sarah extrai leite com Betsy McKnight segura
filha a vestir o tutu, a bomba de manhã. a neta, aborrecida por
enquanto segura o filho O seu emprego como a mãe estar de saída
ao colo para amamentá- piloto significa que tem para o trabalho. Sarah
-lo. “Decidi que a de se ausentar durante gastou mais de 60.000
pandemia não me muitas horas. Antes de euros em tratamentos
impediria de ter outro seguir para o trabalho, de reprodução, sendo
bebé”, diz. “Estava em Sarah reserva algum submetida a diversas
casa de qualquer tempo para garantir tentativas de FIV antes
maneira. Por isso, achei que a família tem de conseguir levar a
que era uma boa altura tudo o que precisa sua primeira gravidez
para tentar de novo.” na sua ausência. a termo.

R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 75
Uma vez terminado o tratamento com a versão
sintética da AMH, a fertilidade poderia ser restau- “Se não
rada e até aumentada. Os folículos retomariam o
seu crescimento e, uma vez que se foram acumu-
fosse aquela
lando durante o tratamento, um número de folícu- tecnologia, não
los superior ao habitual cresceria em concomitân-
cia. Se um paciente com escassez de óvulos fosse
teríamos sido
submetido a FIV nesse momento, as probabilida-
des de sucesso poderiam aumentar. O tratamento
pais de todo.”
–S U S I E T ROX L E R
com AMH poderia igualmente interromper parte
dessa actividade perpétua do ovário, diminuindo
potencialmente o envelhecimento associado.
A comunidade científica concorda que não exis-
te uma solução única para prolongar dramatica-
mente a fertilidade ou a saúde ovárica. No entanto,
se a investigação em várias áreas importantes der
frutos, poderá gerar progressos significativos nos
próximos anos. “Encontramo-nos num momento
em que muitos olhos se concentram neste tópico”,
afirmou Francesca Duncan. Por exemplo, o Con-
sórcio Global para a Longevidade e a Igualdade
Reprodutiva foi fundado em 2019 para apoiar a
investigação e promover uma rede global de cien-
tistas e clínicos que estudem este tema. A organi-
zação distribuiu mais de 12,9 milhões de euros por
48 investigadores de todo o mundo.

e clínicos acrescentam
A LG U N S I N V E ST I GA D O R E S
uma nota de cautela ao adiamento da parentali-
dade, apesar de o seu próprio trabalho ter contri-
buído para essa mudança. Um dos maiores riscos
é que nem sempre há finais felizes. De acordo com
os dados mais recentes, a percentagem de partos
com nados-vivos resultantes de ciclos de FIV em
todas as idades foi de 37% em 2020. Esse valor cai
para pacientes de FIV com mais de 40 anos.
Susie Troxler brinca
O recurso a óvulos de dadoras ou óvulos congelados com a filha, Lily, que
melhora as probabilidades, mas mesmo assim não tem quase 2 anos,
há garantias. O método de FIV é dispendioso e, mui- no quarto desta.
“A bebé não sabe
tas vezes, não é comparticipado pelos seguros de que eu tenho 50 anos,
saúde. Os sucessos podem dar às pessoas a ilusão nem quer saber”,
de que terão sempre resultados. afirma. “Terei de
andar a correr atrás dela
O risco de envelhecimento também é válido como se tivesse 25.”
para os homens. “A qualidade do esperma mas-
culino diminui depois dos 40 anos e continua a
piorar”, disse David Pépin. Embora ainda pos-
sa fecundar um óvulo e resultar numa gravidez
bem-sucedida, os danos no ADN podem originar
consequências de saúde adversas para a criança.
Há muitas razões que levam as pessoas a ter
filhos mais tarde e uma delas é a inexistência de
apoios sociais. Como observou Rebecca Robker,
se existissem mais políticas públicas de apoio à

76 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
família, algumas pessoas poderiam constituir fa- var o desenvolvimento de novas tecnologias ca-
mília mais cedo. Além da saúde ovárica, encon- pazes de gerar embriões.”
tram-se em curso outras investigações. A GIV e os úteros artificiais estarão provavel-
Um procedimento conhecido como gametogé- mente a anos, ou mesmo décadas, de distância.
nese in vitro (GIV) implica a criação de gâmetas No entanto, à medida que estas novas ferramen-
a partir de células estaminais. A GIV poderia per- tas forem evoluindo, é inevitável que surjam sé-
mitir que casais do mesmo sexo tivessem filhos rios dilemas médicos e éticos. É verdade que exis-
com genes dos dois progenitores e poderia per- tem numerosos riscos, mas também é verdade
mitir que mais de duas pessoas se reproduzissem que muitas recompensas já resultaram da actual
em conjunto. Existe igualmente a possibilidade tecnologia de reprodução: milhões de pais expri-
de viabilizar o crescimento de um feto fora do mem a sua gratidão por terem filhos, quando isso
útero – um útero sintético. não parecia possível. “Ela é a luz do nosso mun-
Rebecca Robker prevê que a reprodução venha do”, assim se refere Susie Troxler à sua filha, Lily.
a mudar radicalmente nos próximos anos. “As “Ela está aqui, no momento em que supostamen-
pessoas querem mesmo muito ter filhos biológi- te deveria estar aqui, para fazer aquilo que tem a
cos”, afirmou. “E esse sentimento está a incenti- fazer no planeta.” j

R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 77
UMA GALERIA DE

T E X T O D E H E N RY W I S M AY E R

F O T O G R A F I A S D E M ATJ A Z K R I V I C
O SAARA ARGELINO
ESCONDE AQUELE QUE TEM
SIDO DESIGNADO COMO O
MAIOR MUSEU DE ARTE
PRÉ-HISTÓRICA DO MUNDO.

Esta gravura rupestre do


Parque Nacional de Tassili
n'Ajjer, na Argélia,
representa elefantes,
girafas e figuras humanas.
Crê-se que os artistas
neolíticos criaram estes
petróglifos golpeando
repetidamente a rocha
com um disco de pedra.
Em Tassili n'Ajjer,
Património Mundial
da UNESCO desde 1982,
encontra-se o Tadrart
Rouge, ou Montanha
Vermelha, uma cordi-
lheira de rochas e
areia deste tom.
do Norte
N A S P L A N Í C I E S V E R D E JA N T E S
de África, um caçador-recolector avis-
tou uma grande extensão de arenito
cor de laranja. A falésia altíssima era
uma tela perfeita: um disco pesado e
arredondado de rocha foi o instru-
mento. À semelhança de outros artis-
tas do Neolítico, este homem ou mulher decidiu
desenhar realidades familiares: um corpo grande
sobre quatro patas esguias, desenhado com A arte pré-histórica
padrões, de pescoço longo e arqueado, coroado de Tassili n'Ajjer inclui
por uma cabeça aquilina. Muito tempo depois, os gravuras e pinturas
realizadas com
descendentes distantes do artista só conheceram pigmentos de pedra
o movimento quando precisaram de procurar triturada, como esta,
recursos valiosos. Naquela época de abundância, de figuras humanas.
Hoje, é uma das
porém, o caçador-recolector teve tempo para tra- poucas provas de
balhar a parede, aprofundando as linhas, golpe que existiu um Saara
após golpe, de modo a que estas perdurassem ao verde, com gado
abundante e comuni-
longo dos séculos. dades de pastores,
Embora seja actualmente possível visitar este provavelmente
local e contemplar o desenho de uma girafa com correspondentes aos
representados pelos
1,5 metros de altura, é talvez mais provável en- artistas do passado.
contrar na região um extraterrestre do que uma
girafa real. A paisagem é radicalmente diferen-
te: mais árida, mais vermelha e sem uma nuvem
à vista. Continua, porém, a ser extraordinária.
Observadas de qualquer direcção, a areia e a
rocha da região central do Saara compõem um
quadro de êxtase inerte.
A prova do seu isolamento é a circunstância Uma das suas áreas mais belas é o amplo Ta-
de poucas pessoas terem ouvido falar do Par- drart Rouge, uma cadeia montanhosa acessível
que Nacional de Tassili n'Ajjer, embora esta seja através de excursões guiadas em veículos todo-
uma das maiores áreas protegidas africanas. -terreno partindo da cidade-oásis de Djanet. Aqui,
Situado no extremo sudeste da Argélia, integra como noutros locais de Tassili, milhares de anos
os vestígios de um vasto planalto de arenito pré- de erosão afiaram a rocha, formando pináculos
-câmbrico, banhado por dunas cor de laranja, e esculpindo afloramentos com formas zoomór-
que se estende por 72.000 quilómetros quadra- ficas e inquietantes. Um rochedo altíssimo, des-
dos de deserto, fazendo fronteira com a Líbia e gastado com fendas com 15 metros de altura, é co-
a Nigéria. A região é um paraíso geológico de nhecido como a Catedral. Outro, suspenso sobre
estranhas formações rochosas banhadas por quatro pernas rochosas e esguias chama-se Ouri-
dunas cor de laranja. ço. Fungóides solitários com três metros de altura

82 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
erguem-se, solitários, na areia. Pensa-se que exis- formam-se em imagens reconhecíveis: gravuras
tirão no parque mais de trezentos arcos naturais. e desenhos de animais e pessoas antigas, que re-
Bastariam estas formações rochosas, frequen- latam como a vida evoluiu neste local ao longo
temente descritas como “florestas de pedra”, para dos últimos 12.000 anos.
que Tassili n'Ajjer se qualificasse entre as paisa- Estas galerias ao ar livre são notáveis não só
gens mais esplendorosas do mundo. Na verdade, pela sua antiguidade e qualidade artística, mas
porém, constituem apenas metade da história. sobretudo pela sua magnitude. O último inven-
A majestade de Tassili reside não só no esplen- tário estimou que, na área do Parque Nacional,
dor visual das rochas, mas também naquilo que existem cerca de 15.000 obras de arte, que ten-
as gerações passadas nelas deixaram. À distân- dem a estar concentradas em fendas naturais,
cia, as estrias podem parecer caprichos anóni- como saliências ou nichos elevados, zonas de
mos da geologia. Vistas de perto, porém, trans- abrigo para os artistas que as que criaram.

SAARA ARGELINO 83
O guia local Abdellah
Elies (à direita) explica
a lenda por detrás das
“Vacas que Choram”,
uma aclamada gravura
antiga numa vertente
rochosa situada entre a
vizinha cidade-oásis de
Djanet e Tadrart
Rouge. Supostamente,
a manada representa
o desespero
dos pastores da região
à medida que o
período húmido
africano se aproximava
do fim e o Saara verde
se transformava
em poeira.

84 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
ENQUANTO UMA ÉPOCA
DE FECUNDIDADE ERA
SUCEDIDA POR UMA
ERA DE POEIRA,
OS GLIFOS ELEGANTES
DERAM LUGAR A
RABISCOS
DIAGRAMÁTICOS
DE CAMELOS
— GRAFITOS
APRESSADOS DE
PESSOAS QUE VIVIAM
EM MOVIMENTO.

Embora o povo nómada tuaregue as conhe- des fresques du Tassili”, Henri Lhote aclamou a
cesse há muitas gerações, a arte rupestre de Tas- região como “o maior museu de arte pré-históri-
sili foi divulgada ao mundo por Henri Lhote, um ca do mundo”.
arqueólogo francês que passou 16 meses a docu- Nas décadas que se seguiram, Lhote e os seus
mentar e desenhar centenas de obras de arte na sucessores viriam a categorizar a arte rupes-
região de Tassili entre 1956 e 1957. tre da região em diferentes períodos. Entre as
Mais tarde, o investigador foi criticado pelo obras mais enigmáticas e antigas, figuram as
seu desdém pela população local e pelas suas do período das cabeças redondas – uma alu-
práticas destrutivas deste património. À seme- são à preponderância de figuras com cabeças
lhança dos primeiros turistas que vieram no seu desproporcionadamente grandes e desprovi-
encalço, sabe-se que Lhote salpicava as pinturas das de características faciais específicas, cujo
com água para realçar as suas cores – um proce- início deverá ter sido o chamado período "Buba-
dimento que acelerou a sua deterioração. No en- lus" ou da grande fauna selvagem, correspon-
tanto, os artefactos (como as peças de cerâmica dendo a um momento em que elefantes, rino-
e as ferramentas) e as réplicas dos desenhos que cerontes e até o búfalo pré-histórico da espécie
trouxe da Argélia, expostos pela primeira vez no Bubalus antiquus eram abundantes na região e
Museu das Artes Decorativas de Paris, em 1957, a arte rupestre estava dominada por gravuras de
foram um sucesso. No seu livro “À la découverte grandes animais.

SAARA ARGELINO 85
A origem destas personagens, que se pensa
remontarem há 10.000 anos, alimentou várias
teorias. Um especialista, o etnobotânico italia-
no Giorgio Samorini, especulou que a qualidade
surreal das figuras de cabeça redonda, junta-
mente com os padrões fractais em forma de es-
piral que adornam algumas gravuras de animais
suas contemporâneas, sugere uma espirituali-
dade influenciada pela ingestão de substâncias
psicoactivas como a psilocibina.

S R E T RATO S dos seres humanos arcaicos


parecem incongruentes, mas condizem
com as imagens dos animais. A maioria
dos mais proeminentes e bem consegui-
dos petróglifos de Tassili retratam cria-
turas de grande porte habitualmente
associadas à África subsariana, incluindo
elefantes, avestruzes, leões, girafas, rinocerontes,
auroques, crocodilos, antílopes e hipopótamos. A partir desta gruta,
O pano de fundo fantasmagórico da sua pre- avista-se uma
estranha paisagem
sença é o Saara “verde”. A escala da erosão em lunar, desértica e
Tassili n'Ajjer, especialmente no sistema de ravi- seca, com as forma-
nas esculpido existente a norte, indica que esta ções rochosas
de Oan Atan, uma
zona bravia e árida foi outrora atravessada por área de mesas
vias fluviais. Estudos geológicos recentes espe- e afloramentos
cularam que aquilo que hoje conhecemos como de arenito integrada
em Tadrart Rouge,
o maior deserto quente do mundo passou por onde há milhares de
230 “períodos húmidos”, com chuvas abundantes. anos artistas
O último terá ocorrido há cerca de 15.000 anos. neolíticos deixaram
a sua arte nos
Segundo os paleoclimatologistas, as alterações refúgios rochosos.
no eixo e na órbita da Terra em relação ao Sol du-
rante estes períodos húmidos africanos aqueceram
o hemisfério norte. Monções de Verão mais inten-
sas encheram depressões geológicas, formando Os petróglifos mais antigos de Tassili testemu-
lagos e zonas pantanosas. Grandes rios ligaram o nham esta época de abundância. À medida que
Atlântico à costa mediterrânea do Magrebe. Os re- as pradarias se espalhavam pelo interior do Norte
gistos da orla costeira sugerem que o lago Chade, de África, os herbívoros migraram para se apro-
situado mil quilómetros a sul de Tassili, foi em tem- veitarem delas, seguidos pelos seus predadores
pos maior do que a Alemanha. Este lago colossal animais e humanos.
cobria uma área com cerca de 400 mil quilómetros As épocas posteriores de arte rupestre de Tas-
quadrados, 24 vezes mais do que na actualidade. sili n'Ajjer acompanharam as alterações sociais e
Pensa-se que o mais recente episódio deste fe- climáticas que se seguiram. À medida que o cli-
nómeno recorrente tenha ocorrido já no período ma da região mudava, o mesmo aconteceu com
histórico. Amostras do oceano retiradas do lei- a sua presença humana. Um dos motivos mais
to do Atlântico ao largo da costa da Mauritânia, comuns das galerias de Tassili são as pinturas
2.700 quilómetros a oeste de Djanet, mostram naturalistas de vacas piebald, evocando a transi-
que há 11.000 a 5.000 anos, os níveis do “fluxo ção da caça-recolecção para a pastorícia. Muitas
de poeira” (o volume de poeira proveniente do das imagens sobreviventes desta época bovídea,
Saara) diminuíram dramaticamente no fim desse ou pastoral, foram desenhadas com tintas ocre
período. As mesmas amostras continham pólen e carmim, obtidas a partir de pedra moída mis-
de vegetação que não existe no deserto, mas na turada com sangue de vaca. Uma das excepções
savana luxuriante. é uma das obras de arte mais famosas da região.

86 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Num afloramento rochoso solitário, junto da biscos diagramáticos de camelos frequentemente
estrada que liga actualmente Djanet à fronteira compostos por um corpo triangular com linhas
com a Líbia, encontra-se um desenho conhecido rectas radiantes representando o pescoço e as pa-
como “as vacas que choram”. Esculpido por um tas. Nesta altura, as gravuras do período húmido,
mestre artesão, mostra um grupo de vacas dese- impressas sobre a pedra ao longo de semanas e
nhado com deslumbrantes linhas caligráficas. meses, já tinham sido suplantadas pelos apressa-
As cabeças das vacas estão viradas para o rio e dos grafitos de pessoas que viviam em constan-
cada uma tem uma grande lágrima, formando- te movimento. Foi este estilo de vida, no qual as
-se sob um dos olhos. Segundo a lenda local, a pessoas migravam longas distâncias em busca de
imagem representa a ansiedade dos pastores à comércio e água, que os tuaregues herdaram.
medida que as chuvas diminuíam e a vegetação Nas últimas décadas, as instabilidades locais,
saeliana que sustentara os mamíferos de grande com destaque para os conflitos civis na Líbia e no
porte durante milénios recuava. Níger restringiram o acesso de visitantes a gran-
As vacas que choram são um pressentimento de parte do parque nacional. A gigantesca esca-
do presente desidratado do Saara. Enquanto uma la desta região bravia coloca-a fora do alcance
época de fecundidade era sucedida por uma era das patrulhas militares argelinas. Por enquanto,
de poeira, a transição para o nomadismo de longa grande parte da arte rupestre de Tassili e as gran-
distância trouxe consigo o último período artísti- des paisagens que servem de pano de fundo per-
co, o Camelino, assim denominado devido aos ra- manecem perdidas no tempo. j

SAARA ARGELINO 87
EM SENTIDO HORÁRIO A
PARTIR DO TOPO ESQUERDO

Na movimentada rota
turística de Tadrart
Rouge, destaca-se esta
gravura de uma figura
humana e uma girafa.
Comuns no Parque
Nacional de Tassili
n'Ajjer, as pinturas de
girafas evocam um
período húmido de
África, ocorrido há
11.700 a 5.500 anos,
quando o Saara era
bastante mais verde e
acolhia grandes
mamíferos.

As silhuetas das
formações rochosas
são visíveis através
da neblina do entarde-
cer em Oan Atan,
em Tadrart Rouge.
Eternidades de erosão
esculpiram as rochas
do Parque Nacional
de Tassili n'Ajjer,
conferindo-lhes formas
invulgares e evocativas.

Um guia local descansa


na borda de uma guelta
(uma poça de drena-
gem natural) no fundo
do desfiladeiro em
Essendilene.

Uma mesa solitária


emerge das vastas
dunas de areia cor
de laranja junto dos
pináculos rochosos
de Moula Naga, em
Tadrart Rouge.

88 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
SAARA ARGELINO 89
Abdelah Elies, vestido
com a túnica tradicional
e o pano shesh dos
tuaregues, caminha
sobre as dunas de Moul
Naga, um local de
passagem da rota de
visita clássica a Tadrart
Rouge. É uma das
regiões mais belas
e acessíveis de
Tassili n'Ajjer.
N OTAS | DIÁRIO DE UMA FOTÓGRAFA

EM BUSCA
DE NATUREZAS
VIVAS

UMA FOTÓGRAFA VIAJOU PELO


C A N A DÁ , C R I A N D O R E T R ATO S
DE ECOS SISTEMAS PARA PROMOVER
A CONSCIENCIALIZAÇÃO PELOS
ELEMENTOS MAIS PEQUENOS
DA N AT U R E Z A .

TEXTO DE HICKS WOGAN


F OTO G R A F I A S D E J U LYA H A J N O C Z K Y

92 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
As imagens de Julya
Hajnoczky representam
organismos frequentemente
ignorados, como flores
da espécie Microsteris
gracilis dispersas
pela Colúmbia Britânica
(à esquerda) e um cogumelo
da espécie Leccinum
aurantiacum em Alberta.

E M B U S C A D E N AT U R E Z A S V I VA S 93
Julya Hajnoczky estuda cada ecossistema e colhe exemplares representativos. Dispostos numa montagem, prestes a ser
captada pelo seu digitalizador: uma alga Zostera marina e as conchas vazias de um búzio e um mexilhão da Califórnia
recolhidos numa praia do Parque Nacional de Pacific Rim, na ilha de Vancouver.

94 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Uma montagem a partir de material recolhido no Parque Provincial dos Lagos de Pierre Grey inclui uma pinha de Pinus
contorta, agulhas de pinheiro e parte da casca do ovo de um tordo. Julya viaja com um atrelado com três funções:
dormitório, laboratório e estúdio de imagem.

E M B U S C A D E N AT U R E Z A S V I VA S 95
Deixando a tampa do digitalizador aberta, a fotógrafa acrescenta um fundo negro aos objectos, levando-os a flutuar num
vazio que evoca o espaço sideral. O suporte desta imagem é um líquen recolhido nas montanhas Rochosas que tem um nome
comum imaginativo: vómito de fada (Icmadophila ericetorum).

96 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
“Passo muito mais tempo a observar um local do que a colher exemplares”, diz a autora. Por fim, uma composição acaba por
ganhar forma. Ela sente-se particularmente atraída por aquilo a que chama “microflora carismática”, como as esbeltas
extremidades das sementes da dríade-branca.

E M B U S C A D E N AT U R E Z A S V I VA S 97
N OTAS | DIÁRIO DE UMA FOTÓGRAFA

AO C A M I N H A R À V E LO C I DA D E D E UM C A R AC O L , A F OTÓ G R A FA T E M T E M P O D E
D O C U M E N TA R O S S E R E S M A I S P E Q U E N O S A N T E S D E S E R TA R D E D E M A I S .

S A LT I TA N D O C O M O U M A R Ã , J U LYA H A J N O C S K Y licenças de recolha de fungos, guias de campo,


demorou certa vez quatro horas a percorrer um frascos e ferramentas para recolha de espéci-
trilho que, por norma, exige 15 minutos de cami- mes, protector solar e repelente de insectos.
nhada. É esta a forma lenta e pouco convencional A outra particularidade do projecto é a ética
que a fotógrafa nascida em Calgary encontra para de Julya: recolhe uma quantidade mínima de
apreciar a natureza. Julya passa algumas semanas exemplares abundantes, mortos ou descartados
por ano em trilhos de algumas das paisagens natu- (nunca espécies raras ou animais vivos) e devol-
rais mais deslumbrantes do Canadá. Debruça-se ve-a depois de terminar o seu trabalho.
sobre musgo ou cogumelos enquanto outros visi- Os retratos obtidos, captados no seu digitaliza-
tantes passam por ela a correr. “Deve ser assim que dor de alta resolução, são paisagens canadianas
os ciclistas se sentem na auto-estrada quando são em miniatura e fazem parte do seu projecto em
ultrapassados por camiões”, brinca. Por vezes, con- curso, ao qual deu o título de “At the Last Judge-
tudo, os caminhantes param e perguntam-lhe o ment We Will All Be Trees” [No Juízo Final, Todos
que está a ver – e eles não. Julya fica feliz por expli- Seremos Árvores]. Preocupada com a relação da
car-lhes – afinal, é o objectivo do seu projecto. humanidade com o ambiente, Julya Hajnoczky
Em 2017, a fotógrafa concebeu e construiu um caracteriza as imagens como “elegíacas, som-
atrelado de 2,5 metros, dando-lhe o título pom- brias, lamentos”, naturezas-mortas criadas en-
poso de Máquina Científica Alfresco. Pintado de quanto ainda há vida. São igualmente encantado-
verde florestal, contém tudo o que Julya precisa ras. Parecem pedir ao observador para reduzir a
para o seu trabalho de campo: uma cama, um velocidade. Exigem um olhar maravilhado sobre
fogão de campismo, binóculo e lentes portáteis, o mundo natural e urgência para protegê-lo. j

Nas cordilheiras Kootenay, na Colúmbia Britânica, Julya Hajnoczky recolheu uma grande
diversidade de pinhas.

98 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
UMA GALERIA DE AREIA E PEDRA | B A S T I D O R E S

PORTAL NO DESERTO
T E XTO D E ÉMILIE RAUSCHER

A F OTO G R A F I A É C OM F R E Q U Ê N C I A um nascia.” Imóvel num equilíbrio instá-


encontro com um lugar. Neste caso, o vel, Matjaž imortalizou esta perspec-
Tadrart Vermelho, no deserto de tiva original: “Queria ‘enquadrar’ este
Tassili n'Ajjer, no Sul da Argélia (pági- lugar mágico para que o espectador Originário da Eslovénia,
Matjaž Krivic documenta
nas 78-79). O fotógrafo Matjaž Krivic pudesse ser transportado até ele",
há 25 anos as regiões
viajou para a região em Janeiro de sublinha. “Não queria que a imagem mais depauperadas
2023: “Saí de manhã cedo, quando fosse estática, mas sim um portal.” do nosso planeta, as
ainda estava escuro”, conta. “Escalei Matjaž Krivic gosta de fotografias suas sociedades e
algumas rochas à luz de uma lanterna como esta, que captam um diálogo tradições. O seu trabalho
e, de repente, à minha frente, surgiram com o ambiente, contam uma ligação aborda também as
questões do ambiente
as formações rochosas de Oan Atan, e uma história. Isto exige que se viva o
e a conservação.
uma paisagem quase extraterrestre, momento e que se mergulhe no tema A sua abordagem
numa atmosfera surrealista.” a relatar sem um objectivo preciso, original valeu-lhe
Ao olhar em redor, o fotógrafo avis- quase como uma forma de meditação. numerosos prémios,
tou uma gruta a poucos metros. É por isto que ele parte sempre bem incluindo o World Press
Desceu até lá e uma panorâmica equipado: para ter tempo de se perder, Photo em 2016.

“digna de um cenário de filme” abriu- de vaguear e de aproveitar a surpresa


-se à sua frente. “Foi uma experiência quando esta se apresenta… porque
impressionante, face ao silêncio avas- invariavelmente ela apresenta-se.
salador e à imensidão que ganhavam “Nunca sei onde vou parar, mas sei que
vida gradualmente, à medida que o Sol há sempre algo à minha espera.”

MATJAŽ KRIVIC; MIRAN JURŠIČ (RETRATO)


P R Ó X I M O N Ú M E R O | ABRIL 2024

O pulmão verde O que se esconde A viagem do Os fotógrafos


de Bornéu sob a floresta? grou-americano e as suas histórias
Uma antiga reserva O mundo dos maias foi Uma das proezas mais A actividade dos
florestal na Indonésia vibrante no seu apogeu, fascinantes da natureza fotógrafos da National
transformou-se num mas, após o colapso, a é a viagem continental Geographic desperta
dos mais exuberantes natureza tomou conta do grou-americano, curiosidade e paixão.
parques nacionais do da maior parte das estru- que voa quase oito mil Alguns dos nossos
mundo, refúgio dos turas. Agora, a tecnolo- quilómetros todos os melhores artistas
últimos orangotangos gia ajuda a descobrir anos para garantir a sua contam as histórias por
sobreviventes. esses monumentos. sobrevivência. detrás de fotos icónicas.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C TIM LAMAN

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