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(20240300-PT) National Geographic
(20240300-PT) National Geographic
(20240300-PT) National Geographic
P T | MARÇO 2024
ALERGIA AO
N AT I O N A L G E O G R A P H I C MARÇO 2024
S U M Á R I O
2 26
Na capa
Imagem microscópica
de um grão de pólen
de carvalho-branco.
O aumento da produção
Pólen, porque há Hienas-malhadas: de pólen tem
tantas alergias? as últimas a rir desencadeado uma
Há poucas décadas, a alergia Entre as hienas-malhadas, epidemia de alergias.
ao pólen era um doença típica as fêmeas é que mandam e © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2016,
COM O APOIO DO INSTITUTO DE
das classes mais favorecidas, talvez seja esse o segredo PATOLOGIA DO HOSPITAL
mas afecta agora muito mais do seu sucesso. Vivem em UNIVERSITÁRIO DE BASILEIA
E BIO-EM LAB, BIOZENTRUM,
indivíduos e a tendência está clãs socialmente complexos de UNIVERSIDADE DE BASILEIA
claramente em crescimento em 6 a 130 aninais. Embora pareçam
grande parte do mundo à cães, são parentes mais
medida que as alterações próximos dos gatos e, contraria-
climáticas, o aumento da mente à crença popular, não
poluição e os estilos de vida são apenas necrófagas:
cada vez mais sanitizados são caçadoras eficientes.
exacerbam as crises polínicas. T E X T O D E C H R I S T I N E D E L L’A M O R E
T E X T O D E E VA VA N D E N B E R G F OTO G RA F I A S D E J E N G U Y TO N
52
A S UA F OTO
VISÕES
EXPLORE
Maternidade tardia: Viver com albinismo
a revolução da reprodução
A ciência e a tecnologia estão Inscrito na pele
a revolucionar os limites da Fernando Trujillo
fertilidade humana. Graças a Armaduras para animais
novas técnicas de reprodução
assistida, cada vez mais mulheres GRANDE ANGULAR
são capazes de dar à luz em
idades tardias. E isto parece ser Uma janela indiscreta
o início de um novo processo.
E D I TO R I A L
T E XTO D E R E B E C C A T U H U S - D U B ROW
F OTO G R A F I A S D E JAC K I E M O L LOY
BASTIDORES
Portal no deserto
78
P RÓX I M O N ÚM E RO
92
Em busca de naturezas vivas
Uma fotógrafa viajou pelo
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para nationalgeographic
@ rbarevistas.pt
Mais informação na nossa
Canadá, criando retratos de w página de Internet:
nationalgeographic.pt
ecossistemas para promover
a consciencialização pelos Siga-nos no
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da natureza. As suas imagens Torne-se fã da nossa página
representam organismos de Facebook: facebook.
ignorados, como flores e com/ngportugal
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V I S Õ E S | A SUA FOTO
J O S É A LV E S A coruja-do-nabal é uma espécie que se instala em Portugal durante o Inverno em zonas húmidas. Sabendo
da sua presença nas salinas da Figueira da Foz, o fotógrafo escondeu-se no interior de uma ruína e esperou pela sua sorte.
J O S É F E R R E I R A Na praça de touros Celestino Graça, em Santarém, o autor encontrou na imagem deste espectador
anónimo, isolado na bancada, uma metáfora para o problema crónico da solidão e isolamento dos mais velhos.
C A R L O S A N T U N E S O fotógrafo e líder de viagens visita recorrentemente a Namíbia, mas nunca se cansa da paisagem
dinâmica do Parque Nacional Namib-Naukluft, o deserto mais antigo e com as dunas mais altas do mundo.
V I S Õ E S
Canadá
Uma mulher observa a
aurora boreal nas margens
do lago Maligne, no
Parque Nacional de
Jasper. Esta área protegida
repleta de lagos, picos
e cumes no extremo
setentrional das
montanhas Rochosas
está classificada como
Património Mundial.
ISTOCK
Indonésia
As formigas-verdes-
-arborícolas (Oecophylla
smaragdina) utilizam
o próprio corpo para
formar uma ponte de
ligação entre duas folhas.
Estes insectos estabelecem
enormes colónias e
constroem formigueiros nas
copas das árvores, tecendo
estruturas com a seda
produzida pelas larvas.
ISTOCK
China
Filas de lanternas
vermelhas iluminam a
antiga Rua Jinli, na cidade
de Chengdu, no centro do
país, por ocasião da
celebração do Festival das
Lanternas. A festa conclui
as celebrações do Ano
Novo Chinês cujas raízes
remontam há mais de dois
mil anos até à época
da dinastia Han.
PHILLIPPE LEJEANVRE / GETTY IMAGES
E X P L O R E
VIVER COM
ALBINISMO
Uma condição hereditária, rara e irreversível.
O QUE É? Q U E M A F E C TA? Q UA I S O S R I S C O S ?
É uma distúrbio que con- Embora existam casos A Organização das Nações
siste na redução ou falta em todas a regiões do pla- Unidas calcula que, em
de produção de melanina, neta afectando populações África, 98% das pessoas
o pigmento que protege fenotipicamente muito albinas morram antes de
a pele da luz ultravioleta e distintas, é na África Sub- completar 40 anos. Ao
que colora a pele, cabelo saariana que se encontra cancro de pele, a principal
e olhos. Em pessoas com a maior prevalência. Aqui, causa de morte, somam-se
albinismo, a pele assume em pequenas comunida- as mortes violentas cau-
diferentes tonalidades des rurais, com elevada sadas pelo preconceito e
dependendo da quanti- consanguinidade e baixa superstição. No Malawi,
dade de melanina. Além diversidade genética, os um dos países com maior
dos riscos associados às casos de albinismo podem incidência de albinismo
lesões cutâneas por falta de ser dez vezes superiores calcula-se que existam
protecção contra a radiação à média global. 134.000 casos e em 2019
solar, as pessoas afectadas Calcula-se que uma o serviço de saúde
têm com frequência pro- em cada 17.000 pessoas dispunha de apenas
blemas graves de visão. sofrerá deste distúrbio. quatro dermatologistas.
T E X T O D E A L E X A N D R E VA Z
“Muitas pessoas não
sabem que sou albina e
acham que sou russa ou
alemã. Procuro sempre
informar as pessoas sobre
o conceito e quais os
cuidados a ter com a
pele”, diz Gabriela Filipe,
angolana de 24 anos
residente em Lisboa.
OS NUMEROS
´
30
VA L O R M E N S A L D O C U S T O D O
PROTECTOR SOLAR (EM EUROS)
209
ALBINOS VÍTIMAS DE HOMICÍDIO
EM ÁFRICA ENTRE 2008 E 2018
75.000
VA L O R E M E U R O S Q U E P O D E M
AT I N G I R O S R E S T O S M O RTA I S D E U M
A L B I N O N O M E RC A D O DA F E I T I Ç A R I A
FONTES: NAKKAZI, E. (2019). PEOPLE WITH ALBINISM IN AFRICA: CONTENDING WITH SKIN CANCER. THE LANCET, 394. TAMBALA-KALIATI T. ET AL.(2021). LIVING WITH ALBINISM IN
AN AFRICAN COMMUNITY: EXPLORING THE CHALLENGES OF PERSONS WITH ALBINISM IN LILONGWE DISTRICT, MALAWI.
E X P L O R E | D E S C O B E RTA S
Seguir o líder
O plástico e a poluição luminosa
nas linhas de costa dificultam a
chegada das tartarugas mari-
N OT Í C I A S DA L I N H A nhas recém-nascidas ao oceano,
DA F R E N T E DA C I Ê N C I A mas um pequeno robot tarta-
ruga, concebido por investiga-
E D A I N O VA Ç Ã O dores da Universidade de Notre
Dame, pode guiá-las por cami-
nhos seguros. — A N N I E R O T H
SAUDE
´ E MEDICINA
Ouvir mal
por falta de
um dente
Um implante
dentário faz o
trabalho de um
dente real, aju-
dando a masti-
gar, a falar e a sorrir,
mas também tem
o potencial de as
ajudar a ouvir. Um
estudo desenvol-
vido na Universi-
dade de Tongji,
em Xangai, revelou
que o osso maxilar
transmite sons ao
GENÉTICA ANIMAL
ouvido interno tão
bem como o osso
A PARTIR DO TOPO: YASEMIN OZKAN-AYDIN: ECKART DEMASIUS E FUNDAÇÃO PARA A CONSERVAÇÃO DAS GIRAFAS; EDWARDOLIVE, GETTY IMAGES/ISTOCKPHOTO
O FUTURO DA
publirreportagem
BIOECONOMIA LEVA-NOS
DE VOLTA À FLORESTA
Apesar da crescente consciência da necessidade de
uma economia mais circular, os sistemas económicos
dominantes permanecem alicerçados na mentalidade de
“extrair-produzir-descartar” e na crescente sobre-exploração
dos recursos. Segundo dados do Circularity Gap Report
(2020), apenas reutilizamos 8,6% dos mais de 100 mil milhões
de toneladas de materiais que extraímos anualmente.
Para conseguirmos cumprir as metas estabelecidas para
o aquecimento global, é imperativo fazer a transição
para uma economia circular, cujo princípio seja
extrair/reciclar-produzir-reutilizar/reciclar. A solução mais
eficaz é substituir os recursos não renováveis por renováveis,
isto é, por matérias-primas que têm a capacidade de ser
regeneradas de forma sustentável, aumentando o potencial
de nos permitir satisfazer as necessidades da Humanidade,
permanecendo dentro dos limites do Planeta – é a chamada
bioeconomia circular.
Num modelo de bioeconomia que inclua a floresta –
bioeconomia circular de base florestal –, os recursos
biológicos têm origem em florestas plantadas geridas de
forma responsável, permitindo atuar em três frentes que se
reforçam mutuamente: aumentar o armazenamento de
carbono nas florestas; melhorar a saúde e a resiliência da
própria floresta, através da gestão florestal; e utilizar os
recursos da madeira de forma sustentável, para substituir
materiais não renováveis e intensivos em carbono.
Os novos bioprodutos que podem nascer da bioeconomia
de base florestal vão desde os aditivos alimentares
aos biocompósitos, e dos biocombustíveis avançados à
nanocelulose, substituindo materiais de origem fóssil em
setores como embalagens, materiais de construção, têxteis,
bioenergia, produtos farmacêuticos e componentes de
automóveis.
As florestas são a maior fonte de recursos biológicos
renováveis não alimentares, isto é, que não competem com a
produção de alimentos. Trazê-las de novo para o centro das
nossas vidas vai permitir-nos reconstruir a relação perdida
entre ecologia e economia, entre tecnologia e natureza.
INOVADOR
FERNANDO TRUJILLO
Fernando Trujillo segura o bico de um golfinho do Amazonas enquanto a sua equipa mede e examina o animal antes de o
devolver à água. O biólogo marinho colombiano passou mais de trinta anos a trabalhar na protecção dos golfinhos de rio.
Este artigo foi apoiado pela Rolex, que trabalha em parceria com a National Geographic Society em expedições
científicas para explorar, estudar e documentar as alterações em curso nas regiões mais prístinas do planeta.
THOMAS PESCHAK
NOVA EDIÇÃO
DESCOBRIMENTOS
PORTUGUESES
RBA
JÁ NAS BANCAS
1. Compassos 2. Punções 3. Adesivo 4. Serra
Garantem a simetria De vários calibres para Semelhante a alcatrão, As diferentes lâminas
quando se medem moldar cúpulas de metal mantém a folha de metal permitem a De Boer cortar
superfícies curvas como num novo elemento no lugar enquanto os variados materiais com
a viseira do capacete. de armadura. é decorada. enorme precisão.
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O G ATO E O R ATO são eternos rivais nos desenhos animados, mas
e se estes dois guerreiros estivessem equipados como os com-
batentes humanos da história – como samurais japoneses ou
cavaleiros da era Tudor? O artista canadiano Jeff de Boer explora
esta ideia e cria notáveis armaduras para gatos e ratos, não para
serem usadas pelos animais, mas para serem apreciadas pelos
visitantes humanos. Desde a década de 1980 criou cerca de oito-
centos fatos, transformando metal em obras-primas “pequenas,
mas poderosas”. — H I C K S WO G A N
MARÇO 2024
G R A N D E A N G U L A R
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Na sala de exames materiais do MNAA, António Candeias (em baixo, à direita), responsável pelo estudo técnico
do Laboratório HERCULES, prepara o exame de espectrometria de raios X (XRF Crono) que permite realizar o
mapeamento químico dos pigmentos utilizados pelo autor, que mais tarde confirmariam a coincidência de datas
entre a estada de Hopper em Paris e a data de produção de um dos pigmentos utilizados. Em cima, resultado do
exame, mostrando a distribuição dos elementos Cobalto (Co) e Zinco (Zn).
MARÇO 2024
G R A N D E A N G U L A R | UM A JA N E L A I N D I S C R E TA
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
UMA VERDADEIRA
HISTÓRIA DE AMOR
Na transição para o século XX, Edward
Hopper (1882-1967) tinha 18 anos e, apesar
de se dedicar ao desenho e à pintura desde
a infância e de ter fantasiado transitoria-
mente com a hipótese de se tornar
engenheiro naval, estava determinado a
focar-se nas artes. Por insistência dos pais,
que se preocupavam com as suas perspec-
tivas de futuro, ingressou numa escola de
arte e design. Concluído o curso, trabalhou
numa agência de publicidade, na qual
produziu ilustrações para cartazes e
revistas, mas o trabalho desiludiu-o e
decidiu viajar para a Europa. Foi em Paris
que conheceu Enid (em cima, à direita,
numa fotografia dos arquivos familiares
recuperada por Pedro Mesquita da Cunha).
A sua musa ficou alojada em casa de
Marie Elizabeth Kuntzler (à direita), num
prédio onde o artista também viveu.
São essas figuras que parecem estar no
quadro agora investigado. Enid viria a
casar-se em 1908 com um professor sueco (à direita)
para desgosto do pintor. Kuntzler, por seu lado, teve
dois filhos, um dos quais, Jean Casimir (1888-1970) viria
a negociar em arte e imobiliário. Poderá ter sido ele o
proprietário do quadro enquanto viveu, legando-o
depois à mulher, que faleceu em 1991, nos arredores
de Paris.
Pedro Mesquita da Cunha conseguiu rastrear o
paradeiro de várias gerações das personalidades
envolvidas nesta trama histórica e apurou que, em
1990, os porteiros do prédio da nora de Marie
Elizabeth Kuntzler eram portugueses, naturais da
região Centro. Poderão ter sido eles a trazer o quadro
para Alcanena em algum momento da
sua vida, ignorando por completo a sua identidade
e possível valor? Talvez nunca se saiba.
Edward Hopper, por seu lado, regressou aos
Estados Unidos. Aos 36 anos desenhou um poster
para a propaganda da Grande Guerra e a sua sorte
começou a mudar. Nos anos seguintes, expôs
individualmente e ganhou notoriedade. Apesar de
se celebrizar com telas enigmáticas de uma América
perdida e nostálgica, o artista deixou uma extensa
obra gráfica com mais de oitocentos óleos, aguarelas,
gravuras e ilustrações, muitos dos quais não Em cima, Edward Hopper numa fase
assinados. Após a sua morte (curiosamente, quatro tardia da sua vida. Na coluna do meio,
anos exactos sobre o dia de aniversário da sua amada Enid em 1907; Marie Elizabeth Kuntzler,
Enid), a sua obra começou a ser reintepretada como com o filho Jean Casimir ao colo, c. 1888;
o casamento de Enid com Nils Buhre em
um processo mais autobiográfico do que
1908; e o quadro Chop Suey, de 1929,
inicialmente se pensara. Hopper pintou cidades e pintado por Hopper e vendido
realidades que viveu, figuras que conheceu e cenas recentemente por uma soma
do quotidiano a que assistiu. astronómica.
FOTOGRAFIAS DOS ARQUIVOS FAMILIARES GENTILMENTE CEDIDAS POR PEDRO MESQUITA DA CUNHA;
OSCAR WHITE / GETTY IMAGES (RETRATO DE HOPPER); E STEPHANE DE SAKUTIN / GETTY IMAGES (QUADRO CHOP SUEY)
G R A N D E A N G U L A R | UM A JA N E L A I N D I S C R E TA
No mundo real, Hopper foi uma personagem onde viveu a maior parte da vida. Fez do quotidiano
cheia de profundidade, com uma história de vida a sua tela, o que contribuiu para a sua afirmação
rica e interessante. Nascido numa família abastada, como uma das figuras maiores da corrente do rea-
em 1882, no estado de Nova Iorque, estudou ilus- lismo. A sua influência ao longo dos séculos XX e
tração, design gráfico e pintura, viajando para a XXI é imensa, perdurando décadas após a sua morte
Europa diversas vezes no início da sua vida profis- e afecta inclusivamente outros campos da expressão
sional. Veio mais tarde a tornar-se conhecido pelas artística e criativa, como a fotografia, de que o tra-
representações realistas do quotidiano da sociedade balho do fotógrafo Gregory Crewdson é exemplo.
norte-americana. Pintou ruas, lojas, estações de
combustível, hotéis e ferrovias, em particular na NUM TERRITÓRIO BEM MENOS COSMOPOLITA, à sombra
cidade de Nova Iorque, epicentro do seu trabalho e da serra de Aire, a pandemia deu a estocada final
N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Conscientes da relevância de Edward Hopper
como pintor e do estratosférico valor que muitas
das suas obras alcançam em leilões (em 2018, a pin-
tura Chop Suey, de 1929, foi vendida em leilão pela
Christie’s por um recorde de 91,9 milhões de dóla-
res e os seus desenhos são transaccionados regu-
larmente acima de 100.000 dólares por peça), os
actuais proprietários do quadro sabem que a certi-
ficação da autenticidade desta obra é um assunto
delicado e que em muito condicionará o seu valor.
Em última instância, dada a inexistência de assi-
natura ou de documentação inequívoca que subs-
tancie a autoria, poderá não haver uma validação
absoluta e será deixado ao mundo da história da
arte e ao mercado a derradeira resposta.
Devido aos montantes que as obras de Hopper
atingem, são compreensivelmente comuns as rei-
vindicações de autoria deste autor. No entanto,
poucas vêm acompanhadas de estudos tão com-
pletos que sugiram a alegada autoria.
Além da opinião dos especialistas de arte, a aná-
lise material pode ser um factor decisivo na valida-
ção deste processo. Segundo António Candeias, a
forma mais cabal de fazer “o estudo comparativo
seria analisar fisicamente outras obras do autor,
levando a cabo a mesma bateria de testes, o que
permitiria uma avaliação comparada e minuciosa”.
Se os materiais e as técnicas forem os mesmos e
coerentes entre diferentes telas, poderia ser dada
uma palavra final. Mas para tal seria necessário o
Os irmãos Pedro acesso a outras obras de Hopper, para o qual tem
(à esquerda) e Jorge
Frazão, proprietá- sido mostrada pouca abertura, sobretudo aten-
rios do quadro adqui- dendo ao facto de boa parte do seu corpo de traba-
rido há 30 anos numa lho estar do outro lado do oceano Atlântico.
pequena loja de velha-
rias na zona de Alca- Segundo Pedro Mesquita da Cunha, já existem
nena. Os irmãos posam indicadores europeus de aceitação da proposta de
no salão do antigo res- Hopper como autor da obra: a correspondência tro-
taurante “O Malho”,
hoje o espaço que aco- cada com France Nerlich, directora de pesquisas do
lhe a sua colecção par- Instituto Nacional de História da Arte, em França,
ticular de antiguidades. aponta nesse sentido. “E todas as peças genealógicas,
estilísticas e técnicas parecem substanciar esta pro-
posta”, diz. Do lado dos Estados Unidos, país de ori-
no negócio dos irmãos Frazão, em 2020. O antigo gem de Hopper e em torno do qual gira o seu legado
restaurante, um amplo edifício térreo, de cores material e artístico, a hipótese de que esta poderia ser
quentes, encontra agora uma nova vocação, recon- uma obra criada por Hopper no início do seu percurso
vertendo-se num espaço que acolhe as múltiplas artístico tem sido recebida por ora com silêncio.
obras de arte que integram a colecção particular de Poderão então duas personagens femininas, silen-
antiguidades de Jorge e Pedro, tão ecléctica ciosas e introspectivas, pintadas há um século, dar
que, além de várias telas, inclui uma escultura resposta a este enigma? Esta é, por definição, uma
pré-românica de granito, jarrões de porcelana do história incompleta. Como nas investigações foren-
período dos Descobrimentos, delicado mobiliário ses, há provas circunstanciais bastante sugestivas,
de madeiras nobres e grandes tapeçarias portugue- mas ainda não definitivas. Por ora, fica uma certeza:
sas antigas, entre muitas outras peças. ainda vamos ouvir falar muito deste quadro. j
MARÇO 2024
ACREDITAMOS QUE, QUANDO NATIONAL GEOGRAPHIC CONTENT
PREOCUPAM-SE MAIS
MANAGING EDITOR: David Brindley.
PROFUNDAMENTE COM ELE. HEAD OF VISUALS: Soo-Jeong Kang.
HEAD OF CREATIVE: Paul Martinez.
HEAD OF DIGITAL: Alissa Swango.
HEAD OF MULTIPLATFORM CONTENT: Michael Tribble
Grão a grão
T E X TO D E GONÇALO PEREIRA ROSA F OTO G R A F I A D E SVEN TRAENKNER/SENCKENBERG
PÓLEN:
PORQUE
HÁ TANTAS
ALERGIAS?
HÁ POUCAS DÉCADAS, A ALERGIA AO
M A I S FAVO R E C I DA S . AC T UA L M E N T E ,
A S D O E N Ç A S A L É RG I C A S A F E C TA M
E A T E N D Ê N C I A E STÁ A I N T E N S I F I C A R-S E
2
Imagem microscópica de
um grão de pólen de
carvalho-branco (Quercus
petraea). O aquecimento
global prolongou o
período de polinização de
muitas espécies e também
aumentou a produção de
pólen em alguns casos – a
das árvores do género
Quercus quase quintupli-
cou em algumas áreas
do território ibérico.
© M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2016,
COM O APOIO DO INSTITUTO DE PATOLOGIA
DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DE BASILEIA
E BIO-EM LAB, BIOZENTRUM, UNIVERSIDADE
DE BASILEIA
Quando as plantas
libertam os grãos de
pólen, um elemento
decisivo na reprodução
vegetal, estes são
dispersos por diversos
vectores de polinização:
o vento, a água (em
menor grau) e os animais
polinizadores, como a
abelha, que nas suas
deslocações facilitará a
transferência do pólen
para o óvulo de uma flor.
KURT OBERROSLER / GETTY IMAGES
Os espruces da Noruega
(da família Pinaceae)
não são especialmente
alergénicos, mas na época
natalícia, quando é
habitual ter um em casa,
causam picos de alergia
que se conhecem como
“síndrome da árvore de
Natal”. Na imagem, um
exemplar fotografado em
Berlim expele grandes
quantidades de pólen.
WOLFGANG KUMM / GETTY IMAGES
8 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
no início da Pri-
S TA M O S E M M A R Ç O,
mavera. Activos desde Fevereiro no
interior dos estames, nos órgãos flo-
rais masculinos de numerosas plantas
superiores como ciprestes e plátanos,
milhões de grãos microscópicos de
pólen concluem o seu processo de
amadurecimento dentro dos sacos
polínicos. Diferentes consoante a espécie, as suas
formas são tão belas como assombrosas.
Os grãos de pólen são as células que albergam os
gâmetas masculinos. Têm uma parede celular for-
mada por duas camadas, a interna (chamada intina)
e a externa (ou exina), uma carapaça dura composta
por um biopolímero denominado esporopolenina,
excepcionalmente resistente e impermeável.
A esporopolenina é tão estável que permite aos pali-
nólogos recuperar grãos de pólen de tempos antigos
em excelente estado de conservação dos sedimen-
tos. O pólen, aliás, tem sido protagonista de vários
estudos relevantes de arqueologia e paleontologia,
ajudando a reconstituir o ambiente vegetal de há
milhares ou milhões de anos.
O escudo protector de cada grão preserva as célu-
las sexuais de qualquer inclemência ambiental para
que cumpram o seu fim evolutivo de alcançar o
óvulo de um exemplar da sua espécie vegetal,
situado dentro do pistilo, ou órgão feminino da flor,
através do estigma, a porta de entrada do pólen.
A rinite alérgica é uma Caso existam circunstâncias ambientais propí-
resposta imunitária a um cias, uma parte do estame, a antera, rompe-se
alergénio como o pólen.
Os sintomas com que se para libertar o pólen. A dispersão maciça dos
manifesta são comichão no grãos vai garantir que pelo menos uma percenta-
nariz e nos olhos, lacrimejo, gem relevante consiga fecundar a maior quanti-
congestão nasal, secreção
aquosa e espirros repetitivos. dade de óvulos possível e, consequentemente,
HANS SOLCER / GETTY IMAGES produzir frutos e sementes.
ALERGIA AO PÓLEN 9
Para alcançar o objectivo, milhões de grãos irão os níveis actuais destes alergénios e prever as ten-
depois disseminar-se. Alguns não se afastarão mais dências futuras.
do que poucos metros, enquanto outros percorre- O aumento do pólen na atmosfera e as suas impli-
rão centenas de quilómetros, em função das suas cações para a saúde humana são fenómenos corre-
próprias características e do meio de transporte lacionados há relativamente pouco tempo. Em
que lhes calhe em sorte: animais polinizadores Portugal, a história da alergologia começou na
(insectos, aves, mamíferos, especialmente morce- década de 1950, numa altura em que era uma área
gos) ou agentes abióticos como o vento e a água. da medicina pouco destacada. Um pequeno grupo
Durante essa “viagem de uma vida”, os grãos de de médicos juntou-se e, no dia 10 de Julho de 1950,
pólen vão libertando diferentes proteínas através criou a Sociedade Portuguesa de Alergia que depois
das aberturas da exina, algumas das quais muito evoluiu para a Sociedade Portuguesa de Alergologia
alergénicas para uma fracção cada vez maior da e Imunologia Clínica (SPAIC). O actual secretário-
população de todo o planeta. Embora pessoas de -geral é Pedro Carreiro-Martins que, à beira de com-
qualquer condição possam sofrer de alergias, os pletar 50 anos de vida e 25 de experiência nesta área,
adolescentes e os adultos jovens, cujo sistema imu- gosta de explicar os marcos evolutivos na consoli-
nitário é mais reactivo, são o sector populacional dação da disciplina. “No início da década de 1980,
mais afectado, juntamente com pessoas com pro- médicos como Antero da Palma-Carlos contribuí-
blemas respiratórios. Estima-se que, actualmente, ram para o reconhecimento da imunoalergologia
30% da população mundial sofra um episódio de como especialidade, porque existia uma base imu-
alergia em algum momento da sua vida e a Organi- nológica muito intrincada com os processos alérgi-
zação Mundial da Saúde prevê que, daqui a poucas cos”, diz. “Depois, destacou-se José Rosado Pinto,
décadas, essa percentagem chegue a 50%. presidente da comissão instaladora da especiali-
dade. Foram dois nomes incontornáveis no processo
a
É E S S E N C I A L C O N H E C E R , E M C A DA MOM E N TO, de criação da especialidade no país em 1983.”
quantidade e o tipo de pólen presente na atmos- Até 2002, a monitorização de aerobiologia não
fera para enfrentar este problema de saúde com estava integrada, mas, nesse ano, criou-se formal-
proporções globais. Por esta razão, em todo o pla- mente a Rede Portuguesa de Aerobiologia, que é
neta, existem cerca de novecentas estações de um serviço público gratuito exclusivamente finan-
monitorização, a maioria das quais situadas na ciado pela SPAIC. “A questão da aerobiologia des-
Europa e nos EUA. Os dados permitem conhecer perta sempre muito interesse na opinião pública,
mas pouco interesse por parte dos financiadores”,
diz Pedro Carreiro-Martins. “Nós temos nove cap-
tadores espalhados pelo continente e ilhas onde
são registados diariamente os pólenes do ar.”
Utiliza-se sobretudo o colector Hirst na maioria
das estações de amostragem e, após duas décadas
ALTERAÇÕES
de recolhas regulares, a Rede começou a eviden-
ciar o aumento dos pólenes das árvores no Inverno
e no início da Primavera, em especial das Cupres-
OS DETONADORES
Évora e no Alentejo em geral que há maior diver-
sidade de pólenes com níveis elevados, o que tem
impactes significativos em doentes alérgicos, por
DAS ALERGIAS.
exemplo, aos pólenes das gramíneas e das olivei-
ras”, um problema clinicamente relevante em toda
a região do Mediterrâneo.
PINHEIRO-SILVESTRE
(Pinus sylvestris)
Esta árvore e todos os
pinheiros e abetos, em
geral, produzem grãos de
pólen com sacos aéreos nas
áreas laterais que favorecem o seu
transporte aéreo. Na Península FORMA: VESICULADO
Ibérica, a alergia ao pólen de pinheiro
Tamanho: 60-80 micra
não é muito frequente, excepto em
Ornamentação da exina: verrugosa
algumas zonas com concentrações Aberturas: inaperturado
desta árvore, como o Pinhal Interior.
AMARANTO
(Amaranthus sp.)
As amarantáceas são uma família
de plantas herbáceas ou arbustivas,
anuais ou perenes. A sua polinização é
realizada pelo vento da Primavera até ao
Outono. Este período tão prolongado é
consequência da alternância na floração FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL
ROBERT SCHNEIDER / SHUTTERSTOCK (PINHEIRO-SILVESTRE); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2023, COM O APOIO DE H. HALBRITTER, R. BUCHNER E
PALDAT, DEPARTAMENTO DE BOTÂNICA E BIODIVERSIDADE DA UNIVERSIDADE DE VIENA (PÓLEN DE PINHEIRO-SILVESTRE); KOBRYN TARAS / SHUTTERS-
TOCK (AMARANTO); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2023, E L . HOWARD, DARMOUTH COLLEGE (PÓLEN DE AMARANTO)
O MECANISMO DE
UM ATAQUE DE ALERGIA
Quando o sistema imunitário revela hipersensibilidade
perante a exposição a um agente alergénico (uma
substância inócua para a maioria da população como
o pólen), sofre uma reacção que designamos por alergia.
Isto é o que sucede no organismo.
O pólen penetra
no organismo
através da boca,
do nariz e dos olhos.
Célula Grão
apresentadora de de pólen Célula
antígeno (CPA) pró-inflamatória
O grão de pólen
é interceptado
por células imunitárias
chamadas
"apresentadoras
de antígenos".
Linfócito T
Linfócitos
TeB
Mastócito
O alergénio é
apresentado aos Histamina
linfócitos T e B,
que produzem
imunoglobulina
específica (IgE).
A segunda
exposição ao
alergénio recruta
novas células
Linfócito B inflamatórias
Basófilo que perpetuam
a reacção.
Anticorpo
IgE
Com a primeira
exposição ao alergénio,
os mastócitos e os
Célula
basófilos da mucosa
Depois, actuam apresentadora
fixam IgE e, em
os mastócitos, de antígeno
contacto com o pólen,
fixando os (CPA)
libertam histamina.
anticorpos IgE.
Mastócito
Linfócito T
Vila Real
Porto 5.000
Coimbra
Castelo Branco 2.500
Lisboa
Évora
0
Portimão
2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Pólen/m3/ar
ANYFORMS DESIGN. FONTES: JUAN JOSÉ ZAPATA; SEAIC (MECANISMO DA ALERGIA); "AEROBIOLOGY OF OLIVE POLLEN IN THE ATMOSPHERE OF PORTUGAL", PENEDOS ET AL.
(VARIAÇÕES ANUAIS); SOCIEDADE PORTUGUESA DE ALERGOLOGIA E IMUNOLOGIA CLÍNICA, REDE PORTUGUESA DE AEROBIOLOGIA (TABELAS DE RISCOS)
Os gráficos que mostram a evolução da quanti- neste tema. ”A hipótese higiénica para explicar a
dade de pólenes ao longo dos últimos 45 anos não natureza quase epidémica das doenças alérgicas já
deixam dúvidas sobre a correlação entre o aumento não faz muito sentido”, diz. “Não são as alergias que
das temperaturas e a taxa de polinose. Em Portugal, estão a aumentar – é a sua gravidade. Um pólen
o aumento de pólenes tem-se verificado no início associado à poluição, e nomeadamente à poluição
do Inverno. Anteriormente, as temperaturas nessa por queima de combustíveis fósseis, vai ser um
época do ano eram suficientemente baixas para pólen que altera a sua conformação, desidrata, fica
impedir a polinização das espécies. Actualmente, mais pequeno, consegue penetrar mais profunda-
porém, verifica-se que algumas plantas estão a ante- mente na via aérea e provoca mais asma do que
cipar a sua estação polínica devido à subida da anteriormente, quando se limitava a afectar os
temperatura. Os dados não constituem uma linha olhos e o nariz e provocava uma rinoconjuntivite.”
cronológica extensa, mas parecem revelar uma alte- Este alergologista português abraçou uma espe-
ração de padrões. Por ora, Pedro Carreiro-Martins cialidade que o fascinou desde o início pela sua
revela prudência: “Não sabemos se o crescente natureza particular. Por um lado, a alergologia é uma
número de doentes que chegam à consulta resulta das poucas especialidades que lida com adultos e
de maior consciencialização para a doença ou de crianças porque a doença alérgica afecta o paciente
maior prevalência, mas os doentes têm aparecido em idade pediátrica, persiste na adolescência e na
cada vez mais precocemente na Primavera”, conta. idade adulta e continua a fazer-se sentir nos últimos
“No início de Fevereiro já temos doentes a queixa- anos de vida. Por outro lado, “é uma disciplina sis-
rem-se de alergia a pólenes, que habitualmente témica – os pacientes têm queixas no pulmão, na
surgiam só em Março e não só os picos são anteci- pele, no nariz, nos olhos, sofrem alergias alimenta-
pados como também se tornam mais longos e cau- res, medicamentosas, a insectos, a pólenes, a ácaros.
sam crises alérgicas mais agudas. Isso deve-se É uma área fascinante para mim e avançou tremen-
claramente às alterações climáticas e ao aumento damente nestes últimos trinta anos”.
do dióxido de carbono na atmosfera.” Parte da estratégia de combate passou pela difu-
Na Universidade de Évora, o falecido biólogo Rui são do conhecimento pelo público, incluindo os
Brandão coordenou e teve um papel instrumental profissionais de saúde. Quando presidiu à SPAIC,
na Rede Portuguesa de Aerobiologia, procurando Mário Morais de Almeida coordenou, em colabo-
fazer ligações entre o conhecimento dos biólogos, ração com especialistas como Carlos Nunes e Ana
capazes de medir e identificar os pólenes que mais Todo-Bom, a estratégia de difundir regularmente
afectam a saúde pública, e o dos médicos com a os dados obtidos pela Rede Portuguesa de Alergo-
missão de mitigar os impactes deste problema na logia através dos órgãos de comunicação. “Foi por
saúde dos pacientes. Desse projecto pioneiro ainda ouvirem todos os meses que há concentrações ele-
se colhem frutos na investigação clínica deste tema. vadas de pólen na atmosfera que muitos portugue-
ses perceberam que o problema existe e que é
“NO INÍCIO DO SÉCULO XX, a alergia ao pólen importante procurar ajuda.”
era um problema das classes sociais mais favore- Esta é uma área onde persistem percepções e
cidas”, explica Ignacio Davila, professor da Uni- mitos nem sempre comprovados pela ciência.
versidade de Salamanca, centro de referência de Mário Morais de Almeida gosta de contar a história
alergologia no país vizinho. “No entanto, a partir de como a SPAIC recebia com frequência contactos
da segunda metade do século, registaram-se de autarquias que partilhavam as reclamações dos
aumentos exponenciais e, actualmente, um terço seus munícipes. “Habitualmente, escutavam-se
da população é susceptível a sofrer um quadro dois tipos de reclamações: metade alegava que
alérgico ao longo da vida, sobretudo nos países havia pouco arvoredo num concelho e a outra
desenvolvidos e industrializados. Quanto mais metade defendia que existia verde a mais e que isso
qualidade de vida temos, mais alergias sofremos”, desencandeava alergias”, brinca. “Na verdade, as
afirma. E o nosso sistema imunitário enfrenta populações 'incriminam' com frequência espécies
situações muito diferentes das que imperavam vegetais que não dão problemas, porque nem sem-
nas gerações anteriores, quando as pessoas lida- pre percebem que o foco alergénico não provém
vam com mais problemas de saúde. de uma árvore de grande porte que está nas ime-
Pelo mesmo diapasão alinha Mário Morais de diações ou mesmo de um jardim repleto dessas
Almeida, presidente eleito da Organização Mundial árvores, mas sim dos pólenes que circulam pelo ar,
de Alergia e especialista há mais de três décadas sem serem vistos, em concentrações nocivas.”
14 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
AMIEIRO
(Alnus glutinosa)
Comuns na Europa e no Sudeste
Asiático, os amieiros são uma
espécie introduzida em grande parte
do continente americano, África do Sul,
Austrália e Nova Zelândia. São
abundantes na Península Ibérica, onde FORMA: SIMPLES E OVULADO
AMBRÓSIA
(Ambrosia artemisiifolia)
Esta planta herbácea da família
das asteráceas liberta grandes
quantidades de pólen é a primeira
causa de rinite alérgica nos Estados
Unidos, de onde é nativa. Também
provoca fortes reacções alérgicas nos FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL
SHUTTERSTOCK (AMIEIRO); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2016, COM O APOIO DO INSTITUTO DE PATOLOGIA DO HOSPITAL UNIVERSI-
TÁRIO DE BASILEIA E CCINA, BIOZENTRUM, UNIVERSIDADE DE BASILEIA (PÓLEN DE AMIEIRO); SHUTTERSTOCK (AMBRÓSIA); © M.
OEGGERLI (MICRONAUT) 2023, IMAGEM DO CENTRO DE ALERGIA E MEIO AMBIENTE (ZAUM), MUNIQUE (PÓLEN DE AMBROSIA)
a Rede Espanhola de Aerobiolo-
N O PA Í S V I Z I N H O, Mas porque somos alérgicos a determinado tipo
gia segue na mesma direcção. Agrega especialistas polínico? A pergunta é mais complicada do que
em alergologia, botânica, técnicas de laboratório e poderia parecer e obriga à ponderação de vários
farmácia de instituições científicas e universidades factores. Juan José Zapata defende que a origem
para avisar a população sobre os níveis polínicos da das alergias é parcialmente genética e parcialmente
atmosfera e as tendências esperadas para que ambiental. “Se os seus progenitores não forem pes-
tomem precauções. “Nos captadores, as partículas soas alérgicas, terá aproximadamente 15% de pro-
aderem a uma fita que pode dividir-se em faixas babilidades de o ser. Se um deles for, a percentagem
horárias, permitindo-nos assim conhecer as horas sobe para 30% e duplica se forem os dois”, explica.
de incidência máxima”, explica Juan José Zapata, No entanto, essa predisposição genética é modu-
o médico alergologista que lidera a comissão de lada por factores ambientais variáveis, consoante
Aerobiologia Clínica a partir de Almería. as características geográficas, climatológicas e botâ-
Com frequência, ao longo do ano, os especialistas nicas de cada zona, bem como pelos padrões meteo-
aconselham as pessoas com hipersensibilidade a usa- rológicos, muito variáveis devido ao aquecimento
rem máscaras FFP2 para mitigar a inalação de grãos global e aos fenómenos climáticos extremos.
de pólen e que protejam os olhos com óculos de sol. Quando as chuvas são frequentes, as alergias ao
As horas da concentração máxima de pólen ocorrem pólen baixam significativamente porque os grãos
de manhã, quando os grãos sobem com as correntes pesam mais e não se levantam do solo. Por outro
de ar quentes, e há um novo pico à tarde, quando des- lado, as secas prolongadas favorecem a sua perma-
cem devido à diminuição das temperaturas. nência maciça no ar durante muito mais tempo.
No entanto, para uma determinada espécie de O vento também desempenha um papel, pois
pólen causar sintomas, basta uma concentração pode manter o pólen em suspensão por períodos
mínima (a chamada concentração de reactivação) mais prolongados. Nesse caso, irá dispersá-lo por
que, no caso da oliveira, por exemplo, é de 100 a 200 grandes superfícies, diminuindo a sua concentra-
grãos de pólen por metro cúbico de ar. Não é muito, ção e, por conseguinte, o potencial alérgico. Não é
se compararmos esse volume com o que se verifica por acaso que as zonas mais húmidas do planeta,
em regiões como o Alto Alentejo, onde a grande como os trópicos, não são afectadas por polinoses.
proliferação destas árvores em culturas intensivas As regiões do planeta mais afectadas são a Europa,
já causa concentrações de até 20.000 grãos por a América do Norte e, na Ásia, países como o Japão.
metro cúbico em alguns anos. Os níveis de poluição atmosférica também
influenciam as alergias. “As partículas poluentes
provenientes dos motores a gasóleo transportam
grãos de pólen e alteram a sua estrutura, aumen-
tando o efeito alergénico. A poluição, por si, já
agrava problemas respiratórios como a asma, pelo
que a combinação é fatal”, sublinha Zapata. As
EM SITUAÇÕES
horas que passamos em espaços fechados, onde
embora não os vejamos proliferam ácaros, fungos,
substâncias químicas derivadas do tabaco, formal-
PROTEÍNAS MUITO
impede os recém-nascidos de terem contacto com
a microbiota vaginal e rectal materna, que num
parto natural iria parar ao seu tracto digestivo, con-
ALERGÉNICAS.
solidando o seu equilíbrio imunológico. Sem esse
primeiro contacto, as suas probabilidades de desen-
volver alergias aumentam”, diz Zapata.
MIMOSA
(Acacia dealbata)
Proveniente do Sudeste
da Austrália e da Tasmânia,
esta espécie da família das
leguminosas foi introduzida em
muitas regiões do mundo através da
jardinagem, enquanto árvore ornamental.
Em Portugal, está referenciada como FORMA: POLÍADA
BÉTULA-ARBUSTIVA
(Betula humilis)
Esta árvore da família das
betuláceas é muito abundante
em grande parte da Europa e também
na Península Ibérica, sobretudo nos
Pirenéus, no Sistema Central, no Sistema
Ibérico e no Maciço da Serra da Estrela.
As suas flores são polinizadas pelo FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL
SHUTTERSTOCK (MIMOSA); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2023, COM O APOIO DO INSTITUTO DE PATOLOGIA DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DE
BASILEIA E SNI, BIOZENTRUM, UNIVERSIDADE DE BASILEIA (PÓLEN DE MIMOSA); VIKTOR LOKI / SHUTTERSTOCK (BÉTULA-ARBUSTIVA); © M.
OEGGERLI (MICRONAUT) 2020, COM O APOIO DE H. HALBRITTER E R. BUCHNER, UNIVERSIDADE DE VIENA (PÓLEN DE BÉTULA-ARBUSTIVA)
As concentrações
de pólen podem ser
tão grandes que formam
manchas visíveis a partir
do espaço. É o caso
desta imagem, captada
no mar Báltico no dia
16 de Maio de 2018 com
a Câmara Multiespectral
(cuja sigla em inglês
é MSI) do satélite
Sentinel-2A, da Agência
Espacial Europeia.
NASA
Por norma, a vida moderna incentiva essas reac- campos de cultivo, são igualmente focos potenciais.
ções de hipersensibilidade nos países mais desen- Mas há quase sempre espécies a produzir pólen
volvidos. “Têm-se poucos filhos e estes vivem em alergénico em algum sítio.
ambientes nos quais o sistema imunitário não Entre Dezembro e Janeiro começa a polinização
precisa de se defender muito. Ou seja, em compa- da artemísia. Logo em seguida, entre Fevereiro e
ração com as crianças que vinham ao mundo há Março, a dos plátanos e dos ciprestes. Em Abril, é
um século, as de hoje têm poucas doenças, per- altura das gramíneas e, em Maio, ocorre a das oli-
manecem muito menos tempo ao ar livre, têm veiras, cujo pólen contém a proteína Ole e 1, espe-
muito menos contacto com animais e o nível de cialmente alergénica, e a barrilheira, uma planta
higiene é extremo.” Poderíamos dizer que o seu herbácea que, após uma pausa no final do Verão,
sistema imunitário “não tem demasiado trabalho”, volta a polinizar em Setembro. Nesse mês, além
o que pode levá-lo a reagir de forma exagerada a do Verão e de Outubro, ocorre a máxima emissão
substâncias às quais, se estivesse mais activo, não de esporos de um fungo, a Alternaria, que contém
prestaria atenção. “É o preço a pagar por uma vida outra proteína muito alergénica, a Alt a 1, embora
confortável”, comenta Juan José Zapata. na realidade a presença dos seus esporos na
atmosfera seja registada durante todo o ano. Na
no
O P R O B L E M A E S TÁ L O N G E D E S E C O N C E N T R A R Primavera, surgem também ervas daninhas, como
Mediterrâneo. Nos Estados Unidos, registou-se a tanchagem ou a parietária, que podem produzir
um aumento de 46% nas contagens de pólenes e, pólen durante a maior parte do ano. Por outras
na Europa, observa-se uma tendência crescente palavras: há quase sempre pólen na atmosfera.
nas concentrações totais anuais de pólen para a
maioria dos taxa, mais pronunciadas nas zonas nas
Q UA N D O A L G U M D E S T E S G R Â N U L O S P E N E T R A
urbanas do que nas rurais, por as primeiras serem nossas vias respiratórias, a maioria das pessoas
mais povoadas e os níveis de poluição serem mais nem se apercebe, mas para outras será o início de
altos. O caso da ambrósia é muito claro: esta her- uma reacção alérgica. “Cinquenta por cento das
bácea originária da América do Norte, espécie consultas de alergia devem-se a rinite polínica e
invasora na Europa, duplicou a sua produção de entre 12 e 14% são por causa da asma, igualmente
pólen em apenas 24 anos. A principal causa? de origem polínica”, diz Juan Jose Zapata.
O CO2 atmosférico, um fertilizante magnífico que Quando o sistema imunitário de um paciente
aumenta em 131% a produção deste pólen. com hipersensibilidade a essa substância se aper-
Mas não é só o CO2 que exacerba a actividade cebe da presença desse “intruso”, reage de forma
vegetal. Sob condições de stress, muitas espécies exagerada, activando um exército de anticorpos.
geram proteínas defensivas muito alergénicas, que O “soldado” mais aguerrido nas alergias é a proteína
se encontram no pólen, mas também nas folhas, IgE, umas das cinco imunoglobulinas existentes no
flores, frutos e sementes. Resistentes, permitem à organismo. Quando é necessário eliminar estes
planta subsistir em situações adversas. Isto foi cons- patógenos, a IgE manda determinadas células liber-
tatado por um estudo realizado em La Palma após tarem substâncias tóxicas para os eliminar –
a erupção vulcânica de 2021, no qual Juan José fazendo o mesmo para combater o pólen, que é uma
Zapata participou. “Os gases emanados pelo vulcão substância inócua.
causaram alterações na expressão das proteínas dos A IgE é como um interruptor que põe em marcha
pinheiros das Canárias próximas da zona afectada. diferentes células, incluindo os mastócitos, que
Os grãos de pólen expostos a essa toxicidade con- libertam substâncias como a histamina, entre
tinham maior número dessas proteínas altamente outros mediadores, indutoras dos sintomas de aler-
alergénicas”, explica o alergologista espanhol. gia. Para inibi-las, são administrados anti-histamí-
Embora seja na Primavera que um maior número nicos orais e corticóides inalados (que podem ser
de plantas realiza a polinização, este fenómeno associados a anti-histamínicos inalados), sendo
ocorre ao longo de todo o ano. Dependendo da espé- estes os fármacos mais utilizados no controlo da
cie, a produção de pólen ocorre até em mais do que rinite alérgica. E se algumas reações alérgicas são
uma estação. As plantas que mais polinose causam localizadas, de gravidade variável, como é o caso
na Península Ibérica são as gramíneas, cuja polini- da rinite, outras podem ser mais graves, colocando
zação começa em Abril. As de crescimento espon- a vida em risco, como acontece em reacções alér-
tâneo, como as herbáceas que proliferam nas gicas a alimentos, a medicamentos e a veneno de
bermas dos caminhos, nos descampados, nos himenópteros, como o de abelhas ou vespas.
20 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
TANCHAGEM MENOR
(Plantago lanceolata)
O pólen da tanchagem é um dos
que causa alergias em Portugal.
Trata-se de uma planta herbácea da
família das plantagináceas, considerada
daninha devido à sua capacidade de
prosperar em todo o tipo de solos. A sua
FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL
época de produção de pólen é a
Tamanho: 22-28 micra
Primavera, coincidindo com a das Ornamentação da exina:
gramíneas — ainda mais prolíferas. Muitas verrugosa
Aberturas: pantoporado,
pessoas são hipersensíveis a ambas as com 8 ou mais poros
famílias de plantas, que lhes provocam
quadros alérgicos com sintomas intensos.
parques e jardins.
SHUTTERSTOCK (TANCHAGEM-MENOR); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2020, COM O APOIO DO INSTITUTO DE PATOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE BASILEIA E BIO-EM
LAB, BIOZENTRUM, UNIVERSIDADE DE BASILEIA (PÓLEN DE TANCHAGEM-MENOR); SHUTTERSTOCK (POA DOS PÂNTANOS); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2023, COM
O APOIO DE H. HALBRITTER, S. ULRICH E PALDAT, DEPARTAMENTO DE BOTÂNICA E BIODIVERSIDADE DA UNIVERSIDADE DE VIENA (PÓLEN DE POA DOS PÂNTANOS)
Esta reacção sistémica do organismo a uma subs- convencional de tratamento para doenças alérgicas
tância à qual o indivíduo é alérgico chama-se ana- custaria apenas 125 euros por paciente anualmente.
filaxia e pode afectar a pele, causando prurido e
urticária; o sistema respiratório, provocando falta ao pólen causa preocupação
O T E M A DA A L E R G I A
de ar e asma; o sistema cardiovascular, diminuindo à comunidade científica porque a rinite alérgica
a tensão arterial e provocando palpitações; e o sis- moderada ou grave não é uma doença banal: inter-
tema digestivo, causando dor abdominal, vómitos fere na qualidade de vida, afecta o sono, o rendi-
e diarreia. No entanto, nem todos os pacientes alér- mento escolar e laboral, as interacções sociais, a
gicos à mesma substância desenvolvem reacções capacidade de concentração e a actividade física.
com o mesmo grau de gravidade. Um indivíduo Além disso, muitas destas pessoas também têm
alérgico a nozes pode só apresentar urticária, asma, rinoconjuntivite e outras comorbilidades.
enquanto outro pode sofrer um choque anafiláctico “A rinite e a asma estão interligadas, diz Pedro Car-
que põe a sua vida em risco. Estima-se que na reiro-Martins. “A doença alérgica respiratória inclui
Europa, cerca de 3% dos pacientes alérgicos sofra as duas e nós sabemos que cerca de 80% dos doen-
uma anafilaxia em algum momento da sua vida, tes com asma terão rinite alérgica e os doentes que
embora felizmente a mortalidade seja reduzida. E têm rinite alérgica têm maior probabilidade de
estes doentes devem ser sempre portadores de dis- desenvolver asma. A rinite é o principal motivo de
positivos para auto-administração de adrenalina. consulta em alergologia mas não é muito valorizada
A elevada prevalência das alergias a nível mundial porque não mata… mas mói. Por isso há até quem
torna-as um problema de saúde pública global. lhe chame o patinho feio da alergologia porque
Existe até uma aplicação, a MASK–Air (www.mask- felizmente não tem impactes fatais.”
-air.com) através da qual os pacientes registam os Especialistas de todo o mundo trabalham para
sintomas que depois são cruzados com os níveis de abordar a problemática de forma cada vez mais inte-
pólenes nesse momento e que permitem relacionar grada e pedem programas de prevenção para iden-
a incidência de alergias com os níveis polínicos. “Os tificar os pacientes de alto risco. É fundamental
dados desta aplicação mostram que as alergias inter- concentrar recursos no diagnóstico precoce que
ferem cada vez mais com o trabalho e com a produ- identifique o grau de afectação e perfil de sensibili-
tividade”, diz Pedro Carreiro-Martins. Na União zação de cada paciente para saber como evitar o
Europeia, calcula-se que os custos indirectos por agente causador da alergia. Em seguida, há que esco-
absentismo de um doente de alergias não tratado lher a medicação a administrar na época de exposi-
sejam de 2.405 euros por pessoa. Um programa ção ao pólen para controlar os sintomas do paciente.
Em terceiro lugar, vem a imunoterapia com alergé-
nios, um tipo de vacinas que modifica a resposta
imunológica do organismo e induz o desenvolvi-
mento de tolerância a esse componente, embora não
seja actualmente comparticipado em Portugal.
A LUTA CONTRA
Os novos métodos de diagnóstico permitem um
conhecimento profundo das componentes molecu-
lares dos pólenes e dos mecanismos alérgicos para
E NA MEDICINA
tudo, o problema exige também acções e políticas
ambientais que preservem a qualidade da atmosfera.
Não só para os seres humanos. Também para a
PERSONALIZADA.
grande variedade de organismos que, tal como nós,
sofrem as consequências de respirar um ar… como
dizer… demasiado humanizado. j
CARVALHO-BRANCO
(Quercus petraea)
Carvalhos, sobreiros, carrascos
e azinheiras são representantes
do género Quercus e constituem
a paisagem florestal autóctone
mais comum em Portugal.
O carvalho-branco, uma árvore de folha
caduca da família das fagáceas pode FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL
CEDRO-JAPONÊS
(Cryptometria japonica)
Esta árvore de folha perene
endémica do Japão, onde é
conhecida como sugi, é uma das que
mais polinose causa nesse país, onde
a alergia ao pólen afecta mais de 40%
da população. De grande porte, é
utilizada como espécie ornamental
FORMA: SIMPLES E ESFEROIDAL
na Península Ibérica e noutras regiões
temperadas da Europa e da América do Tamanho: 26-50 micra
Ornamentação da exina:
Norte. Os bosques desta conífera granulada
libertam nuvens de pólen que o vento Aberturas: inaperturado
HARTMUT GOLDHAHN/SHUTTERSTOCK (CARVALHO-BRANCO); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2016, COM O APOIO DO INSTITUTO DE PATOLOGIA DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DE
BASILEIA E BIO-EM LAB, BIOZENTRUM, UNIVERSIDADE DE BASILEIA (PÓLEN DE CARVALHO-BRANCO); ACI (CEDRO-JAPONÊS); © M. OEGGERLI (MICRONAUT) 2011, COM O APOIO DO
INSTITUTO DE PATOLOGIA DO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO DE BASILEIA E DA ESCOLA DE CIÊNCIAS DA VIDA, FHNW, MUTTENZ (PÓLEN DE CEDRO-JAPONÊS)
Na Weathernews Inc., uma
empresa de informação
meteorológica do Japão,
dezenas de dispositivos
esféricos medem os níveis
polínicos da atmosfera.
Estes “robots de pólen”
aspiram o ar através de
uma abertura e, à medida
que a concentração
aumenta, os “olhos”
brancos mudam de cor
para azul, amarelo,
vermelho e roxo.
THE ASAHI SHIMBUN / GETTY IMAGES
ALERGIA AL POLEN 25
No mundo das hienas-malhadas,
as fêmeas é que mandam. Talvez seja
esse o segredo do seu sucesso.
Texto de C H R I S T I N E D E L L ’ A M O R E
Fotografias de J E N G U Y T O N
27
Hienas-malhadas PÁ G I N A S A N T E R I O R E S
chegam à beira de Uma fêmea chamada
uma charca para beber Moulin Rouge
pouco depois de o Sol impõe-se sobre outra
nascer no ecossistema de estatuto inferior
de Masai Mara, no chamada Palazzo
Quénia. Dos desertos que mostra os dentes
a florestas ou cidades, em sinal de submis-
os predadores prospe- são. As fêmeas
ram numa variedade dominantes exercem
de habitats. A fotógrafa o seu poder de forma
Jen Guyton captou bastante agressiva
este retrato de família e são sempre
com um robot coman- as primeiras a
dado à distância. alimentar-se.
Nuvens de tempestade
rolavam sobre a savana de Masai Mara, no Qué- estatuto mais elevado, e levantava-se, dando
nia, enquanto crias de hiena-malhada brinca- o seu melhor para parecer intimidante. O ges-
vam, rebolando umas sobre as outras na erva to parecia cómico, mas ambos os animais esta-
molhada. A progenitora descansava nas ime- vam cientes do seu lugar. A cria mais velha, mas
diações, levantando-se ocasionalmente para de menor estatuto, detinha-se, baixava a cabeça
desencorajar uma cria maior, com 1 ano, a jun- e afastava-se.
tar-se à brincadeira. Quando o animal mais A fotógrafa Jen Guyton registou esta cena
velho voltava a aproximar-se, uma das crias com uma câmara de infravermelhos, que per-
mais corajosas seguia a dica da progenitora, de mite documentar o comportamento nocturno
30 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
das hienas. Ao fazê-lo, abriu-nos uma pequena
janela para a estrutura intrigante da sociedade
das hienas, na qual todos os membros herdam
a sua posição na hierarquia por via materna.
As fêmeas é que mandam e o estatuto signi-
fica tudo. É um sistema matrilinear que tem
contribuído para a ascensão da hiena-malhada
como o carnívoro de grande porte mais abun-
dante de África.
Estes e outros conhecimentos sobre o com-
portamento das hienas não seriam possíveis
sem a investigação de campo conduzida ao lon-
go de 35 anos por Kay Holekamp, fundadora do
Projecto das Hienas de Mara. Os seus esforços
contribuíram para revelar uma criatura que se
destaca pela sociabilização, cognição avançada
e capacidade de se adaptar a novos ambientes.
Esta bióloga da Universidade Estadual do
Michigan estuda a espécie africana em Masai
Mara desde 1988, uma das investigações mais
longevas alguma vez realizadas sobre qualquer
mamífero. “Achei que iria ficar por dois anos”,
afirma. “Fiquei viciada.”
Viciada em hienas? A maioria das pessoas
costuma retrair-se assim que o seu nome é men-
cionado. Aristóteles descreveu-as como “exces-
sivamente apreciadoras de carne putrefacta”.
Theodore Roosevelt chamou-lhes uma “mistura
de cobardia abjecta com a mais absoluta fero-
cidade”. Em África, as hienas são consideradas
maléficas, gananciosas e associadas a bruxaria
e desvios sexuais. Até o filme “O Rei Leão”, de
1994, as retratou como astutas e maliciosas.
Embora existam quatro espécies de hienas (a
parda, a raiada, a malhada e a protelos), na Áfri-
ca Setentrional e Subsaariana, a malhada tem
sido a mais difamada. Uma das razões para tal
talvez seja o facto de se aproximar demasiado
As hienas com para o nosso conforto.
crias, como a Empress “Ratazanas, baratas, coiotes… Temos cada
Cicada, são progenito-
ras dedicadas, amamen- vez mais contacto com eles”, afirma Christine
tando a descendência Wilkinson, exploradora da National Geogra-
com leite rico em proteí- phic e ecologista especializada em carnívoros
na, gordura e cálcio
– por norma durante da Universidade da Califórnia, que estuda hie-
mais de um ano. nas no Parque Nacional do Lago Nakuru, no
Quénia. “As espécies mais vilificadas são as que
vivem junto das pessoas, pois são generalistas e
adaptáveis.”
Enquanto Christine, Kay e outros investiga-
dores desvendam mais sobre a biologia e o com-
portamento das hienas-malhadas, vão mudan-
do também o nosso conhecimento sobre quem
manda no reino selvagem e como o faz.
HIENAS 31
Soup, uma fêmea alfa,
traz a carcaça de uma
jovem girafa para
partilhar com duas crias.
O crânio e as mandíbu-
las de uma hiena
demoram três anos a
desenvolver a força
esmagadora de ossos
necessária para caçar,
exercendo pressão
sobre as progenitoras
para garantir o sustento
dos filhotes.
C I DA DE
PAE V I V Ê
R
D EC I A
SOB A
N
C
DESTREZA
NA CACA
34 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
das hienas”, diz Kay. Parte desse domínio matri- “São como uma quimera, uma mistura de di-
linear é fisiológico. Os fetos, sejam machos ou fê- versos organismos”, acrescenta Kay Holekamp.
meas, que se encontram no útero de fêmeas de es- “Alguns dos seus comportamentos são forte-
tatuto elevado possuem um reforço de hormonas mente masculinizados e outros não o são de
sexuais, como a testosterona, que provavelmente todo.” As fêmeas cuidam das crias ao longo de
aumenta a agressividade. Outra componente é vários anos, mais do que qualquer outro preda-
anatómica: sendo o único mamífero sem uma dor africano documentado.
abertura vaginal externa, as fêmeas de hiena-ma- Durante esse tempo, o crânio da jovem hiena
lhada possuem um clítoris alongado pendurado ainda está a desenvolver-se, pelo que ela é in-
entre as patas que se assemelha a um pénis. Du- capaz de caçar e matar presas de grande porte.
rante o acasalamento, a fêmea recolhe este “pseu- Kay Holekamp conjectura que esta dependên-
dopénis” para o abdómen, tornando impossível cia prolongada poderá ser uma das razões pelas
que o macho a penetre sem a sua colaboração e quais as fêmeas de hiena evoluíram de modo
assegurando que é ela quem escolhe o pai da sua a serem mais agressivas do que os machos,
descendência. Igualmente impressionante é o que não desempenham qualquer papel activo na
facto de a fêmea também parir através do clítoris. prestação de cuidados parentais.
HIENAS 35
Embora as crias dos dois sexos herdem o do que isso: enquanto as hienas urbanas ten-
estatuto de progenitora, vão descendo na hie- dem a alimentar-se de restos mortais de gado, as
rarquia à medida que novos irmãos nascem. hienas rurais caçam e matam mais daquilo que
Os estudos com recurso a identificadores e mo- comem, o que exige um pensamento mais ino-
nitorização também revelaram que a maioria vador e maior destreza motora.
dos machos abandona o seu clã de nascença a Nas primeiras experiências, incluindo uma
partir dos três anos, para se juntar a outro, au- na qual Kay Holekamp acompanhou o compor-
mentando assim as suas probabilidades de aca- tamento de um animal há muito testado na re-
salar e transmitir genes. solução de quebra-cabeças chamado Gucci, tor-
nou-se claro que as hienas também conseguem
lembrar-se da forma como resolveram proble-
mas anteriores.
“Assim que Gucci nos via a pôr a caixa com
C I DA DE
PAE V I V Ê o isco no solo, levantava-se do seu local de re-
R
D EC I A
SOB A
N
C
36 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O reino da hiena
Adaptadas a quase todos os habitats, quatro espécies de hienas fizeram
de África o seu lar. O carnívoro de grande porte mais abundante
do continente é a hiena-malhada.
MAURITÂNIA
MA LI
NÍGER ERIT.
CHADE Mekele
B.F. SUDÃO
GUINÉ
NIGÉRIA Harar
GANA SUDÃO ETIÓPIA
REP. CENT. AF. DO SUL
IA
CAM. ÁL M
UGANDA QUÉNIA SO
O
NG
GABAO
CO
R. D.
CONGO Cratera
Ngorongoro
~
D I M E N S ÃO
DA FA M Í L I A DA S H I E N A S
( H YA E N I DA E ) ANGOLA
MAL.
Hiena-parda
(Parahyaena brunnea) Esta necrófaga
de pêlo curto vive no deserto, em
zonas semidesérticas e em pradarias
da África Austral.
C O O P E RAT I VA S E ST RAT É G I C A S
As hienas-malhadas podem caçar As técnicas de caça incluem escolher o
sozinhas, mas a caça cooperativa aumenta elemento mais fraco de uma manada,
a probabilidade de capturarem presas usar a topografia para emboscar ou
de grande porte como gnus, búfalos e encurralar as presas e caminhar contra o
girafas. A maioria das caçadas dura vento num padrão de ziguezague para
menos de um minuto. detectar o cheiro de presas escondidas.
Gnu
Cacadoras
'
natas
As hienas-malhadas vivem em clãs
socialmente complexos, dominados por
fêmeas que podem variar entre seis
e 130 animais. Embora pareçam cães, são
parentes mais próximos dos gatos.
Ao contrário da crença popular, não são
apenas necrófagas. Também são caçadoras
altamente eficientes que matam até 95%
do seu alimento. Das mandíbulas potentes
às estratégicas de comunicação avançadas,
as hienas reinam nas caçadas.
Ilustração de M O N I C A S E R R A N O
e K E L S EY N OWA KOWS K I
ARTE: MAURICIO ANTÓN. FONTES: KAY HOLEKAMP, UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MICHIGAN; LILY JOHNSON-ULRICH,
UNIVERSIDADE DE ZURIQUE; CYBIL NICOLE CAVALIERI, MUSEU DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MICHIGAN
F O RT E S S ÁB I A S
As patas dianteiras fortes ajudam as São conhecidas por esconderem carcaças
hienas a segurar uma carcaça na vegetação ou na água. A ocultação de
enquanto arrancam a carne. Os alimento reduz a probabilidade de
animais dependem das suas muscula- detecção por necrófagos. Em inteligência
das pernas anteriores para transportar social, as hienas posicionam-se ao nível
os pedaços de carne e ossos. dos babuínos.
O estatuto, herdado
da progenitora,
define acesso
prioritário ao
alimento.
~
A L I M E N TAÇ ÃO
A DA P TÁV E L
A dieta das hienas abrange
alimentos desde térmitas a ovos e
elefantes. Elas são capazes de
digerir qualquer matéria orgânica,
excepto pêlos e cascos.
Ovo de
avestruz
PODER FEMININO
As fêmeas são mais agressivas e 10%
maiores do que os machos. O sexo
só pode acontecer com o consenti-
mento da fêmea: ela tem de retrair
completamente a sua genitália para
permitir o acesso do macho.
Macho
Útero
Vagina
Canal reprodutor
em forma de L Fêmea
Genitália
feminina
Cria
C R I A F RAC A ,
P RO G E N I TO RA F O RT E
Os dentes pequenos e um crescimento
lento do crânio tornam as crias dependen-
tes durante três anos. Este desenvolvi-
mento gradual pode ter favorecido a
evolução de progenitoras mais agressivas.
Pré-molar para
esmagar ossos
Músculo
F O RÇ A DA D E N TA DA masséter
Músculos fortes nas mandíbulas
e um esmalte especial em dentes
que se entrelaçam em forma de
W ajudam as hienas a quebrar
ossos sem partir os dentes.
Esmalte Esmalte
da hiena- do leão
-malhada
40
A plasticidade das hienas pode ser a razão pela dação, as hienas fazem aquilo a que Christine cha-
qual a espécie não decresceu da mesma forma ma, em tom de brincadeira, a “posição de hiena
que outros carnívoros africanos menos capazes invertida” para se esgueirarem através dele.
de lidar com factores inesperados de stress. O seu trabalho de campo demonstra que,
quando os vigilantes arranjam a vedação, as hie-
nas desfazem rapidamente o remendo, abrindo
o mesmo buraco. As câmaras instaladas na ve-
C I DA DE dação também capturaram momentos diverti-
PAE V I V Ê
R dos, como hienas deslizando facilmente sob o
D EC I A
SOB A
N
C
HIENAS 41
As hienas aparecem com a escuridão para os animais desinteressantes e preferia ver pre-
se alimentarem de carcaças de equídeos e aves dadores “a sério”, como leões ou chitas.
descartadas em aterros a céu aberto e junto das Essa antipatia teve efeitos negativos. Existem
estradas devido ao fraco serviço de recolha de re- provavelmente mais de 50.000 hienas-malhadas
síduos da cidade. a correr pela África Subsaariana, mas o seu núme-
Ao observar o comportamento alimentar e o ro está a diminuir. As hienas-malhadas enfrentam
tamanho da população de hienas em Mekele, e as mesmas ameaças que outros predadores africa-
introduzindo os dados num modelo de transmis- nos de grande porte, mas as espécies – cuja prin-
são de doenças, Chinmay Sonawane, da Univer- cipal causa de morte é o abate por seres humanos
sidade de Harvard, com alguns colegas fizeram – são visadas de formas que os leões e outros car-
uma descoberta seminal: as hienas removem nívoros não são. São mortas não só em gestos de
mais de 200 toneladas de carcaças portadoras de retaliação por devorarem o gado, mas por serem
doenças por ano. Isto traduz-se em menos mor- consideradas pragas e veículos da magia negra.
tes devido a antrax e tuberculose bovina e um Como a fêmea alfa é a primeira a alimentar-se,
certo “serviço de controlo de doenças” prestado é provavelmente a primeira a morrer quando a
pelas hienas que poupa cerca de 45.000 euros à carcaça está envenenada, desencadeando o caos
economia local por ano ao reduzir as perdas de no clã até um novo membro assumir a liderança.
gado e os custos com tratamentos humanos. As crias da progenitora envenenada, privadas
Embora se saiba que os animais já morderam do seu privilégio matrilinear, não são adoptadas
pessoas, estes incidentes costumam estar rela- por outras fêmeas e morrem à fome. “O maior
cionados com o facto de estas deixarem os re- obstáculo à conservação das hienas é as pessoas
cintos do gado desprotegidos ou de dormirem ao não gostarem de hienas”, resume Kay.
relento. Nas palavras de Christine Wilkinson, os Isso pode estar a mudar. Num estudo com as
conservacionistas estão “a tentar mudar a narra- comunidades pastorícias do Quénia, Miquel Tor-
tiva, enfatizando as vantagens” historicamente rents-Ticó, ecologista da Universidade de Hel-
menosprezadas. sínquia e explorador da National Geographic,
descobriu que em algumas terras não vedadas
de pastores tradicionais na comarca de Laikipia,
na região central do Quénia, onde as zonas de
conservação e outras reservas privadas fazem in-
C I DA DE
PAE V I V Ê vestimentos elevados na conservação de vida sel-
R
D EC I A
SOB A
N
C
42 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
RAINHAS
PODER FEMININO
D O M U N D O N AT U R A L
53
Tania extrai leite materno
com uma bomba,
enquanto lê e-mails,
depois de deitar Deva,
na cidade de Nova Iorque.
Graças ao seu trabalho
no sector médico, estava
bem informada sobre
as opções da tecnologia
reprodutiva, o que
lhe deu confiança para
decidir engravidar por
inseminação intra-uterina,
recorrendo a um dador
de esperma.
54 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 55
Susie Troxler, de 52 anos,
o marido Tony, de 63,
e a filha Lily, no quintal
da sua casa no estado da
Carolina do Norte. Depois
de anos a tentarem
engravidar, os Troxler
souberam que Tony tinha
problemas de fertilidade.
Como Susie já passara
a barreira dos 40 anos,
acabaram por recorrer
ao óvulo de uma dadora
e Tony foi submetido a
um procedimento
cirúrgico para recolha do
seu esperma. “É preciso
adaptarmo-nos ao
processo, tal como ele é”,
afirma Susie.
56 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 57
Duas semanas
antes do seu 48.º
aniversário, Eboni
Camille Chillis estava
deitada no hospital,
pronta para dar à luz
pela primeira vez.
58 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Depois de escolher dadores que se encaixavam za dos anos anteriores dissipou-se e a nova mãe
no perfil desejado, chegou a altura de preparar pensou: “Vai correr tudo bem!”
o seu útero para uma transferência de embrião. Eboni integra-se numa mudança em curso nas
Durante duas semanas, administrou a si própria últimas décadas: cada vez mais pessoas adiam a
injecções de progesterona, antes do procedimen- parentalidade. Em 1970, nos Estados Unidos, a
to de transferência, prosseguindo as injecções ao idade média com que uma mulher dava à luz pela
longo do primeiro trimestre da gravidez. primeira vez era de 21,4 anos. Em 2021, já evoluí-
Em Janeiro de 2023, a filha nasceu, ao som de ra para 27,3. Segundo os Centros para o Contro-
“Isn’t She Lovely?” de Stevie Wonder. Uma en- lo e Prevenção das Doenças (CDC), entre 1985 e
fermeira pousou a bebé no peito da mãe e a sua 2022 a taxa de fecundidade das mulheres de 40
boquinha procurou imediatamente a mama de a 44 anos cresceu de 4 para 12,5 partos por cada
Eboni. Assim que começou a mamar, a incerte- mil mulheres. (Continua na pg. 64)
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 59
60 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Eboni e a filha
encontram-se com
amigos para almoçar.
Antes de ter a bebé,
Eboni viajava com
frequência. Agora, a
principal prioridade é a
filha. “Não ando atrás
da carreira, nem ando
atrás de promoções.
Ela é o meu trabalho,
ela é a minha felici-
dade, ela é o meu
derradeiro objectivo.”
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 61
O primeiro nascimento bem-sucedido de um bebé concebido a
partir de um ovo doado foi em 1984. Confirmou-se que a idade não
era um impedimento para o útero, mesmo depois da menopausa.
62 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
N O T O P O, À E S Q U E R D A
E M B A I X O, À E S Q U E R D A
À ESQUERDA
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 63
Menos filhos 35
Idade média da mãe
ao nascimento
do primeiro filho
mais tarde 30
Desde 1960 que a idade
média das mães
portuguesas ao nascimento
do primeiro filho tem
aumentado substancialmente.
média
mais alta
2021
Entre as mulheres com mais de 45 anos, a taxa um filho. A existência de mais oportunidades
de fecundidade manteve-se baixa em 2022 (1,1 por para as mulheres e a evolução dos papéis desem-
cada mil mulheres), mas esse valor representava penhados por cada género têm sido factores de-
um aumento de 12% face ao ano anterior. Embo- cisivos. Entretanto, as tecnologias de reprodução,
ra estes números variem de país para país, muitas como a fertilização in vitro (FIV), permitiram ter
regiões do planeta apresentam uma tendência se- filhos em circunstâncias impossíveis no passado.
melhante. Em Portugal, a idade média das mulhe- O resultado? Pelo menos 12 milhões de crianças
res ao nascimento de um filho foi de 31,7 anos em nasceram em todo o mundo graças à FIV e regis-
2022 e, desde 2014, esse indicador tem-se mantido tou-se uma profunda transformação na repro-
sempre acima da fasquia dos 31 anos. dução humana. A comunidade científica segue
Convém esclarecer que algumas mulheres actualmente novos rumos de investigação que
sempre tiveram filhos em fases tardias da vida. parecem capazes de revolucioná-la ainda mais.
Em 1940, a taxa de natalidade nos EUA das mu-
lheres de 40 a 44 anos, e mesmo de mulheres de O P R I M E I RO B E B É concebido através de FIV nasceu
idade superior a 45 anos, era ligeiramente mais no dia 25 de Julho de 1978 na cidade de Oldham, em
elevada do que em 2022. Nessa época, porém, Inglaterra. O procedimento consistiu em fertilizar
estes nascimentos correspondiam por norma ao um óvulo com esperma numa caixa de Petri,
terceiro, quarto ou quinto filhos dessa mãe. criando um embrião transferido para o útero de
Actualmente, começa a constituir-se família uma mulher. Inicialmente utilizada em casos de
mais tarde e, em alguns casos, sem companhei- obstrução das trompas de Falópio, a FIV revelou-se
ros. É uma narrativa bem conhecida: com acesso capaz de resolver outros problemas de esterilidade.
a métodos contraceptivos fiáveis, muitas mulhe- Apelidadas de “bebés-proveta” na época, as crian-
res dão prioridade à formação e à carreira (para ças concebidas por este método inspiraram admi-
nem sequer referir a liberdade de compromissos) ração e alarme. Os receios variavam entre a
antes de assumirem as responsabilidades de criar possibilidade de defeitos congénitos e as
64 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Primiparidade tardia
No início do século XX,
já havia mulheres que
davam à luz com mais de
40 anos, mas raramente
o faziam para o primeiro
filho. Em 1920, apenas
3% das mães com mais
de 40 anos eram primípa-
ras. Em 2022, essa percenta-
gem já era de 23%.
3
Divisão celular
O óvulo fecundado (o zigoto) continua a
deslocar-se através da trompa de Falópio. Após
cerca de 30 horas, divide-se em duas células, depois
em quatro e assim sucessivamente, dividindo-se
continuamente com intervalos de 12 horas. O ADN
das células (representado a azul) é copiado e
dividido de forma equitativo.
Nucleus
Núcleo
2
Fecundação
As dezenas de milhões de
espermatozóides libertados CÉLULA
durante a ejaculação nadam
através do útero até às
trompas de Falópio, onde
ocorre a fecundação e as
primeiras etapas do
desenvolvimento embrionário.
O ADN do espermatozóide PA DE
OM
e do óvulo combinam-se, TR
formando o genoma FA
LÓ
do óvulo fecundado. PIO
D IA 2
Fase das duas células
DIA 1
Primeira divisão
D IA 3
8 a 10 células
Óvulo fertilizado
(zigoto) Corpus
Folículo luteum
com o
Esperma oócito
OVÁR I O
DIA 0
Fertilização Ovulação
1
Ovulação
Óvulo não fertilizado
Os óvulos imaturos (ovócitos)
Futuras
células
da placenta
Futuras células
fetais
Perspectiva Perspectiva
exterior interior
5
D IA 4 Eclosão
32 células
Um a três dias depois de alcançar o útero,
o blastócito liberta-se da camada externa
para poder implantar-se na parede uterina.
As células internas do blastócito transfor-
DIA 5 mam-se no feto e as externas na placenta.
Blastócito inicial
(No processo de fecundação in vitro, é
habitual transferir o embrião para o útero
nesta fase).
ÚT E RO
DI A S 6 -7
Última fase do
blastócito
D I AS 8 -9
Implantação
70 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
dinâmico”, conta a especialista. Há muitos facto- David Pépin, biólogo especialista em reprodu-
res em jogo, desde o crescimento dos folículos, ção no Hospital Geral de Massachusetts, desenvol-
a ruptura de um folículo para libertar um óvulo ve a sua investigação numa perspectiva diferente.
durante a ovulação e a morte e reabsorção dos oó- Está a estudar a pouco conhecida hormona anti-
citos não libertados. mulleriana (AMH), produzida pelos folículos nos
Esta actividade significa que há tecido constan- ovários. Na sua opinião, a AMH poderá contribuir
temente reparado que gera fibroses. Francesca e para activar e desactivar a fertilidade. David formu-
outros cientistas estão a investigar possíveis tera- lou uma versão sintética da AMH que será testada
pias capazes de tornar os ovários mais “flexíveis” em animais. Descobriu que, em níveis elevados, a
e prolongar a vida fértil. Segundo um artigo pu- AMH previne a activação do crescimento folicu-
blicado na “Science Advances”, do qual Rebecca lar. Quando uma dose desta hormona é adminis-
Robker é co-autora, os fármacos antifibróticos trada, “poucos folículos são activados e, aqueles
disponíveis permitiram restaurar a ovulação em que o são, não crescem nem amadurecem”. Por
fêmeas de rato com 15 meses de idade, equivalen- consequência, é possível que a AMH actue como
tes a cerca de 50 anos nos seres humanos. contraceptivo. (Continua na pg. 76)
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 71
Betsy McKnight toma
conta dos netos, enquanto
a sua filha, Sarah, se
prepara para trabalhar.
Depois do nascimento do
seu primeiro filho, Sarah
mudou-se de um pequeno
apartamento na cidade de
Nova Iorque para uma casa
com quatro quartos no
estado de Nova Jersey,
para ter espaço para a sua
família em crescimento e
para a mãe, que vive com
eles para os ajudar.
72 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 73
"Percebi que era algo que eu tinha
de fazer sozinha, se queria mesmo
que acontecesse.”
– SARAH MCKNIGHT
74 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
N O T O P O, À E S Q U E R D A À ESQUERDA EM CIMA
Sarah McKnight ajuda a Sarah extrai leite com Betsy McKnight segura
filha a vestir o tutu, a bomba de manhã. a neta, aborrecida por
enquanto segura o filho O seu emprego como a mãe estar de saída
ao colo para amamentá- piloto significa que tem para o trabalho. Sarah
-lo. “Decidi que a de se ausentar durante gastou mais de 60.000
pandemia não me muitas horas. Antes de euros em tratamentos
impediria de ter outro seguir para o trabalho, de reprodução, sendo
bebé”, diz. “Estava em Sarah reserva algum submetida a diversas
casa de qualquer tempo para garantir tentativas de FIV antes
maneira. Por isso, achei que a família tem de conseguir levar a
que era uma boa altura tudo o que precisa sua primeira gravidez
para tentar de novo.” na sua ausência. a termo.
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 75
Uma vez terminado o tratamento com a versão
sintética da AMH, a fertilidade poderia ser restau- “Se não
rada e até aumentada. Os folículos retomariam o
seu crescimento e, uma vez que se foram acumu-
fosse aquela
lando durante o tratamento, um número de folícu- tecnologia, não
los superior ao habitual cresceria em concomitân-
cia. Se um paciente com escassez de óvulos fosse
teríamos sido
submetido a FIV nesse momento, as probabilida-
des de sucesso poderiam aumentar. O tratamento
pais de todo.”
–S U S I E T ROX L E R
com AMH poderia igualmente interromper parte
dessa actividade perpétua do ovário, diminuindo
potencialmente o envelhecimento associado.
A comunidade científica concorda que não exis-
te uma solução única para prolongar dramatica-
mente a fertilidade ou a saúde ovárica. No entanto,
se a investigação em várias áreas importantes der
frutos, poderá gerar progressos significativos nos
próximos anos. “Encontramo-nos num momento
em que muitos olhos se concentram neste tópico”,
afirmou Francesca Duncan. Por exemplo, o Con-
sórcio Global para a Longevidade e a Igualdade
Reprodutiva foi fundado em 2019 para apoiar a
investigação e promover uma rede global de cien-
tistas e clínicos que estudem este tema. A organi-
zação distribuiu mais de 12,9 milhões de euros por
48 investigadores de todo o mundo.
e clínicos acrescentam
A LG U N S I N V E ST I GA D O R E S
uma nota de cautela ao adiamento da parentali-
dade, apesar de o seu próprio trabalho ter contri-
buído para essa mudança. Um dos maiores riscos
é que nem sempre há finais felizes. De acordo com
os dados mais recentes, a percentagem de partos
com nados-vivos resultantes de ciclos de FIV em
todas as idades foi de 37% em 2020. Esse valor cai
para pacientes de FIV com mais de 40 anos.
Susie Troxler brinca
O recurso a óvulos de dadoras ou óvulos congelados com a filha, Lily, que
melhora as probabilidades, mas mesmo assim não tem quase 2 anos,
há garantias. O método de FIV é dispendioso e, mui- no quarto desta.
“A bebé não sabe
tas vezes, não é comparticipado pelos seguros de que eu tenho 50 anos,
saúde. Os sucessos podem dar às pessoas a ilusão nem quer saber”,
de que terão sempre resultados. afirma. “Terei de
andar a correr atrás dela
O risco de envelhecimento também é válido como se tivesse 25.”
para os homens. “A qualidade do esperma mas-
culino diminui depois dos 40 anos e continua a
piorar”, disse David Pépin. Embora ainda pos-
sa fecundar um óvulo e resultar numa gravidez
bem-sucedida, os danos no ADN podem originar
consequências de saúde adversas para a criança.
Há muitas razões que levam as pessoas a ter
filhos mais tarde e uma delas é a inexistência de
apoios sociais. Como observou Rebecca Robker,
se existissem mais políticas públicas de apoio à
76 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
família, algumas pessoas poderiam constituir fa- var o desenvolvimento de novas tecnologias ca-
mília mais cedo. Além da saúde ovárica, encon- pazes de gerar embriões.”
tram-se em curso outras investigações. A GIV e os úteros artificiais estarão provavel-
Um procedimento conhecido como gametogé- mente a anos, ou mesmo décadas, de distância.
nese in vitro (GIV) implica a criação de gâmetas No entanto, à medida que estas novas ferramen-
a partir de células estaminais. A GIV poderia per- tas forem evoluindo, é inevitável que surjam sé-
mitir que casais do mesmo sexo tivessem filhos rios dilemas médicos e éticos. É verdade que exis-
com genes dos dois progenitores e poderia per- tem numerosos riscos, mas também é verdade
mitir que mais de duas pessoas se reproduzissem que muitas recompensas já resultaram da actual
em conjunto. Existe igualmente a possibilidade tecnologia de reprodução: milhões de pais expri-
de viabilizar o crescimento de um feto fora do mem a sua gratidão por terem filhos, quando isso
útero – um útero sintético. não parecia possível. “Ela é a luz do nosso mun-
Rebecca Robker prevê que a reprodução venha do”, assim se refere Susie Troxler à sua filha, Lily.
a mudar radicalmente nos próximos anos. “As “Ela está aqui, no momento em que supostamen-
pessoas querem mesmo muito ter filhos biológi- te deveria estar aqui, para fazer aquilo que tem a
cos”, afirmou. “E esse sentimento está a incenti- fazer no planeta.” j
R E VO LU Ç ÃO R E P RO D U TO RA 77
UMA GALERIA DE
T E X T O D E H E N RY W I S M AY E R
F O T O G R A F I A S D E M ATJ A Z K R I V I C
O SAARA ARGELINO
ESCONDE AQUELE QUE TEM
SIDO DESIGNADO COMO O
MAIOR MUSEU DE ARTE
PRÉ-HISTÓRICA DO MUNDO.
82 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
erguem-se, solitários, na areia. Pensa-se que exis- formam-se em imagens reconhecíveis: gravuras
tirão no parque mais de trezentos arcos naturais. e desenhos de animais e pessoas antigas, que re-
Bastariam estas formações rochosas, frequen- latam como a vida evoluiu neste local ao longo
temente descritas como “florestas de pedra”, para dos últimos 12.000 anos.
que Tassili n'Ajjer se qualificasse entre as paisa- Estas galerias ao ar livre são notáveis não só
gens mais esplendorosas do mundo. Na verdade, pela sua antiguidade e qualidade artística, mas
porém, constituem apenas metade da história. sobretudo pela sua magnitude. O último inven-
A majestade de Tassili reside não só no esplen- tário estimou que, na área do Parque Nacional,
dor visual das rochas, mas também naquilo que existem cerca de 15.000 obras de arte, que ten-
as gerações passadas nelas deixaram. À distân- dem a estar concentradas em fendas naturais,
cia, as estrias podem parecer caprichos anóni- como saliências ou nichos elevados, zonas de
mos da geologia. Vistas de perto, porém, trans- abrigo para os artistas que as que criaram.
SAARA ARGELINO 83
O guia local Abdellah
Elies (à direita) explica
a lenda por detrás das
“Vacas que Choram”,
uma aclamada gravura
antiga numa vertente
rochosa situada entre a
vizinha cidade-oásis de
Djanet e Tadrart
Rouge. Supostamente,
a manada representa
o desespero
dos pastores da região
à medida que o
período húmido
africano se aproximava
do fim e o Saara verde
se transformava
em poeira.
84 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
ENQUANTO UMA ÉPOCA
DE FECUNDIDADE ERA
SUCEDIDA POR UMA
ERA DE POEIRA,
OS GLIFOS ELEGANTES
DERAM LUGAR A
RABISCOS
DIAGRAMÁTICOS
DE CAMELOS
— GRAFITOS
APRESSADOS DE
PESSOAS QUE VIVIAM
EM MOVIMENTO.
Embora o povo nómada tuaregue as conhe- des fresques du Tassili”, Henri Lhote aclamou a
cesse há muitas gerações, a arte rupestre de Tas- região como “o maior museu de arte pré-históri-
sili foi divulgada ao mundo por Henri Lhote, um ca do mundo”.
arqueólogo francês que passou 16 meses a docu- Nas décadas que se seguiram, Lhote e os seus
mentar e desenhar centenas de obras de arte na sucessores viriam a categorizar a arte rupes-
região de Tassili entre 1956 e 1957. tre da região em diferentes períodos. Entre as
Mais tarde, o investigador foi criticado pelo obras mais enigmáticas e antigas, figuram as
seu desdém pela população local e pelas suas do período das cabeças redondas – uma alu-
práticas destrutivas deste património. À seme- são à preponderância de figuras com cabeças
lhança dos primeiros turistas que vieram no seu desproporcionadamente grandes e desprovi-
encalço, sabe-se que Lhote salpicava as pinturas das de características faciais específicas, cujo
com água para realçar as suas cores – um proce- início deverá ter sido o chamado período "Buba-
dimento que acelerou a sua deterioração. No en- lus" ou da grande fauna selvagem, correspon-
tanto, os artefactos (como as peças de cerâmica dendo a um momento em que elefantes, rino-
e as ferramentas) e as réplicas dos desenhos que cerontes e até o búfalo pré-histórico da espécie
trouxe da Argélia, expostos pela primeira vez no Bubalus antiquus eram abundantes na região e
Museu das Artes Decorativas de Paris, em 1957, a arte rupestre estava dominada por gravuras de
foram um sucesso. No seu livro “À la découverte grandes animais.
SAARA ARGELINO 85
A origem destas personagens, que se pensa
remontarem há 10.000 anos, alimentou várias
teorias. Um especialista, o etnobotânico italia-
no Giorgio Samorini, especulou que a qualidade
surreal das figuras de cabeça redonda, junta-
mente com os padrões fractais em forma de es-
piral que adornam algumas gravuras de animais
suas contemporâneas, sugere uma espirituali-
dade influenciada pela ingestão de substâncias
psicoactivas como a psilocibina.
86 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Num afloramento rochoso solitário, junto da biscos diagramáticos de camelos frequentemente
estrada que liga actualmente Djanet à fronteira compostos por um corpo triangular com linhas
com a Líbia, encontra-se um desenho conhecido rectas radiantes representando o pescoço e as pa-
como “as vacas que choram”. Esculpido por um tas. Nesta altura, as gravuras do período húmido,
mestre artesão, mostra um grupo de vacas dese- impressas sobre a pedra ao longo de semanas e
nhado com deslumbrantes linhas caligráficas. meses, já tinham sido suplantadas pelos apressa-
As cabeças das vacas estão viradas para o rio e dos grafitos de pessoas que viviam em constan-
cada uma tem uma grande lágrima, formando- te movimento. Foi este estilo de vida, no qual as
-se sob um dos olhos. Segundo a lenda local, a pessoas migravam longas distâncias em busca de
imagem representa a ansiedade dos pastores à comércio e água, que os tuaregues herdaram.
medida que as chuvas diminuíam e a vegetação Nas últimas décadas, as instabilidades locais,
saeliana que sustentara os mamíferos de grande com destaque para os conflitos civis na Líbia e no
porte durante milénios recuava. Níger restringiram o acesso de visitantes a gran-
As vacas que choram são um pressentimento de parte do parque nacional. A gigantesca esca-
do presente desidratado do Saara. Enquanto uma la desta região bravia coloca-a fora do alcance
época de fecundidade era sucedida por uma era das patrulhas militares argelinas. Por enquanto,
de poeira, a transição para o nomadismo de longa grande parte da arte rupestre de Tassili e as gran-
distância trouxe consigo o último período artísti- des paisagens que servem de pano de fundo per-
co, o Camelino, assim denominado devido aos ra- manecem perdidas no tempo. j
SAARA ARGELINO 87
EM SENTIDO HORÁRIO A
PARTIR DO TOPO ESQUERDO
Na movimentada rota
turística de Tadrart
Rouge, destaca-se esta
gravura de uma figura
humana e uma girafa.
Comuns no Parque
Nacional de Tassili
n'Ajjer, as pinturas de
girafas evocam um
período húmido de
África, ocorrido há
11.700 a 5.500 anos,
quando o Saara era
bastante mais verde e
acolhia grandes
mamíferos.
As silhuetas das
formações rochosas
são visíveis através
da neblina do entarde-
cer em Oan Atan,
em Tadrart Rouge.
Eternidades de erosão
esculpiram as rochas
do Parque Nacional
de Tassili n'Ajjer,
conferindo-lhes formas
invulgares e evocativas.
88 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
SAARA ARGELINO 89
Abdelah Elies, vestido
com a túnica tradicional
e o pano shesh dos
tuaregues, caminha
sobre as dunas de Moul
Naga, um local de
passagem da rota de
visita clássica a Tadrart
Rouge. É uma das
regiões mais belas
e acessíveis de
Tassili n'Ajjer.
N OTAS | DIÁRIO DE UMA FOTÓGRAFA
EM BUSCA
DE NATUREZAS
VIVAS
92 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
As imagens de Julya
Hajnoczky representam
organismos frequentemente
ignorados, como flores
da espécie Microsteris
gracilis dispersas
pela Colúmbia Britânica
(à esquerda) e um cogumelo
da espécie Leccinum
aurantiacum em Alberta.
E M B U S C A D E N AT U R E Z A S V I VA S 93
Julya Hajnoczky estuda cada ecossistema e colhe exemplares representativos. Dispostos numa montagem, prestes a ser
captada pelo seu digitalizador: uma alga Zostera marina e as conchas vazias de um búzio e um mexilhão da Califórnia
recolhidos numa praia do Parque Nacional de Pacific Rim, na ilha de Vancouver.
94 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Uma montagem a partir de material recolhido no Parque Provincial dos Lagos de Pierre Grey inclui uma pinha de Pinus
contorta, agulhas de pinheiro e parte da casca do ovo de um tordo. Julya viaja com um atrelado com três funções:
dormitório, laboratório e estúdio de imagem.
E M B U S C A D E N AT U R E Z A S V I VA S 95
Deixando a tampa do digitalizador aberta, a fotógrafa acrescenta um fundo negro aos objectos, levando-os a flutuar num
vazio que evoca o espaço sideral. O suporte desta imagem é um líquen recolhido nas montanhas Rochosas que tem um nome
comum imaginativo: vómito de fada (Icmadophila ericetorum).
96 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
“Passo muito mais tempo a observar um local do que a colher exemplares”, diz a autora. Por fim, uma composição acaba por
ganhar forma. Ela sente-se particularmente atraída por aquilo a que chama “microflora carismática”, como as esbeltas
extremidades das sementes da dríade-branca.
E M B U S C A D E N AT U R E Z A S V I VA S 97
N OTAS | DIÁRIO DE UMA FOTÓGRAFA
AO C A M I N H A R À V E LO C I DA D E D E UM C A R AC O L , A F OTÓ G R A FA T E M T E M P O D E
D O C U M E N TA R O S S E R E S M A I S P E Q U E N O S A N T E S D E S E R TA R D E D E M A I S .
Nas cordilheiras Kootenay, na Colúmbia Britânica, Julya Hajnoczky recolheu uma grande
diversidade de pinhas.
98 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
UMA GALERIA DE AREIA E PEDRA | B A S T I D O R E S
PORTAL NO DESERTO
T E XTO D E ÉMILIE RAUSCHER
N AT I O N A L G E O G R A P H I C TIM LAMAN