Você está na página 1de 27

Capítulo 12 – Globalização e

Política

Grafite do artista britânico Banksy em muro da cidade de Belém, na


Cisjordânia. Foto de 2008.
Neste capítulo vamos discutir:

1 - O conceito de globalização;
2 - A governança global;
3 - A globalização e o Estado;
4 – Movimentos sociais globais;
5 - O Brasil e a globalização.

No capítulo anterior vimos que boa parte do que entendemos por política se
refere ao Estado — seja a luta pela conquista do Estado, seja a luta pela
influência sobre ele. Vimos também que o Estado moderno não existiu
desde sempre: o monopólio da violência legítima foi conquistado aos
poucos. Aliás, nem sempre existiu, em todos os territórios, algo ou alguém
que tivesse exclusividade no uso legítimo da violência.
Mas será que esse monopólio é inabalável e eterno? Neste capítulo vamos
estudar um fenômeno que, segundo alguns autores, pode tornar o Estado
menos importante e transformá-lo de maneira significativa: a globalização.
1 - O CONCEITO DE GLOBALIZAÇÃO
O sociólogo inglês Anthony Giddens definiu a globalização como “a intensificação de
relações sociais mundiais que ligam localidades distantes de modo que acontecimentos
locais são influenciados por eventos ocorridos a muitas milhas de distância, e vice-versa”.
Isto é, com a globalização, cada vez mais coisas que ocorrem em um lugar do mundo
influenciam de maneira importante outras partes do mundo; quanto mais intensa e
abrangente for a globalização, mais integrado será o mundo, mais contato teremos com
pessoas, produtos e ideias vindos de outras partes do planeta.
A globalização ocorreu em vários momentos da história. A chegada dos europeus às
Américas transformou profundamente o mundo todo. A história do Brasil é um exemplo
de globalização, estruturada para servir ao mercado internacional.
Nas últimas décadas do século XX, a globalização iniciou um processo de aceleração que
continua até hoje. O comércio mundial se desenvolveu imensamente, e regiões com
grandes populações (como a China e a Índia) passaram a participar intensamente dessa
atividade. Muitos países reduziram os impostos sobre produtos importados, inclusive o
Brasil, o que inundou o cotidiano do país com produtos fabricados em outros países, de
alimentos a computadores.
Mas a globalização vai muito além disso: alguns produtos são feitos de tal forma que fica
difícil determinar sua “nacionalidade”: é perfeitamente possível que a roupa que você está
usando agora tenha sido desenhada nos Estados Unidos e produzida na Ásia com
matérias-primas da África.
É fácil perceber o lado positivo da globalização econômica: poder comprar produtos do mundo
todo, por exemplo. Mas a globalização econômica também tem consequências perigosas: gera
desigualdade entre países que participam diferentemente do processo. Por exemplo, a roupa que
você veste, boa parte do dinheiro que você pagou por ela foi para a empresa dos Estados
Unidos, que controla o processo, encomendando a matéria-prima e contratando os trabalhadores
asiáticos (que ganham, em média, muito menos do que os norte-americanos). É assim que a
globalização pode levar ao aumento das desigualdades entre países ricos e pobres.
Nas últimas décadas, a economia de alguns países que eram muito pobres (China, Índia, Coreia
do Sul, etc.) cresceu numa velocidade espantosa. Porém, não sabemos se os outros países
pobres serão capazes de fazer o mesmo ou se ficarão cada vez mais para trás. Além disso, como
cada vez mais os países dependem uns dos outros para comprar e para vender, uma crise
localizada pode se espalhar e afetar dramaticamente países muito distantes. Em 2008, a crise
nos EUA afetou o mundo todo, pois seu comércio compra boa parte do que se produz pelo
mundo, inclusive do Brasil. Mesmo crises em países menos ricos, como o México ou a Rússia,
nos anos 1990, afetaram a economia brasileira, pois geraram incertezas sobre o futuro da
economia mundial.
A globalização não é apenas econômica, ela atinge aspectos da religião, esportes, cultura. E boa
parte dos fenômenos culturais globais é comercializada por empresas localizadas em países
ricos.
A crescente importância dos problemas globais coloca uma questão importante: quem é
responsável por resolvê-los? Não há um governo do mundo, não há um Estado Global.
Podemos contar que cada país vai fazer sua parte para resolver os problemas globais? E se cada
país preferir deixar que os outros resolvam? Essas questões estão entre os mais importantes
desafios políticos modernos.
A imagem mostra a fachada de um banco de investimentos norte-americano cuja falência,
em setembro de 2008, deu início à maior crise econômica mundial desde 1929. O mapa-
múndi desenhado na fachada é apropriado: a quebra do banco (provocada pela
especulação financeira em vários países desenvolvidos) deu origem a uma crise que afetou
o mundo todo, inclusive o Brasil.
2 - A GOVERNANÇA GLOBAL
Uma das características principais dos Estados modernos é que eles são vários: não há um
Estado Global, um governo mundial. Isso significa que os diferentes Estados precisam
negociar suas diferenças e se organizar para enfrentar problemas que afetem mais de um
Estado. A governança global é o processo em que Estados diferentes, além de outros
movimentos e instituições internacionais, negociam e criam instituições e regras globais
para regulamentar as relações entre eles.
Em certo sentido, o sistema internacional se parece com o “estado de natureza” descrito por
Thomas Hobbes: embora em cada território haja uma autoridade reconhecida, não há uma
autoridade reconhecida que subordine os diversos Estados. Não por acaso, Hobbes
influenciou muitos autores que estudam as relações internacionais. Entretanto, ao mesmo
tempo que os Estados não têm interesse em abdicar de sua soberania em favor de um
governo mundial, também não têm interesse em uma “guerra de todos contra todos”. Por
isso, embora não haja um governo mundial, os Estados desenvolveram algumas regras e
instituições para garantir um mínimo de convivência pacífica. A formação dos Estados
Nacionais produziu um sistema internacional que se baseia na competição entre os Estados
e no reconhecimento da autoridade de cada Estado dentro de seu território. O sistema de
Westfália ficou assim conhecido porque se considera que seus princípios foram
reconhecidos pelo Tratado de Münster, assinado em 1648, que encerrou a Guerra dos Trinta
Anos na Europa. Entre as características do sistema de Westfália, descrito pelo cientista
político inglês David Held (1951-), destacamos as seguintes:
A ratificação do Tratado de Münster, pintura do holandês Gerard ter Borch (1617-1681). O Tratado de
Münster, assinado nessa cidade da Westfália (região da atual Alemanha), estabeleceu o desfecho da
Guerra dos Trinta Anos, em 1648, e consagrou o princípio da soberania de cada Estado sobre seu
território. Assim, ficava descartado, por exemplo, que alguma autoridade religiosa pudesse mandar
em todos os Estados. Por determinação do Tratado, o soberano de cada Estado decidiria que religião
seus súditos poderiam escolher, o que mostra como saiu fortalecida a ideia de Estado.
1. O mundo consiste de Estados soberanos que não reconhecem uma autoridade maior do que
eles.
2. A cada Estado cabem as funções de fazer leis, aplicá-las e julgar disputas dentro de seu
território.
3. O direito internacional tem como objetivo garantir algumas regras mínimas de coexistência
entre os Estados.
4. As divergências entre os Estados serão resolvidas, na grande maioria das vezes, pela força.
5. A prioridade do sistema é colocar apenas um mínimo de restrições para a liberdade de cada
Estado fazer o que quiser.
Esse sistema predominou por vários séculos e, em boa medida, ainda é vigente. Entretanto, o
sofrimento e a destruição que as duas Guerras Mundiais do século XX causaram no mundo todo
fizeram crescer a ideia de que alguma forma de coordenação entre os Estados precisava existir,
para evitar que catástrofes como aquelas se repetissem. O advento das armas nucleares, em
especial, criou uma situação inédita na História: a possibilidade real de que uma guerra entre os
países mais poderosos do mundo exterminasse a espécie humana.
Diante desses desafios, ao fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, teve origem uma nova
maneira de pensar a governança global. O símbolo máximo dessa nova concepção foi a criação da
ONU - Organização das Nações Unidas, cujo objetivo é servir de espaço onde os diferentes
Estados podem tentar resolver suas diferenças pacificamente. As instâncias mais importantes da
ONU são a Assembleia Geral, em que cada um dos seus mais de 190 países-membros tem direito
a um voto, e o Conselho de Segurança, formado por um grupo de cinco membros permanentes
(EUA, Inglaterra, França, Rússia e China) e um grupo de dez membros que se alternam. Nada
pode ser aprovado sem a concordância unânime dos cinco membros permanentes.
Sessão do julgamento de
Nuremberg, em 1946, no qual
autoridades nazistas foram
julgadas por crimes cometidos
durante a Segunda Guerra
Mundial, em especial contra
judeus. Esse julgamento mostrou
uma mudança parcial de
mentalidade com relação ao
sistema internacional. Por
exemplo, decidiu-se que
violações dos direitos humanos
como aquelas não seriam aceitas,
mesmo que dentro do território
do próprio Estado e mesmo que
em decorrência de vitórias
militares. O julgamento de
Nuremberg foi conduzido por um
tribunal internacional, composto
dos países vencedores da
Segunda Guerra. Até então, a
ideia de que um tribunal
internacional pudesse julgar os
atos de um Estado não
era comum.
Entre as características do sistema da ONU descritas por David Held, destacamos:
1. O mundo consiste em Estados soberanos que, entretanto, mantêm entre si relações
próximas. Em alguns casos, indivíduos ou grupos podem ser reconhecidos como atores
legítimos nas relações internacionais. Isso acontece, por exemplo, quando indivíduos ou
grupos étnicos perseguidos em seus países apelam a tratados internacionais para defender
seus direitos.
2. Povos oprimidos por impérios coloniais têm o direito de determinarem seus próprios
destinos.
3. Há alguns valores que devem limitar a ação dos Estados. O uso da força em situações
em que esses valores sejam escandalosamente violados não deve ser considerado legítimo.
Por exemplo, o genocídio, isto é, o assassinato em massa dos membros de algum grupo
étnico (como os nazistas fizeram com os judeus) é proibido em toda e qualquer situação.
4. Há uma preocupação maior com o bem-estar dos indivíduos e um esforço para que os
diferentes Estados tratem seus cidadãos de acordo com alguns padrões mínimos (por
exemplo, não submetendo minorias étnicas a situações degradantes).
5. O objetivo do sistema é garantir a paz e o progresso dos valores e direitos fundamentais
reconhecidos como válidos.
A ONU tem diversos organismos e fundos que atuam em áreas específicas. Dois exemplos
são a Organização Mundial de Saúde (OMS), fundamental no combate às epidemias
globais, e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que atua no apoio a
políticas pela educação, alimentação e proteção de crianças.
Além da ONU, há outras organizações internacionais com importante atuação, como a
OMC - Organização Mundial do Comércio, que tenta incentivar o livre-comércio entre os
países; o Banco Mundial, que fornece empréstimos e consultoria para projetos de
desenvolvimento: e diversas outras instituições que buscam regulamentar diferentes aspectos
da vida internacional, dos padrões de segurança nas viagens aéreas até o funcionamento da
internet.
Seria equivocado dizer que a ONU substituiu o sistema de Westfália. Ela não têm o
monopólio da violência legítima no mundo; nem mesmo tem um exército. Não é raro que
grandes potências declarem guerra sem autorização da ONU, como ocorreu em 2003,
quando os Estados Unidos invadiram o Iraque. E, nas grandes negociações internacionais, os
Estados continuam sendo reconhecidos como principais representantes da população de cada
território. Dessa forma, a maior parte da política internacional ainda é feita por acordos ou
guerras entre Estados. Entretanto, também seria errado dizer que nada mudou. A ONU
permanece como um fórum em que os problemas mundiais são debatidos. Além disso, a
organização desempenha funções importantes, como na formação, envio e manutenção de
forças de paz para atuar em áreas onde tenham ocorrido guerras civis.
Se é verdade que a política internacional ainda é feita fundamentalmente pelos Estados,
também é verdade que parte importante da política internacional hoje em dia consiste em
tentar influenciar as organizações internacionais, ou utilizá-las para os objetivos de cada
país. Assim, parte importante da luta econômica entre os Estados (relacionada, por exemplo,
ao protecionismo econômico) se dá nas negociações da Organização Mundial do Comércio.
Se a globalização continuar a se desenvolver, é provável que esse tipo de negociação se
torne cada vez mais importante.
O brasileiro Sérgio Vieira de Mello (1948-2003)
ocupou diversos postos na ONU, incluindo o de
Alto Comissário para Direitos Humanos, em
2002. Como representante das Nações Unidas,
governou o Timor-Leste entre 1999 e 2002,
enquanto esse país organizava suas primeiras
eleições. Vieira de Mello morreu em um atentado
terrorista no Iraque, quando era representante da
Sede da Organização das Nações Unidas (ONU), ONU naquele país, que acabara de ser invadido
em Nova York, Estados Unidos. A ONU surgiu pelos Estados Unidos. Foi o maior atentado já
como um esforço para aprimorar a governança sofrido pelas Nações Unidas em sua história.
global perante alguns problemas apresentados pelo Nesta foto de 2002, Vieira de Mello (à esquerda)
sistema de Westfália, em especial na primeira aparece ao lado do diplomata ganense Kofi
metade do século XX. Foto de 2012. Annan, então secretário-geral da ONU.
Há, enfim, uma última razão pela qual as organizações internacionais são
importantes: elas são um espaço para que os diferentes países legitimem seu poder
no cenário internacional. O especialista em relações internacionais norte-
americano Joseph Nye Jr. (1937-) criou o conceito de poder suave para descrever
a capacidade que os países têm de atrair aliados por meio de seus valores e de sua
legitimidade. Por exemplo, muitos adversários dos Estados Unidos não apoiam a
rede terrorista Al-Qaeda (que periodicamente realiza atentados contra alvos dos
Estados Unidos e de seus aliados) por rejeitar os valores religiosos
fundamentalistas que ela defende. Podemos dizer, portanto, que a Al-Qaeda tem
um poder suave bastante limitado: muitas pessoas que poderiam se aliar a ela não
o fazem porque não concordam com seus valores.
As Organizações Internacionais, por serem espaços em que os países discutem
pacificamente suas diferenças, fortalecem a legitimidade dos que nelas atuam.
Voltando ao exemplo da invasão do Iraque pelos Estados Unidos: embora esse fato
mostre que a ONU não teve poder para impedir os Estados Unidos de invadir o
Iraque, é significativo que, antes da invasão, os norte-americanos tenham tentado
convencer os demais países-membros da organização de que a invasão seria
justificável. É também importante notar que a decisão de invadir sem autorização
da ONU diminuiu o poder suave norte-americano: cidadãos de diversos países
aliados aos Estados Unidos não reconheceram a legitimidade da invasão e
passaram a exigir que seus governos deixassem de apoiá-los.
3 - A GLOBALIZAÇÃO E O ESTADO
Alguns autores, como Jessica T. Mathews (1946-) e Zygmunt Bauman (1925-), consideram
que a globalização diminui consideravelmente o poder dos diferentes Estados. Há duas
maneiras principais pelas quais a globalização pode enfraquecer o Estado moderno. Em
primeiro lugar, como vimos, porque os problemas globais não podem ser resolvidos por
nenhum Estado sozinho. Nem mesmo os Estados Unidos podem, por exemplo, invadir a
China e obrigar todos os chineses a parar de usar automóveis para resolver os problemas
ambientais do mundo. Menos provável ainda é que algum outro país consiga invadir os
Estados Unidos para fazer a mesma coisa.
Assim, os Estados precisam se organizar entre si para lidar com problemas globais como os
que vimos até aqui. Em algum grau, a constituição das organizações internacionais leva a uma
perda de soberania dos diferentes Estados.
Como seria de esperar, os Estados preferem ceder o mínimo possível de suas soberanias às
organizações internacionais, até porque não têm garantias de que os demais vão fazer o
mesmo. Essa é a principal razão para a fraqueza de diversas organizações internacionais.
Porém, mesmo que as organizações internacionais sejam substituídas, por exemplo, por
acordos isolados entre os países, esses acordos se tornarão cada vez mais comuns, o que,
novamente, levará cada Estado a ceder um pouco (ou muito, dependendo de sua força) em
cada negociação. Há, entretanto, uma segunda maneira, bem mais visível, pela qual a
globalização afeta os Estados: a globalização diminui a liberdade para o Estado regular a
economia de seu território. Nesse processo, as empresas multinacionais ganharam muito mais
liberdade para escolher em que países querem investir. Muitas dessas empresas se
fortaleceram tanto que hoje têm orçamentos maiores do que o de vários países.
Falamos anteriormente de fabricantes de roupas que produzem em países asiáticos. Eles
adotaram essa estratégia porque nesses países os salários são muito baixos (inclusive se
comparados aos do Brasil) e os trabalhadores têm bem menos direitos. Assim, se o governo
do Brasil, por exemplo, quiser aumentar muito os salários, precisa saber que corre o risco
de que algumas empresas se mudem para países onde os salários são mais baixos. Em
última análise, os eleitores brasileiros ficam menos livres para eleger um governo que
proponha aumentar muito os salários. Eles ainda podem fazê-lo, mas deveriam saber que
sua escolha traz o risco de que o investimento estrangeiro no Brasil diminua e, portanto, de
que o desemprego cresça.
Para fornecer aos cidadãos boas escolas públicas, hospitais públicos, uma polícia eficiente,
entre outros serviços, o Estado precisa de dinheiro. Esse dinheiro vem dos impostos
cobrados dos cidadãos e das empresas que atuam em seu território. Mas, como você deve
imaginar, as empresas preferem investir onde pagam menos impostos e assim terem uma
parcela maior de seu lucro. Se o governo da Argentina, por exemplo, quiser oferecer
políticas sociais mais generosas e precisar aumentar muito os impostos, algumas empresas
podem preferir investir em outro país. Em última análise, os eleitores argentinos ficam
menos livres para escolher um governo que queira oferecer políticas sociais mais generosas.
Ainda podem fazê-lo, mas precisam saber que sua escolha terá riscos.
Assim, surge o risco real de que, com a globalização, diminua a possibilidade de escolha
democrática. Como disse o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o Estado passa a ter dois
papéis econômicos: evitar medidas que mexam demais com a economia e ajudar as pessoas
que venham a sofrer as piores consequências da globalização (como o desemprego causado
pela concorrência de produtos importados).
O economista turco Dani Rodrik (1957-) criou uma fórmula para explicar o desafio da
globalização que, embora simplificada, é útil para nos fazer pensar. A fórmula diz o
seguinte:
1. Se quisermos ter perfeita globalização e perfeita democracia, precisaremos sacrificar a
soberania nacional. Isto é, os Estados teriam de abdicar de seu poder em benefício de um
Estado mundial democrático. Não há nenhuma possibilidade realista de que isso aconteça
nos próximos anos, mas, mesmo que houvesse, muita gente ainda preferiria preservar a
soberania nacional de seus países.
2. Se quisermos ter perfeita globalização e perfeita soberania nacional, teremos de
sacrificar a democracia. O Estado teria de atuar principalmente para manter as empresas
multinacionais satisfeitas, garantindo impostos baixos, poucos direitos trabalhistas, poucas
regulamentações ambientais, etc. É extremamente improvável que os cidadãos concordem
com isso, o que, cedo ou tarde, acabaria levando ao fim da democracia.
3. Por fim, se quisermos ter perfeita democracia e perfeita soberania nacional,
precisaremos sacrificar a globalização. Isto é, cada país cuidaria de sua economia, e os
eleitores escolheriam o governo que bem entendessem, mas estaríamos dispensando o
grande potencial da globalização para promover crescimento econômico, maior
intercâmbio entre os povos, entre outros benefícios.
Rodrik chamou esse problema de “trilema”, isto é, uma escolha de no máximo duas entre
três coisas. Em outras palavras, nunca vai ser possível obter o máximo dos três elementos:
sempre precisaremos sacrificar um pouco de um deles se quisermos ter um pouco mais
dos outros dois.
Moeda de 1 euro, unidade monetária
da União Europeia. Após a Segunda
Guerra Mundial, os países da Europa
se dedicaram a construir uma união
em torno de temas econômicos,
comerciais e diplomáticos que hoje
envolve a maior parte do continente.
Como parte desse projeto, a maioria
abdicou de ter sua própria moeda,
adotando uma moeda continental: o
euro. Embora a União Europeia tenha Evolução do Índice Bovespa, que mede o desempenho das
sido em muitos aspectos (inclusive, ações na Bolsa de Valores de São Paulo, entre 1995 e 2012.
por algum tempo, econômico) bem- Note a grande queda que ocorre em 2009, logo após a crise
sucedida, hoje vive uma profunda
norte-americana de 2008. Como se vê, a economia brasileira
crise, que muitos atribuem à adoção
da moeda comum por países com foi seriamente afetada por uma crise que não foi causada por
condições econômicas muito nada que tenha acontecido no Brasil. Com a globalização, isso
diferentes. tende a se tornar cada vez mais comum.
4. MOVIMENTOS SOCIAIS GLOBAIS
Como vimos, há uma série de problemas decorrentes da globalização que não podem ser
enfrentados apenas dentro de cada país. Portanto, não se pode esperar que eles sejam resolvidos
apenas pela ação dos partidos e movimentos sociais que atuam nacionalmente. Por esse motivo,
nas últimas décadas, aumentou muito o número de organizações não governamentais (ONGs)
internacionais. Além das ONGs que atuam em mais de um país, há também grupos políticos e
religiosos que atuam globalmente.
Organismos semelhantes às ONGs internacionais já existem há muito tempo. Por exemplo, na
luta contra a escravidão na América (inclusive no Brasil), as associações abolicionistas europeias
desempenharam um importante papel. Algumas delas tiveram origem em grupos religiosos, o que
faz sentido: várias religiões existem em mais de um país, e o contato entre fiéis da mesma
religião em diferentes partes do mundo deve ter ajudado na organização das primeiras
associações internacionais.
O número de ONGs internacionais aumentou muito durante o século XX, paralelamente ao
progresso da globalização. Segundo o estudo de David Held e Anthony McGrew (1954-), em
1909 havia 176 ONGs internacionais; em 1990, já havia 5 500. Destaque para ade defesa do
meio ambiente: Greenpeace e WWF. E por que as ONGs ambientais são tão importantes? É que
o meio ambiente não reconhece as fronteiras entre os países. Quando o Brasil polui o oceano
Atlântico, as correntes marítimas levam essa poluição para o litoral de vários outros países.
Quando EUA ou China emitem gases poluentes na atmosfera, as mudanças climáticas causadas
pela poluição afetarão todo o mundo. O meio ambiente talvez seja a questão mais obviamente
global que existe. É interessante notar que embora atuem em diversos países, os “Partidos
Verdes” (que defendem a ecologia) às vezes influem menos que as ONGs ambientais com
atuação global.
Também há ONGs de destaque em outras áreas, como no combate à pobreza: (OXFAM, CARE),
no provimento de auxílio médico em áreas carentes ou afetadas por guerras (Médicos Sem
Fronteiras) e na defesa dos direitos humanos (Anistia Internacional), etc.
Também são cada vez mais comuns os protestos políticos de caráter global. Com o
desenvolvimento de meios de comunicação cada vez mais rápidos (em especial a internet), o
contato entre pessoas de diferentes lugares do mundo que pensam de modo parecido tornou-se
mais fácil. Exemplo disso é a articulação de grupos que se opõem a características da sociedade
capitalista global no chamado “movimento antiglobalização”, o que talvez não seja um nome
apropriado: vários desses movimentos criticam apenas a forma como a globalização foi feita até
agora, e entre eles há grupos mais e menos radicais. Alguns militantes preferem que seus
movimentos sejam chamados de “alterglobalistas”, isto é, defensores de outro tipo de
globalização, uma globalização alternativa.
Esses movimentos ganharam notoriedade por ocasião dos protestos contra uma reunião da OMC
realizada em Seattle, EUA, em 1999. Houve um grande conflito entre policiais e manifestantes,
que incluíam: ONGs, sindicatos, outros movimentos sociais, socialistas e anarquistas.
Os movimentos de protesto global reapareceram com força depois da crise global de 2008, com a
emergência do movimento “Ocupe Wall Street”. Wall Street é o distrito de Nova York que
concentra muitas instituições financeiras, a Bolsa de Valores. Esse movimento responsabiliza a
política econômica neoliberal ou globalização pela crise de 2008. Outros movimentos surgiram
principalmente em países fortemente afetados por essa crise, como o dos “indignados” na
Espanha. Todos esses movimentos ainda estão dando seus primeiros passos. A globalização ainda
é um fenômeno recente, e não sabemos como será organizada a política global caso ela continue
se desenvolvendo. Entretanto, é importante prestar atenção nos primeiros sinais de que começa a
surgir uma política que atua através das fronteiras dos Estados.
Utilizando barcos infláveis, militantes
da ONG Greenpeace protestam em alto-
mar contra a pesca de baleias por navios
japoneses, em 2013. Durante os
protestos, os ativistas procuram se
colocar entre os navios e as baleias,
dificultando a pesca.

Em foto de 2012, médica da organização


Médicos sem Fronteiras atende a paciente
na cidade de Walikale, na República
Democrática do Congo, país afetado por
graves conflitos. Essa ONG oferece
atendimento médico em regiões afetadas
por guerras ou outras situações extremas.
Este cartaz do movimento
Occupy Wall Street! (‘Ocupe
Wall Street’, em inglês)
mostra um touro sendo
controlado. No mercado de
ações, um bull market
(‘mercado touro’ em inglês)
é um momento em que as
ações estão em alta. O touro
se tornou, assim, símbolo de
investimentos arriscados e
lucrativos, como os que
levaram à crise de 2008. O
cartaz sugere que é
necessário estabelecer
controles sobre o mercado
financeiro.
5 - O BRASIL E A GLOBALIZAÇÃO
A globalização apresenta para o Brasil desafios bastante difíceis. Com base na
discussão dos itens anteriores, podemos destacar três tipos principais de desafios:
1. O Brasil precisa lidar com a realidade de que seu governo tem menos controle
sobre a economia do que já teve. O país tem, ainda, as dificuldades adicionais
características de países de desenvolvimento médio, analisadas pelo pesquisador
norte-americano Geoffrey Garrett (1958-). Os países mais pobres podem lucrar
com a globalização oferecendo mão de obra barata, como fazem China e Índia. Os
países mais ricos, aproveitariam seu potencial de criação tecnológica, população
com qualificação educacional e suas instituições sólidas (sistema legal ágil e
transparente, baixa corrupção, leis que incentivam a atividade econômica, boas
políticas sociais). No Brasil os salários são mais altos do na China, mas a
capacitação tecnológica e educacional é menor do que a da Alemanha. Assim,
como podemos nos adaptar à globalização?
Supondo que ninguém defenda que nos tornemos mais pobres ou que tenhamos
menos direitos para poder competir com a China, fica claro que a globalização
aumenta a pressão para que tenhamos as qualificações educacionais, tecnológicas
e institucionais necessárias para competir com os países desenvolvidos. Embora
nas últimas décadas o Brasil tenha feito alguns avanços importantes nesse sentido,
ainda estamos longe de alcançar esses objetivos.
2. O Brasil quer participar da governança global, lutando para ser um
membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Com países
como Alemanha, Japão e Índia, o Brasil tem pleiteado que o conselho seja
reformado. Atualmente, o Brasil lidera as forças de paz da ONU que atuam
desde 2004 no Haiti, país que passou por diversas crises políticas nas
últimas décadas.
O Brasil também procura reforçar as instituições internacionais em nossa
vizinhança, em especial com a criação do Mercosul - Mercado Comum
do Sul, que pretende integrar cada vez mais as economias dos países da
América do Sul. Até 2012, seus membros permanentes eram o Brasil, a
Argentina, o Uruguai, o Paraguai e a Venezuela; diversos outros países do
continente são membros associados. O Brasil também assumiu uma
posição importante na negociação dos tratados comerciais na Organização
Mundial do Comércio, associando-se a outros países em desenvolvimento
para pressionar os países desenvolvidos a reduzirem as medidas
protecionistas. No entanto, essas negociações não produziram resultados
importantes nos últimos anos.
Soldados brasileiros participam das forças de paz da ONU no Haiti em junho de 2006. Os
capacetes azuis são o símbolo dos soldados que estão sob orientação da ONU. A intervenção da
ONU no Haiti se deu em função de conflitos políticos graves que ameaçavam a estabilidade do
país. Ao assumir responsabilidades como essa, o Brasil espera aumentar sua credibilidade para
atuar na governança global.
3. É importante notar que devido aos imensos recursos naturais que possui, o Brasil é palco de
lutas globais pela preservação do meio ambiente. Isso constantemente cria tensões entre os
grupos defensores da preservação ambiental (ONGs internacionais e nacionais, grupos
indígenas e outros setores da população brasileira) e interesses econômicos nacionais
(latifundiários, garimpeiros, empresas mineradoras, etc.). A grande importância global da
agricultura brasileira também põe o país em evidência, na discussão sobre a produção de
alimentos transgênicos. Parte significativa da luta política brasileira atual pode ser entendida
como tentativas de enfrentar esses desafios.
Isso é mais óbvio no debate sobre economia, em que os diferentes partidos apresentam vários
projetos visando tirar o Brasil da condição de fornecedor de mão de obra barata. Boa parte dos
debates políticos brasileiros se refere a medidas que podem ser tomadas para desenvolver a
indústria, reduzir obstáculos ao crescimento econômico e, principalmente, fazer isso ao
mesmo tempo que se enfrentam dois problemas históricos: a pobreza e a desigualdade. A
questão é difícil porque, como em todo problema político importante, nem sempre é possível
atingir todos os objetivos ao mesmo tempo: às vezes é necessário sacrificar o crescimento em
nome do combate à pobreza; às vezes é o contrário. Cabe à população, por meio do voto,
decidir qual a melhor opção em cada momento.
Também cresce no cenário brasileiro a preocupação com o meio ambiente. Um dos debates
mais importantes do país no momento é justamente sobre como aproveitar o potencial
econômico brasileiro sem degradar o meio ambiente. Não há consenso sobre como fazer isso
da melhor forma, e é provável que, novamente, seja necessário sacrificar diferentes objetivos
em diferentes momentos: às vezes será necessário sacrificar o crescimento ou meio ambiente?
Novamente, caberá aos eleitores saberem quando fazer o quê.
Manifestantes ambientalistas protestam na praça dos Três Poderes, em Brasília, durante a votação do
novo Código Florestal brasileiro, em foto de dezembro de 2011. Para os ecologistas, a legislação que
foi aprovada não é rígida o suficiente contra quem desmata. A votação ocorreu em um ambiente de
debate acirrado entre os ambientalistas e parlamentares ligados ao agronegócio brasileiro, que
sustentam que o excesso de regulamentações ambientais prejudica o desenvolvimento da agricultura
nacional.
Bibliografia:

Sociologia Hoje, Ática, 2013


Henrique Amorim
Celso Rocha de Barros
Igor José de Renó Machado

Você também pode gostar