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NEUROCIÊNCIAS E COMPORTAMENTO

Introdução à Neuropsicofarmacologia

MAURO BARBOSA TERRA

Professor Associado de Psiquiatria da UFCSPA


Doutor em Psiquiatria pela UNIFESP

2022
I - Princípios da Neurotransmissão Química
- Sinapse - local de conexão entre os neurônios pré e pós-sinápticos
- axônio - envia informações, dendritos - captam informações
As 3 dimensões da neurotransmissão: espaço, tempo e função
1) Espaço
1.1) Enfoque anatômico - SN como “conexões de fios rígidos”
- neurônios - enviam impulsos elétricos de uma parte à outra da
mesma célula por alteração da concentração de íons positivos (Ca,
Na, K) e negativos (Cl) dentro e fora da célula
- impulsos elétricos - não saltam diretamente para outros neurônios
- neurônios comunicam-se por meio da liberação do mensageiro
químico ( neurotransmissor) para os receptores do 2º neurônio
- comunicação entre os neurônios é química e não elétrica
- impulso elétrico é convertido em sinal químico - liberação do
neurotransmissor - processo de neurotransmissão
Princípios da Neurotransmissão Química
1.2) Enfoque químico - SN como “sopa química”
- neurotransmissores enviados de um neurônio a outro podem
difundir-se para locais distantes da sinapse
- neurotransmissão pode ocorrer em qualquer receptor
compatível dentro do raio de difusão do neurotransmissor, em
locais mais distantes

2) Tempo
- neurotransmissores de início rápido ( milissegundos): glutamato
(excitatório), GABA ( inibitório ) - início rápido da sinalização química
- alteração rápida do fluxo de íons, alterando a excitabilidade do
neurônio
- neurotransmissores de início lento ( muitos milissegundos a
vários segundos): monoaminas - ação prolongada, neuromoduladores
-modulam sinais de outros neurotransmissores
3) Função
- cascata de eventos moleculares e celulares desencadeada pelo
processo de sinalização química - eventos pré e pós-sinápticos
- impulsos elétricos abrem canais iônicos - cálcio fluindo para
dentro do neurônio pré-sináptico, ancora as vesículas sinápticas para
que despejem seu conteúdo químico na sinapse
- neurotransmissor liberado do neurônio pré-sináptico - primeiro
mensageiro

- neurotransmissor ligado ao receptor - segundo mensageiro


(dentro do neurônio pós-sináptico) - ações celulares e efeitos
biológicos
- informação do neurônio pré-sináptico é transmitida ao neurônio
pós-sináptico através de uma cadeia de eventos
Função da neurotransmissão química:
- comunicação entre o neurotransmissor pré-sináptico e seus
receptores pós-sinápticos
- comunicação entre o genoma pré-sináptico e o genoma pós-
sináptico, de DNA para DNA

Mensagem de neurotransmissão química é transferida por 3


sequências moleculares de mensageiros:
1) uma via de neurotransmissão pré-sináptica do genoma pré-
sináptico até a síntese do neurotransmissor e de enzimas e receptores
de apoio
2) uma via pós-sináptica de ocupação dos receptores por meio dos
segundos mensageiros até o genoma, que ativa os genes pós-
sinápticos
3) uma via pós-sináptica, iniciando nos genes pós-sinápticos
recentemente expressos, que transfere informações como uma
cascata molecular de consequências biológicas por todo o neurônio
pós-sináptico
- os componentes do processo de neurotransmissão podem ser
modificados por drogas - atuam sobre receptores, enzimas e
neurotransmissores
- drogas frequentemente simulam neurotransmissores naturais:
• morfina - b-endorfina ( peptídio opióide )
• maconha - anandamida ( neurotransmissor lipídico ),
receptores canabióides
Neurodesenvolvimento e Plasticidade Neuronal
- crescimento máximo de novos neurônios se completa antes
do nascimento (exceto em locais específicos como o hipocampo)
- sinaptogênese, mielinização, arborização dendrítica e axonal
- ocorrem durante toda a vida
- de 0 a 6 anos - velocidade mais intensa de formação de
sinapses
- eliminação competitiva de sinapses atinge seu pico na
puberdade, na vida adulta existe 1/2 a 2/3 das sinapses
Morte neuronal:
- necrose ( assassinato neuronal por venenos ou toxinas ) - reação
inflamatória, neurônios explodem
- apoptose ( suicídio neuronal ) - autodestruição, eliminação dos
indesejáveis, depende de fatores neurotróficos, ocorre em 90% dos
neurônios formados pelo cérebro durante a vida fetal, não causa
tanta confusão molecular, neurônios murcham

Fatores neurotróficos ( semaforinas) - determinam quais


neurônios farão sinapse com quais alvos
- repulsivos - fazem com que os axônios cresçam para longe
- atrativos - encorajam o crescimento neuronal nesta direção
- árvore dendrítica - está em mudança constante e altera conexões
sinápticas durante toda a vida
- Fatores de crescimento - aumentam a ramificação e a formação de
sinapses
- Excitotoxicidade - processo de poda das ramificações em excesso
- neurônio - modifica dinamicamente suas conexões sinápticas
durante a vida, reagindo ao aprendizado, às experiências de vida, à
programação genética, às drogas e às doenças
Receptores e Enzimas como Alvos de Ação de Drogas
Ações das Drogas:
- estimulantes de receptores ( agonistas )
- bloqueadoras de receptores ( antagonistas )
- inibidoras de enzimas reguladoras

Receptores
- longas cadeias de aminoácidos ( tipo de proteína )
- 3 partes: porção extracelular, porção transmembrana e porção
intracelular
- tipos de receptores
• 7 regiões transmembrana ( receptores de serotonina 5-HT2A )
• 4 regiões transmembrana ( ligados a canal iônico - cálcio, sódio,
potássio, cloro )
• 12 regiões transmembrana ( receptores de sistemas de
transporte de neurotransmissores - carreadores )
Fazem parte da neurotransmissão química:

- neurotransmissor, íons, enzimas ( ATPase, proteína quinase,


desfosfatase, RNA polimerase), carreadores, bombas de transporte
ativo ( carreador + ATPase) , segundo mensageiros, receptores,
fatores de transcrição ( zipper de leucina ), genes e produtos gênicos

- canais iônicos - podem ser regulados por ligantes ( neurotrans -


missores ) ou por voltagem ( descarga elétrica no canal )

- antidepressivos ( fluoxetina ) - inibem o carreador, impedem a


recaptação
Sistema de segundo mensageiro inclui:

- primeiro mensageiro ( neurotransmissor ), receptor do


neurotransmissor, proteína G, enzima sintetizadora = molécula de
segundo-mensageiro ( adenosina monofosfato cíclico - AMPc,
fosfatidil inositol - PI )

- enzimas ativadas pelos segundos mensageiros modificam a


permeabilidade da membrana aos íons - modificação da
excitabilidade do neurônio
Regulação do gene por segundo mensageiro:
- molécula altera os genes que controlam a síntese das proteínas
responsáveis pelo comportamento celular
- genes não regulam diretamente o funcionamento celular, mas
regulam diretamente as proteínas responsáveis pelo
funcionamento celular
- segundo mensageiro ativa a proteína quinase – esta enzima
(terceiro mensageiro) fosforila o fator de transcrição - fator de
transcrição (quarto mensageiro) ativa o gene - gene é transcrito
em RNA - RNA é traduzido em proteína

- genes imediatos cJun e cFos (quinto mensageiro) produzem a


combinação protéica Fos-Jun, que é fator de transcrição - zipper de
leucina (sexto mensageiro) para genes tardios
- genes imediatos ativam gene tardio, levando a formação de
proteína (pode ser qualquer proteína necessária para o neurônio –
receptor, enzima, transportador, fator de crescimento)
Receptores como locais de ação das drogas

- drogas podem afetar o número de receptores


- desaceleração da síntese de receptores - down-regulation
- aceleração da síntese de receptores - up-regulation
- síntese excessiva de receptores pode aumentar a sensibilidade da
neurotransmissão, mas pode também causar doenças, como a
depressão
- discinesia tardia - antipsicóticos bloqueiam receptores de
dopamina - up-regulation
Enzimas como locais de ação das drogas

- atividade enzimática - conversão de uma molécula em outra,


fabricam e destroem neurotransmissores
- substrato - liga-se a enzima, transforma-se em produto

Algumas drogas inibem enzimas:


- inibidor irreversível ( inibidor suicida ) - liga-se irreversivelmente
à proteína enzimática, inibindo de forma permanente a enzima.
Impede a ligação do substrato.
- inibidor reversível - pode abandonar a proteína enzimática e ter
sua ação revertida. Substrato desloca o inibidor
Receptores e enzimas como mediadores da ação de doenças no SNC
– Se receptores e enzimas são importantes para explicar a ação das
drogas, alterações dos mesmos podem perturbar a função cerebral
– Neurotransmissão anormal – deve levar às anormalidades compor-
tamentais ou motoras demonstradas por pacientes que sofrem de
transtornos psiquiátricos e neurológicos
– Psicofarmacologia – ciência dedicada a descobrir o que há de errado
com a neurotransmissão química
– O conhecimento sobre a neurotransmissão anormal pode gerar as
bases lógicas para o desenvolvimento de uma terapia medicamentosa
para corrigí-la, removendo, assim, os sintomas psiquiátricos e neuro-
lógicos
– Tratamentos psicofarmacológicos atuais – não são estritamente
“curativos “, mas sim meramente paliativos, reduzindo os sintomas,
sem necessariamente oferecer alívio permanente
– Melhores tratamentos futuros dependem da descoberta das causas
das doenças mentais
– Hipótese atual - série de genes atuando anormalmente e seus
produtos gênicos correspondentes, desencadeados por fatores de
risco adquiridos, atuam em conjunto ou na sequência exata para
causar grupos de sintomas que aparecem nos diferentes transtornos
psiquiátricos
– Se uma droga com mecanismo de ação bem conhecido sobre um
receptor ou enzima ocasiona efeitos semelhantes a sintomas de um
paciente com um transtorno mental, é provável que esses sintomas
também estejam relacionados ao mesmo receptor que a droga atinge

– O uso de drogas, como ferramentas, pode ajudar a mapear quais


receptores e enzimas estão relacionados com cada transtorno psiqui-
átrico ou neurológico
– Psicofarmacologia – tem sido útil, não apenas nos tratamentos
empiricamente bem-sucedidos para os transtornos do SNC, como
também na criação das principais teorias e hipóteses sobre os trans-
tornos psiquiátricos
– Farmacogenética – nova abordagem para a seleção de drogas espe-
cíficas para cada paciente:
• tenta associar a probabilidade de uma resposta clínica positiva ou
negativa a determinada droga com a estrutura genética específica
do paciente

• a idéia é que o conhecimento de informações genéticas fundamen –


tais sobre um paciente, e não apenas o diagnóstico psiquiátrico,
levaria à decisão mais racional em relação a que droga prescrever

• talvez determinadas características genéticas possam prever a


probabilidade de melhor resposta terapêutica ou melhor tolerabi –
lidade a uma droga e não a outra
Neurobiologia Molecular e Transtornos Psiquiátricos

– O aparecimento de um transtorno mental abrange a integração de,


no mínimo, quatros elementos – chave:
• vulnerabilidade genética à expressão da doença
• eventos estressores na vida do indivíduo ( divórcio, problemas
financeiros)
• a personalidade do indivíduo, a capacidade de lidar com proble-
mas e o apoio social por parte de terceiros
• outras influências ambientais sobre o indivíduo e seu genoma,
incluindo vírus, toxinas e diversas doenças
– A expressão bioquímica de vulnerabilidade a um transtorno psiquiá-
trico ocorre quando muitos genes diferentes formam proteínas impor-
tantes em quantidades erradas, em locais ou momentos inadequados,
o que ocasiona estruturas e funções anormais nos neurônios

– Mesmo quando tudo acontece de forma a criar a quantidade máxi –


ma de risco, pode, ainda assim, não ocorrer o transtorno psiquiátrico,
dependendo este também de fatores não-genéticos, especialmente os
ambientais, interagirem de forma exata, de modo a converter a
vulnerabilidade latente em doença manifesta

– Apenas uma ”conspiração“ de vários riscos, genéticos e ambientais,


produz o transtorno emocional

– A identificação de apenas um”conspirador“, sem o conjunto de


todos os outros, é inadequada para explicar a base genética da
doença
– Não se herda o transtorno mental, herdam-se os fatores de vulne-
rabilidade para o transtorno – a possibilidade de uma doença psiquiá-
trica aparentemente depende não apenas de ter havido herança de
todos os fatores de vulnerabilidade necessários, como também dos
impactos ambientais adicionais, de origem não-genética

– Assim, a herança genética proporciona ao indivíduo determinado


grau de risco para um transtorno psiquiátrico e determinados trans-
tornos podem ter maior propensão de se manifestar do que outros,
mas a vulnerabilidade genética isoladamente não é suficiente para a
expressão franca da doença psiquiátrica
Plasticidade Neuronal e Transtornos Psiquiátricos

– Esquizofrenia, retardo mental, epilepsia – podem resultar de neurô-


nios migrarem para lugares errados durante o desenvolvimento fetal

– A falha de migração neuronal pode ser causada por genes que indi-
cam as direções erradas

– Se um neurônio recebe um sinal errado de moléculas neurotróficas,


pode enviar sua extremidade de crescimento axônico para alvos
pós-sinápticos errados
Conexão Correta
Conexão Errada
– Se o processo de sinaptogênese for interrompido precocemente
durante o desenvolvimento, o cérebro pode não atingir seu potencial
pleno

– Não apenas pode ocorrer doença psiquiátrica se as sinapses forem


mal formadas no início da vida, mas podem ocorrer também proble-
mas se sinapses saudáveis normais são inadequadamente interrompi-
das tardiamente na vida – o cérebro pode regredir do potencial que
atingiu, resultando nos diversos tipos de demência

– A pesquisa da neuroplasticidade normal com o objetivo de desen-


volver novas drogas para interromper as doenças degenerativas do
sistema nervoso está apenas no seu início – não existem ainda medi-
camentos que ativem e direcionem o processo de plasticidade
O excesso de neurotransmissão excitatória pode ser danoso à saúde
( Excitotoxidade )
– O glutamato normalmente abre um canal iônico para a entrada de
cálcio no neurônio
– Cálcio em excesso pode levar a sintomas excitatórios, como pânico,
convulsões, mania ou psicose
– Pode ocorrer a formação de radicais livres que prejudicam o neurô-
nio e podem desencadear apoptose

– Esse mecanismo excitotóxico pode ser ativado se o programa gené-


tico que o controla for ativado ou, potencialmente, pela ingestão de
toxinas ou drogas de abuso
– Psicose, epilepsia e pânico – parecem envolver processo de neuro-
transmissão excessiva
Excitotoxicidade
“O ser humano é mais que um dispositivo
físico, químico e biológico; é possível que
as emoções tenham mediadores químicos,
mas os mediadores químicos não tem
emoções.
Pílula alguma pode substituir o contato
humano inerente a relação médico-
paciente.”

(Moacir Scliar, médico e escritor, 1993)

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