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Clássicos

Liberais
Property as a
Guarantor of
Liberty
James M. Buchanan
por José L. Carvalho

Parte Integrante da Revista Banco de Idéias nº 54


ÍNDICE

1. Introdução ...................................................................................... 5
2. A selva hobbesiana; a tragédia dos bens de propriedade comum ...... 5
3. Repartição dos bens de propriedade comum,
estado de direito e invasão ............................................................... 7
4. Alienação por meio de contrato: o surgimento da
interdependência de mercado .......................................................... 8
5. Dependência do mercado, exploração e justiça nas trocas ................ 9
6. Ilustração analítica ....................................................................... 11
7. Aprendendo ao fazer; esquecendo por não fazer ........................... 11
8. Propriedade privada, competição de mercado e liberdade
de entrada e saída ....................................................................... 11
9. Imagens do mercado: profissional e privada .................................. 13
10. Domínio privado como produção própria (autoprodução) .............. 14
11. Propriedade privada de ativos que geram renda monetária ............. 15
12. Propriedade privada e tempo: acumulação pela propriedade ......... 15
13. Propriedade privada em dinheiro: inflação e o confisco de valor ..... 16
14. Socialismo, propriedade privada e liberdade .................................. 17
15. Rerum Novarum ............................................................................ 18
16. O proletariado marxista e a profecia malthusiana .......................... 19
17. Especulações final ........................................................................ 20
18. Nota final .................................................................................... 22

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1. INTRODUÇÃO gurada a um membro do grupo de-
pende do comportamento de todos os
H istórica, linguística e legalmente,
“comum ou comuns” se refere a
bens de propriedade comum. Várias
membros do grupo, e do tamanho do
grupo. A divisão do comum com uma
designação específica de esferas de
(muitas) pessoas (famílias) comparti- ação privadas e separadas reduz a
lham o uso de um recurso potencial- dependência do indivíduo do compor-
mente valioso. Privatização envolve a tamento dos outros, independente-
repartição desse recurso entre distintos mente de qualquer motivação induzida
usuários pela especificação de limites. por incentivo que possa gerar um pro-
Os incentivos para o uso do recurso são duto de maior valor. A liberdade do
assim modificados, e o valor do pro- indivíduo aumenta, se definimos liber-
duto aumentará. Esse argumento sim- dade como sendo inversamente rela-
ples é tão antigo quanto Aristóteles. cionada ao grau de dependência do
Minha tese neste livro é que esse ar- bem-estar do indivíduo ao comporta-
gumento simples, o qual por conveni- mento dos outros.
ência denominaremos Aristotélico, é ca- Máxima independência é atingida
tegoricamente diferente de uma defe- somente quando o indivíduo vive em
sa da propriedade privada que tem total isolamento de vínculo social, ca-
sido apresentada, mas que não tem racterizado pela ausência de qualquer
sido tão bem compreendida, tanto por interação, ainda que voluntária, por
economistas quanto por filósofos jurí- meio do comércio e pela troca. Meta-
dico-políticos. Esse argumento não atri- foricamente, a independência máxima
bui à eficiência ou à produtividade no é representada pela família autos-
uso dos recursos o papel de critério suficiente dos colonos que ocuparam
exclusivo e dominante. Liberdade, em as terras de fronteira.
vez de eficiência, assume importância A eficácia da propriedade privada,
crucial, embora esses dois objetivos ao longo das duas dimensões – pro-
sejam complementares na maioria das dutividade e liberdade –, garante ex-
aplicações. tensas análises e discussões. A introdu-
Uma pessoa procura minimizar os ção da segunda dessas dimensões abre
efeitos das ações de outras pessoas áreas de questionamento que envolve
sobre seu bem-estar, sejam esses efei- análise comparativo-institucional, a
tos gerados direta ou indiretamente. qual tende a ser desconsiderada quan-
Independência dos efeitos impostos do a ênfase é concentrada na dimen-
pelo comportamento de outrem é um são eficiência.
objetivo final desejado. Os indivíduos
desejam ser “livres para escolher” en- 2. A SELVA HOBBESIANA;
tre as alternativas disponíveis, e eles não A TRAGÉDIA DOS BENS DE
desejam que o conjunto de suas esco- PROPRIEDADE COMUM
lhas seja limitado pela ação de outras
pessoas, individual ou coletivamente. O estado da natureza imaginado
Podemos assim considerar um espec- por Thomas Hobbes é o ponto de par-
tro que vai da máxima interdependên- tida da análise, no qual não há reco-
cia em um extremo à máxima indepen- nhecimento do que é “meu e do que é
dência no outro. seu”, os limites entre as pessoas não
Como um participante no uso de um são reconhecidos, não há leis nem con-
comum [bem de propriedade comum], venções. Nesse estado imaginário a
o indivíduo é um maximizador inter- vida de qualquer pessoa é descrita
dependente. O valor de parte do bem como “pobre, solitária, desagradável,
produzido conjuntamente que é asse- animalesca e curta”. Hobbes (1651)

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usa essa descrição da floresta em anar- Para o moderno cientista social, o
quia como base para seu convincente ponto de partida que lhe é mais fami-
argumento de que todas as pessoas, liar que a floresta hobbesiana é a tra-
por valorizarem em alta conta sua se- gédia dos comuns que comentei no
gurança, estariam efetivamente dispos- Capítulo 1. A estrutura formal de in-
tas a se renderem à autoridade de um teração entre os participantes é, certa-
soberano emergente que lhes prome- mente, idêntica nos dois casos. Entre-
tesse proteção. tanto, gostaria de sugerir que a des-
Entretanto, nenhuma pessoa estaria peito da identidade estrutural, esses dois
disposta a reconhecer, voluntariamen- modelos estilizados de interação social
te, a autoridade do soberano se ela trazem com eles diferentes implicações
pudesse antecipar que sob a ordem para a compreensão do papel institu-
cívica imposta ela estaria em uma po- cional da propriedade privada ou de
sição pior, ao reconhecer o soberano, muitas propriedades.
do que a posição que detinha na anar- Considere, agora, a tragédia dos
quia da floresta. O “equilíbrio natural” comuns. Há um recurso com um po-
da floresta hobbesiana fornece o tencial de gerar valor que é utilizado
marco distributivo a partir do qual o em comum por todos os participantes.
contrato entre o indivíduo e o soberano Cada um dos participantes, com o
é negociado. A possibilidade de o in- objetivo de maximizar sua utilidade
divíduo retroceder ou optar pela saída [bem-estar], é levado a estender o uso
do grupo impõe limites aos termos do desse recurso para além do que lhe
contrato no momento de sua negocia- caberia usar sob um arranjo ideal de
ção inicial e em todos os períodos sub- uso; o comportamento de cada parti-
sequentes em que ele estiver operativo. cipante, na relevante margem de uso
É importante observar que nessa do bem, impõe deseconomias externas
construção o indivíduo existe antes e in- ao bem-estar dos outros que compar-
dependentemente do contrato com o tilham do recurso comum; todos os
soberano, ainda que essa existência participantes podem melhorar seu bem-
não seja agradável quando compa- estar se, por meio de um acordo
rada com a alternativa sob a ordem coletivo, impuserem restrições às esco-
oferecida pelo soberano. A diferença lhas privadas.
entre o bem-estar do indivíduo, medido Neste exemplo estilizado, uma for-
sob a estrutura de ordem garantida pelo ma de internalizar as externalidades re-
soberano, e seu bem-estar medido na levantes é dividir o recurso comparti-
situação de anarquia reflete, de certo lhado entre seus usuários, de modo a
modo, a “produtividade” do soberano, substituir o uso comum por uso privado
e essa diferença pode ser denomina- pela especificação de propriedades
da “renda [ganho] social”. separadas e alocadas a cada um. No
A construção de Hobbes é con- arranjo pós-privatização, uma vez mais
jectural e não histórica. Ela não foi e estilizado, o indivíduo não terá mais o
não é uma tentativa de descrever uma incentivo de sobreutilizar o recurso para
realidade passada ou presente. Pro- maximizar sua utilidade; sob a pri-
vavelmente, indivíduos nunca existiram vatização da propriedade o indivíduo
fora dos laços de alguma unidade é levado, pelas considerações de
coletiva, a família ampliada, a tribo ou maximização de utilidade, a usar o re-
um bando nômade. Devemos a Hobbes curso (propriedade) de maneira
o passo explicativo reducionista de ima- “ótima” ou “eficiente”, caso contrário
ginar um indivíduo autônomo, cujo com- incorrerá direta e exclusivamente nos
portamento podemos analisar por meio custos de sua decisão.
do critério de escolha racional.

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A diferença entre o valor do pro-
duto gerado sob a privatização da pro- 3. REPARTIÇÃO DOS BENS DE
priedade e aquele gerado quando o PROPRIEDADE COMUM, ESTADO DE
recurso era de uso comum pode ser DIREITO E INVASÃO
definida como “renda [ganho] social”
que emerge da institucionalização da Neste capítulo quero estender essa
propriedade privada. Formalmente discussão para, em especial, introduzir
essa “renda” é equivalente à que emer- a relação entre propriedade e indepen-
ge do contrato com o soberano, no dência ou liberdade. Como sugerido
exemplo de Hobbes. Essa “renda” na análise anterior, todos os indivíduos
mede a produtividade da institucio- que compartilham o uso de um bem
nalização da propriedade privada, comum não dividido, ou que se encon-
neste caso, e da produtividade de tram em uma floresta em anarquia,
se instituir o poder do soberano, no descobrem que é de seu próprio inte-
outro caso. resse entrar em um acordo para dividir
As distinções entre esses dois mode- ou privatizar o comum, no qual cada
los são importantes, tanto no que se participante terá assegurado só para
refere aos seus potenciais de explica- si uma fração do comum com limites
ção quanto aos seus potenciais ou fronteiras bem definidas. Pretendo
normativos. O modelo hobbesiano ofe- concentrar atenção no acordo entre os
rece um maior poder de explicação diversos participantes e negligenciar,
para a obtenção de uma teoria que por um momento, um possível acordo
legitime uma ordem coercitiva político- simultâneo entre os indivíduos e um
legal por meio de um acordo entre os soberano emergente. Em outras pala-
indivíduos que participam dessa ordem. vras, eu pretendo trabalhar com o
Ao mesmo tempo, esse modelo sugere paradigma contratual de Locke, e não
que a soberana autoridade política está com o contrato hobbesiano. O acordo
condicionada, no que se refere à con- inicial estabelece limites entre as pro-
cessão de direitos, ao conjunto anterior priedades separadas. Por conveniên-
de direitos acertado pelos indivíduos. cia, e sem perda de estrutura lógica, o
Comparativamente, o modelo dos co- acordo inicial pode ser pensado como
muns é menos amplo em seu poder de designando a cada indivíduo a pro-
explicação. A defesa da propriedade priedade virtual de sua própria pessoa
privada implícita neste modelo está e de alguma área ou espaço físico bem
quase que exclusivamente baseada no delimitado. O acordo inicial estabele-
critério de eficiência, e não há qual- ce a lei de propriedade e define a vio-
quer referência ao problema de fazer lação dessa lei quando limites são des-
valer os direitos. respeitados.
O modelo dos comuns é vago na Vou supor, também, que neste pri-
definição da separação dos direitos meiro modelo pós-distribuição não há
dos indivíduos a quotas dos comuns, ganhos pela especialização na produ-
e, portanto é vago sobre as bases que ção. Dentro de seus limites, cada indi-
a coletividade pode adotar para fazer víduo (ou família) pode usar suas ca-
uma repartição inicial. Desse modo, o pacidades pessoais para produzir to-
modelo sugere que a concessão das dos os bens para os quais existam
quotas, como tal, é de algum modo demandas, e de forma tão eficiente
arbitrária e sujeita a uma escolha não quanto na presença de especialização
contingenciada da unidade coletiva. e trocas. O modelo, portanto, é de
Isso significa que o modelo encoraja a autossuficiência, no qual cada um ope-
proposição frequente de que o estado ra de forma independente de qualquer
“defina os direitos de propriedade”. vínculo social e é protegido, tanto pes-

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soalmente quanto da invasão de seu tas às questões acima propostas. Sob
território, pela estrutura legal estabe- um efetivo estado de direito, o indiví-
lecida. duo é protegido contra arbitrariedades
Assim construído, esse modelo ga- exercidas pela autoridade político-le-
rante a cada indivíduo (ou unidade gal. Neste nosso modelo de economia
familiar) o máximo de independência autárquica a independência ou liber-
e, ao mesmo tempo, máxima eficiên- dade do indivíduo não será prejudica-
cia no uso dos recursos e de sua capa- da pela presença de uma estrutura de
cidade. O bem-estar do indivíduo, se- imposição da lei. Neste arranjo raro, o
gundo sua própria avaliação, em nada “estado” existe somente para cumprir
depende do comportamento dos ou- a função de proteção, e é, literalmen-
tros. Literalmente, a ação de cada pes- te, o vigia, noite e dia. Note que neste
soa não tem qualquer impacto sobre modelo extremo não há espaço para
qualquer outra pessoa na comunidade. a função de fazer cumprir contratos
Na realidade, não há comunidade no entre os indivíduos, uma vez que, por
sentido estrito. Comunidade se refere hipótese, eles não existem.
à aderência pelo indivíduo à lei de pro-
priedade estabelecida no contrato ini- 4. ALIENAÇÃO POR MEIO DE
cial. Neste contexto só há duas distin- CONTRATO: O SURGIMENTO DA
ções a serem feitas: primeira, entre os INTERDEPENDÊNCIA DE MERCADO
indivíduos segundo o estabelecido na
lei de propriedade, e, segunda, entre Considere que o arranjo inicial é ca-
os que participam da estrutura legal racterizado por muitas famílias
que define propriedades separadas e autossuficientes, estabelecidas local-
aqueles que não pertencem ao contra- mente, com direitos de propriedade,
to, isto é, os estrangeiros. Por simplici- sobre sua pessoa e sobre a terra, pro-
dade admita que não haja estrangei- tegidos e garantidos por uma efetiva
ros. Entretanto, para que a análise seja estrutura legal. Gostaria, agora, de
coerente não se pode negligenciar o descartar a hipótese de a produção
problema de fazer valer a lei. Quando autossuficiente ser idealmente eficien-
da implementação do contrato inicial te. Suponha que a especialização au-
se faz necessária a criação de um sis- mente a produtividade; mais produto
tema de policiamento que evite inva- pode ser obtido pela especialização
sões e puna aqueles que violarem os dos recursos. Nessa situação, a inde-
bem definidos direitos de propriedade pendência máxima possibilitada pela
de outrem. autossuficiência só pode ser atingida a
Se forem dados poderes aos guar- um custo de oportunidade. Autossu-
diões da lei para identificar e punir os ficiência envolve uma perda de utilida-
que a desobedecem, como será possí- de que pode ser medida pelo valor
vel conter esse poder nos limites dese- econômico sacrificado. Entretanto, de
jados? Quem controla os guardiões? maneira recíproca, o indivíduo ou a
Se as pessoas designadas a exercer o família deve reconhecer que maiores
poder de polícia estiverem sujeitas às valores conseguidos pela especializa-
mesmas leis que todos os demais, isso ção e pela troca envolvem uma perda
implica um severo limite ao abuso de de utilidade medida em termos de sa-
autoridade. As complexas instituições crifício da independência.
que envolvem separação de poderes, Analiticamente, é conveniente pros-
múltiplas autoridades, justaposição seguir por etapas. Para facilitar a ex-
jurisdicional e um judiciário indepen- posição vamos supor que a unidade
dente e um sistema de júri encontram autossuficiente aloca seu tempo entre
todas sua justificativa lógica nas respos- N atividades diferentes, definidas em

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termos de bens finais de consumo, tais tanto, em certo sentido, se a participa-
como plantio de alimentos, coleta de ção no sistema [de mercado] aumenta
lenha (combustível), caça, doma de a dependência em relação aos outros,
animais, construção de abrigos, etc. não há perda de liberdade, especial-
Para facilitar ainda mais a exposição, mente se liberdade é definida estrita-
suponha que o tempo dedicado a cada mente em termos negativos como au-
atividade seja sempre o mesmo. Per- sência de coerção por outros. A expec-
cebendo que existem retornos crescen- tativa ao entrar em uma economia de
tes de escala na produção, após algu- trocas parece, neste arranjo, representar
mas considerações os membros de uma expansão no conjunto possível de
cada unidade econômica em um terri- escolhas. Entretanto, a posição atingível
tório, os quais estão protegidos pela na parte adicionada ao conjunto de
lei de propriedade, tomam as primei- escolhas é apenas esperada, e assim
ras iniciativas para participar da ela é incerta. O indivíduo ou a família
interdependência de mercado. Uma não pode unilateralmente escolher as
determinada unidade escolhe explorar condições sob as quais a troca de seu
os retornos de escala em, digamos, excedente se processará. Exatamente
uma de suas atividades. Ela produzirá por isso sua escolha não ocorre com
um excedente em relação às suas ne- certeza sobre o ganho final que a es-
cessidades originais de consumo para pecialização lhe proporcionará.
um dos N bens. Digamos que a unida- Como essa discussão deixou claro,
de F1 escolhe uma pequena especiali- a unidade econômica de localização
zação em X1 dedicando 2/N, o dobro fixa pode, se necessário, existir e so-
do tempo na obtenção de X1. Esse tem- breviver autarquicamente sem nada
po extra dedicado a X1 é obtido des- perder e ter uma perspectiva de ganho
viando tempo das demais atividades. pela especialização limitada com par-
Meu propósito aqui não é de des- ticipação no sistema de trocas. Esse
crever a hipótese histórica do sur- modelo permanece, eu suspeito, na
gimento do mercado. Desejo exami- base da imaginação dos economistas,
nar os efeitos sobre os direitos de pro- e ele conduz diretamente à ênfase dos
priedade decorrentes de uma, ainda ganhos mútuos de comércio. O mode-
que mínima, participação no sistema lo é talvez central à ênfase dada à ter-
de trocas. Vou admitir que a estrutura ra nas considerações sobre a institui-
legal se estende à proteção de contra- ção da propriedade. Se ao nos afas-
tos voluntários entre as pessoas de tarmos desse modelo a autossuficiência
modo a prevenir fraudes nas trocas. deixar de ser uma alternativa viável
Na medida em que a unidade para o indivíduo ou a unidade famili-
econômica se especializa, na expecta- ar, a relação entre a propriedade e a
tiva de que o excesso obtido de um bem liberdade precisará ser examinada em
em relação ao seu próprio uso pode diferentes termos.
ser trocado por outros bens desejados,
essa unidade estará necessariamente 5. DEPENDÊNCIA DO MERCADO,
sujeita às “forças impessoais do mer- EXPLORAÇÃO E JUSTIÇA NAS TROCAS
cado”, ou às implicações decorrentes
das escolhas feitas por outros, sobre as Como observado no Capítulo 4, a
quais ela não pode exercer controle pessoa que entra no sistema de trocas
direto. de excedentes possibilitados pelos gan-
A existência de uma situação de hos da especialização o faz, voluntari-
autossuficiência é uma alternativa de amente, com o propósito de aumentar
segurança, na qual todos os bens são seu comando sobre o conjunto de bens
produzidos para autoconsumo. Por- finais desejados, mesmo reconhecendo

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que isso implica algum sacrifício repre- ção de ovos. A relação de troca de-
sentado pela correspondente perda de pende do número de outros participan-
independência. Mesmo na ausência de tes no mercado relevante que estejam
coerção, o bem-estar do indivíduo está produzindo excessos de ovos e de ba-
sujeito a mudanças decorrentes do com- tatas, assim como do tamanho relativo
portamento dos outros. E tal compor- desses dois excessos. Se, por acaso, o
tamento será considerado como variá- agricultor descobrisse que há muitos
vel pelo indivíduo por ele afetado. Por- participantes com excesso de ovos e
tanto, o comportamento dos outros somente um com excesso de batatas, a
poderá, pelo menos, ser passível de relação de troca lhe seria bastante des-
críticas, quando não de controle e favorável. Ele certamente se conside-
manipulação. O indivíduo está “inte- rará tratado de forma injusta ou explo-
ressado” no comportamento dos ou- rado pelo monopolista.
tros, uma vez que esse comportamento Antes de entrar no mercado de tro-
afeta sua própria utilidade pela rela- cas, por certo o indivíduo pode reco-
ção de mercado e de maneira diferente nhecer a vulnerabilidade implicada
de, digamos, seu interesse pelas for- pela sua entrada e abrir mão de parte
ças da natureza, como, por exemplo, das vantagens a serem obtidas com a
o clima. Essa atitude de um participan- especialização para manter em aberto
te das trocas ocorre ainda que no ar- a possibilidade de saída da dependên-
ranjo das trocas não seja possível iden- cia de mercado. Se todos os recursos
tificar outra pessoa capaz de exercer sob o controle do agricultor fossem
um poder de mercado. Entretanto, o aplicados na produção de ovos, ele,
simples fato de que qualquer vende- nas condições de mercado descritas
dor tenha que trocar com um único com- acima, se encontraria em uma situação
prador, e vice-versa, tende a levar os pior sob a dependência do mercado
participantes a imputar poder de mer- do que se ele se mantivesse autossu-
cado a outros, mesmo que tal poder ficiente. A posse da propriedade pri-
seja minúsculo ou ausente. vada permite especialização e, pelas
Portanto, não deve surpreender o trocas, a captura de uma parcela dos
fato de que, desde o surgimento das ganhos de eficiência, mas, tão impor-
primeiras análises, as relações de tro- tante quanto, a propriedade privada
ca tenham sido classificadas como jus- permite alguma proteção e isolamento
tas ou injustas juntamente com a impli- dos efeitos das “forças impessoais do
cação de que alguns participantes, mes- mercado”, a despeito de sua origem.
mo em um sistema de trocas voluntá- Esse segundo papel da propriedade
rias, podem explorar outros. A própria privada, o qual eu enfatizo neste livro,
relação de dependência parece criar é geralmente negligenciado, talvez em
o potencial para a exploração vaga- especial pelos economistas por se
mente definida como uma distribuição aterem à eficiência, mas também pe-
desigual ou tendenciosa dos ganhos los participantes em economias de mer-
gerados pela troca. cado desenvolvido onde as opções de
Considere uma vez mais a mudan- saída do tipo aqui ilustrado não exis-
ça inicial de uma situação de econo- tem, a não ser para uns poucos partici-
mia autárquica para a de interde- pantes. Entretanto, é importante reco-
pendência de trocas. O agricultor pro- nhecer que o desenvolvimento de uma
duz, digamos, um excedente de ovos rede de mercados (incluindo mercado
na expectativa de que esse excedente de futuros), juntamente com a
possa ser trocado por, digamos, bata- institucionalização de sua estrutura le-
tas, cuja produção própria foi reduzi- gal e associada ao desenvolvimento de
da para concentrar recursos na produ- uma compreensão dessa estrutura, per-

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mitirá ao indivíduo participante asse- taxa à qual os insumos são transfor-
gurar-se, no caso limite, plenamente mados em produto aumenta com o
das vantagens da especialização be- aprendizado ao longo do tempo.
neficiando-se, ao mesmo tempo, de Os economistas reconhecem que
uma opção equivalente à de saída e aprender fazendo é um elemento im-
sem custo. Esse resultado quase mági- portante nos modelos que explicam o
co é certamente gerado pela existên- crescimento econômico. Mas, pelo que
cia e operação de uma economia ple- sei, eles não incorporaram plenamente
namente competitiva, a qual, por defi- a relação inversa em seus modelos ana-
nição, é caracterizada pela possibili- líticos. Os participantes que se espe-
dade de entrada e saída em todas as cializam em uma determinada
atividades que produzem valor, em um atividade aprendem ao fazer; eles se
sistema de mercado de tamanho sufi- tornam cada vez mais produtivos nas
ciente para garantir a existência de atividades que escolheram para se es-
muitos compradores e vendedores em pecializar. Mas, eles também esquecem
qualquer dos mercados. No limite, por não fazer; eles se tornam cada vez
como descrito pelo modelo dos eco- menos produtivos nas atividades das
nomistas [concorrência perfeita], cada quais eles desviam recursos de modo a
pessoa, como compradora ou vende- se especializarem.
dora, toma o preço [de mercado] como A unidade econômica individual se
dado e se confronta com um conjunto torna cada vez mais dependente e,
“objetivo” de opções de escolha que lhe portanto, mais vulnerável às forças de
permite se comportar “como se” a mercado que estão fora de seu contro-
interdependência não existisse. le. O diferencial de utilidade conse-
guido pela especialização em relação
6. ILUSTRAÇÃO ANALÍTICA à situação de autarquia aumenta ao
longo do tempo; a opção extramercado
[Por ser razoavelmente técnico, este de saída torna-se cada vez mais custo-
capítulo foi totalmente desconsiderado sa para ser exercida.
sem prejuízo para os argumentos do O limite dessa sequência dinâmica
autor.] será atingido quando uma unidade
econômica individual especializada te-
7. APRENDENDO AO FAZER; nha esquecido completamente como,
ESQUECENDO POR NÃO FAZER ou se tornada incompetente para, pro-
duzir bens que não o escolhido para
O diferencial de ganho no nível de sua especialização. A unidade eco-
utilidade obtido pela especialização em nômica neste caso se torna totalmente
relação ao isolamento autárquico dependente da capacidade do merca-
mede o custo de oportunidade da in- do de comprar o recurso objeto de sua
dependência, ou, contrariamente, os especialização, que é o único de que
benefícios da dependência de merca- dispõe para oferecer no mercado.
do. Os ganhos pela especialização e
troca decorrem exclusivamente de re- 8. PROPRIEDADE PRIVADA,
tornos crescentes. Eu não considerei os COMPETIÇÃO DE MERCADO E
ganhos decorrentes das diferenças na LIBERDADE DE ENTRADA E SAÍDA
qualidade de fatores, inclusive nas ha-
bilidades, capacidades e talentos indi- O caso-limite descrito, como uma
viduais. À medida que a produção é ilustração analítica simples, nos capítu-
organizada pela especialização de re- los anteriores poderia ser aplicável a
cursos, os participantes que ofertam quase todos os participantes de uma
esses recursos aprendem ao fazer, e a moderna e complexa economia, na

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qual a especialização há muito foi ex- tivas (compradores-vendedores) de
pandida a tal ponto que muito poucas modo a garantir que os direitos de pro-
famílias poderiam sobreviver fora do priedade da própria pessoa atinjam seu
mercado, isoladas de maneira au- maior valor, quando esses direitos
tárquica. Cada um e todo participan- forem exercidos. Entretanto, é mais difícil
te, ou unidade participante, em uma descrever as regras institucionais que
economia moderna há que depender encorajam a emergência de um am-
do comportamento de outras pessoas biente competitivo tão atraente. O que
e unidades do sistema de mercado or- é necessário para garantir que haverá
ganizado. muitas oportunidades entre as escolhas
Se a autonomia extramercado não possíveis?
é possível, que proteção contra uma ex- De modo a garantir a emergência
ploração em potencial é provida pelo e manutenção de um ambiente de
sistema legal que garante os direitos mercado competitivo, no sentido aqui
de propriedade? Considere um arran- utilizado, os indivíduos precisam ter
jo no qual cada participante detém os liberdade para se associar, uns com os
direitos de propriedade sobre sua pes- outros, com o propósito de organizar
soa. (Vamos desconsiderar momenta- unidades produtivas, empresas de
neamente direitos de propriedade so- negócios, as quais possam estabelecer
bre ativos não humanos.) Não há es- trocas com outras pessoas ou firmas.
cravos, e cada pessoa é livre para A posição econômica de um
ofertar bens e serviços a quem ela de- ofertante de serviços produtivos é pro-
sejar, sob um acordo mútuo. Na au- tegida pelo exercício potencial de dois
sência de uma opção de saída autár- conjuntos complementares de direitos
quica, qual seria o valor desses direi- de propriedade. O direito do indivíduo
tos de propriedade? Se existe apenas sobre sua própria pessoa lhe permite
a expectativa de um único comprador- escolher entre os compradores alterna-
demandante, isto é, a pessoa se con- tivos de seus serviços. Ele também per-
fronta com um monopsonista, os di- mite a qualquer participante procurar
reitos de propriedade dessa pessoa po- ser um comprador. Juntos, esses direitos
dem, na realidade, ter muito pouco operam de modo a garantir severos
valor. limites à exploração potencial de indi-
Entretanto, o participante individual víduos por meio de uma relação de
não precisa estar na posição de ape- trocas que lhes seja desfavorável. O in-
nas confrontar um único possível com- divíduo ofertante detém o direito de
prador se o mercado é organizado de saída de qualquer relação de trocas
forma competitiva e grande o suficien- com qualquer comprador, e qualquer
te para garantir a presença de muitos outro indivíduo detém o direito de en-
compradores e vendedores nos merca- trar em uma troca com o indivíduo que
dos de todos os bens e serviços. Neste vende serviços produtivos.
último caso, o valor dos direitos de pro- A condição suplementar exigida
priedade sobre sua própria pessoa é para que o ambiente de mercado seja
expresso pela liberdade que tem o competitivo, além de saída e entrada
indivíduo de escolher entre os diversos livres, é que o tamanho efetivo do ar-
possíveis compradores e medido pela ranjo de trocas seja grande o suficiente
quantidade de bens e serviços (poder de modo a tornar viável a existência
de compra) que ele receberá pela simultânea de múltiplos compradores e
troca. vendedores em cada mercado. Essa
É realmente fácil definir um ambi- condição pode ser atendida, pelo me-
ente de mercado no qual cada partici- nos em grande parte, por regras
pante se confronta com muitas alterna- que mantenham todos os mercados

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abertos para todos os potenciais ne- terminado tempo. Raramente observa-
gociadores, tanto ofertantes quanto de- mos pessoas que trabalham parte do
mandantes, sendo ambos tanto mem- tempo como carpinteiro, parte do tem-
bros da organização política quanto po como bombeiro e outra parte como
estrangeiros. professor de economia. O indivíduo é
Uma extensão da ilustração ana- necessariamente menos dependente da
lítica introduzida anteriormente [na pre- estrutura de oferta de mercado para
sença apenas de dois bens] pode dar qualquer dos muitos bens que constitu-
a impressão de que todos os partici- em sua cesta de consumo do que da
pantes se especializarão na produção estrutura de demanda de mercado por
de um único bem ou serviço. Essa im- qualquer que seja o serviço produtivo
plicação não pode ser extraída, e a que ele oferece de modo a auferir
opção de uma saída autárquica pode renda.
não estar disponível, ainda que a es-
pecialização não seja plena. O parti- 9. IMAGENS DO MERCADO:
cipante individual pode manter-se ple- PROFISSIONAL E PRIVADA
namente dependente da compra, em
mercado, de pelo menos parte de seu Na visão romântica da economia
serviço, mas ao mesmo tempo não pre- de mercado competitivo, pelo menos
cisa se especializar na produção de um em um primeiro corte analítico, pare-
único bem. O potencial de substituição ceria não haver outro argumento em
na produção torna a participação no favor da propriedade privada não hu-
mercado menos restritiva do que a dis- mana do que a familiar alusão à efici-
cussão anterior pode implicar. O direito ência. Em outras palavras, o argumento
de saída de uma troca com qualquer suplementar de liberdade parece au-
comprador individual permite ao par- sente da idealizada estrutura do mo-
ticipante que oferta procurar outro com- delo competitivo.
prador, assim como mudar sua ocupa- A teoria da operação desse mode-
ção de indústria ou de local físico. lo nos informa que a propriedade de
Mais formalmente, as exigências da ativos não-humanos é simplesmente
competição pelo lado da demanda ou uma alternativa ao aluguel dos servi-
do produto, para um indivíduo que ços de tais ativos, e qualquer escolha
participa do mercado, são plenamente entre essas duas alternativas institu-
simétricas às referentes ao lado da cionais deveria, racionalmente, ser fei-
oferta. Como comprador em potencial ta com base nas comparações de
de bens finais ou de produtos, o indiví- custo. O funcionamento dos mercados
duo está vulnerável a manipulações nos garantirá que essas duas alternativas
termos de troca, a menos que ele tenha acabarão com igual valor. Por certo,
como alternativa possível a liberdade as instituições políticas que afetam os
de escolher entre vários vendedores. mercados podem introduzir uma ten-
Entretanto, menos atenção tem sido dência nas escolhas (e.g., tratamento
dada à possibilidade de exploração tributário diferenciado).
neste lado do mercado porque a es- Entretanto, parece haver uma dis-
pecialização no consumo raramente paridade entre o modelo de mercados
atinge o nível de especialização na pro- competitivos dos economistas e a rea-
dução. Ainda que o indivíduo tenha ca- lidade dos mercados cujo funciona-
pacidade de oferecer serviços produti- mento se pode inferir do comporta-
vos em qualquer das múltiplas ocupa- mento dos indivíduos que deles parti-
ções ou categorias de indústria, uma cipam. Em muitas situações as pessoas
vez feita sua escolha ele se confrontará não se comportam como se os merca-
com um único comprador por um de- dos lhes oferecessem alternativas de

PROPERTY AS A GUARANTOR OF LIBERTY 13


escolha, e a dependência dos termos a autoprodução de bens e serviços ge-
de troca determinados pelo mercado rados por tais ativos reduz a dependên-
é tratada como um “mal” na função cia do indivíduo de operar no merca-
de utilidade individual, como observa- do como vendedor para gerar seu po-
mos anteriormente. Os indivíduos (fa- der de compra (renda monetária).
mílias) preferem possuir suas próprias Esse ponto requer uma discussão
casas; eles preferem possuir seus pró- mais detalhada. O indivíduo A entra no
prios veículos como propriedade pri- mercado com recursos (serviços de tra-
vada, independentemente do grau de balho) como ofertante-vendedor. Ao
competição no mercado de aluguéis. mesmo tempo, A entra no mercado à
Os ganhos de eficiência gerados pela procura de produtos (bens e serviços)
interdependência de mercado não são como demandante-comprador. Em
suficientes para compensar a perda de uma completa economia de mercado
utilidade incorrida pela redução da interdependente o indivíduo depende
interdependência. Observando o com- do comportamento de outros, pela ca-
portamento dos indivíduos, vê-se cla- racterização dos termos de troca, tanto
ramente que eles atribuem um valor no mercado de recursos quanto no
positivo à liberdade ao evitarem o ar- mercado de produtos.
ranjo de mercado possibilitado pela A autoprodução tornada possível
propriedade privada, e essa avaliação pela propriedade pode ser mais impor-
persiste independentemente do grau de tante para reduzir a dependência do
competição em um mercado particular. indivíduo como vendedor de recursos
do que como comprador de produtos,
10. DOMÍNIO PRIVADO COMO por razões relacionadas, mas um pou-
PRODUÇÃO PRÓPRIA co diferentes das apresentadas anteri-
(AUTOPRODUÇÃO) ormente. Os indivíduos podem se con-
siderar mais vulneráveis enquanto
Uma maneira de se interpretar pro- ofertantes de recursos tanto pela maior
priedade privada de ativos não-huma- especialização envolvida quanto pelos
nos é entender que essa instituição per- maiores custos de transação incorridos
mite à pessoa produzir os serviços ge- em mudar de alternativa de compra-
rados pelos seus próprios ativos, se- dor, custos estes que podem envolver
melhantemente ao exemplo do agricul- migração.
tor em relação a ovos e batatas. A fa- Considere um indivíduo que ficou
mília que possui sua residência produz, desempregado devido às condições de
ao longo do tempo, seus próprios ser- mercado. Se essa pessoa possui casa,
viços de habitação, ela não precisa se carro, mobília e eletrodomésticos, sua
envolver com contratos ou com trocas vulnerabilidade ao choque de merca-
no mercado de aluguel residencial. O do será substancialmente mitigada. A
indivíduo que possui seu próprio carro autoprodução dos serviços providos
produz serviços de transporte dia a dia por esses ativos facilitará sua subsistên-
na medida de suas necessidades. cia em termos bem mais aceitáveis do
A propriedade privada permite ao que ocorreria caso não detivesse a pro-
indivíduo sair da interdependência do priedade daqueles ativos.
sistema de trocas de mercado para A vulnerabilidade do indivíduo fren-
uma posição mais valorizada de te às relações de mercado não é incor-
autossuficiência. À medida que as pro- porada nos exercícios analíticos pa-
priedades são expandidas de modo a drões, os quais consideram implicita-
incluir uma maior gama de ativos (ha- mente que os modelos funcionam de
bitação, carros, mobiliário, eletrodo- maneira ideal. Entretanto, tornar-se li-
mésticos, animais, árvores frutíferas, etc.) vre dos choques que o mercado pode

14 PROPERTY AS A GUARANTOR OF LIBERTY


produzir deve entrar como um argumen- sos no mercado. Mas, tal renda, em
to positivo na relevante função de utili- ambos os casos, há que ser processa-
dade. Em uma formulação mais abran- da por meio do mercado. O proprie-
gente que considere essa mudança nas tário de um ativo que gera diretamente
funções de utilidade, a autoprodução serviços em espécie, contrariamente, se
gerada pela propriedade privada pode livra da operação de mercada e da
ser “eficiente” em relação à alternativa transformação de valor pelo arranjo de
de mercado, pelo menos dentro de mercado.
certos limites. Uma distinção adicional entre esses
dois tipos de ativos de propriedade
11. PROPRIEDADE PRIVADA privada ocorre quando os serviços em
DE ATIVOS QUE GERAM RENDA espécie, gerados pelo ativo, forem ven-
MONETÁRIA didos por dinheiro pelo seu dono. Ago-
ra, nos dois casos a propriedade pro-
A eficiência da propriedade priva- duz um fluxo de renda monetária re-
da em isolar os indivíduos dos choques duzindo, portanto, a dependência da
de mercado discutida até esse ponto renda corrente de recursos no merca-
se aplica apenas àqueles ativos que do. Entretanto, as vulnerabilidades às
geram diretamente, para seus proprie- forças fora do controle do proprietário
tários, bens e serviços em espécie. As são diferentes nos dois casos. No pri-
implicações não podem ser estendidas meiro caso, no qual um ativo real gera
a ativos de propriedade privada que serviços que precisam ser vendidos de
geram renda monetária ao seu propri- modo a garantir renda monetária, o
etário, em vez de serviços. Note que proprietário se mantém vulnerável às
essa distinção não é equivalente àque- necessidades de mercado de ativos
la entre ativos reais e ativos financei- que geram rendimentos similares. No
ros, uma vez que alguns ativos reais segundo caso, no qual os direitos do
podem gerar renda monetária e não proprietário lhe geram diretamente
renda em espécie. uma renda monetária, a vulnera-
O proprietário de um ativo finan- bilidade decorre de mudanças nos ter-
ceiro, um título, não produz nada mos de troca entre o dinheiro e todos
diretamente comparável aos serviços os bens. Essa vulnerabilidade é maximi-
habitacionais que uma casa produz zada quando a propriedade privada
para seu dono. Claramente, a pro- é em dinheiro vivo, ou em títulos que
priedade de um direito à renda mone- garantem um retorno nominal em uni-
tária não representa uma saída do dades monetárias. Voltaremos ao as-
arranjo de mercado na mesma exten- sunto no Capítulo 13.
são que a propriedade de um ativo que
gera renda em espécie. A propriedade 12. PROPRIEDADE PRIVADA E
de um título que gera renda monetária TEMPO: ACUMULAÇÃO PELA
não exerce qualquer influência na po- PROPRIEDADE
sição do indivíduo como demandante-
comprador de bens de uso final para Implicitamente, a análise, até ago-
consumo ou uso. ra, apresentou argumento favorável à
A propriedade de um ativo que gera propriedade privada sob um modelo
renda monetária produz renda que fa- no qual todos os participantes da eco-
cilita, ao proprietário, a compra no nomia vivem eternamente e mantêm fi-
mercado de um conjunto de bens fi- xas suas capacidades de ofertar
nais de maior valor, ou lhe permite ven- insumos e demandar produtos ao lon-
der uma menor quantidade de recur- go do tempo. Se o tempo for introdu-

PROPERTY AS A GUARANTOR OF LIBERTY 15


zido de maneira relevante no modelo, mulação. A pessoa que não vê vanta-
torna-se evidente que os desejados gens nos ativos que produzem serviços
ajustes temporais nos fluxos de renda em espécie e que busca algum ativo
e de despesa, ao longo da vida do como reserva de valor, com o propósi-
indivíduo ou entre gerações, exigem to único de ajustes intertemporais,
alguma instituição que permita a de- optará por adquirir direitos financeiros
composição dos direitos em valores com fundos poupados de sua despesa
consubstanciados em períodos futuros. corrente.
Minha preocupação não é com a
relação entre propriedade privada e a
taxa de acumulação de capital e, por- 13. PROPRIEDADE PRIVADA
tanto, com a taxa de crescimento EM DINHEIRO: INFLAÇÃO E O
econômico de uma nação. Meu pro- CONFISCO DE VALOR
pósito neste livro está limitado a uma
tentativa de justificar a propriedade pri- A relação entre inflação e a defesa
vada como um instrumento de da propriedade privada pelo argu-
proteção das liberdades das pessoas, mento da liberdade exige maiores con-
independentemente das considerações siderações. Nas economias, como as
de eficiência ou crescimento. observamos, dinheiro não é uma mer-
A propriedade de ativos de valor cadoria que seja produzida e vendida
permite ao indivíduo ampliar seu con- no mercado; ele é, na realidade, uma
junto de escolhas. Além disso, abre ao criação do estado, ou da unidade po-
proprietário uma opção de saída que lítica, e sua oferta não tem qualquer
por si só tem valor, quer o indivíduo relação com seu custo de produção.
exerça essa opção ou não, desde que Para um indivíduo que busca deter
o valor do ativo não se deteriore. O propriedade sob a forma de dinheiro
papel da propriedade privada na fa- ou de direitos expressos em dinheiro
cilitação dos ajustes desejados de ren- a proteção pretendida é contra o
da e de despesa ao longo do tempo potencial de exploração do estado, ou
não está relacionado com a eficácia da agência coletiva, e não contra o fun-
das forças de mercado competitivo, cionamento do mercado.
como no caso do motivo precaução, As fontes de um motivo precaução
discutido anteriormente. para a proteção contra o potencial de
Há implicações para a forma de confisco de valores esperados são psi-
propriedade desejada conforme as di- cologicamente diferentes nos dois ar-
ferentes motivações para sua aquisição ranjos examinados. A pessoa que bus-
e posse. Para a pessoa que confia ple- ca proteção contra “as forças impes-
namente no processo de mercado com- soais do mercado” não precisa temer
petitivo e cuja motivação primeira ou as maquinações de pessoas ou grupos
única é ser capaz de fazer ajustes de identificáveis. A proteção pretendida
renda e despesa ao longo do tempo, aqui é contra reações produzidas pelo
a forma preferida de ativo deve ser comportamento de um grande número
aquela que mais facilmente possa ser de vendedores e compradores, o qual
transformada em outras formas de va- produz resultados que emergem no
lor, isto é, dinheiro. Se ignorarmos o padrão de preços dos insumos e dos
motivo precaução, mesmo levando em produtos. Em contraste dramático, a
conta mudanças nos termos de troca pessoa que busca proteção contra cho-
entre dinheiro e bens, dinheiro ou di- ques nos termos de troca dinheiro/bens
reitos expressos em moeda corrente deverá se preocupar não com o com-
devem ser a forma preferida para acu- portamento de muitos vendedores e

16 PROPERTY AS A GUARANTOR OF LIBERTY


compradores no arranjo de mercado, coletiva ou estatal. O domínio da or-
mas com o comportamento dos agen- ganização socialista nunca é total, no
tes identificados como responsáveis sentido de que as pessoas sejam proi-
pela unidade política. bidas de deter propriedade de qual-
Relativamente poucas pessoas não quer ativo de valor, incluindo o de sua
se darão conta do potencial de explo- própria capacidade. Mesmo os regi-
ração do estado por meio do seu po- mes mais totalitários permitem, de fato,
der de manipular os termos de troca a propriedade privada de alguns
dinheiro/bens em seu benefício eco- ativos, ainda que restritos a metais pre-
nômico. Há algumas lições a se extrair ciosos e jóias de pequeno valor.
da história. Pessoas que buscam ad- Considere a situação de um indiví-
quirir propriedade para ajustar seus flu- duo em um regime socialista, no qual
xos de renda e despesa ao longo do todos os ativos produtivos são possuí-
tempo modificarão seu comportamen- dos e controlados pela autoridade
to tentando barrar essa exploração po- coletiva, inclusive aqueles representa-
tencial. O exercício do motivo precau- dos pelo capital humano dos indivídu-
ção neste caso estará consubstanciado os. O indivíduo é designado para uma
na preferência por ativos reais em de- ocupação específica como ofertante de
trimento dos ativos financeiros. A au- um recurso e, em contrapartida, lhe é
sência de confiança na agência políti- designada uma parcela ou quota dos
ca que afeta diretamente os termos de produtos finais que o sistema gera, pro-
troca dinheiro/bens representa uma dutos esses escolhidos pela autorida-
restrição no domínio da propriedade de coletiva.
privada, conforme valorizada em ter- Nesse arranjo, o participante incluí-
mos de proteção potencial das liber- do no empreendimento socialista está
dades das pessoas. sob máxima dependência e, portanto,
Enquanto a autoridade política reti- vulnerável à decisão de outros, e não
ver o poder efetivo (e ser percebida há no sistema garantia contra a explo-
como capaz) de confiscar proprieda- ração similar àquela que emerge na
des denominadas em unidades mone- estrutura de mercado competitivo. O
tárias, a estrutura legal que permite às indivíduo se confronta, simultaneamen-
pessoas possuir e controlar ativos se te, com um monopsônio comprador de
tornará capenga; a eficácia potencial seus serviços e com um monopólio que
da instituição propriedade privada lhe vende os bens necessários à sua
estará apenas a meio caminho de ser subsistência. Não há opção de saída
explorada. disponível, tanto no “mercado” de re-
cursos quanto no “mercado” de pro-
14. SOCIALISMO, PROPRIEDADE duto. Não dispondo privadamente de
PRIVADA E LIBERDADE ativos valorizados, o indivíduo não tem
como recorrer à autoprodução, mes-
A concentração nos elementos de mo em um sentido bastante limitado.
propriedade privada que estendem a Ainda que (contrariamente às evi-
liberdade talvez nos ofereça uma apre- dências analíticas e empíricas) o regi-
ciação mais compreensiva das restri- me socialista pudesse ser “eficiente” em
ções à liberdade que o socialismo, algum sentido, mesmo que questio-
como estrutura organizacional, neces- nável, independência e liberdade não
sariamente impõe. A definição clássi- seriam admitidas como argumentos da
ca de socialismo tem como caracterís- função de utilidade do indivíduo. A
tica principal a substituição da propri- maioria dos participantes, mesmo em
edade privada pela propriedade um imaginário e ideal paraíso socia-

PROPERTY AS A GUARANTOR OF LIBERTY 17


lista, preferiria algum sacrifício no po- 15. RERUM NOVARUM
tencial de produtividade para ter algu-
ma proteção contra a exploração pela Ao revermos as discussões sobre os
autoridade coletiva. Na realidade, é acontecimentos no século socialista,
claro, essa opção não existe. Ao con- notamos que as questões não estavam
trário, tanto a análise lógica quanto os exclusivamente ligadas à dimensão pro-
registros históricos sugerem que à me- dutividade-eficiência. Os efeitos sobre
dida que o domínio da coletivização é a liberdade dos indivíduos que a mu-
estendido “a economia” se torna cada dança de um regime de propriedade
vez menos, e não mais produtiva. privada para propriedade coletiva en-
De uma perspectiva temporal do volve se tornaram as bases de uma
início dos anos 1990, talvez seja muito importante e independente crítica ao
fácil entender o que parecem ser as socialismo, a qual não faz referência
reais falhas político-econômicas do ao argumento da eficiência ou mesmo
modelo socialista. Contrariamente, é ao processo de mercado competitivo.
difícil para aqueles que, como nós, Refiro-me à encíclica papal de Leão
observaram o colapso do socialismo, XIII, exarada em 1893 e amplamente
tanto como ideia quanto prática, en- conhecida pelo seu título em latim,
tender como boas cabeças foram do- Rerum Novarum. Parece-me oportuno
minadas, por mais de um século, pela citar alguns trechos das sessões iniciais
visão socialista-coletivista. Minha com- dessa encíclica:
preensão é de que uma fonte desse
devaneio é a inadequada concentra- 3. Os Socialistas, para curar este mal,
ção, pelos economistas, nos elemen- instigam nos pobres o ódio invejoso
tos de eficiência e produtividade em contra os que possuem, e pretendem
uma organização social, negligencian- que toda a propriedade de bens par-
do a dimensão liberdade. Se eficiên- ticulares deve ser suprimida, que os
cia deve ser tomada, ainda que impli- bens dum indivíduo qualquer devem
citamente, como o objetivo relevante, ser comuns a todos e que a sua ad-
uma série de erros científicos, a isso ministração deve voltar para os Mu-
relacionados, poderia ter gerado os nicípios ou para o Estado. Mediante
registros históricos do século socialista. esta transladação das propriedades e
Retrospectivamente, podemos interpre- esta igual repartição das riquezas e
tar esses registros como uma rejeição das comodidades que elas proporci-
da hipótese de que a propriedade onam entre os cidadãos, lisonjeiam-
coletiva e o controle dos meios de pro- se de aplicar um remédio eficaz aos
dução geram um valor de produto males presentes. Mas semelhante
igual ou mesmo superior ao gerado sob teoria, longe de ser capaz de pôr ter-
os arranjos de propriedade privada. mo ao conflito, prejudicaria o operá-
Mesmo como hipótese preliminar, rio se fosse posta em prática. Pelo
ninguém pode seriamente sugerir a pro- contrário, é sumamente injusta, por
posição de que propriedade coletiva violar os direitos legítimos dos pro-
e controle implicam a expansão das prietários, viciar as funções do Esta-
liberdades dos indivíduos participantes. do e tender para a subversão com-
As restrições à liberdade que necessa- pleta do edifício social.
riamente caracterizam qualquer orga-
nização socialista, grande ou peque- A propriedade particular
na, integral ou gradual, têm sido mais
ou menos reconhecidas por todos os 4. De fato, como é fácil compreen-
observadores desde o início dos expe- der, a razão intrínseca do trabalho
rimentos. empreendido por quem exerce uma

18 PROPERTY AS A GUARANTOR OF LIBERTY


arte lucrativa, o fim imediato visado sentido dessa verdade. Ela significa,
pelo trabalhador, é conquistar um unicamente, que Deus não assinou
bem que possuirá como próprio e uma parte a nenhum homem em par-
como pertencendo-lhe; porque, se ticular, mas quis deixar a limitação das
põe à disposição de outrem as suas propriedades à indústria humana e às
forças e a sua indústria, não é, evi- instituições dos povos.
dentemente, por outro motivo senão A força destes raciocínios é duma evi-
para conseguir com que possa pro- dência ta, que chegamos a admirar
ver à sua sustentação e às necessi- como certos partidários de velhas opi-
dades da vida, e espera do seu tra- niões podem ainda contradizê-los,
balho não só o direito ao salário, concedendo sem dúvida ao homem
mas ainda um direito estrito e rigoro- particular o uso do solo e os frutos
so para usar dele como entender. dos campos, mas recusando-lhe o
Portanto, se, reduzindo as suas des- direito de possuir, na qualidade de
pesas, chegou a fazer algumas eco- proprietário, esse solo em que
nomias, e se, para assegurar a sua edificou, a porção da terra que culti-
conservação, as emprega, por exem- vou. Não veem, pois, que despojam
plo, num campo, torna-se evidente assim esse homem do fruto do seu
que esse campo não é outra coisa trabalho; porque, afinal, esse campo
senão o salário transformado: o ter- amanhado com arte pela mão do
reno assim adquirido será proprieda- cultivador mudou completamente de
de do artista com o mesmo título que natureza: era selvagem, ei-lo arrote-
a remuneração do seu trabalho. Mas, ado; de infecundo, tornou-se fértil; o
quem não vê que é precisamente nis- que o tornou melhor, está inerente ao
so que consiste o direito da proprie- solo e confunde-se de tal forma com
dade mobiliária e imobiliária? Assim, ele, que em grande parte seria im-
esta conversão da propriedade parti- possível separá-lo. Suportaria a justi-
cular em propriedade coletiva, tão ça que um estranho viesse então a
preconizada pelo socialismo, não te- atribuir-se esta terra banhada pelo
ria outro efeito senão tornar a situa- suor de quem a cultivou?
ção dos operários mais precária, re-
tirando-lhes a livre disposição do seu Implicitamente, a defesa da pro-
salário e roubando-lhes, por isso priedade privada na Rerum Novarum in-
mesmo, toda a esperança e toda a corpora o reconhecimento do valor que
possibilidade de engrandecerem o as pessoas atribuem à sua indepen-
seu patrimônio e melhorarem a sua dência, a qual somente o regime de
situação. propriedade privada pode oferecer.
... deve reconhecer-se ao homem não
só a faculdade geral de usar das coi- 16. O PROLETARIADO MARXISTA
sas exteriores, mas ainda o direito E A PROFECIA MALTHUSIANA
estável e perpétuo de as possuir, tan-
to as que se consomem pelo uso, As passagens da Rerum Novarum do
como as que permanecem depois de Capítulo 15 deixam claro que o direi-
nos terem servido. ... to de deter propriedade é o meio pelo
Não se oponha também à legitimi- qual os trabalhadores podem melho-
dade da propriedade particular o fato rar sua condição. Subjacente a toda
de que Deus concedeu a terra a todo aquela discussão está a negação da
o gênero humano para a gozar, por- teoria dos salários dos economistas
que Deus não a concedeu aos ho- clássicos. Na extensão marxista da eco-
mens para que a dominassem con- nomia dos clássicos os trabalhadores
fusamente todos juntos. Tal não é o permanecem incapazes de atingir o mí-

PROPERTY AS A GUARANTOR OF LIBERTY 19


nimo de liberdade que a detenção de sem a qual o modelo clássico marxista
propriedade torna possível; os traba- perde significado por inteiro.
lhadores permanecem presos no pro- De certo modo esse desenvolvimento
letariado industrial, sujeitos à inexorável é contraposto pela mudança pós-indus-
operação do processo de produção ca- trial da ordem econômica na direção
pitalista que, necessariamente, dire- de uma economia de serviços, a qual,
ciona todo excedente econômico para acompanhada pela tecnologia da in-
os capitalistas, proprietários dos meios formação e comunicação, fez com que
de produção que não o trabalho. Os a concentração espacial se tornasse
trabalhadores estão sob máxima menos necessária à geração de valor
vulnerabilidade às “forças impessoais econômico. Os problemas sociais mo-
de mercado” que garantem sua explo- dernos não estão no proletariado mar-
ração, independentemente de qualquer xista, cujos participantes não têm pro-
falha ou ruptura do próprio processo priedade e estão sujeitos à exploração
de mercado. capitalista. Os problemas sociais mo-
A incapacidade do marxismo de es- dernos, aqueles advindos das transfe-
capar da camisa-de-força intelectual rências do estado de bem-estar, são
imposta pela teoria clássica da distri- bem diferentes daqueles desenhados
buição se reflete na cega ignorância por Marx. A moderna subclasse urba-
do potencial equilibrante da atividade na não é forçada ao nível de subsis-
do empreendedor, o qual emerge na tência porque os níveis salariais são
busca de lucro sempre que se observa forçados para o custo de reprodução
um diferencial entre o valor da produ- do trabalho. A moderna subclasse não
tividade do trabalho e o nível dos sa- produz nenhum valor; recebimento de
lários. transferências e não de salários é a sua
Por inteiro, o modelo marxista clás- forma de vida. Os participantes produ-
sico de desenvolvimento econômico re- tivos da economia dificilmente concor-
flete o não reconhecimento do poten- darão com transferências que permitam
cial que a inovação tem de aumentar que seus recipientes não produtivos acu-
a produtividade de recursos e de ex- mulem propriedades, as quais, de cer-
pandir o crescimento da renda, de to modo, os libertarão da situação de
modo a manter as forças malthusianas dependência. A subclasse urbana do
adormecidas. Entretanto, de fato a po- estado de bem-estar participa da eco-
pulação cresceu durante os primeiros nomia apenas como consumidora. Os
estágios da expansão industrial, e ini- membros dessa classe se tornam os ex-
cialmente a produção capitalista gerou ploradores e não os explorados; eles
grandes concentrações urbanas, as garantem um excedente negativo; eles
quais tornaram impraticável o acesso consomem valores para os quais em
a unidades individuais separáveis de nada contribuíram para sua produção.
propriedade real para muitos dos par-
ticipantes do processo produtivo. Em 17. ESPECULAÇÕES FINAIS
relação à análise deste livro, podemos
afirmar que a garantia de liberdade Karl Marx não entendeu a estática
pela detenção de propriedade foi ne- ou a dinâmica da ordem econômica
cessariamente enfraquecida e, por isso capitalista que ele tão persistentemente
mesmo, tornou relativamente mais im- criticava. Por essa falta de compreen-
portante a viabilização de uma efetiva são, Marx pensava ser necessário subs-
competição de mercado. Essa conclusão tituir a ordem de mercado por alguma
se mantém ainda que o registro empírico alternativa coletivista, da qual ele en-
tenha rejeitado a profecia malthusiana, tendia menos ainda. Entretanto, pode-

20 PROPERTY AS A GUARANTOR OF LIBERTY


mos interpretar Marx como tendo sido A esse respeito, a importância da
perspicazmente sensível à perda de li- estabilidade monetária dificilmente
berdade experimentada pelas pessoas será enfatizada em excesso. Pela auto-
que trocavam a bucólica vida de ridade arbitrária que o estado-nação
autossuficiência familiar ou em peque- tem para modificar a taxa de troca entre
nas comunidades pelas relações de tro- o dinheiro e os bens, mesmo nas eco-
cas em mercados. Nessa sua sensibili- nomias desenvolvidas do Ocidente, ele
dade, Marx foi levado à praia da filo- reduz drasticamente o potencial de
sofia política clássica, juntando-se a proteção que o cidadão pode se pro-
Thomas Jefferson e aos ruralistas do sul porcionar por meio da detenção de
americano do século XX, que ques- propriedade. Uma constituição mone-
tionavam a viabilidade de uma socie- tária efetiva (inexistente em qualquer
dade livre na ausência de pequenos lugar do mundo), que viesse a garantir
proprietários agrícolas, definidos de estabilidade no valor da unidade mo-
maneira ampla. netária, produziria milagres, quer se
Sabemos, em 1992, que a proprie- considere o critério da liberdade ou o
dade privada é necessária para a efi- da eficiência.
ciência na produção de valor Um segundo aspecto a ser desta-
econômico. Também sabemos que a cado é o tamanho do setor politizado
especialização extensiva é exigida para da vida econômica. Na medida em
que ocorram ganhos na produção em que o indivíduo é coagido a pagar tri-
decorrência de economias de escala. butos, os quais financiam os progra-
Os indivíduos devem concentrar a ca- mas governamentais que supostamen-
pacidade de seus recursos a despeito te lhe retornarão uma parcela de be-
de saberem que, assim procedendo, nefícios, não há opção de saída. O
eles aumentam sua dependência do argumento em favor da liberdade,
comportamento dos outros, sobre os como apresentado neste livro, sugere
quais não exercem qualquer influência que o valor da utilidade atribuída à in-
ou controle, direta ou indiretamente. dependência implicaria alguma redu-
A propriedade de bens duráveis, in- ção no tamanho do setor público, ain-
cluindo habitação, abre espaço para da que o setor politizado da econo-
a autoprodução de um fluxo de servi- mia pudesse ser precisamente estabe-
ços, aliviando as necessidades de al- lecido de modo a promover um nível
gumas compras em mercado. Além ótimo de eficiência.
disso, a propriedade privada de ativos A competição no mercado protege
que geram um fluxo de renda permite o indivíduo da exploração indevida
ajustamentos no fluxo de consumo ao ainda que a detenção de proprieda-
longo do tempo. Esses aspectos da pro- des seja limitada. Entretanto, as estru-
priedade privada nas economias mo- turas institucionais podem ser ajustadas
dernas do Ocidente são significantes, de modo a facilitar a habilidade do
ainda que de um modo geral sejam indivíduo em exercer escolhas. A mo-
ignorados. bilidade entre as diversas opções de
É possível sugerir medidas que man- mercado pode ser estimulada de mui-
tenham ou ampliem o adicional de pro- tas maneiras.
dutividade provocado pela especiali- Mesmo a pessoa que oferece servi-
zação extensiva e, ao mesmo tempo, ços altamente especializados e que
capturar ou recapturar alguns dos atri- depende da renda de mercado gera-
butos da existência independente [au- da por tais serviços pode manter-se li-
tonomia] universalmente aceitos como vre com relação às escolhas que faz
valores? como comprador nos mercados. Mui-

PROPERTY AS A GUARANTOR OF LIBERTY 21


tas razões explicam a falta de confian- direta é, certamente, que limites consti-
ça nas forças de mercado, entre elas a tucionais efetivos se façam presentes,
falta de entendimento de como essas limites esses que constrangerão mani-
forças operam. Além disso, reconheci- festas intromissões políticas nos direitos
damente os mercados são vulneráveis de propriedade, como definidos le-
à interferência dos políticos. Laissez- galmente, e nos arranjos contratuais
faire como uma instância política pode voluntários que envolvam transferên-
ser mais confiável do que seu oposto. cia de propriedade. Se a liberdade
Um indivíduo que se sinta muito depen- individual deve ser protegida, tais li-
dente dos mercados pode buscar uma mites constitucionais devem ser impos-
maior proteção para suas remanescen- tos antes e separadamente de qual-
tes liberdades pela estrutura de suas quer exercício de governança demo-
posses. Entretanto, pela moderna juris- crática.
prudência sobre a legitimidade da Entender as prioridades neste assunto
apropriação pelo governo de ativos deve, certamente, fornecer as bases
privados tal segurança pode ser ina- para a extensão de restrições constitu-
tingível. cionais ao processo legislativo basea-
As complexas relações analíticas, do na regra da maioria dos sistemas
empíricas, históricas e legais entre liber- políticos modernos, principalmente no
dade individual e propriedade priva- que se refere à potencial expropriação
da certamente requerem uma atenção monetária e fiscal, independentemente
crítica. Eu não tenho a pretensão de das mais óbvias atividades de “desa-
ter feito mais que arranhado a super- propriação”, que devem ser condena-
fície de um programa de pesquisa que das em todas as situações.
permanece em grande parte subde- A confusão onipresente que tem cor-
senvolvido. rompido as atitudes no Ocidente e que
ameaça acabar com as oportunidades
18. NOTA FINAL que agora se apresentam para as so-
ciedades emergentes do pós-socialis-
O editor me solicitou, com veemên- mo envolve o não reconhecimento de
cia, incluir explicitamente uma discus- que “constitucional” precisa anteceder
são sobre as implicações da análise a palavra “democracia”, se a igualda-
acima para a organização política e de política dos indivíduos deve traduzir
particularmente para as instituições de- de maneira significativa liberdade e
mocráticas. O argumento central é que autonomia. A tirania da maioria não
a propriedade privada ou muitas pro- é menos real que qualquer outra e,
priedades servem de fiadoras da liber- na realidade, ela pode ser mais pe-
dade, independentemente da forma rigosa porque se alimenta da ilusão
com que as decisões políticas ou idealista de que a participação é o
coletivas sejam tomadas. A implicação mais importante.

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24 PROPERTY AS A GUARANTOR OF LIBERTY

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