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É lógico que esse professor estava brincando, no espírito de humor típico dos
cearenses. Mas, por detrás dessa brincadeira inocente, há uma crítica sutil, mas
profunda, à prática do direito. Nós, do direito, adoramos uma resposta padronizada,
de preferência daquelas que não nos obrigue a pensar muito. Quanto menos
trabalho tivermos para resolver um problema, melhor.
pensam por conta própria, mas apenas seguem sem questionamentos, como robôs
abobalhados, as instruções detalhadas que são impostas de cima para baixo.
Infelizmente, é cada vez mais difícil lutar contra esse tipo de alienação
mesmo nos dias de hoje, quando quase todos estão conscientes dos perigos de uma
aplicação mecânica e acrítica do direito estatal. O mercado econômico “capturou”
as faculdades de direito de tal forma que o ensino jurídico tornou-se ele próprio
uma mercadoria produzida em massa. Os alunos não são estimulados a pensarem,
mas apenas a decorarem respostas “prontas pra usar” (“prêt-à-porter”), que serão
cobradas à exaustão nas provas de acesso aos mais relevantes cargos públicos. A
situação está tão absurda que quem pensa demais e ousa ser original não é
aprovado: para ter sucesso nos concursos e nas provas o importante é memorizar e
reproduzir os mantras consolidados!
3. Não seja crítico: prefira bajular. A crítica é inimiga da aprovação. Por isso,
siga fielmente a cartilha ditada pelos avaliadores.
5. Leia os livros mais superficiais; fique longe dos que exigem muita
concentração e raciocínio. Não vale a pena perder tempo pensando.
Essa massificação do ensino afeta o direito como um todo. Para perceber isso
basta ver que praticamente não há mais doutrina crítica no Brasil. As obras jurídicas
mais vendidas não teorizam nada, mas apenas reproduzem as principais decisões
dos tribunais. Os autores se auto-bajulam mutuamente, repetindo com outras
palavras o que está claramente previsto na lei ou nas ementas dos julgados. É só
inverter a ordem das palavras que você se torna um escritor original!
Os alunos, embora sejam vítimas, também têm sua parcela de culpa – e como
eles são os financiadores desse mercado, talvez sejam os grandes culpados, ainda
que seja uma culpa involuntária, já que não têm outra opção senão se curvar diante
do sistema. Estudantes fogem da discussão crítica como o diabo foge da cruz.
Ninguém estuda mais para aprender, mas apenas para “passar em concursos” ou
“passar na prova”. Se o professor indica um texto mais profundo, a pergunta básica
é “isso vai cair na prova?”. Se o professor quer que o aluno produza algo novo,
surge logo um “vale ponto?”. Se o professor provoca uma discussão mais complexa
onde as respostas exigem uma reflexão mais demorada, a pergunta é “o Supremo já
julgou isso?”. Naturalmente, o mercado editorial segue essa tendência e não quer
saber de livros teóricos que façam o leitor pensar muito: o público exige
“esquemas”, “macetes” e “resumos”.
Num sistema assim, onde o que importa é decorar o pensamento alheio, não
há espaço para a produção de uma doutrina crítica e influente. A “doutrina” daí
resultante, regra geral, é dócil como um carneirinho, até porque, no modelo atual,
em que quase todos os juristas estão amarrados por interesses profissionais e
econômicos, não há clima para uma crítica mais ácida. Ninguém gosta de se indispor
com quem está no poder e todos procuram agradar quem está no poder,
espalhando elogios gratuitos para massagear o ego dos excelentíssimos medalhões
de toga. São poucos os que têm coragem de identificar abertamente um erro
cometido por algum tribunal e publicar um artigo consistente demonstrando que os
juízes se equivocaram. As críticas são veladas, tímidas, superficiais e quase sempre
motivadas por razões econômicas. Criticar abertamente, sem o uso de “datas
vênias” ou outras frases fingidas, transformou-se em falta de educação! São poucos
no meio jurídico que adotam a famosa máxima de Santo Agostino: “prefiro os que
me criticam, porque me corrigem, aos que me elogiam, porque me corrompem”.
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Não é preciso ser muito inteligente para perceber que, nos dias de hoje, as
ações da filosofia estão em queda na bolsa de valores do mercado jurídico. Não é
mesmo fácil compatibilizar o trabalho jurídico com as divagações filosóficas mais
críticas, abstratas e especulativas. O filósofo gosta de questionar tudo; duvida de
todos, até dele mesmo; não se conforma com explicações óbvias; tenta fugir do
senso comum; desbrava caminhos intelectuais até então desconhecidos pela
maioria das pessoas; critica por hábito; não se apega a modelos pré-estabelecidos,
nem a normas impostas; elabora sistemas miraculosos, alguns beirando o absurdo,
para explicar o inexplicável; vasculha novos horizontes para escapar da perspectiva
unidimensional compartilhada pelo restante do “rebanho”; desenvolve argumentos
incomuns e inusitados, alguns difíceis de serem digeridos; abala as convicções mais
consolidadas; desconstrói dogmas; incomoda aqueles que seguem o pensamento
dominante; faz pouco caso das autoridades, especialmente das intelectuais; irrita
quem não gosta de pensar e faz tudo isso com prazer.
E se não temos tempo a perder, evitamos nos envolver com abstrações “sem
sentido” que só servem para derrubar os nossos pontos de apoio e nos desviar das
respostas que procuramos. Nós, juristas, somos críticos, mas até certo ponto.
Partimos de algumas premissas que não questionamos por uma razão muito
simples: não precisamos questioná-las, nem temos tempo para questioná-las, nem
nossa formação acadêmica nos dá elementos para questioná-las. Nesse aspecto,
somos mesmo “dogmáticos” no sentido mais estrito e pejorativo do termo, uma vez
que confiamos em nossas opiniões sem examinar criticamente os seus
fundamentos, desconsiderando liminarmente qualquer ponto de vista que possa
colocá-las em dúvida.
Tudo isso faz com que seja cada vez mais raro encontrar estudantes de
direito que se preocupem em aprimorar o seu senso crítico através da leitura de
obras filosóficas. A maioria dos estudantes, com uma preguiça mental típica de
qualquer estudante, costuma questionar antes mesmo de se dar ao trabalho de ler
qualquer texto filosófico: para quê estudar teorias filosóficas entediantes e
incompreensíveis se, na “hora H”, a decisão terá que ser tomada com base no direito
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e não na filosofia? Para quê saber a relação entre direito e moral se a Fundação
Carlos Chagas só cobra o texto da lei? Ao invés de conhecer as teorias da justiça não
é melhor ler os informativos do Supremo Tribunal Federal?
Eis uma cena que se repetia com muita freqüência nas manhãs dos meus
tempos universitários: entra na sala de aula um professor com um olhar sério, peito
cheio de ar, nariz empinado, exalando superioridade e arrogância. Ele acabou de
chegar da Alemanha, onde fez o doutorado. De repente, começa a olhar para o teto
e a falar um monte de palavras incompreensíveis, intercaladas pelo nome de
filósofos até então desconhecidos: era um tal de “jogo de linguagem” de
Wittgenstein, pré-compreensão gadameriana, desconstrucionismo de Derrida,
domesticação diacrônica, razão transversal, linguistic turn. Nenhum aluno tinha a
mínima noção sobre qual o significado e a utilidade daquilo tudo. Ora se viam
olhares assustados, por serem incapazes de compreender o que estava sendo dito,
ora se viam olhares sonolentos de quem não estava nem um pouco interessado.
Alguns forçavam a visão, como se estivessem no escuro, na vã ilusão de que um
franzir de olhos pudesse ajudar a enxergar melhor naquelas trevas verborrágicas.
Ainda hoje, quando me recordo dessas aulas, é o humor pelo absurdo da situação e
não a reflexão consciente que surge em minhas memórias. Se aquilo era filosofia,
então era melhor ficar bem longe, até porque não era cobrado nos concursos
públicos para alívio de todos. Esse era um sentimento quase geral entre os
estudantes da minha época. Se bem que só posso falar por mim...
adiantava eu perder tempo com tais leituras se, por mais que me esforçasse,
simplesmente não entedia nada? Se o real não fosse racional e vice-versa, o que iria
alterar na minha vida?
Logo em seguida, Sokal remeteu o texto para uma importante revista norte-
americana chamada “Social Text”, cujo conselho editorial, por incrível que pareça,
caiu como um patinho na brincadeira e publicou o artigo como se fosse sério!
Graças a isso, os referidos editores da revista “Social Text” ganharam o Prêmio
IgNobel, que é dado para os maiores micos científicos do ano.
autores do livro, não é preciso ser matemático nem físico para perceber que o autor
dessa tolice é um tapeador. É nítido que uma pessoa que usa um argumento assim
está zombando do leitor, pois a terminologia por ele utilizada não faz o menor
sentido. Puro embromacionismo.
Para mim, descobrir isso foi um alívio, embora eu também tenha me sentido
um pouco como um “trouxa” que acabou de perceber que caiu no golpe de um
estelionatário. Quer dizer que esse pessoal estava me enganando o tempo todo,
pensei com os meus botões?
A partir daí, passei a ler os textos filosóficos com outros olhos. Descobri que
Hegel já havia sido criticado por vários filósofos pelos mesmos motivos aqui
apontados. Arthur Schopenhauer, por exemplo, que é muito perspicaz e sem papas
na língua, fez o seguinte comentário nada sutil sobre seu colega alemão:
1
SCHOPENHAUER, Arthur. Fragmentos sobre a história da filosofia. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 33. Vale ressaltar que Schopenhauer exagera bastante na sua avaliação, talvez motivado
por rixas pessoais com Hegel e seus discípulos. Veja, por exemplo, esta outra passagem: “Fichte,
Schelling e Hegel não são filósofos, pois lhes falta o primeiro requisito para tanto: seriedade e
honestidade na pesquisa. São meros sofistas; queriam parecer, não ser, e buscaram não a verdade
mas sua própria vantagem e êxito no mundo. Cargos proporcionados pelo governo, honorários de
discípulos e editores e, como meios para esse objetivo, ostentação e espetáculo com sua
pseudofilosofia. Tais eram as estrelas-guias e os gênios inspiradores desses discípulos da sabedoria.
Por isso, não passam pelo controle de entrada e não podem ser admitidos na venerável sociedade
dos pensadores para o gênero humano. Entretanto, sobressaíram-se numa coisa, a saber, na arte
de fascinar o público e de fazer-se passar por aquilo que não eram. Indiscutivelmente, isso requer
talento, mas não o filosófico” (p. 29).
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“Não há nada mais fácil do que escrever de tal maneira que ninguém
entenda; em compensação, nada mais difícil do que expressar
pensamentos significativos de modo que todos compreendam. O
ininteligível é parente do insensato, e sem dúvida é infinitamente mais
provável que ele esconda uma mistificação do que uma intuição profunda
(...)
Quem tem algo digno de menção a ser dito não precisa ocultá-lo em
expressões cheias de preciosismos, em frases difíceis e alusões obscuras,
mas pode se expressar de modo simples, claro e ingênuo, estando certo
com isso de que suas palavras não perderão o efeito. Assim, quem precisa
2
SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Escrever. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: L&PM, 2005, p. 92
e 94.
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3
SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Escrever. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: L&PM, 2005, p. 82
e 85. Numa passagem muito divertida do mesmo texto, Schopenhauer brincou ao afirmar que um
livro intitulado “A Arte de Peidar” se transformou na seguinte pérola: “fisiologia científica teórico-
prática, patologia e terapia dos fenômenos pneumáticos denominados flatulências, que são
apresentados de maneira sistemática em suas relações orgânicas e causais, de acordo com o seu
modo de ser, como também com todos os fatores genéticos condicionantes, externos e internos,
em toda a plenitude de suas manifestações e atuações, tanto para a consciência humana em geral
quanto para a consciência científica”!
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Citações extraídas do texto “Contra as Palavras Grandiloqüentes”, cujas críticas são claramente
dirigidas a Habermas e Adorno. O texto está disponível em: POPPER, Karl. Em Busca de um Mundo
Melhor. Lisboa: Fragmentos, 1992. De igual modo o filósofo Betrand Russell, de forma bastante
espirituosa, comentou que “o truque da filosofia é começar por algo tão simples que ninguém ache
digno de nota e terminar com algo tão complexo que ninguém entenda”.
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Mas a dúvida não pode ser inconseqüente. É preciso duvidar, mas também
estar aberto para ouvir e compreender os outros. O diálogo é essencial em filosofia,
assim como em qualquer área do conhecimento. É preciso estar sempre com a
mente aberta, preparado para dialogar, ouvir e tentar compreender as idéias
alheias, mesmo que não se concorde com elas. Aliás, algumas vezes, as idéias com
que menos concordamos são as que mais nos afetam e, uma vez amadurecidas
inconscientemente nas nossas cabeças, são capazes de transformar a nossa forma
de pensar e de ver o mundo. Sem nos darmos conta, acabamos incorporando
aquelas mesmas idéias que até então vínhamos criticando, o que demonstra que
agregamos conhecimento e evoluímos. Por isso, é fundamental estar disposto a
aprender com os nossos “adversários” intelectuais. No mundo do debate filosófico,
não deve haver inimigos, mas colaboradores.
perverso. Mas não o parecerá àqueles que querem descobrir a verdade e não têm
receio dela”5.
Por outro lado, não se deve criticar por criticar. Aquele que desconstrói um
ponto de vista sem oferecer nada melhor em troca é tão inútil para a humanidade
quanto aquele que destrói um abrigo por conter goteiras deixando todos numa
situação ainda pior. A função da crítica deve ser a de identificar erros que possam
permitir o surgimento de novas perspectivas capazes de levar à descoberta conjunta
da verdade.
Não é preciso que o jurista deixe de lado o estudo das leis, das coletâneas de
julgados e da doutrina jurídica. Basta que ele reflita criticamente sobre a sua própria
atividade, questionando-se constantemente sobre as seguintes perguntas
fundamentais: “O que devo fazer? Como posso melhorar? Que tipo de profissional
devo me tornar?”
5
POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações (Conjectures and Refutations, 1963). Coimbra: Almedina, 2006, p.
22.
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“Ouse pensar” (“Sapere audere”), sugeria Immanuel Kant. Para ele, a pessoa
que, por comodidade, opta por renunciar à capacidade de pensar por si próprio é
um covarde que pode ser equiparado a um animal domesticado. Por isso, Kant
conclamava as pessoas a exercerem um senso crítico para pensarem e tomarem
decisões com autonomia, fugindo da preguiça intelectual de sempre seguir passiva e
acriticamente a orientação de outras pessoas como um bando de bovinos6. “Ouse
pensar”: eis o princípio que inspira a filosofia. Se você estiver de acordo com essa
idéia, certamente estudará filosofia com um sorriso no rosto. Por outro lado, se
você preferir o caminho da ignorância e da letargia mental, recomendo a leitura do
horóscopo ou de revistas sobre a emocionante vida das celebridades.
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Essa idéia foi desenvolvida no texto “Resposta à Pergunta “O que é Iluminismo?”, que pode ser encontrado
em: KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Ensaios. Tradutor: Artur Morão Lisboa: Edições 70, 2002, pp.
11-19.