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MUSICALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Débora Alves de Oliveira

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre a musicalização na educação
infantil, considerando a importância da música como parte da cultura e, portanto, como conhe-
cimento a ser trabalhado no contexto da educação infantil. Para tanto, além da pesquisa biblio-
gráfica, foi realizado um estágio numa escola de educação infantil da rede privada de Campinas
durante 8 meses, no qual foi feito um acompanhamento direto das aulas de música desenvolvi-
das por uma professora "especialista", com turmas de 0 a 6 anos de idade. Inicialmente, no pri-
meiro capítulo, "O que é musicalizar?", discuto o conceito de musicalização procurando relaci-
oná-lo com o contexto escolar. Em seguida, no segundo capítulo, "O processo de musicaliza-
ção", reflito sobre as possibilidades de trabalho para o desenvolvimento das aulas de música na
educação infantil. No terceiro capítulo, "Vivência no estágio", relato as experiências vividas nas
aulas de música, procurando mostrar exemplos das atividades desenvolvidas. Por fim, nas "Con-
siderações finais", concluo este estudo enfatizando a importância do desenvolvimento de traba-
lhos em parceria no processo de musicalização na educação infantil.

Palavras- chaves: Musicalização na educação; Educação infantil; Processo de musicalização

Abstract: The present work has as objective to reflect on the musicalization in the basic educa-
tion, considering the importance of music as part of the culture and, therefore, as knowledge to
be worked in the context of the basic education. For in such a way, beyond the bibliographical
research, a period of training in a school of basic education of the private network of Campinas
during 8 months was carried through, in which was made a direct accompaniment of the lessons
of music developed by a teacher "specialist", with groups of 0 the 6 years of age. Initially, in the
first chapter, " What it is to musicalization?", I argue the musicalization concept looking for to
relate it with the pertaining to school context. After that, in as the chapter, " the musicalização
process ", I reflect on the possibilities of work for the development of the lessons of music in the
infantile education. In the third chapter, " Experience in the period of training ", story the expe-
riences lived in the music lessons, looking for to show examples of the developed activities.
Finally, in the " Final Considerations ", I conclude this study emphasizing the importance of the
development of works in partnership in the process of musicalization in the basic education

Key- words: Musicalization in the education; Basic education; Musicalization process

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O QUE É MUSICALIZAR? um ensino de música para jovens, afir-


mando a necessidade de um conheci-
Musicalizar significa desenvolver o mento musical prévio, preferencial-
senso musical das crianças, sua sensibi- mente que os alunos já toquem algum
lidade, expressão, ritmo, “ouvido musi- instrumento.
cal”, isso é, inseri-la no mundo musical,
sonoro. O processo de musicalização Penso que esse conhecimento prévio
tem como objetivo fazer com que a cri- considerado necessário pelo autor tenha
ança torne-se um ouvinte sensível de seu início na educação infantil e percor-
música, com um amplo universo sono- ra também o ensino fundamental. Na
ro. educação infantil, os alunos poderão
construir uma base para que aprendam a
Devemos ter em mente que o fim prin- tocar um instrumento musical, pois a
cipal da musicalização é desenvolver a musicalização na educação infantil vai
musicalidade que há na criança, pois a desenvolver nos alunos as noções bási-
música faz parte da cultura humana e, cas para se estudar um instrumento
por isso, todas as pessoas têm direito de como, por exemplo, a noção de ritmo,
acesso a ela. Não podemos, então, con- altura, timbre, entre outros conheci-
siderar a musicalização como “educação mentos necessários para aprendizado de
pela música”, que significa utilizar a um instrumento musical.
música para desenvolver e aperfeiçoar
outras áreas de conhecimento como a Snyders (1994) não nega que, por se
alfabetização, o raciocínio lógico ma- referir a alunos que já tenham conheci-
temático, a socialização, entre outras. mentos musicais prévios, pode-se cair
no elitismo, pois a maioria dos alunos
Acredito que o processo de musicaliza- das escolas públicas e que pertencem às
ção deve acontecer na escola, pois “(...) classes populares não possuem condi-
sendo a Escola a instituição responsá- ções financeiras para estudar um ins-
vel pela formação cultural da criança, trumento musical.
cabe a ela também proporcionar esse
conhecimento (...)” (Silva, 1992, p. 92) Um caminho que encontramos para
amenizar esse problema é investir na
Então, é papel da escola incentivar as musicalização durante a educação in-
aulas de música e proporcionar condi- fantil, tanto em escolas públicas quanto
ções para que elas aconteçam, desde a privadas, para possibilitar que todos
compra de instrumentos até um espaço tenham acesso ao conhecimento musical
favorável para a realização das aulas. A pois, assim, trazemos a alegria para
preferência é que haja uma sala destina- dentro da escola, como sugere Snyders
da a essas aulas, na qual possam ser (1994) e, ainda, amenizaremos o pro-
guardados os instrumentos e outros blema do elitismo que pode afastar al-
materiais necessários, que essa sala te- guns da música, fazendo-os considerar a
nha espaço suficiente para os alunos música como um conhecimento para
movimentarem-se e esteja livre de sons poucos.
externos que possam distrair os alunos.
Podemos dizer que o povo brasileiro
De acordo com Snyders (1994), a escola traz em sua cultura um riquíssimo re-
deve proporcionar, além de preparação pertório musical com o qual tomamos
para o futuro, alegria para o presente, e contato desde que nascemos. Nesse
esse é um dos papéis da música na es- sentido, o papel do ensino de música na
cola. Esse autor trata, em seu livro, de educação deve ser o de proporcionar aos

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alunos tanto um conhecimento mais ção, o que fará com que elas deixem de
aprofundado desse universo já conheci- aceitar o direcionamento do professor.
do, como o acesso a um universo des-
conhecido. E nessa relação conheci- A participação dos alunos é fundamen-
do/desconhecido buscar nossas signifi- tal para o bom andamento do processo.
cações para a música como arte. Eles precisam participar de todas as
atividades propostas, e por isso é im-
Devemos acabar com o mito de que a portante que o processo seja lúdico. Os
música é uma arte destinada apenas para alunos precisam sentir envolver-se para
os grandes gênios, pois, segundo afirma participar. “É aconselhável (...) que a
Almeida (2001), se pensarmos em ins- música seja apresentada por meio de
trumentos e partituras, a música pode estórias, dramatizações, jogos e brin-
ser algo muito distante de nós, porém, cadeiras que motivem a participação”
não podemos nos esquecer de que te- (Silva, 1992, p. 93).
mos a voz e podemos cantar. Acredito
que devemos pensar assim para que Devemos incentivar a participação dos
possamos levar a música para dentro alunos desde muito pequenos. Bebês
das nossas escolas e proporcionar esse com menos de dois anos de idade tam-
conhecimento para nossos alunos. bém são capazes de distinguir som e
silêncio e, se dermos um instrumento
O PROCESSO DE MUSICALIZA- nas mãos deles, eles saberão que, se
ÇÃO você perguntar “cadê o som”, eles de-
vem tocar o instrumento para ouvirem o
No processo de musicalização, não po- som.
demos nos esquecer de que as crianças,
quando brincam, usam sons espontane- Penso que o processo de musicalização
amente, criam músicas, e essa atitude, deve começar o mais cedo possível, tão
se não é incentivada, tende a desapare- logo as crianças iniciem na educação
cer com o tempo. Quando atingem uma infantil (em creches e pré-escolas), po-
certa idade, geralmente depois que vão rém, no início do processo, até os dois
para o ensino fundamental, por volta anos de idade, creio que a música deve
dos seis ou sete anos, as crianças pas- fazer parte da rotina da sala, sendo tra-
sam a sentir vergonha de se expressar balhada pela própria professora em di-
por meio de sons, pois a escola não in- versos momentos, não havendo necessi-
centiva essa prática. Ao contrário, prio- dade da presença de um "especialista"
riza o silêncio, o que faz com que as para as aulas de música, pois as crianças
crianças calem-se, deixem de utilizar são muito pequenas e não conseguem
sons para se expressar. Portanto, não estabelecer vínculos com o "especialis-
podemos dizer que a musicalização ser- ta", que dá aula para eles durante vinte
ve para transformar as crianças em seres ou trinta minutos na semana. A partir
musicais, apenas precisamos incentivá- dos dois anos, mesmo que haja a pre-
las a continuar usando e criando sons. sença de um "especialista" na área, é
necessária a presença da professora du-
A musicalização deve ser trabalhada de rante as aulas de música, pois mesmo as
maneira lúdica. A criança deve sentir crianças já conseguindo estabelecer
prazer em freqüentar as aulas de músi- maiores vínculos e aprender alguns
ca, usar a criatividade. Porém, precisa- conceitos musicais como forte e fraco e
mos tomar cuidado para que as crianças ritmos simples, elas ainda estranham a
não considerem as aulas de música so- presença de uma pessoa dando aula para
mente como divertimento, descontra- elas apenas uma vez por semana, além

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de ser importante um trabalho em parce- que os alunos produzam sons sempre


ria entre a professora e o "especialista" que a narrativa parar (o professor tam-
que, juntos, podem construir um traba- bém deve fazer os sons).
lho muito mais rico do que trabalhando
isoladamente. O professor de música deve apresentar
aos seus alunos diferentes estilos
Ao longo da educação infantil, devem musicais, desde música popular, folcló-
ser trabalhados sons corporais, atenção, rica e erudita, até as cantigas de
noção de ritmo e “ouvido musical”. Os roda. Tacuchian (1981) afirma que de-
instrumentos podem ser usados inicial- vemos trabalhar com músicas de várias
mente com todas as crianças tocando o culturas, mas priorizar sempre a música
mesmo instrumento, geralmente no iní- brasileira, que é muito rica
cio do processo de musicalização, para histórica e culturalmente. Em relação às
desenvolver a noção de ritmo nas crian- cantigas de roda, gostaria de destacar a
ças. Para crianças um pouco mais ve- riqueza de possibilidades de trabalho
lhas, podemos dar mais instrumentos e com essas atividades. De acordo com
organizar uma bandinha rítmica, de Rodrigues (apud Ayoub, 2000, p.56), as
forma que cada instrumento toque em cantigas de roda, "(...) geralmente reali-
horas diferentes, podendo os instru- zadas em círculo, além de todas as suas
mentos utilizados serem feitos pelas variações rítmicas, favorecem a parti-
próprias crianças. cipação de todos e o desenvolvimento
de um sentido de grupo e de uma iden-
Durante as aulas, é necessário que haja tidade cultural, que são reforçados pe-
um revezamento de instrumentos, para las inter-relações que ocorrem durante
que todas as crianças possam ter contato o canto em conjunto". Na escola em que
com todos eles. As músicas podem ser faço estágio, a Priscila (professora de
cantigas de roda, que as crianças conhe- música) trabalha muito com cantigas de
çam, para que elas cantem também. roda conhecidas pelas crianças, pois são
Outra sugestão é haver um instrumento muito cantadas pelas professoras du-
solista (flauta, violino, piano) para rante toda a semana. O trabalho com
acompanhar os instrumentos de percus- essas cantigas conhecidas pelas crianças
são. Caso se opte por um instrumento possibilita que elas participem mais
solista, o instrumentista deve ser muito ativamente das aulas, cantando junto
firme no ritmo, para não comprometer o com a professora.
grupo todo (Pereira, 1978).
Segundo Almeida (2001), a cultura é
Além da bandinha, existem outras ativi- um ‘saber-fazer’ e a escola tem sido um
dades que podem ser feitas com as cri- saber-usar, ou seja, algumas pessoas,
anças no processo de musicalização. que são poucas, fazem a cultura (as ar-
Podemos utilizar jogos nos quais podem tes em geral, por exemplo) e a escola
ser criados sons e gestos. A expressão tem apenas executado mecanismos
corporal faz parte do desenvolvimento prontos, formando alunos acríticos e
rítmico das crianças e vai auxiliá-las a que só sabem pensar mecanicamente.
tocar na bandinha rítmica. Essa é uma das causas da desqualifica-
ção do professor, que passa a ser consi-
Outra prática que pode ser desenvolvida derado como um “instrumentista desa-
é o conto sonoro, isso é, uma história, tualizado”. Tacuchian (1981) afirma
na qual existem vários momentos em que a função da educação artística na
que são inseridos sons na narrativa. O escola é justamente aproximar educação
professor pode contar a história e pedir de cultura. Acredito que possamos tam-

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bém considerar essa como sendo a fun- essas novas situações e dúvidas das cri-
ção da musicalização na escola. Vemos, anças que estão surgindo.
então, mais uma vez a importância da
musicalização na educação infantil, Penso que nós devemos incentivar as
colocar a criança em contato com a crianças a ouvirem músicas que façam
cultura artística/musical desde pequena. parte do universo infantil. Existem
muitos CDs que retratam isso e como
É importante ressaltar que não é neces- bons exemplos podemos citar as canti-
sário levar músicas que estão em moda gas de roda, que além de fazer parte da
no rádio e na televisão, pois a esses es- cultura, fazem parte também do univer-
tilos as crianças têm acesso em casa e, so infantil. Além das cantigas de roda,
quase sempre, representam uma banali- outras músicas infantis retratam o uni-
zação da cultura. Devemos apresentar às verso das crianças, incentivam a criati-
crianças músicas diferentes, para que vidade, as brincadeiras, que são neces-
elas possam conhecer um repertório sárias no processo de desenvolvimento
amplo, que não conheceriam fora do da criança. No entanto, não devemos
processo de musicalização. restringir o nosso trabalho às músicas
infantis, porque contamos com um
De acordo com Almeida (2001), a cul- vasto repertório musical de qualidade
tura de massas é uma produção simples, que pode ser conhecido pelas crianças.
sem dificuldades intelectuais, que não
precisa de questionamentos. Estamos Como a musicalização não tem o obje-
passando por um processo de banaliza- tivo de formar grandes músicos, não
ção da cultura, pois vemos bons artistas podemos enfatizar os aspectos gráficos
e compositores sendo desprezados pela e de harmonia. Devemos incentivar a
mídia, enquanto outros, com músicas criatividade das crianças, pois, de acor-
sem qualidade e técnica, são exaltados do com Peixoto (1988), primeiro preci-
pela mídia, fazendo grande sucesso e samos ampliar o universo sonoro das
atraindo as massas, inclusive as crianças crianças, para só depois pensar na grafia
que passam a querer vestir-se e com- musical, o que não caberia à educação
portar-se como esses “artistas”. É muito infantil, pois, segundo Jeandot (1993, p.
grave vermos meninas usando sapatos 21),
de salto, maquiagem, enquanto meninos
tingem o cabelo de loiro etc., e tudo isso “(...) uma aprendizagem
com o consentimento a apoio dos pais. voltada apenas para os as-
pectos técnicos da música é
As músicas que estão na mídia atual- inútil e até prejudicial, se ela
mente incentivam as crianças a se torna- não despertar o senso musi-
rem adultos precoces, pois apelam para cal, não desenvolver a sensi-
a sexualidade, a violência e o precon- bilidade. Tem que formar na
ceito (como o funk, por exemplo), entre criança o musicista, que tal-
outras coisas. E a escola, que na maioria vez não disponha de uma
das vezes não está atenta para fazer uma bagagem técnica ampla, mas
crítica à cultura massificada, acaba re- será capaz de sentir, viver e
forçando esses valores que estão sendo apreciar a música”.
impostos pela mídia às nossas crianças.
O problema é que com essa imposição
da mídia, as crianças estão se tornando O trabalho com o corpo é fundamental,
cada vez mais precoces, o que também pois a criança dos zero aos seis anos
afeta a escola, pois não sabe lidar com expressa-se por meio de sons e gestos.

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É necessário que o professor relacione a abril deste ano, e combinei com a Pris-
expressão corporal da criança com o cila que continuarei até o final do ano
trabalho musical. Ele pode, por exem- acompanhando as aulas de música de
plo, utilizar jogos que trabalhem com várias turmas, com total abertura da
sons e gestos para que seu trabalho tor- professora para participar de todas as
ne-se mais rico. atividades.

Podemos trabalhar, ainda, com os sons As aulas de música das quais participo
produzidos pelo corpo (palmas, pés, são muito dinâmicas. A professora pro-
vocais), com objetos da sala de aula, de cura fazer as crianças participarem de
fora da sala. O professor pode gravar todas as atividades propostas, que são
sons que ouve em casa, no dia-a-dia e bem diversificadas. Na mesma aula, a
trazer para os alunos identificarem, Priscila trabalha com o corpo, com
além de pedir para que os alunos tragam instrumentos, com a voz e toca músicas
de casa objetos que produzam sons. para que eles aprendam a cantar e fazer
Pode, ainda, pedir para os alunos imita- os gestos.
rem sons da natureza e dos animais.
As aulas têm sempre um caráter lúdico,
As aulas de música devem ter ativida- voltadas para o prazer e o envolvimento
des diferenciadas para garantir o envol- da criança. A Priscila procura fazer com
vimento dos alunos durante a maior que as crianças gostem de participar e
parte do tempo e, assim, possibilitar a elabora atividades que trabalham os
realização de um bom trabalho. Pode- conteúdos musicais de maneira diverti-
mos incluir em uma mesma aula: músi- da, muitas vezes utilizando brincadeiras.
cas para tocar, para dançar, para cantar, Uma das músicas que as crianças can-
conto sonoro, entre outras atividades tam na escola retrata bem essa dimensão
que o professor possa programar para as lúdica das aulas, e a letra diz:
aulas de música. O importante é garantir
a participação dos alunos na aula e, para "Nós vamos agora cantar,
que eles participem, é necessário diver- cantar
sificar as atividades, a fim de que a aula Vamos cantar juntos, brin-
não se torne chata, desinteressante. car, brincar
Cantando brincamos, vem
cá, vem cá
VIVÊNCIA NO ESTÁGIO Brinca de cantar".

Muitos conhecimentos musicais são


Meu estágio está sendo realizado em trabalhados por meio de brincadeiras.
uma escola de educação infantil da rede Por exemplo: para trabalhar a diferença
privada de ensino da cidade de Campi- entre grave e agudo, a Priscila ensinou
nas. Entrei em contanto com a Priscila para as crianças a brincadeira “do coe-
por meio da sua irmã, que também está lhinho e do caçador”. Ela divide a sala
sendo orientada pela professora Eliana em dois grupos, os coelhinhos e os ca-
Ayoub. çadores, ficando cada grupo em um lado
da sala. Quando ela toca notas agudas,
A Priscila prontificou-se a me receber e os coelhinhos saem para passear e,
a solicitar permissão para que eu pudes- quando toca notas graves, os caçadores
se realizar o estágio na escola, o que foi têm de tentar pegar os coelhinhos. As
aceito pela diretora sem problemas. crianças gostam muito dessa brincadei-
Então, comecei a fazer o estágio em

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ra, trazendo bons resultados diante dos mento) “cadê o tambor” e os alunos que
objetivos da professora. estão escondidos respondem (também
batendo o ritmo) “aqui”. Depois que são
Outra brincadeira utilizada pela Priscila encontrados, invertem-se os papéis, os
com as crianças de 3 anos para o apren- que estão com o pandeiro escondem-se
dizado do conceito de altura é feita da e os que estavam com o tambor vão
seguinte maneira: as crianças ficam procurá-los.
todas abaixadas e eu toco uma escala no
teclado. Conforme as notas ficam agu- As aulas nem sempre acontecem como a
das, elas vão levantando, até ficar na professora planeja. Muitas vezes, por
ponta do pé. Depois eu vou descendo a causa da agitação dos alunos em algu-
escala e elas vão abaixando. Certo dia, mas turmas, a Priscila não consegue
quando cheguei na nota mais grave do alcançar seus objetivos. Existem vários
teclado, todas as crianças estavam dei- casos de aulas em que a professora pla-
tadas no chão, e uma aluna perguntou neja o seu trabalho e não consegue rea-
para a professora: "tia, por que o som lizá-lo porque os alunos ficam atrapa-
caiu?". Esse trabalho dentro de uma lhando o desenvolvimento das ativida-
abordagem "literal" do som também des. Nesses casos, ela geralmente encer-
pode ser feito objetivando uma aborda- ra a aula mais cedo.
gem "não literal", em que se procura
estimular diferentes interpretações cor- Mas também existem dias em que os
porais para os sons graves e agudos. alunos estão interessados nas aulas. Ge-
ralmente nesses dias eles mostram que
Outro ponto que percebi ser fundamen- eles sabem muitas coisas que a profes-
tal nas aulas de música é o trabalho com sora ensinou e só não fizeram antes
o corpo. Em todas as aulas, a Priscila porque não estavam com vontade.
toca pelo menos uma música para as Como exemplo, posso citar as músicas
crianças dançarem, muitas vezes se- que são apresentadas na escola; muitas
guindo a letra da mesma. Um exemplo vezes eles não cantam durante os ensai-
de música utilizada é: os e, no último dia, mostram para a
Priscila que eles aprenderam e só não
“Ir na rua prá jogar amare- cantaram antes porque não quiseram.
linha (nha)
Jogar bola na janela da vizi- Um projeto elaborado pela professora
nha (nha) este ano foi chamado de "soldadinhos
Correr, pular, brincar, é da pátria", para ser apresentado no final
uma curtição, do mês de setembro. Nesse projeto, ela
Melhor que ver televisão”. ensaiou uma pequena apresentação mu-
sical com cada turma para apresentar
Há também uma atividade na qual os para os pais, além de ensinar aos alunos
alunos movimentam-se por toda a es- como deveriam comportar-se durante o
cola: é o esconde-esconde com instru- hino nacional. Ela até arrumou uma
mentos. A Priscila divide a turma em bandeira e deu um jeito de hasteá-la na
dois grupos e dá um instrumento dife- praça durante a apresentação.
rente para cada grupo, por exemplo:
para um, o tambor e para o outro, o Fiquei impressionada ao ver o desen-
pandeiro. Então, a turma do tambor es- volvimento rítmico da turma de três
conde-se em algum lugar da escola e a anos nos ensaios para essa apresentação.
turma do pandeiro tem de procurar per- A Priscila propôs um instrumento para
guntando (e batendo o ritmo no instru- cada turma, e para essa, foram as claves

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(dois pedaços de madeira que as crian-


ças batem um no outro) e ensinou-os a A escola geralmente não deixa a criança
tocar um ritmo determinado. Eles criar. Dá para ela tudo pronto, exata-
aprenderam tão bem que eu fiquei co- mente como deve ser feito, deixando de
movida. Para a turma do maternal (dois lado a imaginação. Creio que um dos
anos), o instrumento foi o chocalho e papéis da aula de música, principal-
eles mostraram que aprenderam tocar e mente na educação infantil, seja incen-
parar na hora certa. tivar a criatividade e a imaginação da
criança. Na escola, podemos trabalhar
Porém, houve um problema depois da com o conto sonoro, pois as histórias
apresentação, pois a diretora da escola sempre mexem com a fantasia das cri-
disse que queria que todas as crianças anças, e com músicas que os incentivem
tocassem ao mesmo tempo, o que seria a usar a imaginação.
impossível, pois a idéia era mostrar aos
pais como está o desenvolvimento mu- Como exemplo de música que incentiva
sical de cada turma, separadamente, e a criatividade e a brincadeira, posso
além disso, a Priscila não havia traba- citar uma das músicas que as crianças
lhado uma apresentação conjunta com mais gostam na escola em que faço es-
todas as turmas, devido a dificuldades tágio. Nessa música, elas cantam, pu-
próprias da idade das crianças. lam, fazem os gestos e, como fala de
cowboy, muitas vezes elas pedem para a
Para a turma das crianças de um a dois Priscila deixá-las ir até a sala pegar uma
anos, apesar da Priscila trabalhar com vassoura para fazer de cavalo, mas
os instrumentos, o foco do seu trabalho como não têm vassouras disponíveis
está em ensinar as cantigas de roda, pois para todas as crianças, elas dançam sem
alguns estão aprendendo a falar e, vassoura mesmo. A letra diz o seguinte:
quando ela canta, conseguem cantar o
final das frases. O trabalho rítmico com Bang, bang, bang, cowboy
eles centra-se no canto. No entanto, eles Meu revólver de brinquedo
já conhecem o tambor e alguns já con- Não atira e não dói
seguem tocar forte e fraco. Meu cavalo empina alto
Corre muito, dá um salto
Além disso, eles gostam muito de dan- Xih! Caí!
çar e toda semana a Priscila leva pelo
menos uma música para eles dançarem. Sempre que toca essa música, a Priscila
Um dia desses, ela ensinou uma brinca- deixa os alunos à vontade para dança-
deira de roda, a qual demorou para dar rem do jeito que quiserem, e eles pas-
certo, pois os menores não queriam dar sam toda a música imitando cowboys e,
a mão para a criança que estava ao lado. mesmo sem vassoura disponível, eles
Foi difícil fazê-los entender que para pulam como se realmente estivessem
fazer a roda, todos tinham de estar de andando de cavalo, e até a última frase,
mãos dadas. Algumas vezes, nós tínha- “caí”, eles fazem como se estivessem
mos de juntar as mãos de algumas cri- caindo de um cavalo. É muito interes-
anças porque elas soltavam e a que es- sante vê-los dançando essa música, que
tava ao lado ficava brava porque tinha eles pedem para tocar todas as aulas.
soltado e nós tínhamos de convencer a
que tinha soltado a dar a mão nova- Em relação ao conto sonoro, os que eles
mente para o amigo. Mesmo assim, no mais gostam são as histórias de bruxas,
final a roda deu certo e eles gostaram que eles sempre pedem para a professo-
muito. ra contar. Outro dia, a Priscila levou um

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teclado para a escola e contou uma his- lado fica um salão onde as crianças to-
tória de bruxa para as crianças. Elas mam lanche, brincam, têm aula de culi-
gostaram muito e, a partir daí, querem nária, ou seja, sempre tem uma turma
histórias em todas as aulas. ali fazendo barulho, o que distrai as
crianças. Do outro lado dessa sala fica o
Nesse dia, ao invés de fazer os sons da parque, onde também sempre têm crian-
história com a boca, a Priscila usou o ças passando, brincando e gritando, o
teclado para fazer todos os sons que que acaba tirando a atenção das turmas
usou na história, mas mesmo assim, que estão tendo aula.
pedia para os alunos fazerem junto com
o teclado. Esse trabalho ficou muito Outro ponto que atrapalha o andamento
interessante. das aulas de música e, principalmente o
planejamento da professora, são as
As experiências vividas nesse estágio apresentações em eventos comemorati-
têm sido para mim um importante vos da escola: dia dos pais, das mães,
aprendizado como educadora e têm co- festa junina, natal etc. Creio que é muito
laborado como inspiração para minhas válido que as crianças façam apresenta-
reflexões sobre a musicalização na edu- ções para os pais assistirem, pois os pais
cação infantil. gostam de ver seus filhos dançando,
cantando e tocando algum instrumento e
CONSIDERAÇÕES FINAIS as crianças sentem-se felizes em mos-
trar aos pais o que estão aprendendo na
Estou gostando muito das aulas de mú- escola. Porém, os ensaios acontecem
sica que tenho assistido, mas alguns todos no horário das aulas de música, o
pontos me incomodam. O principal de- que dificulta o desenvolvimento do pla-
les é a falta de apoio da escola para es- nejamento elaborado pela professora.
sas aulas, pois apesar de proporcionar o
acesso à música para todos os alunos, Penso que as apresentações de dança e
não há uma colaboração efetiva para o canto podem ser ensaiadas também com
desenvolvimento do trabalho. as professoras de cada turma durante
toda a semana, assim, a Priscila não
Um dos motivos que me levam a afir- passaria toda a sua aula ensaiando para
mar isso é a falta de um espaço adequa- essas apresentações. As músicas especi-
do onde as aulas possam acontecer. No ais que as crianças cantaram no dia dos
caso das aulas do berçário e do mater- pais e dia das mães foram gravadas em
nal, existe uma sala de música mas, na fitas para que as professoras pudessem
maioria das vezes, ela não é usada, pois aprender e ensaiar com as crianças, mas
é a sala na qual muitas crianças dor- muitas vezes isso não acontecia, o que
mem. Por causa disso, cada dia as aulas dificultou também o aprendizado das
são dadas em um lugar diferente, muitas crianças menores, que de uma semana
vezes chegando a ser dadas na garagem, para a outra esqueciam a letra da músi-
que é um lugar onde passam muitas ca. Acredito que as apresentações preci-
pessoas, inclusive as crianças quando sam ser assumidas por toda a equipe
chegam, e a todo momento os alunos pedagógica da escola e não somente
distraem-se. pela área de música.

Nas aulas das crianças de três a seis Tenho questionado-me muito sobre a
anos, a sala destinada para as aulas de presença do "especialista" na educação
música é sempre utilizada, porém, a sua infantil. Será que é melhor que o "espe-
localização não é adequada, pois de um cialista" esteja mesmo nessas escolas,

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muitas vezes sem estabelecer vínculos tação do dia dos pais, e as crianças não
com as crianças e com as outras profes- me respeitaram. Naquele contexto, não
soras? O que tenho percebido no estágio foi possível fazer o que a Priscila tinha
é que as crianças pensam que as aulas me pedido porque eles não deixaram.
de música são apenas divertimento, um
momento de descontração, enquanto Acredito que a presença do "especialis-
muitas professoras consideram as aulas ta" é considerada indispensável por
como um descanso, pois deixam as cri- muitos pais, que querem que seus filhos
anças com o "especialista" e aproveitam sejam “pequenos gênios”, que saibam
esse tempo para preparar as aulas ou um pouco de tudo, e por muitas escolas,
terminar atividades que têm para fazer. que conhecem a falta de preparo das
professoras para trabalhar certos conhe-
Penso que, nesse caso, a melhor forma cimentos.
de solucionar esse problema seria in-
vestir na formação dos professores, para Entretanto, seria mais adequado que as
que eles mesmos pudessem trabalhar próprias professoras tivessem preparo
com a música, entre tantas muitos co- para trabalhar com a música na escola,
nhecimentos, com seus alunos. Talvez mas como isso não ocorre, acredito que
assim o desenvolvimento das crianças se faz necessário que as professoras
nessas áreas específicas fosse maior, pelo menos acompanhem essas aulas,
pois fica muito mais fácil realizar um que não deixem as crianças sozinhas
trabalho quando se tem vínculo com as com o "especialista", pois elas acabam
crianças. ficando sem referências conhecidas
dentro da sala de aula e assustam-se, o
O que eu percebi no estágio a esse res- que geralmente acaba resultando em
peito, é que as crianças maiores conse- receios, bagunça e desrespeito dos alu-
guem criar um vínculo melhor com o nos pelo professor "especialista".
"especialista", apesar de muitas vezes
elas excederem-se na bagunça. Mas as Não descarto a validade da presença do
crianças muito pequenas não têm muita "especialista" na educação infantil, ao
noção de que o "especialista" está ali contrário, penso que o trabalho pode
como professor dela naquele momento, tornar-se muito rico com isso, mas des-
e estranham estar na sala com uma pes- de que seja feito em conjunto com as
soa que não conhecem direito, sem a professoras. Sobre esse assunto, Ayoub
professora, o que acaba provocando (2001, p. 56) afirma que: "Reforçando a
choro na maioria das vezes. idéia da possibilidade de construirmos
relações de parceria, de confiança, não
Com relação a esse assunto, posso citar hierarquizadas, entre diferentes profis-
dois exemplos de experiências vividas sionais que atuam na educação infantil,
no estágio: a primeira delas foi a volta poderíamos pensar não mais em profes-
das férias, quando cheguei para a pri- soras(es) "generalistas" e "especialis-
meira aula do semestre e, ao olharem tas", mas em professoras(es) de educa-
para mim e para a professora de música, ção infantil que, juntas(os), com as
as crianças de um ano começaram a suas diversas especificidades de forma-
chorar, e quase que a professora não ção e atuação, irão compartilhar seus
conseguiu dar aula aquele dia. Uma diferentes saberes docentes para a
outra situação passou-se com a turma construção de projetos educativos com
do pré, que um dia a Priscila precisou as crianças"
deixar-me sozinha com eles para termi-
nar alguns preparativos para a apresen-

ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.3, n.1, p.98-108, dez.2001 107
ARTIGO

Finalizo este estudo ressaltando a im- OBRAS CONSULTADAS


portância da realização de trabalhos em
parceria no processo de musicalização MAHLE, M. A. Iniciação Musical.
na educação infantil. Piracicaba: Irmãos Vitale, 1969.

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escolas: livro do professor. Petrópolis,
REFERÊNCIAS RJ: Vozes, 2001.
ALMEIDA, M. J. de. Imagens e sons: a NASCIMENTO, M. E. P. do. Os profis-
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PINTO, Priscila Graner Silva. Musica-
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Pedagoga formada pela
ensinar as alegrias da música? 2.ed.
Faculdade de Educação – UNICAMP
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