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Impasses de um ateu

Leio num ô nibus em Nova York propaganda de um grupo de ateístas: Você não precisa acreditar em Deus para
ser uma pessoa ética.  Segue a linha daquele outro anú ncio estampado em ô nibus ingleses: Deus provavelmente
não existe. Agora pare de se preocupar com isso e aproveite a sua vida. Estou aproveitando a minha, sentado à
mesa de um bar numa calçada perto do Union Square, em Manhattan, saboreando uma cerveja mexicana.

As palavras no ô nibus me fazem refletir sobre meu ateísmo. Minha primeira reaçã o é de alegria e cumplicidade.
Jú bilo, até. Ateus sã o por natureza seres que pensam por si, respeitam a diversidade de pensamento e por isso
preferem caminhar à margem do rebanho – para usar um termo muito ao gosto dos religiosos – e evitar
pensamentos pré-fabricados. A ideia da individualidade, e a valorizaçã o dessa condiçã o, fazem com que ateus
raramente se reú nam em grupos, sociedades, partidos ou facçõ es para defender a causa.
De uns tempos para cá , com o recrudescimento das posturas e açõ es de grupos religiosos, principalmente
daqueles ligados ao terrorismo, muitos ateus começaram a se unir numa tentativa de fazer suas vozes ganhar
peso político. Ateus, em geral, têm consciência de que o que os diferencia dos crentes é o simples fato de nã o
acreditarem na existência de Deus. De resto, sã o idênticos aos crentes, acometidos dos mesmos medos,
incertezas, dú vidas e inseguranças, assim como capazes dos mesmos sentimentos altruístas (compaixã o,
misericó rdia) ou nã o (ira, inveja etc).
Eu, antes discreto, passei a afirmar ultimamente meu ateísmo com mais convicçã o. Dizeres comoDeus seja
louvado nas notas de real, campanhas ferrenhas contra a descriminalizaçã o do aborto, tentativas histéricas de
proibir as pesquisas com células-tronco embrioná rias, oposiçã o obstinada aos direitos de homossexuais e a
crescente infiltraçã o do criacionismo – doutrinaçã o religiosa disfarçada de pseudociência – em nossas escolas
sã o só alguns dos pontos que me incomodam muito na atuaçã o política de grupos ligados à s religiõ es, e
motivam minhas tentativas de – ao meu modo – questionar o que entendo como obstá culos à liberdade de
expressã o e direitos individuais, dois dos pilares de qualquer democracia que se preze.
Nã o me incomodo com as crenças religiosas e defendo o direito das pessoas exercerem seus rituais e cultos,
contanto que nã o firam a liberdade alheia e nã o interfiram na educaçã o, ciência e política, que devem – no meu
entender – permanecer acima, ou ao largo,  dos credos.
Volto à Nova York e ao ô nibus com os dizeres ateístas (e à minha cerveja mexicana): unindo-se em grupos e
iniciando uma jihad contra as religiõ es os ateus nã o estarã o caindo numa armadilha? Será mesmo uma boa
estratégia agir da mesma forma que os religiosos radicais e assumir idêntica beligerâ ncia? Nã o estaríamos –
desajeitadamente – usando as mesmas armas do inimigo? Precisamos mesmo considerar   religiosos como
inimigos? Nã o faríamos melhor permanecendo fora do rebanho tentando iluminá -lo (e aqui nã o dou o sentido
religioso à palavrailuminação) somente com o exemplo de nossos pensamentos, independência e liberdade?

O ateu, num impasse, imerso em dú vidas, frá gil, impotente e solitá rio como qualquer outro ser humano, acaba
de beber sua cerveja e sai flanando por Nova York sem encontrar respostas para as suas perguntas. Mas feliz
por duvidar e nã o ter certezas.

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