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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


DEPARTAMENTO DE ARTES PLÁSTICAS

DISCIPLINA: ARTE DOS ANOS 1960 À ATUALIDADE


Vicente de Paula Brasileiro Filho
NUSP: 5989336

ACUMULAÇÕES EM ARMAN E JAC LEIRNER

A primeira frase do texto de Guy Brett sobre o trabalho de Jac Leirner em seu texto A
bill of wrongs1, “Eu primeiro achei que [...] fosse escultura”, me parece muito significativa com
relação aos procedimentos, similares e ao mesmo tempo distintos, entre a artista e Arman.
Trata-se de dois acumuladores de coisas do real: Arman coleta objetos em mercados de pulgas
e ferros-velhos, dentre outros lugares destinados ao que é descartado, e os dispõe no espaço;
Jac acumula o que está a seu alcance e serializa. Em Jac, porém, há uma transubstanciação
formal de significado pelo próprio procedimento de acúmulo que em Arman não aparenta ter a
princípio. A comparação entre os dois artistas pode parecer anacrônica: ele produz suas
Accumulations desde o final da década de 1950; ela começa a dar forma às suas séries em
meados da década de 1980. Entretanto, o que pode ser constatado, a partir da observação
temporal de como o(s) processo(s) de acumulação dele se transformaram, é uma tendência à
construção do significado da forma, numa aproximação ao procedimento adotado por ela em
suas obras.
Em sua entrevista a Adele Nelson2, Jac Leirner diz: “[...] trabalho com qualquer coisa
que surja na minha frente, qualquer coisa que seja transportada por qualquer um, em todos os
lugares do mundo.” O material de suas obras é o mundo, mas aquele que está ao seu alcance.
Os objetos se interpõem a ela, até o momento em que não é mais possível ignorá-los. Suas obras
revelam um método de acumulação e classificação obsessivos, bem como uma valorização das
coisas sem ou que perderam seu valor: as sacolas, os maços de cigarro e as notas de dinheiro
em Nomes (1989), Pulmão (figura 1, 1987) e Os cem (figura 2, 1986), respectivamente, são

1
BRETT, Guy. A bill of wrongs. In: CANONGIA, Ligia. Jac Leiner: Ad infinitum. Rio de Janeiro: Centro Cultural
Banco do Brasil, 2002. 221 p. Catálogo de exposição, 19 fev. 2002-28 abr. 2002, Centro Cultural Banco do Brasil.
2
LEIRNER, Jac. In: Jac Leirner conversa com Adele Nelson. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 184.
exemplos do procedimento que a artista chama de “[...] criar um lugar para as coisas que não o
tem.”3

Figura 1: Pulmão, 1987 Figura 2: Os cem (roda), 1986


Embalagens de cigarro e cordão de poliuretano Papel-moeda e aço

Arman “descobre” a acumulação na época em que se forma o grupo do Nouveau


Réalisme em Paris, ao redor do crítico de arte Pierre Restany, este sendo responsável por
identificar em um grupo de artistas, dentre os quais Yves Klein, Jean Tinguely e Raymond
Hains, “[...] um gesto fundamental de apropriação do real ligado a um fenômeno quantitativo
de expressão [...]”4. Para ele, essa nova aproximação da realidade retomava a herança
duchampiana do objeto autônomo, do ready-made, através da apropriação sensível do objeto
real considerado, por si mesmo, expressivo. 5 No caso de Arman, seu processo começa com a
“impressão” de objetos em papel, os Allures (figura 3), para, em seguida, se apropriar da
materialidade do próprio objeto e, a partir da apresentação de Le Plein (figura 4) em 1960,
quando o artista encheu a galeria Iris Clert em Paris com detritos variados, desenvolver a “[...]
linguagem da quantidade.”6
Para Jaimey Hamilton7, as acumulações de Arman revelam o que este chama de
“inundação do nosso mundo com lixo e objetos estranhos que foram rejeitados” 8. O autor

3
LEIRNER, Jac. Op. cit. p. 97.
4
RESTANY, Pierre. O Novo Realismo. In: RESTANY, Pierre. Os Novos Realistas. São Paulo: Perspectiva, 2011.
p.27.
5
RESTANY, Pierre. Op. cit. p. 29, 37.
6
RESTANY, Pierre. Op. cit. p. 45.
7
HAMILTON, Jaimey. Arman’s System of Objects. Art Journal: vol. 67, n. 1. p. 54-67. Disponível em
http://www.jstor.org/stable/20068582.
8
HAMILTON, Jaimey. Op. cit. p. 65.
afirma, a partir da declaração do artista de que é ao mesmo tempo testemunha e participante do
ciclo capitalista de produção, consumo e destruição, que elas materializam a tese de Jean
Baudrillard, Sistema dos Objetos, onde o filósofo declara que a proliferação de objetos no
mundo força a classificação deles por um valor menos material e mais simbólico. A acumulação
passa então a significar fartura de bens de consumo: cada objeto perde sua aura própria em prol
da imagem de “[...] abundância, plenitude, excedente e afluência”9, e o conjunto artista-obra se
torna sujeito representativo do sistema. Em outras palavras: o artista ao mesmo tempo enquadra
e é enquadrado pela sociedade de consumo através da sistematização das acumulações10.

Figura 3: Allure d’objet, 1958 Figura 4: Le Plein, 1960, Galeria Iris Clert, Paris
Tinta sobre papel, 49cm x 63,5cm Lixo e refugos diversos

As acumulações de Arman, formalmente, são conjuntos de objetos, agrupados segundo


a espécie em comum, porém dispostos de forma que parece aleatória. Para ele, o que importa
não é a forma do trabalho, e sim à superestrutura que ele alude e que não está diretamente
presente nele. Entretanto, mesmo perdendo sua aura, cada objeto ainda é único e identificável.
Nos primeiros trabalhos de Jac Leirner, ao contrário, percebemos uma transubstanciação
pelo acúmulo. Mesmo que se possa verificar, de perto, que Os cem, por exemplo, são
constituídos de milhares de cédulas que perderam seu valor monetário, ainda sim elas
constituem, em série, um novo objeto, o objeto plástico, tridimensional a partir da junção
“bidimensional” de suas unidades, cujos significados fazem parte de uma esfera diferente da
dos objetos individualmente. As Accumulations Renault de Arman (figura 5), peças de carro
recém-saídas da fábrica e dispostas serialmente, utilizam o mesmo procedimento de acúmulo
que se transforma em outra forma. Porém, não podemos esquecer da lacuna que existe entre os
dois trabalhos, seja ela temporal, seja ela material. Aqui se coloca um outro problema: entre

9
HAMILTON, Jaimey, apud BAUDRILLARD, Jean, 2008. Op. cit. p. 60-61.
10
HAMILTON, Jaimey. Op. cit. p. 65.
centro e periferia. Talvez seja importante destacar que, enquanto Arman coloca esse gesto no
início da cadeia dos meios de produção, dentro da fábrica, Jac se coloca no final dela, no papel
de consumidora.
A partir do comentário anterior, podemos dizer que o que Arman afirma sobre ser
paradoxalmente testemunha e participante do consumo também é observado em Jac, porém de
modo inverso. Robert Storr11 afirma que “[...] a artista estabelece um vínculo entre ela mesma
e o espectador como portadores dos papéis similares do consumidor, que estuda a mercadoria,
e do caçador de curiosidades, que vislumbra furtivamente as cenas de um território
habitualmente esquivo e impreciso.” Partindo antes da posição de sujeito consumidor do que
do observador atento, sua inserção nessa lógica é mais “subjetiva”. “[...] sua vida tornou-se o
ponto de entrada em sistemas mais amplos, relações difíceis de compreender”12. Os objetos que
ela põe dentro de suas obras são aqueles do seu convívio: o monte de notas na gaveta, os cigarros
fumados, as sacolas que carregaram coisas compradas, os talheres e cinzeiros roubados nas
viagens. Eles são consumidos antes (ou ao mesmo tempo) de serem observados. Jac se torna,
portanto, participante do consumo antes de ser testemunha. Esse traço autobiográfico (“Sou
parte de todas essas obras, apesar de suas características prosaicas” 13) é comum nos trabalhos
da artista. Isso é difícil ver em Arman, dado que seus trabalhos estão imersos nessa cadeira
produtor-consumidor. Ele não “consome” os objetos antes de, e sim para produzir seu trabalho.
Os objetos são alheios à sua biografia.

Figura 5: Accumulation Renault 105, 1967 Figura 6: Corpus delicti, 1993


Peças de automóvel Feltro, talheres e vidro

11
STORR, Robert. Os bônus do viajante frequente. In: Jac Leirner conversa com Adele Nelson. São Paulo: Cosac
Naify, 2003. p. 24.
12
BRETT, Guy. Op. cit. p. 161.
13
LEIRNER, Jac. Op. cit. p. 148.
Uma outra diferença entre eles com relação ao procedimento de construção de suas
acumulações é como a compilação desses objetos se coloca no espaço e no tempo. Em Jac, esse
procedimento é temporal. Em Corpus Delicti (1992, figura 6), ela mostra, além dos objetos
furtados, os bilhetes de voo, denotando a data exata quando adquiriu aqueles cinzeiros. Em
Pulmão e Os cem, o próprio gesto é temporal: não se fuma centenas de maços de cigarro, e nem
se acumula (por mais desvalorizada que seja a moeda) tantas cédulas, ao mesmo tempo.
Relacionada a essa constatação há a afirmação da artista de ter como meta dar corpo ao tempo.14
Já em Arman, o procedimento é apenas espacial: os objetos parecem ter sido adquiridos todos
ao mesmo tempo e dispostos em grupo no espaço, confinado ou não. O tempo não importa para
ele, e sim a materialidade das coisas que exibe. Além disso, nela o gesto é tematizado. Lorenzo
Mammi, comentando sobre uma herança dadaísta no trabalho dela, diz: “O que a obra isola,
nesse caso, não são tanto objetos, quanto séries de gestos repetidos e semiautomáticos, que
utilizam os objetos como mero pretexto.”15 Sendo assim, Pulmão, por exemplo, tematiza o
gesto de abrir cada maço de cigarros, destrinchá-los em suas partes constitutivas e agrupá-los
segundo essa classificação; em Os cem há também o gesto de perfurar cada nota e agrupá-las
uma a uma para constituir outra forma.
Talvez a obra que mais aproxime Jac de Arman, no tocante ao modo como as coisas do
mundo real são dispostas no trabalho de arte, seja Corpus delicti. Nela, a artista dispõe objetos,
como talheres e cinzeiros, roubados de aviões em suas viagens, sejam sobre “caixas” de plástico
bolha ou feltro cobertas com vidro, sejam dispostos na parede ou formando estruturas espaciais.
Porém, o que dá o tom de proximidade é o fato de que cada objeto, apesar de disposto em grupo,
é por si mesmo identificável isoladamente. Ou seja, assim como nas acumulações dele, o
agrupamento é feito por similaridade e as características individuais não são desprezadas.
Em contrapartida, percebemos uma tendência nos trabalhos mais recentes de Arman à
serialização e classificação. Já foi comentado anteriormente sobre o acúmulo serializado em
Accumulations Renault, porém em outras obras percebemos a vontade de transubstanciação do
objeto em forma. Em suas Cascades (figura 7), da década de 1990, os objetos são dispostos
ordenadamente no espaço e, apesar de ainda sim identificáveis individualmente, conformam
um novo objeto agrupado, com formas distintas das unidades. Algumas de suas accumulations
anteriores apontavam para isso (figura 8), denotando uma possível influência da chamada
herança minimalista, que também está presente em Jac.

14
LEINER, Jac. Op. cit. p. 83.
15
MAMMI, Lorenzo. Jac Leirner. In: CANONGIA, Ligia. Jac Leiner: Ad infinitum. Rio de Janeiro: Centro Cultural
Banco do Brasil, 2002. 221 p. Catálogo de exposição, 19 fev. 2002-28 abr. 2002, Centro Cultural Banco do Brasil.
Figura 7: La chute des courses, 1996 Figura 8: The peacock, 1973
Acumulação de carrinhos de supermercado Acumulação de ferramentas

Talvez também algum traço do fenômeno que Hal Foster afirma surgir na arte
contemporânea, do artista como etnógrafo16, desconstrutor e ao mesmo tempo sujeito
representativo de sua cultura, possa ser encontrado no trabalho de Jac. No entanto, e em sentido
oposto a Arman, que afirma desde o início sua vontade de refletir sobre a sociedade do consumo
através da proliferação de objetos no mundo, é ao próprio trabalho de arte que as obras dela se
referem. Não há nelas, em princípio, a crítica a alguma característica do momento histórico no
qual se inserem. A artista afirma, sobre Os cem, que “[...] a obra realizada com cédulas
monetárias não trata de economia, é economia pura. A obra não está ali para representar; ela já
é, e carrega essa condição em seu estado bruto. Pode-se observar a palavra ‘dinheiro’, mas a
peça tem um cheiro, está viva.”17 Esse comentário denota postura contrária à de Arman e
corrobora a questão da transfiguração do objeto em outro. Podemos até utilizá-las com um
objetivo crítico, porém é importante saber que esse julgamento se insere no sujeito que vê a
obra, e não na obra em si.

16
HAMILTON, Jaimey, apud FOSTER, Hall, 1996. Op. cit. p. 56.
17
LEIRNER, Jac. Op. cit. p. 86-87.

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