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O Senso Comum – Thomas Paine

O autor e a obra.

Nascido na Inglaterra, Thomas Paine foi um autor engajado não apenas no plano das ideias,
mas também no plano da ação. Foi exilado da Inglaterra – onde seria morto se retornasse – e preso
em Paris, quando Robespierre e os jacobinos assumiram o poder.
Paine foi, a seu tempo, um liberal. Defendeu vigorosamente as liberdades individuais e foi
autor de uma severa crítica anticlerical. Hoje, no entanto, o autor dificilmente seria considerado um
“liberal puro”, na medida em que defendia políticas como a educação universal, a pensão para os
idosos, o auxílio temporário para os necessitados (central nas políticas de welfare, radicalmente
atacadas pelos liberais de hoje) e até mesmo a taxação progressiva, defendida por Marx, n'A
Questão Judaica, como o meio de abolição gradual da propriedade privada. Ficam evidentes certas
contradições relativas aos princípios básicos do liberalismo clássico, provenientes em grande parte
de uma certa ingenuidade ao se pensar que tais políticas resultariam exatamente nos objetivos
propostos, ignorando o fato de que o poder político corrompe tanto o governo monárquico – cujas
injustiças ele buscava remediar – quanto o governo representativo.
O ensaio panfletário denominado “Senso Comum” (ou “Bom Senso, se acordo com a
tradução) foi uma espécie de catalisador de eventos, vindo a influenciar muitos dos acontecimentos
que se seguiram. O alcance da obra foi imenso para os padrões da época, chegando a atingir todas
as camadas da sociedade: venderam-se 120.00 exemplares em três meses, sendo que, pouco tempo
depois, já circulavam pelo mundo mais de 500.000 cópias dessa obra que foi das mais vendidas em
todo o século XVIII.
Este sucesso se deve a certos aspectos marcantes do texto: a linguagem fácil e inflamada, a
argumentação clara, o apelo emocional e até religioso. Ademais, trata-se uma obra incisiva, que
discute um contexto então atual, muito bem delimitado no espaço e no tempo. Não resgata uma
discussão sobre os valores iluministas, mas os toma como dados para, com eles, olhar para o maior
e mais imediato problema que se tinha em mãos: a Independência Americana.

I.

O autor começa por estabelecer uma distinção entre sociedade e governo: enquanto a
primeira corresponde a uma forma de cooperação voluntária entre os indivíduos, o segundo
funciona como uma instituição coercitiva sempre a regular o comportamento destes mesmos
indivíduos. O governo é, na melhor das hipóteses, um mal necessário. Isto porque, dados os desvios
da natureza humana, o indivíduo concorda em abrir mão de uma pequena parcela de sua
propriedade a fim de ter protegido todo o restante. As pequenas parcelas extraídas de todos os
indivíduos por meio de impostos sustentam o funcionamento do governo, que é essencialmente
improdutivo e, portanto, não gera riquezas. A origem do governo estaria, então, na impossibilidade
de um mundo regido pela virtude moral; seu propósito e finalidade seriam a liberdade e a
segurança.
A alternância de poder engendraria um ciclo virtuoso através da cooperação constante entre
governantes e governados, e disso resultariam a força do governo e a felicidade do governado.
A defesa de Paine a essa forma de governo se baseia na ideia de que quanto mais simples for
algo, menos passível de desordem ele é; e, uma vez, desordenado, mais fácil será reordená-lo. É
este mesmo princípio que fundamenta sua crítica à Constituição inglesa, que, por complexa, é
também contraditória e ineficiente em tempos modernos. Ela incorpora categorias republicanas a
resquícios absolutistas: a figura do rei e a casta dos nobres se coadunam ao lado da Casa dos
Comuns, de representação popular.
A contradição fica por conta do funcionamento desse esquema. As medidas do rei devem ser
avaliadas pela Casa dos Comuns, o que implica nos pressupostos de que a figura do rei não é
totalmente confiável e, portanto, deve estar sob constante vigilância; e que os Comuns, ao quais se
atribui o papel de tal vigilância, são mais sensatos que o próprio rei – de onde se origina a questão:
como pode o poder estar nas mãos de uma figura suspeita, que necessita ser sempre controlad? Por
outro lado, o rei tem poder para rejeitar as leis advindas da Casa dos Comuns, o que acaba por
inverter o raciocínio anterior. Outro apontamento negativo em relação à existência de um rei seria
sua distinção. Por ser diferenciado, o rei estaria isolado do sistema-mundo diante do qual se define
enquanto tal, ao passo que sua posição o obriga a ser o maior conhecedor desse mesmo sistema.
Paine entende como importante o estudo dos erros da Constituição inglesa, a fim de superar
preconceitos irracionais que serviriam de obstáculos à elaboração, na América, de uma boa
Constituição.

II.

No capítulo em que aborda a noção de monarquia, Paine aponta para a problemática


distinção forçada entre reis e súditos, que não encontra suporte na natureza ou na religião. Na
natureza não há nada que justifique a diferenciação de pessoas supostamente tão mais elevadas que
as demais. Além disso, os contextos livres do governo de um rei teriam sido sempre os mais
pacíficos, enquanto a figura do rei, quando existente, apontou sempre para guerras e opressão. Nas
Escrituras, a monarquia foi sempre condenada por constituir uma afronta ao reinado divino, na
medida que supõe a natureza sagrada daquele que não é mais que um homem a ocupar
arbitrariamente uma posição.
A monarquia traz consigo a questão da sucessão hereditária, que não se sustenta por meio de
argumentos lógicos. A ideia de igualdade entre os homens, base formal dos novos movimentos
iluministas, não suporta a imposição de um governo perpétuo de uma família ou linhagem sobre
todas as outras. Ainda que um primeiro rei seja merecedor de tal título, nada indica que todos os
seus descendentes também o sejam.
Tratando-se de um rei eleito, a insensatez dessa instituição seria ainda maior, dado que um
grupo decidiria não apenas quem governaria sobre si, mas também sobre todos os que viriam a
seguir, incorrendo no perigo de deixar seus descendentes, cujo direito de escolha lhes foi negado,
nas mãos de um governante ineficiente ou injusto que, de outra forma, jamais ocuparia tal posição.
O monarca moderno, assumindo um cargo injustificado, tem suas atribuições reduzidas a
um mínimo. Além de distribuir cargos de interesse, nada faz que compense seus gastos.

III.

Ao analisar o estado das coisas em uma América em início de guerra por sua independência,
Paine argumenta no sentido da impossibilidade de uma reconciliação entre América e Inglaterra. Na
direção oposta, defendia-se que, por ter nascido sob o jugo da metrópole, as colônias dependiam da
dominação inglesa para seu desenvolvimento. Ignora-se no entanto que a América deve seu
crescimento ao comércio, que, estando ela independente ou não, seguiria existindo. E tanto mais
quanto mais livre ela fosse.
Para os que insistiam no importante papel protetor da Inglaterra em relação à América, Paine
respondia que tal proteção servia a interesses próprios do reino – a saber: a viabilização do
comércio e a manutenção do domínio sobre as colônias. Pouco importava, também, que o que se
entendia por sociedade americana tinha sua origem na Inglaterra. Pois da mesma forma os ingleses
seriam, originalmente, franceses e, em raciocínio análogo, eternos súditos do governo da França.
Por outro lado, uma ligação de dependência entre as colônias americanas e a Inglaterra
acabaria por envolver as colônias em guerras travadas pela Inglaterra, reduzindo seus mercados
consumidores e seu contingente e, portanto, prejudicando a dinâmica nativa. A América estaria
dependente do humor de um tirano em relação ao seus inimigos, ainda que estes nada tivessem
contra as colônias.
Mais provável era, no entanto, que o irrompimento das hostilidade tivesse posto fim a
qualquer possibilidade de reconciliação. E, dado que inevitável, o processo de independência não
deveria ser adiado para as próximas gerações, retardando a estabilidade política e o progresso da
América enquanto uma sociedade livre.
Como indicação da inviabilidade de uma reconciliação, Paine citava a crescente
intensificação dos problemas da América, já complexos demais para serem tratados a um oceano de
distância – o que sempre demanda uma grande quantidade de tempo. Ademais, o preço em dinheiro
e sangue da luta pela independência já teria sido alto demais para que se pensasse em retrocesso.
Grandes também seriam as violações infligidas pela Inglaterra, impossibilitando entre colônias e
metrópole qualquer forma de relação amistosa.
Assumindo a possibilidade de reconciliação, neste caso, as colônias só teriam a perder.
Primeiro porque uma América legislada por um tirano vingativo seria rebaixada a uma posição onde
não mais representasse qualquer ameaça à metrópole. Segundo, porque as medidas tomadas pelo rei
seriam sempre incondicionalmente favoráveis a Inglaterra, mesmo que, para tanto, incorressem
prejuízos para a América, que não é mais que um objetivo secundário.
Também em um cenário de reconciliação, a instabilidade política de um governo
constantemente questionado causaria o afastamento de empresários estrangeiros e de nativos
descontentes. Entretanto, o argumento mais forte contra um retorno à relação de dependência entre
América e Inglaterra seria a ideia de que a paz se garantiria apenas através da independência das
colônias. Em caso contrários, revoltas locais seriam inevitáveis, e que poderia fazer a Inglaterra em
relação a elas? Nada. E qual o uso de um governo incapaz de garantir a paz a seus governados? O
que justificaria os impostos pagos por estes? A reconciliação, ademais, abriria as portas para um
tirano disposto a conquistar o apoio dos descontentes.
Àqueles que aludiam ao perigo de luta entre as colônias, Paine responde que a ausência de
relação de superioridade entre elas afastaria esta hipótese, como o mostram as repúblicas europeias,
sempre mais pacíficas que seus vizinhos absolutistas.
Se existia um problema concreto em relação à independência, este seria a falta de propostas
para sua consolidação. Paine sugeriu a criação de instituições dotadas de representatividade mais
igualitária e capazes de proporcionar conhecimento e poder, na medida em que os representantes
têm experiências relativas aos problemas nacionais e, por serem empossados pelo povo, gozam de
autoridade legal.
Na América, a Lei deveria ser o Rei, e não o contrário. E esta Lei deveria assegurar a
liberdade – inclusive a religiosa - e a propriedade de todos os indivíduos. O novo governo deveria
ser capaz de proporcionar a maior felicidade individual às menores despesas.

IV.
Paine aponta para a capacidade e a necessidade da criação de uma esquadra, unindo
comércio e proteção. Na América, as condições para tanto superavam a de qualquer outra nação.
O momento era propício para a luta, dado que as colônias estavam unidas pela mesma
opressão sofrida. Sendo jovens, mais facilmente se estabeleceriam sob o mesmo governo.

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