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Aula 9 - O principado romano como ideologia.

a) O principado romano como instituição e como ideologia.

Nenhum estudo da herança greco-romana estaria completo sem uma consideração


da linguagem politica do principado, a ordem política instaurada por Otávio Augusto em
27 a C. Normalmente, o tema do Império Romano é apresentado como tema da história
política. Sua instauração como o resultado de uma luta esganada pelo poder a que as
aventuras de Júlio César, dera azo na geração anterior. A ideologia do Império propalada
por Otaviano, o novo uso de velhas fórmulas, a nova concepção do poder seria a mera
propaganda oficial que todo novo regime necessita, indigna de ser tomada como objeto
da história das ideias.
Mas esta é uma maneira limitada de enxergar s coisas. A instauração do império
romano foi tanto uma luta pelo poder como uma profunda mudança de mentalidade.
Como é o caso com as revoluções dos tempos modernos, o significado simbólico da
fundação do império de Augusto foi um fato político tão importante quanto as mudanças
reais na estrutura governo que se lhe seguiram. Se não houvesse uma verdade profunda
na ideologia do império, a mudança jamais poderia ter continuidade que teve.
O principal item desta sua fórmula politica é a ideia de restauração da ordem
republicana através de um mandato pessoal. O Império não veio substituir uma República
vigorosa por um sistema despótico mas salvar uma República que já não correspondia a
seus ideias. Os intérpretes modernos gostam de se desfazer da intenção declarada do
jovem Imperador como demagogia. Mas, primeiro, as mudanças reais da “revolução
romana” não foram insignificantes, mas foram muito menos drásticas do que as vezes se
supõe. Em muitos sentidos, a perca de poder do senado, a concentração na figura do
Imperador, e as demais mudanças institucionais que se seguiram à fundação do
Principado foram mais a corroboração de uma situação que já existia de fato que uma
inovação. O militarismo, a crise das instituições republicanas, o perigo das liberdades
romanas não foram inventadas por Otaviano. Segundo: o contraste entre uma República
e um Império só existe aos olhos modernos, que tende a ter uma visão parcial dos ideais
do classicismo. Do ponto de vista de Otávio e do mundo a que ele pertencia, que um
Imperador (não um Rex mas um chefe militar) pudesse resgatar os ideais de uma Res
Publica era algo não apenas plausível mas em certo sentido, evidente.
Que foi, de fato, o que aconteceu, prova-se pela longa persistência, no espírito
romano do império, dos ideais da Pax Augusta. Quinhentos anos depois da grande
restauração, os imperadores ainda buscavam inspirar-se nos ideais augustanos de
Constituição ideal. E não trata-se apenas de simples persistência de ideário político. O
Principado foi a era de um vigor literário quase sem precedente. Foi a época em que foi
escrita a Eneida, a construção intelectual mais característica do espírito da época, que
procura igualar o império romano à Hélade homérica, através da criação de um mito épico
equivalente. Seria um projeto impensável nas gerações anteriores, quando a atitude
romana perante a tradição literária helênica ainda era desconfiança do militar camponês
perante adversários inferiores em força mas de cultura superior. Somente depois da
restauração da República por Augusto, os letrados romanos passaram a sentir-se seguros
para absorver a tradição sem o temor de sucumbir a ela no processo. O império parecera
a toda uma geração de poetas e historiadores uma criação cultural igual ou superior à
Hélade.
Mesmo que, até o seu fim no Ocidente, não tenha nunca faltado os que criticassem
seus ideais em nome dos antigos ideais republicanos – que desde os tempos de Júlio César,
era encarnado pela figura de Catão – no fim, foi a mística imperial que triunfou. Não
poderia ser diferente. Ela conferia à antiga ideia de República um significado moral que
os antigos ideais republicanos não podiam conferir. Do ponto de vista da ideologia do
império, a ordem política romana não era apenas uma coisa própria para romanos mas
uma ordem que, graças à virtude destes, e sob sua liderança, estaria apta a incluir toda a
humanidade conhecida. As vastas conquistas realizadas pela República nos séculos
precedentes (e que foram a causa da crise que criou a necessidade de sua restauração)
puderam, graças á nova ideia, ser incluídas em uma grande visão civilizacional que lhes
atribuía um sentido superior ao de simples exercício do poder do mais forte.

b) A ideologia imperial romana e a helênica.

Em certo sentido, a ideologia imperial é a mais influente criação cultural romana


ao lado do direito. Até o fim da Idade Media, e a fundação das monarquias absolutistas,
a ordem política ainda era pensada em termos de Igreja e Império. A influência da tradição
jurídica foi, certamente, mais impregnante, principalmente se levarmos em conta que a
linguagem do direito traduz-se naturalmente em hábitos institucionais, ao passo que
coleção de narrativas e grandes ideias como a ideologia imperial é sempre mais virtual.
Todavia sem a mística destas narrativas o direito jamais teria podido ter a influência
determinante que teve. Bem se pode dizer que a ideologia imperial não é outra
coisa que a universalização da visão de mundo própria do direito romano, mais ou menos
como se diz que o cristianismo não é outra coisa que universalização do judaísmo. O
paralelo pode soar peregrino mas não há razão para ter escrúpulo em utilizá-lo. Em um
caso como no outro, estamos diante de uma ordem moral elaborada ao longo da história
de uma cultura particular elevado a norma válida para toda a humanidade conhecida.
Ao lado da narrativa de Restauratio, a principal noção da ideologia imperial é a
de Auctoritas. Otavio Augusto e nenhum de seus sucessores possuíram jamais o título de
imperador como um patrimônio que pudessem legar a seus sucessores, como era o caso
das monarquias medievais. No Império Romano, o chefe supremo não ocupava
magistratura mas um mandato público. E não o fazia através da investidura por outro mas
por uma decisão pessoal. Um cidadão proeminente, movido por espírito de serviço, reuniu
om seus próprios meios um exército para com ele acabar com as pertubações da guerra
civil e assim assegurar a prosperidade da República. É assim que Otávio justifica sua
tomada do poder. A presunção tácita de que o Imperador é um patriota que aceita a púrpura
como um sacrifício pessoal à coisa pública permaneceu durante toda a duração do
Império, e é o que explica que não se tenha nunca, ao longo de 400 anos, chegado a uma
legislação sucessória que evitasse o perigo da guerra civil a cada falecimento do chefe.
Por útil que um instituto como este fosse (como era útil para as monarquias medievais),
ele contradiria a mística da função. O imperador não detinha, como os demais membros
do aparato, potestas. O fundamento de seu poder era o carisma pessoal próprio dos sábio
e velhos – a auctoritas o qual, em tese, não tinha uma função específica.
A ideia de que um governante possa ter uma autoridade ao mesmo tempo política
e pessoal é uma construção tipicamente romana, que não poderia ter surgido em um
contexto helenístico. A tradição grega não desconhecia, naturalmente, a instituição do
poder pessoal do senhor sobre seus filhos, mulheres e escravos. Mas esse poder patriarcal
– em grego: “despótico” – se não é uma coisa ruim em si mesma (afinal, as fazendas
precisam ser administradas) é o oposto do poder propriamente político, que é um poder
exercido entre iguais através do uso da inteligência e não do carisma pessoal. A Pólis é
uma associação de patriarcas que deixam tacitamente de sê-lo ao adentrar nos negócios
políticos. Nela, ninguém exerce o mando a não ser em razão de suas virtudes, entre as
quais a mais importante é a inteligência. A República Romana, por outro lado, é uma
associação de Pater famílias (palavra que os gregos consideravam intraduzível em seu
idioma) que entram em associação para proteger seu estado pessoal uns dos outros e das
forças externas, e não para aperfeiçoarem-se enquanto seres humanos. Ao contrário do
ideal da Pólis, o ideal da Res Publica não via nunca a vida no campo como o oposto da
vida na cidade. Pelo contrário. O exercício dos poderes senhoriais era tido como a escola
dos valores republicanos.
Não por acaso os gêneros de discurso mais próprios da primeira foram a tragédia;
os da segunda o direito. São ambos reflexões sobre a justiça, mas que diferença entre eles,
quanto a visão das relações humanas e eficácia.
A tragédia apresenta ao corpo de cidadãos os dilemas da justiça quando não existe
autoridade pessoal. Os reis trágicos tem em comum o fato de que não incapazes de exercer
uma pura autoridade de patriarca. Sua autoridade depende ou da racionalidade de seus
éditos (pense-se em Creonte da Antígona) ou do favor dos deuses garantidos pelo
cumprimento de deveres rituais (como o Agamênon de Ésquilo, que é obrigado a
sacrificar a própria filha) mas nunca é capaz de impor-se por si mesma. O tipo de carisma
pessoal que Aristóteles chama na Retórica de Ethos, isto é: a capacidade de impor-se por
sua pura imagem de homem virtuoso, como o senhor em sua fazenda, nunca se
desenvolveu completamente no mundo da Pólis.
O direito por outro lado nada mais é que a organização de uma comunidade em
torno de patriarcas dotados de patrimônios. O direito romano é, essencialmente, um
discurso sobre pessoas. A própria palavra persona é de origem latina. Suum cuique
tribuere: dar a cada um o que é seu, a arte do direito supõe a existência de pessoas dotadas
direitos. Essencialmente direitos patrimoniais, do Patre. O jurista dispõe de uma técnica
de distribuir este patrimônio em uma situação em que qual parte dele pertence a qual
Patre reste obscurecida ou contestada. O que ele não pode é contestar a auctoritas do
patre em si mesma. Que este possa ter escravos, o poder deste sobre seus filhos, a própria
organização social como um todo, não são objeto de opinião do jurisprudente. Este não é
um filósofo. Ele opina sobre situações concretas mas não passaria pela sua cabeça fazer
como os sociólogos modernos, que emitem parecer não sobre este ou aquele direito mas
sobre o direito de propriedade enquanto tal.
Nas duas concepções a respeito da autoridade pessoal reside a diferença entre o
Império Romano e Império Helenístico de Alexandre. Para o pensamento grego, que via
a autoridade política e a autoridade senhorial como mutuamente excludentes, era difícil
elaborar uma ideologia não religiosa do império, em acordo com os ideais de
racionalidade da Pólis. Daí que o pensamento grego tenha sempre sido um força de
orientalização do regime imperial, como aconteceu com o império de Alexandre e, depois
como o próprio Império Romano do Oriente, que conhecemos como Império Bizantino.
Nestes regimes, a autoridade política acabava por se confundir com a autoridade religiosa,
a obediência devida ao monarca era tomada como dever para com Deus e a piedade como
sucedâneo da virtude cívica. Enquanto a aura da autoridade pessoal do patre durou no
Império Romano, ele continuou a ser em alguma medida aquilo que seu fundador
pretendia: uma restauração da República. Um regime em que os ideais cívicos de virtude,
concórdia, civilização, educação eram protegidos por um imperador que se tinha como
primus inter pares. Porém, a sedução orientalizante de se fazer adorar como um Deus
esteve sempre presentes. Não faltaram, ao londo de seus mais de quatro séculos de
duração, imperadores, como Aureliano, que procurassem introduzir divindades
estrangeiras – em seu caso o Sol Invicto – que pudessem pavimentar o caminho para esta
outra forma de autoridade. A ascensão da religião cristã, em sua versão ortodoxa,
terminou por criar uma terceira possibilidade para a ideologia imperial, que não era nem
a do império de estilo oriental nem mais aos ideais clássicos da Res Publica Restaurata.

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