a) O principado romano como instituição e como ideologia.
Nenhum estudo da herança greco-romana estaria completo sem uma consideração
da linguagem politica do principado, a ordem política instaurada por Otávio Augusto em 27 a C. Normalmente, o tema do Império Romano é apresentado como tema da história política. Sua instauração como o resultado de uma luta esganada pelo poder a que as aventuras de Júlio César, dera azo na geração anterior. A ideologia do Império propalada por Otaviano, o novo uso de velhas fórmulas, a nova concepção do poder seria a mera propaganda oficial que todo novo regime necessita, indigna de ser tomada como objeto da história das ideias. Mas esta é uma maneira limitada de enxergar s coisas. A instauração do império romano foi tanto uma luta pelo poder como uma profunda mudança de mentalidade. Como é o caso com as revoluções dos tempos modernos, o significado simbólico da fundação do império de Augusto foi um fato político tão importante quanto as mudanças reais na estrutura governo que se lhe seguiram. Se não houvesse uma verdade profunda na ideologia do império, a mudança jamais poderia ter continuidade que teve. O principal item desta sua fórmula politica é a ideia de restauração da ordem republicana através de um mandato pessoal. O Império não veio substituir uma República vigorosa por um sistema despótico mas salvar uma República que já não correspondia a seus ideias. Os intérpretes modernos gostam de se desfazer da intenção declarada do jovem Imperador como demagogia. Mas, primeiro, as mudanças reais da “revolução romana” não foram insignificantes, mas foram muito menos drásticas do que as vezes se supõe. Em muitos sentidos, a perca de poder do senado, a concentração na figura do Imperador, e as demais mudanças institucionais que se seguiram à fundação do Principado foram mais a corroboração de uma situação que já existia de fato que uma inovação. O militarismo, a crise das instituições republicanas, o perigo das liberdades romanas não foram inventadas por Otaviano. Segundo: o contraste entre uma República e um Império só existe aos olhos modernos, que tende a ter uma visão parcial dos ideais do classicismo. Do ponto de vista de Otávio e do mundo a que ele pertencia, que um Imperador (não um Rex mas um chefe militar) pudesse resgatar os ideais de uma Res Publica era algo não apenas plausível mas em certo sentido, evidente. Que foi, de fato, o que aconteceu, prova-se pela longa persistência, no espírito romano do império, dos ideais da Pax Augusta. Quinhentos anos depois da grande restauração, os imperadores ainda buscavam inspirar-se nos ideais augustanos de Constituição ideal. E não trata-se apenas de simples persistência de ideário político. O Principado foi a era de um vigor literário quase sem precedente. Foi a época em que foi escrita a Eneida, a construção intelectual mais característica do espírito da época, que procura igualar o império romano à Hélade homérica, através da criação de um mito épico equivalente. Seria um projeto impensável nas gerações anteriores, quando a atitude romana perante a tradição literária helênica ainda era desconfiança do militar camponês perante adversários inferiores em força mas de cultura superior. Somente depois da restauração da República por Augusto, os letrados romanos passaram a sentir-se seguros para absorver a tradição sem o temor de sucumbir a ela no processo. O império parecera a toda uma geração de poetas e historiadores uma criação cultural igual ou superior à Hélade. Mesmo que, até o seu fim no Ocidente, não tenha nunca faltado os que criticassem seus ideais em nome dos antigos ideais republicanos – que desde os tempos de Júlio César, era encarnado pela figura de Catão – no fim, foi a mística imperial que triunfou. Não poderia ser diferente. Ela conferia à antiga ideia de República um significado moral que os antigos ideais republicanos não podiam conferir. Do ponto de vista da ideologia do império, a ordem política romana não era apenas uma coisa própria para romanos mas uma ordem que, graças à virtude destes, e sob sua liderança, estaria apta a incluir toda a humanidade conhecida. As vastas conquistas realizadas pela República nos séculos precedentes (e que foram a causa da crise que criou a necessidade de sua restauração) puderam, graças á nova ideia, ser incluídas em uma grande visão civilizacional que lhes atribuía um sentido superior ao de simples exercício do poder do mais forte.
b) A ideologia imperial romana e a helênica.
Em certo sentido, a ideologia imperial é a mais influente criação cultural romana
ao lado do direito. Até o fim da Idade Media, e a fundação das monarquias absolutistas, a ordem política ainda era pensada em termos de Igreja e Império. A influência da tradição jurídica foi, certamente, mais impregnante, principalmente se levarmos em conta que a linguagem do direito traduz-se naturalmente em hábitos institucionais, ao passo que coleção de narrativas e grandes ideias como a ideologia imperial é sempre mais virtual. Todavia sem a mística destas narrativas o direito jamais teria podido ter a influência determinante que teve. Bem se pode dizer que a ideologia imperial não é outra coisa que a universalização da visão de mundo própria do direito romano, mais ou menos como se diz que o cristianismo não é outra coisa que universalização do judaísmo. O paralelo pode soar peregrino mas não há razão para ter escrúpulo em utilizá-lo. Em um caso como no outro, estamos diante de uma ordem moral elaborada ao longo da história de uma cultura particular elevado a norma válida para toda a humanidade conhecida. Ao lado da narrativa de Restauratio, a principal noção da ideologia imperial é a de Auctoritas. Otavio Augusto e nenhum de seus sucessores possuíram jamais o título de imperador como um patrimônio que pudessem legar a seus sucessores, como era o caso das monarquias medievais. No Império Romano, o chefe supremo não ocupava magistratura mas um mandato público. E não o fazia através da investidura por outro mas por uma decisão pessoal. Um cidadão proeminente, movido por espírito de serviço, reuniu om seus próprios meios um exército para com ele acabar com as pertubações da guerra civil e assim assegurar a prosperidade da República. É assim que Otávio justifica sua tomada do poder. A presunção tácita de que o Imperador é um patriota que aceita a púrpura como um sacrifício pessoal à coisa pública permaneceu durante toda a duração do Império, e é o que explica que não se tenha nunca, ao longo de 400 anos, chegado a uma legislação sucessória que evitasse o perigo da guerra civil a cada falecimento do chefe. Por útil que um instituto como este fosse (como era útil para as monarquias medievais), ele contradiria a mística da função. O imperador não detinha, como os demais membros do aparato, potestas. O fundamento de seu poder era o carisma pessoal próprio dos sábio e velhos – a auctoritas o qual, em tese, não tinha uma função específica. A ideia de que um governante possa ter uma autoridade ao mesmo tempo política e pessoal é uma construção tipicamente romana, que não poderia ter surgido em um contexto helenístico. A tradição grega não desconhecia, naturalmente, a instituição do poder pessoal do senhor sobre seus filhos, mulheres e escravos. Mas esse poder patriarcal – em grego: “despótico” – se não é uma coisa ruim em si mesma (afinal, as fazendas precisam ser administradas) é o oposto do poder propriamente político, que é um poder exercido entre iguais através do uso da inteligência e não do carisma pessoal. A Pólis é uma associação de patriarcas que deixam tacitamente de sê-lo ao adentrar nos negócios políticos. Nela, ninguém exerce o mando a não ser em razão de suas virtudes, entre as quais a mais importante é a inteligência. A República Romana, por outro lado, é uma associação de Pater famílias (palavra que os gregos consideravam intraduzível em seu idioma) que entram em associação para proteger seu estado pessoal uns dos outros e das forças externas, e não para aperfeiçoarem-se enquanto seres humanos. Ao contrário do ideal da Pólis, o ideal da Res Publica não via nunca a vida no campo como o oposto da vida na cidade. Pelo contrário. O exercício dos poderes senhoriais era tido como a escola dos valores republicanos. Não por acaso os gêneros de discurso mais próprios da primeira foram a tragédia; os da segunda o direito. São ambos reflexões sobre a justiça, mas que diferença entre eles, quanto a visão das relações humanas e eficácia. A tragédia apresenta ao corpo de cidadãos os dilemas da justiça quando não existe autoridade pessoal. Os reis trágicos tem em comum o fato de que não incapazes de exercer uma pura autoridade de patriarca. Sua autoridade depende ou da racionalidade de seus éditos (pense-se em Creonte da Antígona) ou do favor dos deuses garantidos pelo cumprimento de deveres rituais (como o Agamênon de Ésquilo, que é obrigado a sacrificar a própria filha) mas nunca é capaz de impor-se por si mesma. O tipo de carisma pessoal que Aristóteles chama na Retórica de Ethos, isto é: a capacidade de impor-se por sua pura imagem de homem virtuoso, como o senhor em sua fazenda, nunca se desenvolveu completamente no mundo da Pólis. O direito por outro lado nada mais é que a organização de uma comunidade em torno de patriarcas dotados de patrimônios. O direito romano é, essencialmente, um discurso sobre pessoas. A própria palavra persona é de origem latina. Suum cuique tribuere: dar a cada um o que é seu, a arte do direito supõe a existência de pessoas dotadas direitos. Essencialmente direitos patrimoniais, do Patre. O jurista dispõe de uma técnica de distribuir este patrimônio em uma situação em que qual parte dele pertence a qual Patre reste obscurecida ou contestada. O que ele não pode é contestar a auctoritas do patre em si mesma. Que este possa ter escravos, o poder deste sobre seus filhos, a própria organização social como um todo, não são objeto de opinião do jurisprudente. Este não é um filósofo. Ele opina sobre situações concretas mas não passaria pela sua cabeça fazer como os sociólogos modernos, que emitem parecer não sobre este ou aquele direito mas sobre o direito de propriedade enquanto tal. Nas duas concepções a respeito da autoridade pessoal reside a diferença entre o Império Romano e Império Helenístico de Alexandre. Para o pensamento grego, que via a autoridade política e a autoridade senhorial como mutuamente excludentes, era difícil elaborar uma ideologia não religiosa do império, em acordo com os ideais de racionalidade da Pólis. Daí que o pensamento grego tenha sempre sido um força de orientalização do regime imperial, como aconteceu com o império de Alexandre e, depois como o próprio Império Romano do Oriente, que conhecemos como Império Bizantino. Nestes regimes, a autoridade política acabava por se confundir com a autoridade religiosa, a obediência devida ao monarca era tomada como dever para com Deus e a piedade como sucedâneo da virtude cívica. Enquanto a aura da autoridade pessoal do patre durou no Império Romano, ele continuou a ser em alguma medida aquilo que seu fundador pretendia: uma restauração da República. Um regime em que os ideais cívicos de virtude, concórdia, civilização, educação eram protegidos por um imperador que se tinha como primus inter pares. Porém, a sedução orientalizante de se fazer adorar como um Deus esteve sempre presentes. Não faltaram, ao londo de seus mais de quatro séculos de duração, imperadores, como Aureliano, que procurassem introduzir divindades estrangeiras – em seu caso o Sol Invicto – que pudessem pavimentar o caminho para esta outra forma de autoridade. A ascensão da religião cristã, em sua versão ortodoxa, terminou por criar uma terceira possibilidade para a ideologia imperial, que não era nem a do império de estilo oriental nem mais aos ideais clássicos da Res Publica Restaurata.