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• prova pela imutabilidade do incorpóreo: somente os corpos aumentam ou di­

minuem, mudam-se nos seus contrários e podem ser destruídos pela ação de ou­
tros corpos, mas o que é imaterial ou incorpóreo não aumenta nem diminui e
nada há que possa destruí-lo de fora; a alma, sendo imaterial, não sofre transfor­
mações em sua essência e por isso permanece sempre; sendo eterna, é imortal.
Aparentemente, as provas da imortalidade da alma estariam em contradi­
ção com a teoria da transmigração ou da reencarnação, pois esta pressupõe que
a alma seja afetada pelos vícios do corpo, pelas paixões da concupiscência e da
cólera, não sendo portanto imutável nem simples e não podendo ser imortal.
Na verdade, porém, o peso do corpo e das paixões sobre a alma, que leva Platão
a dizer que o corpo é prisão da alma, não destrói sua imortalidade. A essência
da alma não é transformada pelo corpo, mas prejudicada por ele, isto é, o cor­
po pode criar obstáculos para que a alma realize plenamente sua natureza e é
por este motivo que está submetida à "roda dos nascimentos", destinada a liber­
tar-se cada vez mais dos elementos corpóreos para, fmalmente, não mais preci­
sar nascer.

A POLÍTICA: O ESTADO IDEAL E O


GOVERNANTE-FILÓSOFO

Com Platão, inauguram-se, no pensamento ocidental, algumas ideias so­


bre a política que, com variações em cada época, permanecem até nossos dias.
Assim, é platônica a ideia de que os regimes políticos se distinguem pelo núme­
ro e pela qualidade dos que governam ou dos que detêm o poder: a monarquia,
em que o poder pertence a um só (mónas) e a honra é a qualidade do governan­
te; a aristocracia, em que o poder pertence a um pequeno grupo considerado
uma elite ou os melhores (áristoi) cuja qualidade é a areté agonística ou a exce­
lência guerreira; e a democracia, em que o poder pertence ao povo (démos*) e
cujos cidadãos possuem a liberdade como qualidade principal. Também é platô­
nica a ideia de corrupção ou degradação dos regimes políticos ou de que cada
forma política possui uma forma degradada ou perversa, um simulacro ou con­
trafação: à corrupção ou degradação da monarquia corresponde a tirania; à da
aristocracia, a oligarquia; à da democracia, a anarquia ou a ausência de coman­
do ou de governo. Os regimes políticos, quando mal conduzidos, transformam-

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-se em suas versões perversas ou pervertidas. Vem de Platão o estabelecimento da
sequência dos regimes políticos e de sua corrupção: a monarquia, regime inicial,
se transforma em aristocracia, esta em democracia, regime final; e o movimen­
to de degradação se realiza na direção inversa, isto é, a democracia, degeneran­
do em anarquia, faz surgir a oligarquia que, por sua vez, degenera em tirania. A
política se realiza, portanto, num tempo cíclico no qual o movimento de passa­
gem das formas legítimas é inverso ao da passagem das ilegítimas. E é também
platônica a ideia de que a política não é uma arte ou uma técnica, mas uma ciên­
cia e, como tal, pode ser ensinada. Essa ciência orienta e dirige a prática políti­
ca, isto é, as atividades e funções de governo que, sendo práticas, são técnicas.
A herança platônica foi construída sobre o legado das ideias políticas tipi­
camente gregas, mas que a tradição mantivera dispersas. Coube a Platão reuni­
-las e sistematizá-las. Em primeiro lugar, a ideia de que a finalidade da política
não é o exercício do poder, mas a realização da justiça para o bem comum da ci­
dade; em segundo, a ideia de que o homem livre (e somente o homem, estan­
do excluídos aqui os escravos, os estrangeiros, os velhos, as crianças e as mulhe­
res) só é livre na pólis e participando da vida política, de sorte que a ética é um
aspecto ou uma dimensão essencial da política, já que o indivíduo é sempre o
cidadão. Por conseguinte, em terceiro, a ideia de que a verdadeira vida ética só
é possível na pólis e que a moral individual e privada é inferior à ética pública.
Como consequência, em quarto lugar, a ideia de que o homem deve ser educa­
do e formado para ser antes de tudo e sobretudo um cidadão e que a política é
a verdadeira e suprema paideía, definidora da areté.
Resta, agora, examinarmos as ideias propriamente platônicas e já podemos
prever que, sendo um critico do sofista, Platão não aceitará que a paideía políti­
ca seja a retórica e a capacidade para vencer argumentos em público, e não acei­
tará que a política seja uma técnica de governo, mas a conceberá como ciência
que deve orientar e dirigir a técnica governamental. Também podemos prever,
pelo fracasso das viagens a Siracusa e pela injusta morte de Sócrates, que Platão
não será um grande admirador da democracia nem da tirania, considerando
esta o resultado inevitável daquela.
De fato, só compreenderemos o sentido do empreendimento platônico se
tivermos em mente o que se passa na Atenas do século IV a.C., perpassada pela
Guerra do Peloponeso, pelas lutas internas, por fases de tirania e de demagogia.
A situação da Cidade é descrita e criticada com cores fortes no Livro VIII da
República, em que Platão apresenta a democracia como anarquia.

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Vimos que na Oração fúnebre, pronunciada no início da Guerra do Pelopo­
neso, Péricles elogiara a democracia ateniense, dizendo-a sem modelo e mode­
lo para toda a Hélade. Nesse elogio, ele enfatizara a liberdade, a igualdade polí­
tica, a participação nos assuntos públicos, a moderação dos costumes e a correção
da vida pública e da vida privada, e atribuíra os méritos de Atenas à qualidade
de suas leis e ao respeito delas por todos os cidadãos.
No Livro VIII da República, como se tomasse o que dissera Péricles, Platão
descreve uma Cidade em que a liberdade é licença para se fazer o que se quer,
a igualdade é promiscuidade e injustiça porque trata da mesma maneira o igual
e o desigual, a participação é demagogia, a correção dos costumes é uma falsa
aparência que encobre todo tipo de corrupção e vício, a qualidade das leis não
se conserva porque elas são mudadas incessantemente segundo os interesses
dos poderosos e não há respeito algum por elas - os fllhos desrespeitam os pais,
os maridos tratam as esposas como prostitutas e as esposas tratam os maridos
como amantes temporários, os alunos desrespeitam os mestres e estes os ensi­
nam a desrespeitá-los, os condenados não cumprem as penas, os inocentes são
condenados enquanto os culpados são inocentados, os cidadãos se comportam
como estrangeiros e estes, como senhores da cidade - e a justiça é indulgência
para toda contravenção. Reina a anomía (o desrespeito ao nómos, à lei). Diante
disso, compreende-se que os cidadãos se revoltem, zombem das leis não escri­
tas e escritas, detestem os magistrados e as assembleias, recusem ser governa­
dos. Reina a anarchía (a falta de comando): os cidadãos não querem o senhorio
da lei nem dos homens. Nessas condições, reina a desordem moral, sobretudo
entre os jovens, que passam a desprezar a temperança e a prudência, a amar a
adulação e a insolência. O julgamento de Platão é claro e preciso: essas calami­
dades não são um acidente do regime democrático, mas estão contidas na es­
sência da democracia. A política platônica será, portanto, antidemocrática.
As exposições mais completas de Platão sobre a política encontram-se na
República, no Político e nas Leis. As que ficaram com maior perenidade no pen­
samento ocidental são as da República, embora o perfil do governante, traçado
no Político, tenha se mantido até a grande ruptura representada por O príncipe,
de Maquiavel, no século XVI.

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A CIDADE JUSTA

A questão proposta pela República é: o que é a justiça?


O diálogo, que transcorre entre Sócrates, dois irmãos de Platão (Glauco e
Adimanto) e um comerciante, Polemarco, é interrompido pelo aparecimento de
vários atenienses, que passam pela casa de Polemarco, e pela intervenção violen­
ta do sofista Trasímaco. No início do diálogo, Polemarco diz que a justiça é dar
a cada um o que lhe é devido (pensamento típico do comerciante, que logo pen­
sa em dívidas que devem ser pagas e mercadorias que devem ser entregues). Po­
lemarco exprime o senso comum. Trasimaco, porém, afirma que a justiça é o
poder do mais forte, seja porque este tem meios para dominar os mais fracos,
seja porque os mais fracos encontram formas astuciosas para se fazerem mais
fortes e dominar os fortes. Glauco afirma que a justiça é praticada somente por­
que os homens temem os castigos se forem injustos e, a propósito, narra o Mito
do Anel de Giges. Durante uma tempestade, o pastor Giges descobre, na caver­
na em que se refugiara, um anel de ouro perdido e o apanha. Na companhia de
outros pastores, dirige-se à corte, onde devem prestar contas ao rei. No cami­
nho, por acaso, Giges gira o anel no dedo, tomando-se invisível. Ao perceber o
efeito do anel, ao chegar ao palácio, Giges seduz a mulher do rei, usa a invisibi­
lidade para matá-lo, toma o poder e passa a governar sem que ninguém saiba
que chegou ao poder de maneira fraudulenta e ilegítima. Seu governo é aceito
sem ser questionado, todos o tomando por um governante legítimo. Assim, con­
clui Glauco, não é preciso ser justo, basta parecer justo.
Chegados a este ponto, em que prevalece a indeterminação, isto é, a mul­
tiplicidade dispersa de imagens e opiniões, os vários interlocutores, como de há­
bito, procuram defender suas posições com um novo campo de indeterminação:
enumeram pessoas justas ou injustas, ações justas ou injustas, oficios justos ou
injustos, multiplicando sem fim as imagens e as opiniões sobre o justo e o injus­
to. Sócrates intervém, praticando a ironia, criando dificuldades e contradições
para cada imagem e opinião apresentada, até que, perplexos, os interlocutores
aceitam a sugestão socrática: começar não com casos de justiça e injustiça, mas
procurando algo que se possa dizer que é justo e por que é justo. Delimitando
o campo da investigação, afastando "parentes" e "rivais" da justiça, a teoria da
justiça exposta na República desenvolve e prepara aquela que acabamos de ver
na psicologia e na ética: a justiça ou virtude, no homem, é o governo dos apeti-
tes e da cólera pela razão; essa mesma teoria, antes de ser aplicada ao indivíduo,
é aplicada à Cidade, concebida como um conjunto hierarquizado de funções,
cada qual com sua dy-namis e sua areté.
A pólis possui três classes sociais: a econômica (agricultores, comerciantes
e artesãos), a militar ou dos guerreiros e a legislativa ou dos magistrados. Na de­
mocracia, todos os membros de todas as classes governam; na aristocracia, os
guerreiros ocupam a posição de magistrados; na monarquia, em geral um guer­
reiro ou um rico agricultor ou um rico comerciante acabam sendo o rei. Como
se observa, diz Platão, as funções das classes estão embaralhadas e não é por aca­
so que as cidades são injustas ou mal governadas.
A classe econômica está encarregada da sobrevivência da Cidade, suprindo
as necessidades básicas da vida. Como na alma, essa classe se caracteriza pela
concupiscência, pela sede de riqueza e de prazeres. Se ela governar (como acon­
tece numa oligarquia, ou numa monarquia em que o rei vier dessa classe, ou na
democracia, em que essa classe participa do governo com mais poder do que as
outras porque é mais numerosa e conta com mais votos), a Cidade estará volta­
da para a acumulação de riquezas, para uma vida de luxos e prazeres e para lu­
tas econômicas sem fim, aumentando o número de miseráveis e reduzindo o
número de abastados, A injustiça é evidente, pois a fmalidade da Cidade está
confundida com a má atualização da dy-namis da classe econômica.
A classe militar ou dos guerreiros, menos numerosa do que a primeira, está
encarregada da proteção da Cidade. Porém, essa classe se caracteriza pela cóle­
ra e pela temeridade, pelo gosto dos combates, pela invenção de perigos para ter
o prazer de lutar e buscar fama e glória. Se ela governar (como acontece em oli­
garquias, aristocracias, em monarquias em que o rei é eleito entre os soldados,
ou numa democracia, em que essa classe participa das assembleias, e sobretudo
na tirania, cuja origem é sempre militar), lançará a cidade em guerras intermi­
náveis, tanto externas quanto internas. A injustiça é evidente, pois a fmalidade
da Cidade está confundida com a má atualização da dy-namis dos guerreiros.
A classe dos magistrados, de todas a menos numerosa, está encarregada de
dar as leis e de fazê-las cumprir pela Cidade. Porém, essa classe, que se caracte­
riza pelo uso da razão, pode estar dominada pelas outras duas classes, mais nu­
merosas do que ela e dispondo de instrumentos para controlar os magistrados.
A classe econômica os controla pela corrupção; a classe militar os controla pelo
medo. Além disso, se os magistrados não possuírem a ciência da política e não

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conhecerem a ideia da justiça, qual há de ser a qualidade das leis e do governo?
A injustiça também é evidente, pois a hierarquia das funções está embaralhada
e a areté dos magistrados não consegue realizar-se.
Se a justiça díke e a virtude areté existem somente quando a razão
- - - -

governa a concupiscência e a cólera, então a Cidade deve ser governada somen­


te pelos magistrados. Mas, para isso, várias condições devem ser preenchidas e
a primeira delas é que a Cidade se encarregue da educação de todas as crianças,
mesmo quando algumas permanecerem com suas famílias. Essa educação deve
ter como objetivo determinar as capacidades e os limites de atuação de cada
uma das classes sociais.
Assim, a classe econômica dos agricultores-comerciantes-artesãos deve ser
educada para ter como função exclusiva a sobrevivência da Cidade e viver de
acordo com limites estabelecidos pelo magistrado, impedindo que a busca das
riquezas, luxos e prazeres perverta a Cidade. Para isso, deverá ser educada para
a frugalidade e a temperança, que se tomam, portanto, virtudes cívicas. Como
essa classe é muito apegada aos bens materiais, convém que ela os tenha, pois
do contrário lutará para consegui-los e trará desordem à Cidade. O magistrado
deve ftxar por lei que a classe econômica tenha o direito à propriedade privada
(com limites) e a constituir uma família. Em lugar de tentar inutilmente extir­
par o egoísmo e os apetites dessa classe, o governante deve apenas moderá-los
por meio das leis e usá-los para o bem da Cidade.
Por seu turno, a classe militar ou dos guerreiros terá como função exclusi­
va a proteção da Cidade contra perigos internos e externos. Essa classe será for­
mada a partir de um exame de seleção, feito após um período em que a mesma
educação foi dada a todas as crianças da Cidade. Nessa seleção, as menos dota­
das irão ser membros da classe econômica, enquanto as mais dotadas receberão
a educação dos guardiães. Numa grande inovação, Platão aftrma que a educa­
ção inicial será dada igualmente aos meninos e às meninas, e que as crianças dos
dois sexos passarão pela seleção, de sorte que poderá haver mulheres na classe
militar. O argumento platônico é claro: um Estado que não usa as aptidões das
suas mulheres é um Estado pela metade, incompleto. Aos guardiães é dada a
educação tradicional dos guerreiros gregos: ginástica para o corpo, música (poe­
sia, harmonia) para o espírito, dança e artes marciais. Os guardiães devem con­
siderar que sua casa é a Cidade, por isso não terão casa própria, nenhuma pro­
priedade privada, nem família: homens e mulheres viverão em comunidade,

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seus bens serão comuns, o sexo será livre (não havendo casamento) e as crian­
ças deverão ser consideradas fllhas da comunidade inteira, de modo que qual­
quer adulto deve tratar toda criança como seu fllho, e cada criança tratar quaisquer
adultos como seus pais. Em outras palavras, Platão elimina a causa que dá ori­
gem à aristocracia de sangue e hereditária, impedindo que os guardiães consti­
tuam linhagens e que estas rivalizem. A educação dos guardiães é propriamen­
te uma educação cívica, pois eles só existem como pessoas públicas para o bem
público. Desta maneira, a razão (o magistrado) impõe aos guerreiros as virtu­
des que lhes são próprias: a coragem e a honradez. Os guerreiros devem ser se­
melhantes a um cão de guarda: carinhosos para os seus, terríveis para o inimigo.
Finalmente, a classe dos magistrados deve ser a classe dos governantes pro­
priamente ditos. Sua função é promover e manter a justiça, tanto pela qualida­
de das leis como pelo controle que exercem sobre as outras duas classes. Por
esse motivo, a seleção dos magistrados e sua educação é a mais importante e a
mais rigorosa, se comparada à das duas outras classes. Acompanhemos a educa­
ção dos magistrados, pois ela inclui, até uma certa etapa, a dos agricultores-comer­
ciantes-artesãos, prossegue com a dos guardiães e segue sozinha para a forma­
ção do político propriamente dito.
Até a idade de sete anos, todas as crianças, de todas as classes e de ambos
os sexos, recebem a mesma educação: ginástica, dança, jogos para aprendizado
dos rudimentos da matemática e da leitura, poesia épica para conhecimento dos
heróis (mas Platão expulsa Homero e Hesíodo de sua Cidade porque descrevem
os deuses e heróis com vícios que não servem à educação do cidadão). Aos sete
anos, as crianças passam por uma seleção: as menos dotadas ficam com famílias
da classe econômica, enquanto as mais dotadas prosseguirão. Agora, são alfabe­
tizadas, iniciam os estudos das artes marciais e o treino militar (com novos co­
nhecimentos matemáticos, necessários à arte da guerra), que irão até os vinte
anos, quando os rapazes e as moças passarão por novos exames e nova seleção.
Os menos dotados ficarão na classe dos guardiães, enquanto os mais dotados
iniciarão os estudos para a administração do Estado. Estudam, agora, as mate­
máticas: aritmética, geometria, estereometria, astronomia e música, isto é, acús­
tica e harmonia. É o aprendizado das ciências dianoéticas, puramente intelectuais,
de formação do raciocínio discursivo e do pensamento hipotético-dedutivo. Aos
trinta anos, uma nova seleção é feita. Os que se mostrarem menos aptos ocupa­
rão funções subalternas da administração pública e de comando militar; os mais

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aptos iniciarão o estudo principal, para o qual foram preparados durante trinta
anos: a dialética. Aos trinta e cinco anos, serão submetidos a uma nova prova;
se aprovados, iniciam os estudos da ética, da fisica e da política. Passarão conti­
nuamente por exercicios e provas que fortaleçam o intelecto e a moral, já ocupa­
rão alguns postos de alta administração até que, aos cinquenta anos, passam
pelo exame fmal. Se aprovados, tornam-se magistrados e dirigentes políticos.
Os aprovados, portanto, são ftlósofos.
Os dirigentes políticos, conhecedores das ideias, portadores da ciência po­
lítica e da mais alta racionalidade, formam a pequena elite intelectual que gover­
na a Cidade segundo a justiça. A razão domina a coragem que domina a concupis­
cência. A Cidade justa é, pois, aquela onde o ftlósofo governa, o militar defende
e os que estão ligados às atividades econômicas proveem a sociedade. O Estado
justo possui quatro virtudes civicas, três delas que correspondem a cada uma
das classes - temperança, coragem e prudência - e a quarta, mais importante
e da qual dependem as outras três: a justiça (harmonia e hierarquia das funções).
A razão governa a Cidade, que por isso é virtuosa e perfeita, isto é, excelente.
Podemos compreender, então, por que a Cidade injusta é uma degenera­
ção da Cidade justa: na timocracia (thymós: ímpeto de cólera e coragem), os mi­
litares usurpam o poder que cabia aos ftlósofos; na plutocracia (ploutos: riqueza,
fortuna, bens materiais), a classe econômica usurpa o poder. Tanto a timocracia
como a plutocracia são formas de oligarquia (uma é militar, a outra, econômica),
nas quais os que não estão preparados para governar tomam o poder e gover­
nam para satisfazer aos seus interesses e não aos da Cidade. Provocando a revol­
ta popular, esses governos fazem surgir a democracia que é, afinal, uma anar­
quia, pois nela ninguém está preparado para conduzir o Estado. Essa anarquia
acaba levando a massa dos cidadãos a pedir socorro a um homem poderoso, que
conhece o manejo das armas e das palavras, e que, tomando o poder, institui a
tirania, anunciando o fim da Cidade.
A exposição da teoria política possui um alcance ftlosófico sem preceden­
tes. De fato, se articularmos o Mito da Caverna e a teoria do conhecimento à
psicologia e à ética, veremos que a realização do conhecimento perfeito e da vi­
da virtuosa surge como causa e efeito da perfeição da pólis. É clara a relação en­
tre os graus do conhecimento e as etapas da formação dos membros da Cidade,
assim como é claro o perfeito isomorfismo entre a alma individual e a estrutu­
ra da Cidade e, portanto, entre a virtude individual e a virtude da própria Cidade.
A C IÊNCIA DO p OLÍTICO

No Político o caminho percorrido por Platão é diferente. Na República, o ob­


jeto da investigação era a busca do Estado perfeito. No Político, será a do governan­
te perfeito, que saberá governar em qualquer Cidade, tenha ela o regime políti­
co que tiver. Por isso, na República, o paradigma era oferecido pela matemática,
enquanto no Político será dado pela medicina, pois o governante deverá curar as
doenças da cidade (conflitos e desordem). O diálogo examinará todas as ima­
gens e opiniões que os gregos possuíam sobre o político e, praticando a diaíre­
sis ou a divisão da dialética descendente, Platão mostrará que a política é um co­
nhecimento teórico e não uma simples prática para conduzir os homens.
A abertura do Político é uma retomada do Softsta: o Estrangeiro indaga ao
jovem Sócrates se, tendo deHnido o soHsta, não desejaria, agora, deHnir o polí­
tico. Essa abertura possui três signiHcados simultâneos: um signiHcado literário,
pois, invocando um outro diálogo, Platão cria no leitor o sentimento de que as
conversas entre o Estrangeiro e o jovem Sócrates foram longas e diversifIcadas,
ao mesmo tempo que sugere a continuidade da própria obra platônica em sua
maturidade; um signifIcado político, uma vez que o soHsta, historicamente, foi
uma Hgura decisiva da paideía democrática de Atenas e, portanto, inseparável
das discussões sobre a política; e um signifIcado teórico-dialético, pois a deHni­
ção do sofista como imitador do sábio sugere que o campo no qual se deve pro­
curar a deHnição do político há de ser o da sabedoria ou da ciência, oferecendo,
assim, o mote para a pergunta que inicia o novo diálogo: o político pode ser co­
locado entre os sábios? Pergunta pertinente ainda noutro nível, pois os célebres
Sete Sábios da Grécia, venerados pela tradição helênica, eram todos políticos.
A pergunta inicial abre um campo indeterminado: qual sabedoria é a polí­
tica? Prática ou teórica? Ciência das mãos ou do intelecto? Ora, diz o Estrangei­
ro, é evidente que o governante não realiza trabalhos manuais e, portanto, sua
ciência deve ser teórica. Qual teoria, porém? A inteligência teórica ou contem­
plativa pode ser crítica - julga coisas e ações - ou diretiva - orienta, coorde­
na e dirige coisas e ações. É evidente, prossegue o Estrangeiro, que a política é
uma ciência diretiva ou dirigente. Mas, se assim é, o político possui "parentes"
(por exemplo, os magistrados e sacerdotes) e possui "rivais" (por exemplo, arau­
tos, adivinhos, soHstas, capitães). O que os distingue do político? O fato de que
transmitem ordens e fazem cumprir ordens, mas não as produzem, não são cria-

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dores das leis fundadoras da pólis; além disso, suas ordens nem sempre se dirigem
à Cidade como um todo, mas a partes dela, enquanto o político, se possuir real­
mente a ciência diretiva, dirige-se à Cidade inteira e dirige a Cidade por inteiro.
Uma ciência diretiva perfeita é aquela que, além de referir-se à totalidade
dos seres que serão governados por ela, também encontra em si mesma a ori­
gem das normas, regras e leis, não se subordinando a nenhuma outra. É auto­
diretiva ou autodirigente, diz o Estrangeiro. Normas, regras, ordens e leis cria­
doras não criam qualquer coisa: criam a vida coletiva, criam os viventes que irão
viver juntos, produzem a alma da pólis ou a própria pólis como um ser vivo, pois
dotada de alma (as leis, normas e regras). O que são seres vivos que vivem jun­
tos? Rebanhos. Quem é o dirigente do rebanho? O pastor. Quem é, pois, o polí­
tico? Pastor do rebanho humano.
"Cometemos um grave erro", declara o Estrangeiro ao espantado jovem
Sócrates. De fato, um pastor é diferente, por natureza, do rebanho, e o político
é de mesma natureza que o rebanho conduzido por ele, uma vez que ele e o re­
banho são humanos. Assim sendo, o título de Pastor de Homens só cabe ao
deus e não ao homem. A observação platônica reafirma o que as tragédias dra­
matizavam: a origem da pólis e de suas leis é humana e não divina. Assim, o diá­
logo cometeu "um erro" para que pudesse, a seguir, demonstrar a humanidade
da política.
Examinemos, porém, a figura do Pastor de Homens. Sendo um deus, tem
o poder absoluto para governar e o faz segundo o Bem e a Virtude, cujas ideias
conhece. Os humanos não possuem esse conhecimento, não podem prever
tudo nem regular tudo e, por isso, não podem ter o governo absoluto. Se o po­
lítico pretendesse o governo absoluto deixaria de ser político, mas nem por isso
tornar-se-ia um deus: simplesmente, tornar-se-ia tirano e governaria no simula­
cro, pois, no lugar do Bem e da Virtude, sua ação colocaria a força.
Para um grego, o que Platão afirma é evidente e não precisa de comentá­
rio nem interpretação. Por quê? Porque a palavra tyrannikós* significa: aquele
que possui qualidades excepcionais - fisicas, psíquicas, militares, oratórias -
que o colocam acima de todos os outros. Por ser superior, mais e maior do que
os outros, é que o tirano tem na própria vontade a única fonte para seu poder.
Não possuindo termo de comparação com outros humanos e não podendo
guiar-se pelo que dizem e fazem os que lhe são inferiores, só encontra em si
mesmo a origem das regras, leis e ordens. Porém, sendo um homem e não um

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deus, desconhece o Bem e a Virtude. Como estas não são o guia de sua vonta­
de nem dão conteúdo a ela, resta-lhe apenas um caminho para impô-la: a força.
Dessa maneira, a deftnição do político como Pastor dos Homens desembo­
ca no seu contrário absoluto, isto é, no seu simulacro, de modo que, em lugar
de oferecer a defmição do ser do político, ela nos deu o seu não ser. Eis por que
o Estrangeiro diz a Sócrates que ambos cometeram um grande erro.
A passagem pela ftgura do tirano, se serviu para afastar a imagem do Pas­
tor de Homens, serviu ainda para uma outra coisa. Se o tirano é aquele que,
usando a força, faz de sua vontade lei, ftca claro que a lei é o substituto que os
humanos encontraram para suprir a ausência do conhecimento perfeito do Bem
e da Virtude. Ou seja, embora o tirano não seja o político, sua ftgura indica que,
para os humanos, governar é instituir a lei como substituto do Bem e da Verda­
de (como cópia dessas ideias) e que, na tirania, não há propriamente lei, mas a
força nua da vontade pessoal como substituto da lei (cópia da cópia, simulacro
do Bem e da Verdade): Graças à ftgura do tirano, o Estrangeiro proporá uma
nova defmição do político: é o legislador. Ora, o tirano não governa sem leis.
Como distingui-lo do legislador político? Em primeiro lugar, pela fonte de lei:
no tirano, ela se origina da vontade; no político, do intelecto. Em segundo, pela
atitude dos governados: a lei tirânica é obedecida por medo; a lei política, por­
que livremente aceita.
Será a lei o melhor caminho para defmir o político? Defmido como legis­
lador, essa defmição suscita novas indagações. Quem pode fazer as leis? Quais
os critérios para diferenciar a lei boa da má? Como explicar situações em que a
legalidade produz injustiça (lembremos da morte de Sócrates) e a ilegalidade
poderia salvar a cidade (lembremos dos amigos Harmódio e Aristogitão assassi­
nando o governante tirânico)? Dada a diferença entre os homens, como encon­
trar leis que sejam igualmente boas e justas para todos? Dizer que a "democra­
cia é o império da lei" garante sua justiça e bondade?
Para responder a essas novas perguntas, o Estrangeiro propõe o exame das
legislações existentes, isto é, das Constituições ou politeíai (ver politeía*) existen­
tes de fato. O que as distingue? Dois critérios: o do número de governantes (um,
alguns, todos) e o das qualidades dos governantes (honra, na monarquia; exce­
lência moral, na aristocracia; liberdade, na democracia). Ora, observam o Es­
trangeiro e o jovem Sócrates, esse exame em nada nos ajuda, pois em cada um
desses regimes políticos escutamos os cidadãos colocando exatamente as mes-

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mas perguntas a respeito das leis. Assim sendo, a mera existência de leis escritas
não defme o político, mas oferece, no máximo, uma de suas funções. Ao defmi­
-lo como legislador, encontramos um predicado do político, mas não sua essência.
Esse predicado, aliás, em lugar de nos ajudar a avançar na defmição, pode
ser um obstáculo a ela. De fato, se o político for um legislador e fIxar de uma
vez por todas as leis (o código escrito), com o passar do tempo acabaria toman­
do-se injusto. De fato, sabemos que, sendo humano, não pode prever nem re­
gular tudo. Sabemos também que o mundo em que vivemos está sujeito ao de­
vir e nele os humanos, as cidades, a vida e as ações mudam sem cessar. Fixar as
leis de uma vez por todas signifIca imobilizá-las num mundo móvel e forçar sua
repetição rotineira para situações nas quais não poderão aplicar-se, de tal modo
que aplicá-las será uma injustiça. O que a experiência tem mostrado? Que dian­
te de situações novas que exigem respostas novas, ágeis, rápidas, inteligentes, a
lei não pode ser respeitada, e alguns, para o bem da Cidade, agem contra a le­
gislação, como o médico que receita um remédio intolerável ao paciente ou o
capitão de um navio que força os passageiros a aceitar uma nova rota para evi­
tar forte tempestade. Visto que o resultado costuma ser satisfatório, a Cidade
habituar-se-á à ação excepcional contra, fora ou acima de suas leis, o que susci­
ta o aparecimento dos tiranos. Não basta, portanto, que o político seja legisla­
dor. Com isso, Platão, sem o dizer diretamente, coloca em dúvida que os Sete
Sábios teriam sido sábios por terem sido legisladores. Ainda uma vez, como na
referência ao tirano, vemos o fUósofo - numa discussão aparentemente muito
abstrata - interpretando a história e o presente de sua sociedade.
O diálogo parece haver chegado a um impasse. As duas grandes imagens
que os gregos possuíam do político - o pastor e o legislador - revelaram-se in­
capazes de oferecer a defInição procurada. Visto que estamos numa aula de fI­
losofIa, em que o Estrangeiro está ensinando ao jovem Sócrates como procurar
aquilo que não sabe, um recurso pedagógico é proposto. Para ensinar crianças
a ler, diz o Estrangeiro, os pedagogos, em lugar de ensinar-lhes as letras isola­
das, ensinam-lhes palavras-chave em que podem localizar e identificar as letras
e, depois, compor e ler palavras novas. Essas palavras-chave são paradigmas,
isto é, exemplos que enfatizam a estrutura ou a forma das palavras, oferecem
uma totalidade organizada que facilita a compreensão, pois, afInal, ninguém
fala, lê e escreve letras, mas palavras. Procuremos, então, um paradigma para o
político, sugere o Estrangeiro, visto que os do pastor e do legislador não nos aju­
daram a encontrar sua essência.

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o paradigma sugerido é a arte da tecelagem. Que é a tecelagem? A arte de
lidar com fios para produzir uma trama ou um tecido. Essa arte possui uma arte
auxiliar: a de cardar, que separa e desembaraça os fios para que sejam postos nas
mãos do tecelão. Este realiza duas ações: torce os fios para obter a urdidura e
enlaça os fios para obter a trama ou o tecido. Tecer, portanto, é urdir e tramar,
torcer e enlaçar. A tecelagem é a arte dos laços.
Que faz o político? Encontra na Cidade várias artes e ciências: a jurídica, a
militar, a pedagógica, a econômica, a retórica. São para ele o que a arte de car­
dar é para a de tecer, ou seja, auxiliares preliminares de sua ação. O político as
apanha e com elas faz a urdidura da Cidade: separadas, ele as reúne, torcendo
cada uma delas para que sirvam à trama a ser tecida. De que é feita uma Cida­
de? De pessoas cujos caracteres ou temperamentos são diferentes (sanguíneos,
coléricos, fleumáticos e melancólicos, como diz a medicina). A urdidura consis­
tirá em educar cada um desses caracteres para que adquiram a virtude que lhes
é própria: aos sanguíneos, a virtude da prontidão; aos coléricos, a virtude da
energia ou coragem; aos fleumáticos, a virtude da moderação; aos melancóli­
cos, a virtude do conhecimento. Graças às artes e ciências auxiliares, o político
educa os cidadãos, urdindo os fios da Cidade (torce a natureza de cada um para
que alcance a virtude que lhe é própria). Educados ou urdidos os cidadãos, o po­
lítico tecerá o tecido da Cidade, enlaçando os fios, isto é, criando laços de amor,
amizade, matrimônio, companheirismo, solidariedade entre os caracteres opos­
tos. Unirá moderados e enérgicos, velozes e intelectuais, impedindo laços entre
os de mesmo caráter (pois tais laços não só enfraquecem o caráter pela repeti­
ção contínua dos mesmos traços como ainda os leva a formar partidos, facções
e seitas e a lutar entre si). Aos cidadãos assim enlaçados, o político lhes atribui a
função de fazer e aplicar as leis, distribuindo, segundo seus caracteres, as magis­
traturas, os cargos e funções públicos. O político é um artesão que fia e tece as
almas para que realizem sua areté e a da Cidade.
Se o político é um artesão, não deveria ser considerado um técnico? Mas a
política não foi definida como ciência? Qual é, pois, a ciência do político e que
defme sua essência? A ciência dos caracteres humanos, de suas concordâncias e
discordâncias, do que é bom ou excelente para cada um deles e do que os pre­
judica e vicia. O político possui a ciência das almas humanas. De posse dessa ciên­
cia, pratica uma técnica, a dos laços humanos. Com essa ciência, diz o Estran­
geiro, ele realiza

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o mais magnífico e excelente de todos os tecidos. Abrange, em cada Cidade, todo
o povo, escravos ou homens livres, estreita-os na sua trama, governa e dirige, as­
segurando à Cidade, sem falta e sem desfalecimento, toda a felicidade de que pode
desfrutar.

Para um grego, a escolha do paradigma da tecelagem é imediatamente


compreensível, e quem lesse o Político entenderia logo o que Platão quis dizer
ao escolhê-lo. Para nós, quase vinte e cinco séculos depois de Platão, a escolha
desse paradigma parece casual, sem muito sentido, talvez mera astúcia literária.
Vejamos por que Platão o escolheu e por que os gregos podiam compreendê-lo
sem problemas.
Na mitologia grega, a deusa Atena (padroeira de Atenas) é ftlha de Zeus e
de Métis. Quando Métis estava grávida de Atena, foi-lhe dito que teria uma fi­
lha e, a seguir, um ftlho que roubaria o poder de Zeus. Este, para evitar a perda
do poder, decidiu livrar-se de Métis, devorando-a. No interior de Zeus, Métis ini­
ciou o trabalho de parto. Desesperado com a dor que invadia sua cabeça (pois
ali estava Métis), Zeus pediu ao ferreiro dos deuses, Hefesto, que lhe arrebentas­
se a cabeça para acabar com a dor. Ao abrir-se a cabeça de Zeus, dela saltou, ar­
mada, a guerreira Palas Atena. Por ter nascido da violência, tomou-se patrona
da guerra, mas por haver saído da cabeça de seu pai, tomou-se a deusa da razão
e da sabedoria, patrona das artes, das ciências e da ftlosofia. Sendo ftlha de Mé­
tis, herdou de sua mãe a astúcia, o golpe de vista, o senso da oportunidade, a
arte da simulação e sobretudo a arte dos laços, sendo patrona dos tecelãos e das
bordadeiras. Assim, duas deusas possuem a tecelagem como um de seus emble­
mas: Métis e Atena. Ao escolher o paradigma da tecelagem, Platão mantém a
patrona de Atenas, mas altera profundamente o sentido mítico dessa patronagem.
De fato, vimos, no Capítulo 3, quando nos referimos às técnicas, que Mé­
tis é a deusa da inteligência prática e patrona dos médicos, capitães, caçadores,
sofistas e políticos. Por seu turno, sua filha, Atena, é a deusa da inteligência teóri­
ca, da sabedoria especulativa, patrona dos sábios e ftlósofos.
Ao escolher o paradigma da tecelagem para defmir o político, Platão reali­
za duas operações. Primeiro, faz-se compreender por seus contemporâneos,
pois conserva o político sob uma arte da Métis protegida por Atena; segundo,
destrói a imagem que seus contemporâneos possuíam do político, pois não o
defme pela arte de tecer e sim pela ciência dos laços, isto é, transfere-o da astú-

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cia prática de Métis para os braços especulativos de Atena, a sábia. Faz do polí­
tico, ftlósofo. Realizando um percurso diverso do que percorrera na República,
Platão apresenta o que lhe faltava para a construção da Cidade justa ou perfei­
ta: a essência do agente político.

OS SOCRÁTICOS MENORES

Canta uma lenda que Sócrates teria sonhado com um majestoso cisne que
o seguia bicando-lhe o calcanhar. Ao despertar, disseram-lhe que estava à sua
procura um jovem. Ao vê-lo, Sócrates teria dito: "Eis o meu cisne". O jovem era
Platão.
Essa fábula costuma ser narrada para distinguir Platão de outros discípulos
de Sócrates que passaram à história com o nome de "socráticos menores".
Mescla dos ensinamentos de Sócrates e dos procedimentos retóricos dos
sofistas, as posições dos socráticos menores encaminham-se decididamente para
uma orientação moral da ftlosofia, pondo em dúvida a possibilidade de enfren­
tar racionalmente as questões especulativas que, na mesma época, ocuparam Pla­
tão e Aristóteles. Agruparam-se em três escolas: a megárica, a cínica e a cirenaica.

OS MEGÁRICOS

Euclides de Megara, possivelmente seguidor dos eleatas e, mais tarde, dis­


cípulo de Sócrates, cuja morte presenciou, abriu sua casa aos que desejavam
continuar as discussões ftlosóficas, nela dando abrigo ao jovem Platão. É consi­
derado o fundador da Escola Megárica, de que são representantes Eubúlides de
Mileto, Estilpão e Diodoro Crono. O vínculo de Euclides com os eleatas deu aos
megáricos sua principal característica, qual seja, a tentativa para unir o ensina­
mento de Sócrates e o de Parmênides, identificando, com o nome de Deus, Sa­
bedoria ou Intelecto, o Bem (a virtude socrática) e o Uno (parmenidiano).
Euclides negava realidade a tudo que fosse contrário ao Bem e à sua unida­
de, portanto, recusava não só o que aparecia à experiência sensorial, isto é, o
sensível, o movimento ou devir e a multiplicidade corporal, mas também a plu­
ralidade das ideias ou essências inteligíveis (pluralidade que será proposta por

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