Você está na página 1de 3

227

RESENHA dívida pública e outros indicadores


macroeconômicos que sinalizavam para erros e
FILGUEIRAS, Luiz. História do Plano Real: equívocos teóricos e políticos do modelo
fundamentos, impactos e contradições. 3. ed. econômico.
São Paulo: Boitempo, 2006. Partindo desse cenário e apoiando-se
nos fundamentos da economia política, realiza
Antônia Jesuíta de Lima o autor um exame acurado e crítico da
Universidade Federal do Piauí (UFPI) concepção, trajetória e impacto do Plano Real
sobre a economia brasileira e as perspectivas
Luiz Filgueiras é professor do de continuidade da política de estabilização. O
Departamento de Economia Aplicada da ponto de vista adotado é que o Plano Real era,
Faculdade de Ciências Econômicas e do antes de tudo, um produto econômico,
Programa de Pós-Graduação em Economia da ideológico e político de um movimento
Universidade Federal da Bahia (UFBA). dinâmico de três fenômenos que marcaram o
Graduou-se em Ciências Econômicas em 1978 desenvolvimento do capitalismo nas décadas
e concluiu o mestrado em Economia em 1983 de 1980 e 1990, o neoliberalismo, a
na UFBA. É doutor em Teoria Econômica pela reestruturação produtiva e a globalização, que
Universidade Estadual de Campinas repercutiram no Brasil de forma avassaladora.
(UNICAMP) e pós-doutor em Economia pela O argumento tem dois desdobramentos: o
Universidade Paris 13. primeiro assegura que o Plano Real não foi
O livro História do Plano Real foi lançado uma estratégia isolada de redefinição da
em 2000, numa versão modificada da tese economia brasileira, porquanto se articulava a
apresentada e aprovada em concurso para um projeto de realinhamento global do
professor titular do Departamento de Economia capitalismo, experiência que já vinha ocorrendo
Aplicada da Faculdade de Ciências em outros países, como Argentina e México.
Com efeito, cumprindo o receituário do
Econômicas da Universidade Federal da Bahia,
Consenso de Washington, o programa de
em 1999. O texto reúne reflexões produzidas
estabilização brasileiro impactara fortemente o
pelo autor sobre a economia brasileira e as
desenho da estrutura do Estado, com
políticas de estabilização implantadas no Brasil
implicações em sua forma de atuação nos
desde o início dos anos de 1980 até 1999, em
campos da economia e das políticas sociais, na
particular a do Plano Real. reestruturação, concentração e
A sua publicação ocorreu num ambiente desnacionalização de diversos setores
de intensos debates sobre a política econômica econômicos, nas relações internacionais,
em vigor e os impasses enfrentados pelo comerciais e financeiras, nas relações
governo Fernando Henrique Cardoso (1995- trabalhistas e no perfil do mercado de trabalho.
2003) para implementar o programa de O segundo desdobramento parte da
estabilização monetária adotado por Itamar ideia de que a estabilidade monetária,
Franco em fins de 1993. Para o autor, lastreada numa indiscriminada abertura
problemas como a crise cambial, a fuga de comercial e financeira da economia e, até
capitais e a desvalorização da moeda eram 1999, na sobrevalorização da nova moeda
apenas desdobramentos necessários da (real), ao exigir elevadas taxas de juros para a
própria lógica do programa adotado, que sustentação da !"#$%&"%'()%*, provocara uma
ameaçavam a estabilidade monetária e permanente situação de instabilidade
colocavam em xeque a ideia de uma moeda macroeconômica, expressa na fragilização do
forte, o que se confirmara com o fim da âncora balanço de pagamentos, na deterioração das
cambial e o retorno das pressões inflacionárias, finanças públicas, em baixas taxas de
dos elevados níveis de desemprego, do crescimento e no elevado aumento do nível de
aumento do déficit nas contas externas, da desemprego.

R. Pol. Públ., São Luís, v. 18, n. 1, p. 227-229, jan./jun. 2014


228

O autor explora, inicialmente, as forte influência na construção do Plano Real,


transformações estruturais do sistema examinando em detalhe a crise da dívida
capitalista ocorridas nas últimas décadas do externa, o posterior ajuste monetário do
século XX e seus efeitos econômicos, políticos balanço de pagamentos imposto pelo FMI, o
e sociais nas sociedades contemporâneas e Plano Cruzado e a ruptura econômica
identifica o 2:$%;':<5%;.=$( a <::.><,>,<5?*$" promovida pelo governo Collor via políticas
3<$@,>;/5 e a A%$'5%;B5?*$ como os pilares de neoliberais que permitiram o ingresso do país
uma nova lógica da produção e organização na nova ordem mundial. Destarte, para o autor,
social e da nova ordem econômica e política o chamado Consenso de Washington e o Plano
mundial. Esses três fenômenos, que segundo Cruzado constituíram as duas principais
Filgueiras, foram tratados à época !"# $[...] referências para a construção do Plano Real, a
uma grande dose de determinismo e primeira contribuindo com os insumos teóricos
inexorabilidade.%&# '()*+),"# -(# ./'0+1+ ,0+*,# e ideológicos e a segunda com as lições sobre
ideológica para as forças sociais que o que não se deveria repetir como política
conduziram tal processo diluírem e econômica.
confundirem os seus interesses materiais No exame detalhado da implementação
particulares com os gerais e agravaram a do Plano Real, em suas distintas fases (ajuste
exclusão social em todo o mundo, desde fiscal, criação da Unidade de Referência do
países em desenvolvimento, como o Brasil, aos Valor (URV) e implantação efetiva) e das
desenvolvidos, como o próprio movimento da medidas que lhe deram sustentação, Filgueiras
história tem demonstrado. Embora com advoga que as reformas na economia e no
dinâmicas distintas, esses três fenômenos Estado e as privatizações, o próprio programa
tinham um denominador comum: a acumulação de estabilização .><;D>$" .:2., e a abertura
flexível, ou seja, uma total liberdade ao capital comercial e financeira foram-lhe dimensões
em seu processo de valorização e de cruciais. As reformas, segundo o autor,
exploração da força de trabalho, o que significa serviram ao mesmo tempo de base para um
flexibilidade espacial, temporal, produtiva, novo modelo de desenvolvimento e de
financeira e de comercialização, da jornada de condição para o sucesso do Plano. Como
trabalho e da remuneração dos trabalhadores, modelo de desenvolvimento,
etc. [...] garantiriam a racionalização do
Assim, o ideal neoliberal era o mais Estado, possibilitando o surgimento
de um novo regime fiscal sustentável,
adequado a essa nova ordem econômica aumentariam a competitividade da
mundial, que se daria tanto no nível economia brasileira e atrairiam os
microeconômico, com a defesa da investidores estrangeiros, criando as
individualização das relações entre capital e condições para um novo ciclo de
trabalho, quanto na reorientação da desenvolvimento autossustentado.
Como condição para o sucesso do
intervenção do Estado para restringir o próprio Plano, possibilitariam, no primeiro
campo de atuação. A reestruturação produtiva momento, a sustentação da âncora
e a globalização estimulariam, por seu turno, o cambial e, posteriormente, com as
desenvolvimento das forças produtivas e suas efetivações, o relaxamento
ampliariam o circuito da acumulação, de sorte dessa âncora 2 que implicaria o
crescimento da dependência externa
que esse ambiente econômico, social e político do país e a adoção de elevadas
assim marcado e sob a hegemonia da doutrina taxas de juros.
e das políticas neoliberais, influenciou
profundamente as formulações do Plano Real. No entanto, acentua o autor, que, em
Aponta ainda o autor as variáveis de face do elevado grau de dependência do
natureza macroeconômica que marcaram a capital externo, o Plano Real, apesar do
chamada @CD5@5"3:<@;@5 (1980) e a adesão de sucesso inicial da estabilização da moeda e da
Fernando Collor de Melo à agenda neoliberal queda da inflação, sofreu fortes impactos das
como antecedentes históricos que exerceram crises cambiais de México, Ásia e Rússia, o

R. Pol. Públ., São Luís, v. 18, n. 1, p. 227-229, jan./jun. 2014


229

que determinou constantes flutuações do nível liberais, e encerrada com a crise derradeira,
de atividade da economia brasileira, inviabilizar a âncora cambial e sobrevalorizar o
circunscrevendo-lhe a trajetória em quatro Real. A política econômica então adotada
fases: a $B<'#/,!', caracterizada pela queda apenas promovia uma espécie de /0-%' 1% %' %'
da inflação, aceleração do ritmo de crescimento / !+"!, com efeitos perversos sobre a renda, o
das atividades produtivas e elevação do mercado de trabalho, as condições sociais e a
consumo; a C$)$//,!"D$/E'F#'),"#,/E', situação financeira do Estado, exigindo-lhe
marcada pelo impacto da crise do México e a reiterados e sucessivos ajustes fiscais que
desaceleração da economia, a de !"#$%&%'&#' podiam saciar, momentaneamente, o !"""#$
( !)(*$!+"#, no período de 1996 a junho de %&'()('$ *+,$ -.'/0%*+,1 mas apenas para
1997, período em que ocorreram as eleições recolocar, mais à frente, os mesmos problemas
municipais e elevação de gastos públicos e e as mesmas contradições.2
aumento da demanda interna. Nessa fase, Conclui o autor pela necessidade de um
sublinha Filgueiras, o governo, numa ofensiva projeto de desenvolvimento que apontasse um
de $% ,!"*+-. afirmava que havia chegado a caminho para outra forma de integração à nova
hora da retomada do crescimento, do início de ordem internacional, o que exigia um projeto
um novo ciclo de desenvolvimento nacional calcado na noção de um país
autossustentado, apoiado na definitiva soberano e voltado para o principal problema
estabilização dos preços. da sociedade brasileira: a exclusão econômico-
Ressalva, porém, o autor, os elementos social de grande parte da população. Aliás, há,
fundamentais do Plano que mantinham a na segunda edição (2003) do livro, um
inflação em níveis muito baixos continuavam posfácio, em que o autor procura atualizar a
colocando o país numa armadilha que análise, fundamentada no aprofundamento da
contrapunha, de um lado, inflação reduzida crise (elevado grau de vulnerabilidade externa
com estagnação econômica ou crescimento e de fragilidade financeira do setor público) e
medíocre e elevados níveis de desemprego e, nas mudanças na política econômica
de outro, crescimento mais elevado com risco promovidas no segundo governo de Fernando
de crise cambial. Tais fragilidades da economia Henrique Cardoso (1999-2003), e seus
brasileira se evidenciaram com uma nova impactos na economia, além dos
inflexão do ritmo das atividades econômicas a desdobramentos nos três primeiros meses do
partir de julho de 1997, inaugurando outro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-
momento recessivo da economia, associado às 2011).
crises dos países asiáticos e da Rússia e a Revisitar, portanto, o livro de Filgueiras é
novas medidas de ajuste fiscal impostas por um imperativo para os que se preocupam com
acordo com o FMI. os problemas reais do país, pois o texto ilumina
Os impactos e efeitos negativos do o passado recente e conduz a uma reflexão
Plano Real sobre a economia, o Estado e a profunda sobre os dilemas com que se depara,
sociedade são esquadrinhados nos capítulos atualmente, a sociedade brasileira.
finais do livro resenhado, momento em que
aponta os erros da estratégia adotada para Antônia Jesuíta de Lima
alcançar a estabilidade dos preços, que Assistente Social
resultou no aumento dos desequilíbrios Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia
estruturais já existentes e na criação de outros Universidade Católica de São Paulo (PCU-SP)
que agravaram a instabilidade Professora Associada da Universidade Federal do Piauí
(UFPI)
macroeconômica. Analisa, com efeito, o
desfecho de uma história iniciada a partir de Universidade Federal do Piauí - UFPI
escolhas erradas, como colocar o país numa Campus Universitário Ministro Petrônio Portella - Bairro
total dependência do capital externo, Ininga 3 Teresina/PI
subordinar a política econômica à lógica do CEP: 64049-550
capital financeiro, aprofundar as reformas

R. Pol. Públ., São Luís, v. 18, n. 1, p. 227-229, jan./jun. 2014

Você também pode gostar