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Pierre Nora observa que vivemos a aceleração da história, que produz, cada vez mais
rapidamente, um passado morto, a percepção geral de algo desaparecido (1993, p. 7). Para o
autor, a mundialização, a democratização, a massificação, a midiatização causaram o
desmoronamento da memória: o fim das sociedades-memória, que asseguravam a
conservação e transmissão de valores; o fim das ideologias-memória, que garantiam a
passagem regular do passado para o futuro ou indicavam o que se deveria reter do passado
para preparar este futuro (idem, p. 8). Os lugares de memória nascem e vivem, portanto, do
sentimento de que não há memória espontânea, de que é preciso criar arquivos: “Se o que
defendem não estivesse ameaçado, não se teria a necessidade de construí-los. Se vivêssemos
verdadeiramente as lembranças que envolvem, eles seriam inúteis” (idem, p. 13).
Como observa o autor, quanto menos se vive a memória no interior, maior a
necessidade de suportes exteriores. Ele cita a obsessão por arquivos no mundo contemporâneo
– “da escrita à alta fidelidade da fita magnética: ao mais modesto vestígio, a dignidade virtual
do memorável” (op. cit., p. 14) – e a “memória de papel” de que falava Leibniz:
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Esboço de artigo submetido ao Simpósio Temático “História, memória e ética: perspectivas transdiciplinares”
do XI Encontro Regional Sudeste de História Oral. Versão preliminar, não considerar para os anais do encontro.
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Jornalista, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (ECO/UFRJ), sob orientação da professora doutora Ana Paula Goulart Ribeiro. Colaboradora do projeto
Memória do Jornalismo Brasileiro, ligado ao núcleo de pesquisa Mídia, Memória e História do Nepcom (Núcleo
de Estudos e Projetos em Comunicação). E-mail: itala@puc-rio.br
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“Nenhuma época foi tão voluntariamente produtora de arquivos como a nossa [...]:
À medida que desaparece a memória tradicional, nos sentimos obrigados a acumular
religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais
visíveis do que foi, como se esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se tornar
prova em não se sabe qual tribunal da história” (idem, p. 15).
fortalecer ou debilitar, mas também para completar o que sabemos de um evento do qual já
estamos informados de alguma forma” (op. cit., p. 27). O depoimento não teria sentido senão
em relação a um grupo do qual faz parte, acontecimento vivido em comum, e por isso
depende do quadro de referência no qual evoluem o grupo e o indivíduo (idem, p. 13):
“Durante o curso de minha vida, o grupo de que fazia parte foi o teatro de certo
número de acontecimentos, dos quais digo que me lembro, mas que não conheci
senão pelos jornais ou depoimentos daqueles que deles participaram diretamente.
Ocupam um lugar na memória da nação. Porém eu mesmo não os assisti. Quando os
evoco, sou obrigado a confiar inteiramente na memória dos outros. [...] Uma
memória emprestada, que não é minha. [...] Por uma parte de minha personalidade,
estou engajado no grupo, de modo que nada do que nele ocorre, nada do que o
transformou antes que nele entrasse me é completamente estranho. Mas se quiser
reconstituir em sua integridade a lembrança de tal acontecimento, seria necessário
que juntasse todas as reproduções deformadas e parciais de que é objeto entre os
membros do grupo.” (HALBWACHS, 2004, pp. 54-55)
de memórias”. Pensamos assim, por termos adquirido o hábito de acreditar que o passado está
abolido, uma ilusão que serve ao agir humano (BERGSON, 2001, p. 369, apud FERRAZ,
2008).
Como observa Ribeiro (2003), os relatos memorialistas se baseiam num olhar
retrospectivo, a partir de certo distanciamento temporal em relação à realidade relatada,
narrativa extremamente frágil como fonte de informação. Ao mesmo tempo, é preciso escapar
do tom laudatório, do enaltecimento, e de imaginar estes lugares de memória como uma
espécie de oásis ou refúgio, onde ainda sobrevivam os mesmos mecanismos identitários:
“Nem sempre é fácil traçar uma linha de separação entre passado mítico e passado
real, um dos nós de qualquer política de memória em qualquer lugar. O real pode ser
mitologizado tanto quanto o mítico pode engendrar fortes efeitos de realidade”
(HUYSSEN, op. cit., p. 16).
Lugares de memória funcionam fora da dinâmica cultural contemporânea. A vontade
de lembrar que constitui os produtos dos meios de comunicação, mesmo jornalísticos,
expressa a sensibilidade mnemônica própria desse mundo e sempre incorpora em algum nível
a dimensão da espetacularização, da fragmentação, da rapidez, do entretenimento (RIBEIRO,
2013, p. 83). Porém,
“a cultura da memória – que se expressa no desejo incontido de arquivamento, no
impulso comemorativo, no rememorar nostálgico do passado, no dever da lembrança
– não precisa se esgotar no consumo fetichizado ou no entretenimento banal. É
possível imaginar que as lembranças, mesmo que se expressem de forma transitória
e efêmera, podem também produzir reflexão e conhecimento” (idem).
Assim, admite-se o jogo de forças pautado pelo momento presente e sustentado pela
verossimilhança e pela coerência dos sucessivos discursos. Toda organização, empresa ou
afim veicula seu próprio passado e a imagem que forjou de si mesma. “O que está em jogo na
memória é também o sentido da identidade individual e de grupo” (POLLAK, 1989, p. 3-15).
Este trabalho de enquadramento conta com a colaboração de atores profissionalizados,
profissionais da história, e de representantes instituídas por elas ou por seus pares, os
guardiães “oficiais” desta história. Como Pollak observa a respeito de sua pesquisa com
sobreviventes do campo de Auschwitz-Birkenau, a preocupação com a imagem que este
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papel preponderante. E há ainda o trabalho da própria memória em si, por sua manutenção,
coerência, unidade, continuidade, organização.
Citando Veillon, em seus estudos sobre a Segunda Guerra sob o prisma da história
oral, Pollak destaca que, conforme as circunstâncias, ocorre a emergência de certas
lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto, deformando e reinterpretando o passado.
“Assim, há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido.
E essas constatações se aplicam a toda forma de memória, individual e coletiva, familiar,
nacional e de pequenos grupos (D. Veillon, 1987, apud Pollak, 1989, p. 3-15).
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