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Curso Tuberculose 8 PDF
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Tuberculose multirresistente
Tuberculose multirresistente.
Multiresistant tuberculosis.
Jorge Luiz da Rocha1, Margareth Pretti Dalcolmo2, Liamar Borga3,
Dalva Fedele3, Maria das Graças Marques4.
Nas oito últimas edições, a Revista Pulmão RJ con- para a compreensão da persistência, e até do avanço des-
templou o leitor com o curso de tuberculose (TB), no qual ta endemia milenar em grande parte do mundo.
foram abordados grandes tópicos, tais como: epidemiolo- O primeiro tema a ser apresentado é a multirresis-
gia, etiopatogenia, diagnóstico, radiologia, tuberculose ex- tência do bacilo causador da doença, o Mycobacterium
trapulmonar, tratamento e quimioprofilaxia. A partir deste tuberculosis, aos medicamentos específicos, um pro-
número, serão abordados temas avançados que merecem blema mundial e um dos grandes desafios da atualida-
ser aprofundados e difundidos, dado a sua importância de para o controle da doença.
Introdução
O bacilo da tuberculose pode ser considerado um potência, dá-se o nome de resistência pós-primária,
exemplo de como uma espécie pode se adaptar aos adquirida, ou secundária, que sempre decorre de falha
meios adversos e se perpetuar como causador da do- humana: por parte da equipe de saúde ou por conta
ença infecciosa mais importante da história da humani- do próprio enfermo. Um paciente portador de tuber-
dade, sendo o patógeno que maior número de mortes culose multirresistente (TBMR) pode transmitir o baci-
segue produzindo. Das diversas formas de resistência lo resistente aos seus contatos, sem que estes tenham
que podem adquirir os microorganismos, o Mycobac- utilizado os medicamentos específicos previamente.
terium tuberculosis apresenta apenas a mutação que O contato que adoecer poderá ser portador de TBMR
cepas selvagens desenvolvem como fruto de sua mul- primária ou inicial.
tiplicação contínua, fazendo com que um número de Destacam-se como principais fatores relacionados
bacilos se modifique geneticamente, afetando o local à multirresistência: a) utilização inadequada dos medi-
de atuação de determinado medicamento, caracteri- camentos (falta de adesão do paciente ao tratamento;
zando, desta forma, a resistência natural. Assim, um a irregularidade no uso das medicações; uso incorreto das
cada 105-107 bacilos é naturalmente resistente à isonia- medicações gerando sub-doses; b) absorção intestinal
zida (H) e um a cada 107-109 é resistente à rifampicina deficiente dos medicamentos (síndromes disabsortivas,
(R), por exemplo. parasitoses e aids, por exemplo); c) prescrição medica-
Já a multirresistência não é um fenômeno natu- mentosa de forma inadequada (utilização equivocada
ral, pois, seria necessária uma população bacilar de dos esquemas padronizados pelo Ministério da Saúde
1014 para um bacilo se tornar naturalmente resistente (MS); falta de suspeição de resistência primária, por ava-
à rifampicina e isoniazida, e 1019, para rifampicina, iso- liação inadequada da história de contatos; adição de
niazida e etambutol (E), números impossíveis de se alo- outros medicamentos anti-tuberculose a esquemas ine-
jarem no corpo humano. Quando tal fenômeno ocorre, ficazes, de forma arbitrária, sem teste de sensibilidade e
conseqüentemente ao uso inadequado dos esquemas um bom histórico terapêutico e d) falta ou falha na pro-
terapêuticos, quer por irregularidade quer por baixa visão e distribuição dos medicamentos padronizados.
1. Médico Pneumologista do Hospital Estadual Santa Maria e da Policlínica Newton Bethlem. Consultor do Projeto MSH (Management Sciences for Health).
2. Coordenadora do Ambulatório do Centro de Referência Professor Hélio Fraga/MS. Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
3. Médicas do Ambulatório do Centro de Referência Professor Hélio Fraga/MS e Hospital Municipal Raphael de Paula Souza.
4. Assistente Social do Ambulatório do Centro de Referência Professor Hélio Fraga/MS..
Endereço para correspondência: Estrada de Curicica, 2000 Jacarepaguá, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, CEP: 22.780-192; e-mail: jorgeluiz.rocha@yahoo.com.br.
Recebido em 01/03/2008 e aceito em 20/03/2008, após revisão.
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Conceitos
O conceito de tuberculose multirresistente ba- pelo menos, mais um terceiro medicamento dos esque-
seia-se na identificação de Mycobacterium tuberculosis mas padronizados. Operacionalmente, alguns pacientes
resistente in vitro a, pelo menos, rifampicina e isoniazi- são também classificados como portadores de TBMR,
da, os dois principais medicamentos utilizados, univer- ou seja, os que apresentem resistência à rifampicina e
salmente, para o tratamento da doença. A Organização à isoniazida acompanhada de falência bacteriológica
Mundial da Saúde (OMS) considera todo o indivíduo comprovada ao esquema III, realizado de forma super-
portador de tuberculose, que apresente teste de sen- visionada. São considerados casos prováveis de TBMR
sibilidade revelando resistência bacilar a, pelo menos, aqueles que apresentam resistência in vitro à rifampici-
rifampicina e isoniazida, como multirresistente. na ou à isoniazida e falência bacteriológica comprovada
O Brasil, desde 1979 vem preconizando o uso de ao esquema III, realizado de forma supervisionada.
um esquema terapêutico de reserva para os casos de No Brasil se recomenda, desde 2004, com a pu-
falência ao esquema I e ao esquema I reforçado, o es- blicação das II Diretrizes Brasileiras para Tuberculose,
quema III, que era utilizado independentemente da re- que para o retratamento dos casos de TB, por retorno
alização de testes de sensibilidade. Portanto, o conceito após abandono, recidiva ou por falência, seja realizada
de TBMR adotado, até o presente momento, no nosso cultura para micobactérias, identificação da espécie e
país é: resistência in vitro à rifampicina, isoniazida e a, teste de sensibilidade.
Dados Epidemiológicos
A incidência de casos de TB com resistência bacilar, de científica para este problema, desencadeando uma
por pressão seletiva de um ou mais medicamentos anti- série de medidas enfocando o conhecimento da mag-
tuberculose, tem sido relatada desde a introdução das nitude deste fenômeno no mundo, a implementação
primeiras quimioterapias para a TB, na década de 40. A dos métodos para diagnóstico e pesquisas no campo
emergência das formas multirresistentes seguiu-se ao da terapêutica.
uso amplo da rifampicina a partir da década de 70. O número estimado de casos de TBMR no mundo,
Os países que conquistaram um efetivo controle da segundo a OMS, em 2006, é de 489.139 e uma prevalên-
TB, com base no desenvolvimento social e ampla cober- cia de 4,8% entre os casos de TB. Metade destes casos
tura quimioterápica, selecionaram cepas do Mycobacte- estaria na China e na Índia, seguida pela Rússia (7%).
rium tuberculosis resistentes à estreptomicina (S) e H, dois As regiões mais críticas são o Leste Europeu e o sul da
dos principais medicamentos utilizados nos esquemas Ásia. No entanto, a magnitude da TBMR no mundo ain-
terapêuticos na década de 60, antes da incorporação da da não é completamente conhecida, pois, muitos paí-
R. A maior expectativa de vida, aliada à imunodepressão, ses não informam dados sobre a doença: somente 185
favoreceu a reativação da TB entre os idosos infectados, países reportaram relatórios sobre TBMR à OMS.
no período de alta prevalência, com bacilos resistentes No Brasil, a partir do ano 2000, vêm sendo notifica-
à S e H. Tal fato possibilitou o surgimento de cepas re- dos, em média, 340 casos de TBMR ao ano. A incidência
sistentes à dupla RH, na década de 80. Desse modo, a de casos é notadamente maior nos estados mais popu-
TBMR, nos países desenvolvidos, caracteriza-se por ser losos, tendo o estado do Rio de Janeiro a proporção mais
basicamente primária, com transmissão institucional, significativa (37,4%), seguido por São Paulo, Bahia, Pará
relacionada à co-infecção pelo HIV, além de casos oriun- e Ceará, que também apresentam número expressivo de
dos de outros países pelos movimentos migratórios. No casos. Quanto à classificação, 95,8% dos casos apresen-
Brasil, a maior parte dos casos de TBMR é pós-primária tam resistência adquirida, ou seja, aquela detectada nos
ou adquirida, não relacionada à co-infecção pelo HIV ou indivíduos em uso de medicamentos anti-tuberculose,
a surtos institucionais, resultando da irregularidade e do ou com história prévia de uso desses medicamentos por
abandono do tratamento. Ressalta-se que os regimes mais de 30 dias. A proporção de casos novos de TBMR
terapêuticos são ambulatoriais e, até o final da década entre os casos novos de TB é de 0,4% ao ano. Dos casos
de 90, quase totalmente auto-administrados. de TBMR notificados, 68,6% são do sexo masculino, 55%
No início dos anos 90, foram observados surtos estão situados na faixa etária de 30 a 50 anos, 98,5% são
institucionais (hospitais e presídios) de TBMR nos Esta- formas pulmonares, 66% apresentam padrão bilateral
dos Unidos. Este fato chamou a atenção da comunida- cavitário e 7,3% apresentam co-infecção com o HIV.17
Diagnósticos
A suspeita clínica recai, preferencialmente, nos in- - indicação de retratamento (retorno por recidiva ou
divíduos sintomáticos respiratórios que se enquadram após o abandono);
nas seguintes situações: - contato com portador de TBMR (intra ou extradomiciliar);
- falência bacteriológica comprovada ao esquema vi- - portadores do vírus HIV/aids;
gente para TB; - internados em hospitais gerais em contato com pa-
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liar o seu verdadeiro valor, respondendo a questões cintigrafia pulmonar de ventilação-perfusão; além da
como: risco-benefício da ressecção parcial versus to- avaliação nutricional. Admite-se que a cirurgia deva
tal e o melhor momento para a intervenção. Alguns ser adjuvante ao tratamento medicamentoso e nun-
critérios são levados em conta para a indicação da ca realizada isoladamente. Ressalta-se que, na maio-
cirurgia: critério clínico (falência terapêutica ou le- ria dos casos, a possibilidade cirúrgica é inviabilizada,
sões residuais sintomáticas); tomográfico (cavidades visto serem pacientes portadores de doença paren-
unilaterais); funcional, por meio da espirometria e quimatosa grave e bilateral.
Profilaxia
Todos os contatos dos pacientes portadores de seis meses necessitam de validação e estudos de
TBMR devem ser avaliados do ponto de vista clínico, custo-efetividade.
bacteriológico (incluindo cultura com identificação Atualmente, a OMS propõe que, mesmo em países
da espécie e TS), radiológico e tuberculínico (meno- em desenvolvimento, medidas de controle da trans-
res de 15 anos), conforme recomendação das Nor- missão da TB sejam adotadas em Unidades de Saúde
mas Técnicas para TB do MS. cujo ambiente proporcione elevado risco de infecção
A quimioprofilaxia recomendada pela Ame- pelo bacilo da tuberculose, de paciente para paciente,
rican Thoracic Society (ATS) inclui o uso diário de ou de paciente para profissional de saúde. Especifica-
etambutol (20 mg/kg) e pirazinamida (25 mg/kg), mente para a TBMR, não há recomendações diferentes
por seis meses, ou a associação de pirazinamida e das utilizadas para a TB, apenas ressalta-se a importân-
uma quinolona (ofloxacina ou levofloxacina), por cia da biossegurança e a necessidade de se discutirem,
dois meses, porém, apresenta sérios problemas de na equipe multidisciplinar e com os gestores, as estra-
adesão e, até o momento, não existem estudos que tégias para a implementação das medidas de controle
tenham validado regimes para a quimioprofilaxia (administrativas, de controle ambiental e de proteção
da TBMR por ensaios controlados. As condutas in- individual), enquanto se aguarda uma legislação espe-
dividualizadas e o eventual uso de isoniazida por cífica para a biossegurança em TB no Brasil.
Vigilância Epidemiológica e Sistema de Informação
Todos os pacientes com TBMR devem ser noti- Quadro 2 – Resumo das principais etapas para o diagnóstico, tratam
ficados ao Centro de Referência Professor Hélio Fra- ento e acompanhamento.
ga (CRPHF)/MS, responsável técnico pelo gerencia-
mento dos casos, pela vigilância epidemiológica e
pelo controle dos medicamentos. No ano 2000, foi
criado um banco de dados nacional para o cadas-
tramento das fichas de notificação e das fichas de
acompanhamento (trimestrais), que eram enviadas
por correios ou fax ao nível central. Mediante a no-
tificação, todas as Unidades de Referência recebem
o esquema terapêutico para o tratamento dos seus
pacientes.
Atualmente está em vigor um sistema informa-
tizado, que foi elaborado pela parceria do CRPHF/
MS e o Projeto MSH (Management Sciences for He-
alth), que permite acesso aos usuários cadastrados
com perfis diferenciados: notificar; acompanhar os
pacientes em tratamento, e após a sua conclusão;
pesquisar informações, indicadores epidemiológi-
cos e gerenciais; e controlar o uso das medicações,
o seu envio e estoque.
O Quadro 2 apresenta sinteticamente os es-
quemas dos fluxos do Sistema TBMR no Brasil.
Resumo das principais etapas para o diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos casos de TBMR
1) Suspeitar de TBMR nos grupos prioritários. qualificado para realizar este exame.
2) Solicitar cultura para micobactéria com identificação 3) Definir o esquema de tratamento, se Esquema III ou
da espécie e teste de sensibilidade aos medicamentos, Esquema para TBMR, a partir do resultado da cultura e
em, pelo menos, duas amostras de escarro, ao Laborató- do teste de sensibilidade aos medicamentos, avaliado
rio Central do Estado (LACEN) ou outro laboratório local junto à história terapêutica do paciente.
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