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DAVID LE BRETON

Antropologia do corpo
e modernidade

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) TRADUÇÃO DE


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Fábio dos Santos Creder Lopes
Le Breton, David
Antropologia do corpo e modernidade I David Le
Breton ; tradução de Fábio dos Santos Creder
Lopes.- Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

Título original : Anthropologie du corps et modernité


Bibliografia
ISBN 978-85-326-2449-9

1. Corpo humano - Aspectos sociais I. Título.

10-10370 CDD-304.2

Índices para catálogo sistemático:


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Y
EDITORA
VOZES
1 . Antropologia do corpo e modernidade :
Petró poli s
Sociologia 304.2
Introdução

Este estudo consiste em uma abordagem antropológi-


ca e sociológica do mundo moderno, que toma o corpo
como fio condutor. Eis aqui, no espelho de uma socie-
dade dada, qual seja a nossa, alguns capítulos possíveis
de uma antropologia do corpo. Trata -se também de uma
antropologia do presente, que toma emprestado com fre-
quência o "desvio" 1 da etnologia e da história para apre-
ciar, sob um ângulo insólito, e proporcionalmente mais
fértil, certo número de práticas, discursos, representações
c imaginários que empregam o corpo na modernidade.
O corpo é um tema particularmente propício a uma
análise antropológica, porquanto pertence de pleno di-
reito à estirpe identificadora do homem. Sem o corpo,
que lhe dá um rosto, o homem não existiria. Viver con-
siste em reduzir continuamente o mundo ao seu corpo,
a partir do simbólico que ele encarna 2 • A existêncía
do homem é corporal. E o tratamento social e cultural
de que o corpo é objeto, as imagens que lhe expõem a

1
Cf. BALANDIER,G.Ledétour- Pouvoir et Modernité.Paris: Fayard, 1987.

l Cf. LE BRETON, D. La sociologie du corps. Paris: PUF, 1992 [Co I. Que sais-je ?].
espessura escondida, os valores que o distinguem, falam- dão consistência ao cosmo, à natureza. Entre o homem,
nos também da pessoa e das variações que sua definição o mundo e os outros, um mesmo estofo reina com moti-
e seus modos de existência conhecem, de uma estrutura vos e cores diferentes, os quais não modificam em nada a
social a outra. Porquanto está no cerne da ação indivi- trama comum (capítulo 1).
dual e coletiva, no cerne do simbolismo social, o corpo é O corpo moderno é de outra ordem. Ele implica o
um objeto de análise de grande alcance para uma melhor Isolamento do sujeito em relação aos outros (uma estru-
apreensão do presente. tura social de tipo individualista), em relação ao cosmo
Nada, sem dúvida, é mais misterioso aos olhos do ho- (as matérias-primas que compõem o corpo não têm qual-
mem do que a espessura do seu próprio corpo. E cada so- quer correspondência em outra parte), e em relação a ele
ciedade se esforçou, com seu estilo próprio, em dar uma mesmo (ter um corpo, mais do que ser o seu corpo). O
resposta particular a este enigma primeiro no qual o ho- corpo ocidental é o lugar da cesura, o recinto objetivo da
mem se enraíza. O corpo parece óbvio. Mas a evidência soberania do ego. Ele é a parte insecável do sujeito, o "fa-
é frequentemente o mais curto caminho do mistério. O tor de individuação" (Durkheim) em coletividades nas
antropólogo sabe que "no cerne da evidência, segundo quais a divisão social é admitida.
a bela fórmula de Edmond Jabes, há o vazio", isto é, o Nossas concepções atuais do corpo estão ligadas ao
crisol do sentido, que cada sociedade forja à sua manei- uvanço do individualismo enquanto estrutura social, à
ra, com evidências que não são tais senão para o olhar l'mergência de um pensamento racional positivo e laico so-
familiar que suscitam. A evidência de um é o espanto hrc a natureza, ao recuo progressivo das tradições populares
do outro, senão sua incompreensão. Cada sociedade, no locais, e ligadas ainda à história da medicina, que encarna
interior de sua visão de mundo, delineia um saber sin- •m nossas sociedades um saber, de certa forma, oficial so-
gular sobre o corpo: seus elementos constitutivos, suas bre o corpo. Estas são as condições sociais e culturais
performances, suas correspondências etc. Ela lhe confere p·lrticulares que lhe deram origem (capítulos 2 e 3). Ten-
sentido e valor. As concepções do corpo são tributárias tll mos construir uma história do presente, abalizando
das concepções da pessoa. Assim, numerosas sociedades o que nos parece mais significativo no estabelecimento
não separam o homem do seu corpo, à maneira dualis- da concepção e do estatuto atual do corpo. Uma espé-
ta, tão familiar ao ocidental. Nas sociedades tradicionais ·ic de genealogia do corpo moderno, com os tempos
o corpo não se distingue da pessoa. As matérias-primas lórtes de Vesalius e da filosofia mecanicista (capítulos
que compõem a espessura do homem são as mesmas que c 3). Entretanto, mesmo em nossas sociedades oci-

8 9
dentais, a unanimidade não reina sobre o que é o corpo. Em nossas sociedades ocidentais, o corpo é, portan-
Concepções mais difusas, mais ou menos familiares ou 1o, o signo do indivíduo, o lugar de sua diferença, de
coerentes, continuam a influenciar os atores, a alimentar sua distinção; e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, está
as medicinas tradicionais (magnetismo, videntes etc.) ou frequentemente dissociado dele, devido à herança dua-
medicinas "novas" (acupuntura, medicina auricular, os- li sta que pesa sempre sobre sua caracterização ociden-
teopatia, homeopatia etc.) (capítulo 4). tal. Fala-se assim, à maneira de um clichê, da "liberação
O corpo da vida cotidiana implica ainda o empre- do corpo", formulação tipicamente dualista, esquecida
go de uma sensibilidade. No início do século XX, G. do fato de que a condição humana é corporal, de que o
Simmel esquematizou uma sociologia dos sentidos cujo homem é indiscernível do corpo que lhe dá a espessu-
princípio nós aqui retomamos ao lampejo das condi- ra e a sensibilidade de seu ser no mundo. "A liberação
ções sociais e culturais que são as nossas. Qual estesia do corpo", se nós aceitarmos provisoriamente a formu -
caracteriza hoje a vida cotidiana do homem moderno? lação, é muito relativa. Pode-se facilmente mostrar que
(capítulo 5). 1s sociedades ocidentais permanecem fundadas em um
Um novo imaginário do corpo desenvolveu-se nos lpagamento do corpo que se traduz em numerosos ri-
anos de 1960. O homem ocidental descobre-se um corpo, tualismos dispensados ao longo das situações da vida
e a novidade segue seu curso, drenando discursos e prá- co tidiana. Um exemplo entre outros do apagamento ri-
ticas revestidos da aura das mídias. O dualismo contem- lualizado: a prevenção do contato físico com o outro,
porâneo opõe o homem ao seu corpo. As aventuras mo- ·ontrariamente a outras sociedades nas quais tocar o
dernas do homem e de seu duplo fizeram do corpo uma outro é, na conversação corrente, por exemplo, uma das
espécie de alter ego. Lugar privilegiado do bem-estar (a es truturas elementares da sociabilidade. O status dos
forma), do bem-parecer (as formas, body-building, cos- deficientes físicos em nossa sociedade, a angústia difu-
méticos, dietéticas etc.), paixão pelo esforço (maratona, sa que produzem, e a situação marginal do "louco" ou
jogging, windsurje) ou pelo risco (escalada, "a aventurà' dos velhos (capítulo 7), por exemplo, permitem situar
etc.). A preocupação moderna com o corpo, no seio de os limites da "liberação do corpo': Se existe um "corpo
nossa "humanidade sentadà: é um indutor incansável liberado", é um corpo jovem, belo, fisicamente impecá-
de imaginário e de práticas. "Fator de individuação" já, vel (capítulo 6). Só haverá, nesse sentido, "liberação do
o corpo redobra os sinais da distinção, exibe-se à manei- orpó' quando a preocupação com o corpo tiver desa-
ra de um fazer-valer (capítulo 8). parecido. Nós estamos longe disso.

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A medicina clássica também faz do corpo um alter são perturbações cujo fio condutor consiste na disjunção
ego do homem. Ela aparta de suas preocupações o ho- do homem e de seu corpo. Numerosas questões éticas
mem doente, sua história pessoal, sua relação com o de nosso tempo, entre as mais cruciais, estão ligadas ao
inconsciente, para considerar apenas os processos or- estatuto conferido ao corpo na definição social da pessoa
gânicos que se processam nele. A medicina permanece (procriação assistida, explosão da parentalidade, retira-
fiel à herança vesaliana: ela se interessa pelo corpo, pela da e transplante de órgãos, sequenciamento do genoma,
doença, não pelo doente. Essa é a fonte dos numerosos manipulações genéticas, progresso das técnicas de rea-
debates éticos contemporâneos relacionados ao surgi- nimação e outros aparelhos de assistência, próteses etc.).
mento da importância da medicina no campo social e à As questões debatidas hoje em praça pública são ape-
particularidade de sua concepção do homem. A mediei- nas o desenvolvimento dessa estrutura fundadora. Do
na repousa sobre uma antropologia residual, ela apostou que ela exclui o homem a montante do seu caminhar, a
no corpo, estimando possível cuidar da doença (percebi- medicina se expõe a reencontrá-lo a vazante, sob a forma
da como estrangeira) e não de um doente enquanto tal. de um questionamento daquilo que a funda. A medici-
A fragmentação do homem, que presidia discretamente na é aquela do corpo, não é uma medicina do homem,
a prática médica há séculos, torna-se hoje um dado so- como nas tradições orientais, por exemplo. Lembramo-
cial que perturba as sensibilidades. Porque a medicina nos dessa frase de Marguerite Yourcenar em L oeuvre au
apostou no corpo, ela o separa do homem para tratá-lo, noir-3, quando Zenão, o médico, infinitamente próximo
isto é, porque trata menos de um doente do que de uma de Vesalius, inclina-se com seu acompanhante, ele tam-
doença, ela se confronta hoje, a partir dos debates pú- bém médico, sobre o cadáver de um homem jovem, que
blicos que suscita, com o retorno brutal do seu reprimi- é o filho do precedente: "No quarto impregnado de vi-
do: o homem (eutanásia, acompanhamento de doentes nagre onde dissecamos esse morto, que não era mais o
e moribundos, pacientes em estado vegetativo crônico filho nem o amigo, mas somente um belo exemplar da
durante meses ou anos, pacientes aparelhados com os máquina humana[ ... ]". Frase programática, a medicina
quais já não se sabe mais o que fazer, terapias por ve- trata a "máquina humana", isto é, o corpo, e não o fi -
zes mutilantes etc.). O questionamento radical da noção lho ou o amigo, isto é, o homem em sua singularidade
de pessoa que conhecemos hoje traduz essencialmente (capítulo 9).
a repercussão social da medicina tornada uma das ins-
tituições farol da Modernidade. Dados antropológicos 3
YOURCENAR, M. L'oeuvre au noir. Paris: Gallimard, [s.d.], p. 118 [Coi. Poche].

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Outras medicinas tradicionais ou "novas" se esforçam, Se um livro é uma empresa solitária, ele também é
ao contrário, em ir além do dualismo para considerar 0 ho- alimentado com olhares e vozes que acompanharam de
mem em sua indissolúvel unidade (capítulo 9). Os novos perto seu desenvolvimento. Eu gostaria de agradecer
procedimentos de diagnóstico por imagem esquadrinham particularmente a Mary-José Lambert, cuja amizade me
no real um segredo do corpo que pertence apenas à simbó- permitiu melhor apreender e observar a eficácia da cura
lica social das comunidades humanas, mas desencadeiam a tradicional. Seu próprio espanto em curar ou em ali-
réplica inesgotável do imaginário dos atores (capítulo 10). viar não cessou de alimentar minha própria curiosidade
A aura do corpo não tem mais curso, pelo menos acerca do corpo e da relação terapêutica. Agradeço ainda
desde Vesalius e os primeiros anatomistas. A ciência e a a Philippe Bagros, médico chefe de um serviço hospitalar
técnica, fiéis ao seu projeto de domínio do mundo, ten- em Tours, que me mostrou o caminho de uma medicina
tam, no mesmo movimento paradoxal, ao mesmo tempo do homem. A colaboração que amarramos juntos em vis-
eliminar o corpo e imitá -lo. ta de introduzir as ciências humanas no ensino da facul-
Por um lado, ultrapassar seus limites, reconstruí-lo, in- dade de medicina é particularmente rica e estimulante.
terferir em seus processos. Como se a condição humana se A Martine Pasquer e Philippe Grosbois agradeço pelas
assemelhasse, em uma perspectiva gnóstica, a uma queda numerosas discussões, intervenções comuns em seções
no corpo, este último tornando-se um membro supranu- de formação permanente ou em cursos, e pela partilha
merário do homem, do qual convém livrar-se quanto de uma mesma sensibilidade e de um questionamento
0
antes. Lugar da precariedade, da morte, do envelhecimen- próximo.
to; aquilo que é preciso combater em primeiro lugar para Gostaria de agradecer também a Alain Gras, René
conjurar a perda. Sem consegui-lo, sem dúvida, mas na Bureau e Margalit Emerique por me terem permitido,
insistência permanente da esperança. O corpo, lugar do graças à sua confiança e à sua amizade, desbravar aspec-
inapreensível cujo domínio deve ser assegurado. tos dessa pesquisa.
. Por outro lado, simultaneamente, o corpo é paradigmá- Manifesto ainda meu reconhecimento e minha afei-
trco de uma medicina fascinada pelos processos orgânicos, ção por Hnina Tuil, que conheceu todas as peripécias, os
de modo que suas pálidas imitações (concepção in vitro arrependimentos e os fervores de uma empresa que ela
etc.) são consideradas eventos notáveis, e suscitam uma ri- não cessou de estimular com sua presença.
validade excepcional entre os laboratórios de pesquisas ou Permaneço, evidentemente, o único responsável pelas
os serviços hospitalares em vista da "estreià' (capítulo 11). análises desenvolvidas aqui.

14 15
1

O inapreensível do corpo*

1.1 O mistério do corpo

As representações sociais atribuem ao corpo uma po-


sição determinada no seio do simbolismo geral da socie-
dade. Elas nomeiam as diferentes partes que o compõem
e as funções que desempenham, explicitam-lhe as rela-
ções, penetram o interior invisível do corpo para aí re-
gistrar imagens precisas, elas situam seu lugar no seio do
cosmos ou da ecologia da comunidade humana. Este sa-
ber aplicado ao corpo é imediatamente cultural. Mesmo
se é apreendido de um modo rudimentar pelo sujeito,
ele permite-lhe dar um sentido à espessura de sua carne,
saber do que é feito, vincular suas doenças ou seus sofri-
mentos a causas precisas e conformes à visão de mundo

' As teses apresentadas nesta primeira parte foram propostas pela pri-
meira vez, sob outra forma, em LE BRETON, D."Corps et individualisme':
Oiogene, n. 131, 1985. • "Dualisme e Renaissance: aux sources d'une
représentation moderne du corps': Diogene, n. 142, 1988.
de sua sociedade, permite, enfim, conhecer sua posição
A explosão atual dos saberes sobre o corpo 1, que faz
perante a natureza e os outros homens, a partir de um
da anatomofisiologia uma teoria entre outras, mesmo se
sistema de valor.
esta permanece dominante, denota outra etapa do indi-
As representações do corpo, e os saberes que as al-
vidualismo, aquela de um recolhimento ainda mais forte
cançam, são tributários de um estado social, de uma
110 ego: a emergência de uma sociedade na qual a atomi-
visão de mundo, e, no interior desta última, de uma
zação dos atores se tornou um fato importante, seja ela
definição da pessoa. O corpo é uma construção sim-
suportada, desejada ou ainda indiferente2 • Trata-se aí de
bólica, não uma realidade em si. Donde a miríade de
um traço bem significativo das sociedades nas quais o
representações que procuram conferir-lhe um sentido,
individualismo é um fato de estrutura: o desenvolvimen-
e seu caráter heteróclito, insólito, contraditório, de uma
Lo de um caráter infinitamente plural, polifônico da vida
sociedade a outra.
coletiva e de suas referências. Nessas sociedades, com
O corpo parece evidente, mas, definitivamente, na-
efeito, a iniciativa pertence antes aos atores, ou aos gru-
da é mais inapreensível. Ele nunca é um dado indiscu-
pos, do que à cultura, que tende a se tornar um simples
tível, mas o efeito de uma construção social e cultural.
quadro formal.
A concepção mais correntemente admitida nas socie-
Assistimos hoje a uma aceleração dos processos so-
dades ocidentais encontra sua formulação na anato-
ciais sem que o nível cultural a acompanhe. Um divórcio
mofisiologia, isto é, no saber biomédico. Ela repousa
é frequentemente detectável entre a experiência social
sobre uma concepção particular da pessoa, que faz o
do ator e sua capacidade de integração simbólica. Dis-
ator social dizer "meu corpo", segundo o modelo da
posse. Essa representação nasceu da emergência e do
1 Pesquisas desmesuradas de outras teorias do corpo, tomadas do
desenvolvimento do individualismo no seio das socie- Oriente, da astrologia, do esoterismo, recurso cada vez mais frequente

dades ocidentais a partir do Renascimento, conforme às formas tradicionais de cura, que igualmente veiculam teorias do cor-
po diversas e sem relação com o modelo anatomofisiológico da medi-
veremos nos capítulos seguintes. As questões que ire- cina, recurso às medicinas "suaves'; desapreço pela medicina moderna
mos abordar nesta obra implicam essa estrutura in- e por sua visão um tanto quanto mecanicista do corpo, cf. infra.

dividualista, que faz do corpo o recinto do sujeito, o 2A pesquisa atual de novas formas de sociabilidade, de troca e de tri~a­
lismo, é uma forma de resistência à atomização do social. Uma mane1ra
lugar de seu limite e de sua liberdade, o objeto privi-
de manter uma aparência de vida comunitária, mas de um modo con-
legiado de uma fabricação e de uma vontade de do- trolado e voluntarista, como o ilustra bem o fenômeno associativo. So-
mínio. bre este tema, duas visões diferentes: BAREL, Y. La societé duvide. Paris:
seu i I, 1983. • LIPOVETSKI, G. L'ere duvide. Paris: Gallimard, 1985.

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so resulta uma carência de sentido que às vezes torna a atribuir aos seus corpos uma espécie de suplemento de
a vida difícil. Do fato da ausência de resposta cultural alma. Assim justifica-se o recurso a concepções do corpo
para guiar suas escolhas e suas ações, o homem é aban- heteróclitas, frequentemente contraditórias, simplifica-
donado à sua própria iniciativa, à sua solidão, despro- das, reduzidas por vezes a receitas. O corpo da Moderni-
vido perante numerosos eventos essenciais da condição dade se torna um melting pot bem próximo das colagens
humana: a morte, a doença, a solidão, o desemprego, o surrealistas. Cada ator "bricolà' a representação que faz
envelhecimento, a adversidade ... Convém na dúvida, e às de seu próprio corpo, de maneira individual, autônoma,
vezes na angústia, inventar soluções pessoais. A tendên- mesmo se retira, para tanto, no ar do tempo, o saber vul-
cia ao recolhimento em si, e a busca da autonomia, que garizado das mídias, ou a casualidade de suas leituras e
mobiliza inúmeros atores, não são sem consequências de seus encontros pessoais.
sensíveis sobre o tecido cultural. A comunidade dos sen- É a um reconhecimento do progresso do individua-
tidos e dos valores se dispersa na trama social sem soldá- lismo na trama social, e de suas consequências sobre as
la realmente. A atomização dos atores acentua ainda o representações do corpo, que um estudo das relações en-
distanciamento dos elementos culturais tradicionais, que tre o corpo e a Modernidade nos impõe imediatamen-
caem em desuso ou tornam-se indicações sem espessura. te. Veremos inicialmente o quanto a noção de "corpo" é
Eles tornaram-se pouco dignos de investimento e desa- problemática, indecisa. A noção moderna de corpo é um
parecem, deixando um vazio que não preenche os proce- efeito da estrutura individualista do campo social, uma
dimentos técnicos. Ao contrário, as soluções pessoais se consequência da ruptura da solidariedade que mescla a
proliferam, e visam suprir as carências do simbólico por pessoa a um coletivo e ao cosmos por meio de um tecido
empréstimos de outros tecidos culturais ou pela criação de correspondências no qual tudo se entrelaça.
de novas referências.
No âmbito do corpo, uma mesma dispersão de re-
1.2 "Vocês nos trouxeram o corpo"
ferências se produz. A concepção, um tanto quanto de-
sencantada, da anatomofisiologia, e os avanços recentes
da medicina e da biotecnologia, além de favorecerem a Um relato espantoso, contado por Maurice Leenhardt
denegação da morte, não tornam essa representação do em um de seus estudos sobre a sociedade canaque, nos
corpo nem um pouco atraente. Inúmeros atores entre- permitirá melhor colocarmos este problema de mostrar
gam-se a uma busca incansável de modelos destinados igualmente o quanto os dados estudados nesta obra são

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necessariamente solidários com uma concepção de cor- so b esse nome. Quanto aos intestinos, são assimilados
po tipicamente ocidental e moderna. Mas, antes de che- nos emaranhados de cipós que adensam a floresta. O cor-
gar a isso, é preciso situar as concepções melanesianas po aparece aqui como outra forma vegetal, ou o vegetal
3
do corpo , assim como aquelas que estruturam e dão um ·omo uma extensão natural do corpo. Não há qualquer
sentido e um valor à noção de pessoa. f"ronteira discernível entre esses dois domínios. Apenas
Entre os canaques, o corpo recebe suas características nossos conceitos ocidentais permitem essa divisão, sob o
4
do reino vegetal • Parcela não destacada do universo, que risco de uma confusão e de uma redução etnocêntricas
o banha, ele entrelaça sua existência às árvores, aos frutos das diferenças.
e às plantas. Ele obedece às pulsações do vegetal, confun- O corpo não é concebido pelos canaques como uma
dido a essa gemeinschaft alies lebendigen (comunidade de forma e uma matéria isoladas do mundo; ele participa em
tudo aquilo que vive), da qual Cassirer dizia outrora. Kara sua totalidade de uma natureza que, ao mesmo tempo, o
designa, ao mesmo tempo, a pele do homem e a casca da assimila e o banha. A ligação com o vegetal não é uma
árvore. A unidade da carne e dos músculos (pié) remete metáfora, mas uma identidade de substância. Numero-
à polpa ou ao caroço dos frutos. A parte dura do corpo, a sos exemplos tomados da vida cotidiana dos canaques
ossatura, é nomeada com o mesmo termo que o coração ilustram bem o jogo dessa semântica corporal. De uma
da madeira. Essa palavra designa igualmente os cacos de riança raquítica, diz-se que ela "brota amarela'', seme-
coral lançados sobre as praias. São as conchinhas terres- lhante nisso a uma raiz cuja seiva escasseia, e que fenece.
tres ou marinhas que servem para identificar os ossos Um velho se insurge contra o policial que vem procurar
envolventes, tais como o crânio. Os nomes das diversas seu filho para constrangê-lo aos trabalhos difíceis exigi-
vísceras vertem igualmente do seio de um vocabulário dos pelos brancos. "Veja esse braço, diz ele, é de água:' A
vegetal. Os rins e as outras glândulas do interior do cor- criança é idêntica "a um rebento de árvore, inicialmente
po trazem o nome de um fruto cuja aparência seja pró- aquoso, depois, com o tempo, lenhoso e duro" (p. 63).
xima à sua. Os pulmões, cujo envoltório lembra a forma Numerosos exemplos podem assim suceder-se (p. 65-66);
da árvore totêmica dos canaques, Kuni, são identificados as mesmas matérias operam no seio do mundo e da car-
3veremos
. ne; elas estabelecem uma intimidade, uma solidariedade
com certeza que se trata apenas de uma maneira de falar. As
concepções melanesianas do corpo jamais o autonomizam como uma
entre os homens e seu ambiente. Na cosmogonia cana-
realidade à parte. que, todo homem sabe de qual árvore da floresta provém
4
LEENHARDT, M. Do Kamo. Paris: Gallimard, 1947, p. 54-70. cada um de seus ancestrais. A árvore simboliza a pertença

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ao grupo, enraizando o homem à terra de seus ances- aquela de um ambiente de troca no seio de uma comuni-
trais e atribuindo-lhe, no seio da natureza, um lugar sin- dade onde nada pode ser caracterizado como indivíduo.
gular, fundido entre as inúmeras árvores que povoam a O homem aí só existe pelas suas relações com outrem, ele
floresta. No nascimento da criança, lá onde se encontra não tira a legitimidade de sua existência de sua própria
enterrado o cordão umbilical, planta -se um rebento que, pessoa erigida em totem 5 • A noção de pessoa, no senti-
pouco a pouco, afirma-se e cresce segundo a medida do do ocidental, não é, portanto, perceptível na sociedade e
amadurecimento da criança. A palavra karo, que designa na cosmogonia tradicional canaque. A fortiori, o corpo
o corpo do homem, entra na composição das expressões não existe. Pelo menos não no sentido em que o enten-
que batizam: o corpo da noite, o corpo do machado, o demos hoje em nossas sociedades. O "corpo" (o karo) é
corpo da água etc. aqui confundido com o mundo; ele não é o suporte ou a
Compreende-se imediatamente que a noção ociden- prova de uma individualidade, porquanto esta não está
tal de pessoa é sem consistência na sociedade melanesia- fixada, uma vez que a pessoa repousa sobre fundamentos
na. Se o corpo está em ligação com o universo vegetal, que a tornam permeável a todos os eflúvios do meio am-
entre os vivos e os mortos, não existem mais fronteiras. biente. O "corpo" não é fronteira, átomo, mas elemento
A morte não é concebida sob a forma do aniquilamento, indiscernível de um todo simbólico. Não existe aspereza
ela marca o acesso a outra forma de existência, na qual o entre a carne do homem e a carne do mundo.
defunto pode tomar o lugar de um animal, de uma árvo- Eis agora o relato do qual falamos. Maurice Leenhardt,
re ou de um espírito. Ele pode até mesmo voltar à aldeia curioso por melhor delimitar a relação dos valores oci-
ou à cidade e misturar-se aos vivos sob o aspecto do bao dentais sobre as mentalidades tradicionais, interroga um
(p. 67ss.). Por outro lado, durante sua vida, cada sujeito velho canaque e este responde, para grande surpresa de
só existe em suas relações com os outros. O homem é Leenhardt: "o que vocês nos trouxeram foi o corpo" (p.
apenas um reflexo. Ele não tem sua espessura, sua con- 263). A imposição da weltanschauung ocidental em cer-
sistência, a não ser na soma de suas ligações com seus tos grupos, aliada à sua evangelização6 , conduz aqueles
parceiros. Traço relativamente frequente nas sociedades
s Segundo a fórmula de LÉVI-STRAUSS, C. La pensée sauvage. Paris: Plon,
tradicionais, e que, de resto, remete-nos aos trabalhos da
1962, p. 285.
sociologia alemã do começo do século XX, na oposição
6 Sobre a importância do fato da individuação no cristianismo,cf. MAUSS,
que ela faz, com Tonnies, por exemplo, entre o vínculo M."La notion de personne': Sociologie et anthropologie. Paris: PUF, 1950.
comunitário e o vínculo social. A existência do cana que é • DUMONT, L. Essa i sur l'individua/isme. Paris: Seu i I, 1983.

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que extrapolam o limite, aqueles que aceitam despojar- Mas essa noção de pessoa cristalizada em torno do eu,
se de seus antigos valores, a uma individualização que ·m que consiste o indivíduo, é ela mesma uma aparição
reproduz, sob uma forma atenuada, aquela das socieda- recente no seio da história do mundo ocidental. Algumas
des ocidentais. O melanesiano conquistado, ainda que de reflexões se impõem aqui para mostrar a solidariedade que
maneira rudimentar, por esses valores novos, liberta-se do vincula as concepções modernas da pessoa e aquelas que,
tecido de sentido tradicional que integra sua presença no consequentemente, atribuem ao corpo um sentido e um
mundo no seio de um continuum; ele se torna em germe estatuto. Desde logo importa sublinhar o curso diferen-
indivisum in se. E as fronteiras delimitadas por seu corpo 0 ciado do individualismo no seio de diversos grupos sociais.
distinguem doravante de seus companheiros, mesmo da- já em Le suicide, É. Durkheim demonstra perfeitamente
queles que perfizeram o mesmo percurso. Distanciamen- que a autonomia do ator nas escolhas que se lhe apresentam
to da dimensão comunitária (e não desaparecimento, na não é a mesma segundo o meio social e cultural no qual
medida em que a influência ocidental só pode ser parcial, ele se enraíza. Em certas regiões francesas, por exemplo, a
citadina, antes que rural), e desenvolvimento de uma di- dimensão comunitária não desapareceu inteiramente; ela se
mensão social na qual os vínculos entre os atores são mais verifica mesmo na sobrevivência e na vivacidade de certas
lassos. Certo número de melanesianos acaba, portanto, por concepções do corpo postas em jogo pelas tradições popu-
se sentir antes indivíduo em uma sociedade do que mem- lares de curandeirismo, onde a tutela simbólica do cosmo,
bro dificilmente discernível de uma comunidade, mesmo da natureza, é ainda perceptível. Ela se confirma também,
se, nessas sociedades um tanto quanto híbridas, a passa- nessas regiões, pela desconfiança testemunhada em relação
gem não se estabelece de maneira radical. O estreitamento a uma medicina tributária de uma concepção individualista
em direção ao eu, o ego, que resulta dessa transformação do corpo. Voltaremos a isso na sequência deste texto 8•
social e cultural, induz à verificação nos fatos de uma forte A noção de individualismo, que serve de base a esta
intuição de Durkheim, segundo a qual, para distinguir um argumentação, é, aos nossos olhos, mais uma tendência
sujeito de outro, "é necessário um fator de individuação, e dominante do que uma realidade intrínseca às nossas
é o corpo que desempenha esse papel" 7•
8
Vemos, por exemplo, na feitiçaria, que as fronteiras do sujeito trans-
7
DURKHEIM, É. Formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: PUF 1968 bordam os limites de seu próprio corpo, para englobar sua família,
p. 386ss. De resto, Émile Durkheim encontra aí o princípio de ;ndivi: seus bens, à maneira de um emaranhamento típico da estruturação
duação pela matéria que, na tradição cristã, remete a Santo Tomás de co munitária na qual o homem não é uno (indiviso), mas um homem-
Aqui no. em-relação, ou, antes, um tecido de relações.

26 27
sociedades ocidentais. Em contrapartida, é justamente cuspir no carpete ou nos assentos. Serve-se dos toale-
essa visão de mundo que põe em seu centro o indivíduo tes, subindo sobre o assento, e suja a cabine etc. Ele vi-
(o ego cogito cartesiano), que está na origem de nossas via em Bumbai, em um armário da casa de seu mestre;
concepções dominantes do corpo 9 • em Washington, ele se vê destinado ao mesmo espaço.
Uma novela de V.S. NaipauP 0 ilustra, por um atalho Em um primeiro momento, nada muda da relação de
compreensível, os propósitos do velho canaque inter- submissão que ele nutre em relação ao seu patrão. A cidade
rogado por Maurice Leenhardt. Em alguns meses de inicialmente o apavora. Mas nela ele dá, angustiadamente,
estadia nos Estados Unidos, um empregado doméstico seus primeiros passos, e acaba por se encorajar. Com o ta-
de Bumbai vai viver o processo de sua "individuação" e baco trazido de Bumbai, que vende aos hippies, ele compra
descobrir-se possuidor de um rosto, e, em seguida, de um terno. E pela primeira vez esconde algo de seu patrão.
um corpo. Em Bumbai, esse homem vivia à sombra de Descobre um dia, com espanto, seu rosto no espelho:
seu patrão, um funcionário do governo. À noite, ele en- Eu tinha ido me olhar no espelho da sala de banho,

contra seus amigos, os outros empregados domésticos da simplesmente para estudar meu rosto no vidro.
Atualmente, eu dificilmente consigo crê-lo, mas,
rua. Sua mulher e seus filhos estão longe, ele raramente
em Bumbai, uma semana ou mesmo um mês se
os vê. Seu patrão é subitamente nomeado para um posto
podia passar sem que eu me olhasse no espelho. E
em Washington. Após algumas dificuldades, este obtém
quando eu me olhava, não era para ver com quem
do governo que seu criado o siga. A viagem de avião o eu parecia, mas para assegurar-me de que o bar-
confronta a uma primeira experiência intercultural. Suas beiro não me tinha cortado os cabelos curtos de-
más vestimentas atraem sobre si a atenção, e ele se vê m ais, ou para me abotoar. Aqui, pouco a pouco, eu
relegado ao fundo do avião. Prepara para si uma mistura fiz uma descoberta: eu tinha um rosto agradável,

de bétel, mas se vê obrigado a engoli-la para não ter que eu nunca me tinha visto assim, ao contrário, eu me
via ordinário, com traços que apenas serviam para
me identificar (p. 42).
9
Todo campo conceitual, qua lquer que seja o objeto, contém certa
visão do mundo e atribui ao homem (ainda que apenas no oco, em Simultaneamente à descoberta de si como indiví-
negativo) certa posição, sobretudo no âmbito das práticas que ele sus- duo, o homem descobre seu rosto, sinal de sua singu-
tenta. É o que permite dizer que certas concepções (a medicina, por
exemplo) contêm um importante coeficiente de individualismo.
laridade, e seu corpo, objeto de uma posse. O nasci-
10 mento do individualismo ocidental coincidiu com a
NAIPAUL, V.S."Um parm i d'autres': Ois-moi qui tuer. Paris: Albin Michel,
1983, p.42 [Trad. de Annie Saumart]. promoção do rosto.

28 29
Em outras palavras, ele compreende, cada vez melhor,
os "truques" da sociedade americana. Um dia, símbolo de 1.3 Polissemia do corpo
sua emancipação crescente da einstellung de sua socieda-
de, ele tem uma aventura amorosa com uma faxineira do De uma sociedade a outra, as imagens que tentam
edifício onde vive. Envergonhado de seu ato, ainda sobre a reduzir culturalmente o mistério do corpo se sucedem.
linha de transição, ele passa horas se purificando e orando. Vma miríade de imagens insólitas delineia a presen-
Logo em seguida ele deixa seu patrão, sem avisá-lo, e vai ça em pontilhado de um objeto fugaz, inapreensível e,
trabalhar em um restaurante. Meses se passam, no curso no entanto, aparentemente incontestáveP'. A formula-
dos quais ele perfaz o processo de individuação, o qual per- ção da palavra corpo como fragmento de certa maneira
corre a despeito de si mesmo. Desposa então a faxineira e, autônomo em relação ao homem, cujo rosto ele porta,
por conseguinte, torna-se um cidadão americano cada vez pressupõe uma distinção estrangeira a numerosas co-
mais integrado a um modo de vida que lhe pareceu insólito munidades humanas. Nas sociedades tradicionais, de
nos primeiros tempos de sua estadia. Significativas são as composição holista, comunitária, nas quais o indivíduo
últimas linhas do texto, que voltam a fechar a história desse é indiscernível, o corpo não é o objeto de uma cisão, e
homem, a descoberta da posse de um corpo e o retraimen- o homem está misturado ao cosmos, à natureza, à co-
to em si, que corta com o sentimento experimentado antes munidade. Nessas sociedades, as representações do cor-
de sua partida para os Estados Unidos, de ser confundido po são, de fato, representações do homem, da pessoa. A
ao mundo, formado das mesmas matérias. "No passado, imagem do corpo é uma imagem de si, alimentada das
escreve o homem, eu estava dissolvido na água do grande matérias-primas que compõem a natureza, o cosmos, em
rio, eu jamais estive separado, com uma vida minha, mas uma espécie de indistinção. Essas concepções impõem o
eu me contemplei em um espelho e decidi ser livre. A única sentimento de um parentesco, de uma participação ativa
vantagem dessa liberdade foi a de me fazer descobrir que do homem na totalidade do vivente, e, ademais, encon-
eu tinha um corpo, e que eu devia, durante certo número tramas ainda traços ativos dessas representações nas tra-
de anos, alimentar e vestir esse corpo. E depois tudo estará dições populares de curandeirismo (capítulo 4: "Hoje, o
terminado" (p. 68) . Se a eXIstenCia
· • · se reduz a possuir um corpo .. :'). Por vezes uma língua continua a guardar raízes
corpo à maneira de um atributo, então, com efeito, a pró- precisas unindo o microcosmo do corpo aos elementos
pria morte não tem mais sentido: ela não é senão o desapa-
11
recimento de um ter, isto é, pouca coisa. Cf. LE BRETON, D. La sociologie du corps. Paris: PUF, 1992 [Co I. Que sais-
je? - 3. éd. cor., 1996].

30
31

- - - - -- - - - - - -
da natureza, enquanto as tradições populares ainda vivas lllplura de solidariedade com o cosmo. Nas sociedades
não mais retêm em suas crenças senão uma parte dessas dt• 1ipo comunitário, em que o sentido da existência do
correspondências. O Euskara, a língua basca, uma das l111mem marca uma submissão fiel ao grupo, ao cosmo
mais antigas das línguas indo-europeias, com cinco mil ,, natureza, o corpo não existe como elemento de indi-
anos de idade, sem dúvida o testemunha. Cinco catego- v duação, uma vez que o próprio indivíduo não se dis-
rias, que correspondem aos elementos naturais dos anti- 1 ngue do grupo, sendo, no máximo, uma singularidade

gos bascos, cinco divindades igualmente atestadas pela 11 1 harmonia diferencial do grupo. Ao contrário, o iso-
antropologia e pela história do povo basco, ordenam os l~tmcnto do corpo no seio das sociedades ocidentais (cf.
componentes da pessoa humana: a terra, a água, o ar, a ni'ra) testemunha uma trama social na qual o homem
madeira e o fogo. Os cinco princípios da cosmogonia for- t'• s ·parado do cosmo, separado dos outros e separado

necem as cinco raízes lexicais que engendram todo um d • si mesmo. Fator de individuação no plano social, no
vocabulário anatômico que inscreve nas veias da língua a pl 1110 das representações, o corpo é dissociado do sujei-
correspondência entre o corpo humano e o cosmo 12 • li 1 ' percebido com um de seus atributos. As sociedades

O corpo como elemento isolável do homem, ao qual 111 Identais fizeram do corpo um ter, mais do que uma es-
empresta seu rosto, não é pensável senão nas estruturas 1 1 pc identificadora. A distinção do corpo e da presença
sociais de tipo individualista, nas quais os homens estão l111mana é a herança histórica do retraimento na concep-
separados uns dos outros, relativamente autônomos em ' o da pessoa, do componente comunitário e cósmico, e
suas iniciativas, em seus valores. O corpo funciona à ma- o .feito da divisão operada no seio mesmo do homem.
neira de um marco de fronteira para delimitar perante ( ) ·orpo da Modernidade, aquele que resulta do recuo
os outros a presença do sujeito. Ele é fator de individua- 1l1s tradições populares e do advento do individualismo
ção. O vocabulário anatômico estritamente independen- o ·idental, marca a fronteira entre um indivíduo e outro,
te de qualquer outra referência marca bem igualmente a u l' ncerramento do sujeito em si mesmo.
A especificidade do vocabulário anatômico e fisio-
12
lt'lg ico, que não encontra qualquer referência, qualquer
Sobre esse ponto, cf. PEILLEN, D. "Symbolique de la dénomination
des parties du corps humain en langue basque': Le corps humain, na- t 11Íz, fora de sua esfera, ao contrário de alguns exemplos
ture, culture et surnaturel [11 o• Congrés National des Societés Savan- 1 lt:1dos anteriormente, traduz igualmente a ruptura on-
tes. Moritpellier, 1985]. Um exemplo da mesma ordem:THERRIEN, M. Le
corps inuit (Quebec Arctique). Paris: Selaf/PUB, 1987. Cf. tb. as tradições to lógica entre o cosmo e o corpo humano. Um e outro
budistas, hinduístas etc. o postos em uma exterioridade radical. Os entraves

32 33
epistemológicos alçados pelo corpo perante as tentati- 111 ·smo título que o conjunto do mundo; a divisão entre
vas de elucidação das ciências sociais são múltiplos; estes t, homem e seu corpo, tal como existe na tradição platô-
pressupõem frequentemente um objeto que existe apenas ni -a ou órfica 15 , é para ela um não sentido. O mundo foi
no imaginário do pesquisador. Herança de um dualismo t riado pela palavra, "pela boca de Yhwh os céus foram
que dissocia o homem de seu corpo. A ambiguidade em I ·iLos, e pelo sopro de sua boca, todo o seu exército [... ]
torno da noção de corpo é uma consequência da ambi- pois ele disse e tudo foi feito; ele ordenou e tudo existiu"
guidade que cerca a encarnação do homem: o fato de ser (p. 33). A matéria é uma emanação da palavra, ela não é
e de ter um corpo. •stática, morta, fragmentada, não solidária com as outras
A antropologia bíblica também ignora a noção de um lormas de vida. Ela não é indigna como no dualismo. A
corpo isolado do homem. Muito afastada do pensamen- ·ncarnação é o ato do homem não sem artefato.
to platônico ou órfico, ela não considera a condição hu- Eu não percebo um "corpo", o qual conteria uma
mana sob a forma de uma queda no corpo, de uma enso- "alma''; eu percebo imediatamente uma alma viva,
matose. O dualismo típico da episteme ocidental não se com toda a riqueza da sua inteligibilidade que eu

deixa aí perceber... "O hebraico, diz Claude Tresmontant, decifro no sensível que me é dado. Essa alma é

é uma língua concreta, que só nomeia aquilo que existe. para mim visível e sensível porque está no mundo,
porque assimilou elementos dos quais se alimenta,
Portanto, ela não tem palavra para significar a 'matérià, e
os quais ela integrou e que fazem com que ela seja
tampouco o 'corpo', uma vez que esses conceitos não vi-
carne. A essência dessa carne, que é o homem, é a
sam realidades empíricas, contrariamente ao que nossos
alma. Se s e retira a alma não sobra nada, não sobra
velhos hábitos dualistas e cartesianos nos levam a crer.
um "corpo". Nada resta senão a poeira do mundo.
Ninguém nunca viu a 'matéria: nem um 'corpo: no senti- Também o hebraico emprega indiferentemente,
do em que o compreende o dualismo substancial" 13 • No
universo bíblico o homem é um corpo, e seu corpo não é 1'•
Da mesma forma entre os canaques, o conhecer é uma modalida-
outra coisa senão ele mesmo. O próprio ato de conhecer de física de apropriação e não um ato puramente intelectual. Assim,
Mau rice Leenhardt observa que o costume melanesiano de consultar
não é o ato de uma inteligência separada do corpo 14 • Para .1lguém passa pela questão "qual é teu ventre?" Um canaque, conhe-
essa antropologia, o homem é uma criatura de Deus, ao endo alguma migalha de francês, que se interroga sobre a opinião de
,,lguém de sua cidade, responde:"Eu, não conheço o ventre para ela':
13
conhecer melanesiano é corporal, não é feito de um espírito, de um
TRESMONTANT, C. Essa i sur la pensée hébrai"que. Paris: Cerf, 1953, p. 53.
u ontologicamente distinto, mais exatamente o conhecer canaque é
14
1bid. xistencial.

34 35
para designar o homem vivo, os termos "alma" ou sas, qual seja a unidade de uma ordem. Uma ordem
"carne': que visam uma única e mesma realidade, o na qual a pessoa se apaga por detrás do personagem,
homem vivo no mundo (p. 95-96). porquanto é aquele que se estabelece entre status di-
Algures, a palavra corpo pode existir assim em nu- ferenciados e não aquele da complementaridade con-
merosas sociedades africanas, mas recobrir, de um lugar tingente de temperamentos múltiplos 16•

a outro, noções muito diferentes. Nas sociedades rurais O homem africano tradicional está imerso no seio do cos-
africanas, a pessoa não está limitada pelos contornos mos, de sua comunidade, ele participa da linhagem de seus
de seu corpo, fechada em si. Sua pele, e a espessura de ~mcestrais, de seu universo ecológico, e isso nos fundamentos
sua carne, não delineiam a fronteira de sua individua- mesmos do seu ser17• Ele permanece uma espécie de intensi-
lidade. O que entendemos por pessoa é concebido nas dade, conectada a diferentes níveis de relações. É deste tecido
sociedades africanas sob uma forma complexa, plural. de trocas que ele tira o princípio de sua existência.
A oposição essencial reside na estrutura holista dessas Nas sociedades ocidentais de tipo individualista, o
sociedades, nas quais o homem não é um indivíduo (isto corpo funciona como interruptor da energia social; nas
é, indivisível e distinto), mas nó de relações. O homem sociedades tradicionais ele é, ao contrário, a conexão da
é fundido em uma comunidade de destino, em que o energia comunitária. Pelo seu corpo, o ser humano está
seu relevo pessoal não é o índice de uma individualida- em comunicação com os diferentes campos simbólicos
de, mas uma diferença favorável às complementarida- que dão sentido à existência coletiva. Mas o "corpo" não
des necessárias à vida coletiva, um motivo singular na é a pessoa, porque outros princípios concorrem para a
harmonia diferencial do grupo. A identidade pessoal do fundação desta última. Assim, é entre os dogons 18 , onde
africano não se encerra em seu corpo, este não o separa
16
do grupo, mas, ao contrário, o inclui. BASTIDE, R. "Le principe d'individuation': La notion de personne em
Afrique Noire. Paris: CNRS, 1973, p. 36.
Não que os etnólogos neguem a diversidade dos indi-
17
Cf., p.ex., THOMAS, L-V. "Le pluralisme cohérent de la notion de per-
viduas, afogando-os todos em uma comunidade que
sonne em Afrique Noire tradicionelle': In: BASTIDE, R. La notion de
seria primeira, que seria a única realidade verdadeira, personne en Afrique Noire. Op. cit., p. 387.
nota Roger Bastide. Ele reconhece que há gente tími- 18
Nós nos apoiamos aqui no livro clássico de CALAME-GRIAULE, G. Eth-
da e gente audaciosa, gente cruel e pessoas amáveis, nologie et langue- La parole chez les Dogon. Paris: Gallimard, 1965, p.
32s. • DIETERLEN, G."L'image du corps et les composantes de la persone
mas essas características se organizam em um mes-
chez les Dogon': In: BASTIDE, R. La notion de personne en Afrique Noire.
mo universo, constituindo a unidade última das coi- Op. cit., p. 205s.

36 37
a pessoa é constituída da articulação de diferentes pla- esse símbolo exprime a "consubstancialidade"
nos, incluindo, de maneira muito singular, aquilo que o do homem e do grão, sem a qual ele não pode-
ocidental tem o costume de denominar o corpo. Entre os ria viver" (Germaine Calamé-Griaule, p. 34). As
dogons, a pessoa é composta: crianças recebem em seu nascimento os mesmos
a) De um corpo: a parte material do homem e "o grãos que seus pais. A bissexualidade inerente
polo de atração de seus princípios espirituais': um ao ser humano é aqui marcada pelo fato de que
"grão de universo': sua substância mescla os qua- geralmente o dogon recebe em sua clavícula di-
tro elementos, como todas as coisas que existem: reita quatro grãos "masculinos" de seu pai e de
a água (o sangue e os líquidos do corpo), a terra seus ascendentes ignáticos, e em sua clavícula
(o esqueleto), o ar (o sopro vital) e o fogo (o calor esquerda, quatro grãos "femininos" de sua mãe
animal). O corpo e o cosmos estão indistintamen- e de seus descendentes uterinos. Por esses grãos,
te mesclados, constituídos dos mesmos materiais, a pessoa é marcada na filiação do grupo, e tam-
segundo as diversas escalas de grandeza. O corpo bém se enraíza no princípio ecológico que funda
não encontra, portanto, seu princípio nele mes- a vida dos dogons. Os grãos compõem uma espé-
mo, como na anatomia e na fisiologia ocidentais; cie de pêndulo vital, a existência do homem está
os elementos que lhe dão um sentido devem ser ligada à sua germinação.
buscados alhures, na participação do homem no c) A força vital (nàma), cujo princípio reside no san-
jogo do mundo e de sua comunidade. O homem gue. Mareei Griaule a definiu como "uma energia
existe por ser parcela do cosmo, não por si mesmo, potencial, impessoal, inconsciente, repartida entre
como na tradição tomista ou ocidental, na qual a todos os animais, vegetais, nos seres sobrenaturais,
imanência do corpo, porquanto ele é matéria, fun- nas coisas da natureza, e que tende a fazer perse-
da a existência do sujeito. A anatomia e a fisiologia verar em seu ser, suporte ao qual ela está afetada
dogons articulam igualmente o homem ao cosmo temporariamente (ser mortal), eternamente (ser
por todo um tecido de correspondências. imortal)" 19• O nàma resulta da soma dos nàmas
b) "Oito grãos simbólicos estão localizados nas cla- dados por seu pai, sua mãe e o ancestral que re-
vículas. Esses grãos simbólicos, principais cere- nasce nele.
ais da região, constituem a base da alimentação
19
dos dogons, que são essencialmente agricultores; GRIAULE, M. Masques dogons. Paris: lnstitut d'Ethnologie, 1938, p. 160.

38 39
d) Os oito kikinu, princípios espirituais da pessoa, di- Da mesma maneira, o corpo só adquire sentido com o
vididos em dois grupos de quatro (eles são machos olhar cultural do homem.
ou fêmeas, inteligentes ou bestas), gêmeos dois a A compreensão das relações entre o corpo e a Moder-
dois. Eles contribuem, segundo sua determinação, nidade impõe uma genealogia, uma espécie de "história
para delinear a psicologia da pessoa, seu humor. do presente" (M. Foucault), um regresso à construção
Estão organizados em diversos órgãos do corpo, da noção de corpo na einstellung ocidental. Uma refle-
e pode-se ainda tê-los reservados em diversos lu- xão também sobre a noção de pessoa, sem a qual não
gares (um poço, um altar, um animal...), segundo seria possível apreender os riscos dessa relação. Veremos
os momentos psicológicos vividos por aqueles que pouco a pouco, ao longo do tempo, instaurar-se uma
os trazem. concepção do corpo paradoxal. Por um lado, o corpo
Outras representações da pessoa em terra africana como suporte do indivíduo, fronteira de sua relação com
podem ser evocadas. Mas já se pressente o número de o mundo; e, em outro nível, o corpo dissociado do ho-
percepções do "corpo" que podemos encontrar. A de- mem ao qual confere a sua presença, e isso por meio do
finição de corpo é sempre dada no vazio da definição modelo privilegiado da máquina. Veremos os vínculos
de pessoa. Não é absolutamente uma realidade eviden- estreitos que se estabeleceram entre o individualismo e
te, uma matéria incontestável: o "corpo" existe apenas o corpo moderno.
construído culturalmente pelo homem. É um olhar lan-
çado sobre a pessoa pelas sociedades humanas, que lhe
balizam os contornos sem o distinguir, na maior parte
do tempo, do homem que ele encarna. Donde o para-
doxo de sociedades para as quais o "corpo" não existe.
Ou sociedades para as quais o "corpo" é uma realidade
tão complexa, que desafia o entendimento do ocidental.
Da mesma forma, a floresta é evidente à primeira vista,
mas há a floresta do índio e aquela de quem procura
ouro, aquela do militar e aquela do turista, aquela do
herbolário e aquela do ornitólogo, aquela da criança e
aquela do adulto, aquela do fugitivo e aquela do viajante ...

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