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415-426 415
RESUMO
O genograma, definido como um desenho gráfico da vida em família, é um instrumento de avaliação e intervenção que
proporciona uma aproximação com o tecido de transmissão familiar tramado de geração em geração. O genograma,
inserido na conversação terapêutica, transcende suas origens funcionalistas, para transformar-se num recurso de
compreensão colaborativa. O estudo apresentado relata a construção do genograma, na qual a ênfase na informação é
substituída pela busca de oportunidades para re-historiar as experiências vividas por dois grupos familiares que
vivenciaram uma crise gerada pela tentativa de suicídio de um dos seus membros. Como resultado deste trabalho, os
participantes foram abrindo portas que auxiliaram a tecer novas narrativas de si mesmos e de suas famílias. Assim, o
recurso do genograma no espaço conversacional permitiu a co-exploração, clarificação e expansão dos significados que
emergem das histórias que as famílias contam e que afetam a dinâmica do relacionamento familiar.
Palavras-chaves: história familiar, tentativa de suicídio, intervenção.
ABSTRACT
The genogram, defined as a graphic design of family living, is an assessment and intervention systemic instrument that
provides an approximation to the system of family transmission, woven generation after generation. This instrument,
inserted in the therapeutic conversation, transcends its functioning origins, in order to transform itself in a resource of
collaborative comprehension. The present study of two family groups that experienced a crisis following the suicide
attempt of one of their members, reports the construction of the genogram in which the emphasis on information is
replaced by the search of opportunities in order to retell their life experiences. Results show that participants opened doors
that helped them to weave new narratives of themselves and their families. Thus, the genogram, as a resource in the
conversational space, allowed co-exploitation, clarification and expansion of meanings emerging from the stories told by
the families which affect the family relationship dynamics.
Keywords: family history, suicide attempt, intervention.
Homem Gravidez
A Figura 2 mostra como estes símbolos estão representadas cada uma em um nível horizontal da
conectados através de linhas que indicam as figura, podendo-se distinguir, ao olhar, a geração
relações de parentesco. A conexão por linha dos avós, dos pais, dos netos entre outras. A linha
horizontal contínua, com a figura masculina à pontilhada em torno de alguns símbolos representa
esquerda e a figura feminina à direita, indica os membros da família que moram numa mesma
indivíduos casados. Quando esta linha aparece casa e são de especial importância, no caso de
tracejada, indica união estável. A ruptura do vínculo famílias reconstituídas, para localizar com quem
conjugal é representada por dois traços paralelos e vivem os filhos.
inclinados sobre a linha horizontal. Acima desta Diante da complexidade intrínseca às
linha, coloca-se a letra “M” com a data de relações familiares, não se pode esperar que o
casamento/união e a letra “S” ou “D” com a data da desenho gráfico tenha suficientes propriedades para
separação ou divórcio. A idade das pessoas é representá-las adequadamente. A cada trabalho
colocada dentro das figuras; e o nome, na parte realizado, terapeuta e família vão elegendo aqueles
inferior. Os filhos são representados numa linha elementos que são considerados relevantes para
abaixo, conectados com o traço horizontal do cada história específica. Desta forma, informações
casamento por linhas verticais, sendo o mais velho sobre atividades profissionais ou de estudo, eventos
à esquerda. A representação é distinta para os filhos e outras datas importantes, bem como
adotivos, com linhas pontilhadas, e para filhos características específicas dos indivíduos e de seus
gêmeos, cujo ponto de conexão é um só. As relacionamentos, identificadas pela família, podem
diversas gerações, ascendentes e descendentes, são também ser anotadas no desenho do genograma.
51 48
18 12
8 8
O terceiro nível de construção do genograma íntimas, muito íntimas, íntimas e conflitivas, pobres
refere-se ao traçado da qualidade das relações entre e conflitivas, distantes e rompidas, conforme a
os membros da família. As linhas básicas referem- legenda apresentada na Figura 3.
se a pautas vinculares que incluem relações:
As enormes mudanças pelas quais as famílias de todos com o que acontece com cada um, tanto no
têm passado nas últimas décadas, expressas através passado, quanto no presente e futuro.
de diferentes configurações dos grupos familiares, Vitale (2004) lembra também que a
implicaram na necessidade de atualizações dos introdução de vivências familiares anteriores pode
símbolos e convenções para o trabalho com o trazer consigo outras formas de encarar os
genograma, que possam incluir as modificações problemas, abrindo possibilidades de novos
reivindicadas por diferentes grupos culturais ao entendimentos sobre as experiências familiares,
redor do mundo. Estas atualizações podem ser assinalando novas possibilidades para o futuro. Para
encontradas no trabalho desenvolvido recentemente White (1994), “as pessoas vivem as suas vidas de
por McGoldrick, Gerson e Petry (2008). Nesta acordo com as histórias que contam e estas histórias
produção, foram mencionadas apenas as têm efeitos reais e estruturam a vida das pessoas”
convenções que fundamentaram o desenvolvimento (p. 29). Quando uma família recorre ao trabalho
deste instrumento de avaliação. terapêutico, traz consigo uma história para contar,
Gerson e McGoldrick (1993) propõem que a que é uma seleção de aspectos (vividos) que se
construção do genograma seja realizada por meio podem verbalizar e de outros aspectos (vividos),
de entrevistas, cujo fluxo obedeça a uma dimensão que permanecem não ditos. A possibilidade de
temporal e a uma dimensão de complexidade, ajuda está, sem dúvida, em criar um espaço para o
partindo-se da situação atual para o passado; e de não-dito (Anderson, 2001). A experiência presente
questões mais simples e menos ameaçadoras, para de contar a história num contexto diferente (num
as mais complexas que provocam maior espaço terapêutico) abre a possibilidade de incluir
desconforto e ansiedade. Ao final, segundo estes aquelas partes do relato que haviam sido deixadas
autores, podem-se extrair do genograma para trás. Neste sentido, o trabalho com o
informações sobre a estrutura da família, sua genograma pode proporcionar um contexto estético
adaptação às etapas do ciclo vital, repetição de original para a família. Ver-se, através de uma
pautas interativas, pautas vinculares, capacidade de história desenhada graficamente, num espaço
enfrentamento de eventos estressantes, exploração constituído entre o narrador e a história narrada,
de crenças e legados, viabilizando uma produz um estranhamento capaz de abrir
compreensão destes elementos em interação. possibilidades para explorar outras idéias sobre si
Recomendam, ainda, o genograma como recurso de mesmo, podendo incorporar novidades a suas vidas.
intervenção para o desenvolvimento de uma Ao localizar elementos de suas histórias que foram
responsabilidade compartilhada sobre os rumos da deixados para trás, abrem-se portas para “territórios
vida familiar, viabilizada através do envolvimento
Depressão
Pouca Intimidade Distante na Intimidade aos 38 anos
1928-80 Evitação dos problemas 1931-89 doença Harmonia
68
74
Mara Vera
Luis José
54 50 48 46 50 40 38
43
1957-58
Distanciamento na crise
Industriário
Desemprego 1ª T.S. aos 43 anos
52 45 2ª T.S. há 2 meses
por 2 anos
Flexível com Dona de casa
os filhos
M: 27 Sônia Rígida com os filhos
Silvio Cuidadora
Legenda
26 24 21 Homem Separação
Mulher União/casamento
Maria Carla Ricardo ⌧ Morte Namoro
Fac.Medicina Professora
Mora há 1h da Fac. Direito Vai Relação muito íntima
Fac. Pedagogia sair de casa
casa dos pais Distanciamento
Cuidadora para morar Relação íntima e conflitiva
com a irmã
O estranhamento da família, ao ouvir o relato mantendo, no entanto, alguns temas comuns. Dizem
da mãe e da irmã revela a percepção de alternativas respeito a um conhecimento e ao poder de dizer ou
que estavam marginalizadas, provocando um desejo não dizer. Assim, o silêncio compartilhado através
de revisão do roteiro da história familiar, para de gerações, nomeado aqui de segredo, não se
incluir possibilidades de explorar outras idéias refere ao desconhecido, mas à impossibilidade de
sobre si mesmos, sobre o que gostariam de ser, significar uma experiência, um vazio presente no
podendo, assim, agregar novidades em suas vidas. relato. Desta forma, o processo de construção do
Sônia não está, apenas, ressentindo-se do processo segredo envolve uma negociação implícita na
de adultez dos seus filhos, mas especialmente sofre família sobre o silêncio em torno de aspectos da
com a dificuldade de relatar a si mesma de forma experiência vivida, que pode, para alguns, significar
diversa. Carla acolhe a história da mãe como parte proteção, para outros, constituir-se numa traição. Os
de sua própria história: está abrindo mão de projetos múltiplos significados do segredo não podem ser
de vida para manter viva uma parte da vida da mãe. compreendidos fora do contexto no qual são
A busca do novo pode ser a procura dos selves com expressos, com especial atenção aos valores
os quais se sintam mais confortáveis. Este é um dos daqueles envolvidos no processo de formação do
capítulos da história “não dita” que abre espaço significado.
para um território alternativo (White, 1994), A segunda história clínica a ser apresentada é
revelador de outras possíveis histórias a da Família “B”. A construção do genograma se
marginalizadas. Os territórios alternativos se deu após um atendimento em uma unidade de
revelam por meio da fala, da catarse, da emergência hospitalar em função da tentativa de
compreensão - libertadores de narrativas suicídio de Liane, que cortou os pulsos, depois de
limitadoras passadas e presentes. O silêncio, o uma briga com o namorado. A Família “B” é um
segredo, implica não-falar. Ambos são conceitos exemplo de como uma conversação cujo fluxo
lingüísticos, socialmente elaborados com diferentes segue de forma indeterminada em torno dos temas
significados, em diferentes culturas e contextos, que vão surgindo, muitas vezes de forma
Avaliação Psicológica, 2008, 7(3), pp. 415-426
O genograma como recurso no espaço conversacional terapêutico 423
desordenada, pode auxiliar a família a decidir falar no jogo, não pagava o aluguel; por isso mudavam
de questões difíceis. O genograma começou a ser constantemente de casa, deixando a mãe zangada e
construído a partir da história do casamento dos agressiva novamente. Neste momento, a situação
pais de Liane e foi tomando forma a partir dos está melhor porque a avó, Lia, mãe de Marília, teria
relatos que foram surgindo na conversação, dando cedido uma casa para eles morarem. Júnior comenta
origem à história que é aqui contada. que esta questão de briga é a maior dificuldade de
Marília inicia contando sobre o seu Liane e de Marília. Liane lembra que ele também
casamento com Ricardo. Refere que tinha 18 anos e teria agredido a namorada; conversam sobre como
ele 23 quando casaram. Tiveram dois filhos: Liane aconteceu a situação e concluem que a
e Júnior. Marília se descreve como muito responsabilidade não foi de Júnior, mas das
inexperiente para cuidar dos filhos, o que é provocações da namorada. Marília e Liane
atribuído a sua pouca idade e despreparo ao usar de comentam que não são os homens com os quais elas
castigos físicos, especialmente na educação de se relacionam que são agressivos; eles reagem à
Liane. Quando nasceu o segundo filho, Júnior, ela provocação delas, porque as mulheres da família
procurou ser diferente, evitando machucá-lo da são descontroladas. Liane relata algumas situações
forma como fazia com Liane. Contam que Marília nas quais foi agredida pelo namorado atual, Celso.
se descontrolava e maltratava Liane, quando ela era Marília lembra Liane que não é apenas um
pequenininha, tendo ocorrido, em duas ocasiões, descontrole, já que ela chega em casa toda roxa.
necessidade de atendimento médico. Marília Liane concorda que, de fato, Celso exagera, mas
considera que Ricardo a ajudava bastante com as que ela provoca. Pensa um pouco e complementa
crianças. Liane discorda da mãe, dizendo que o pai dizendo que, na verdade, ele é louco e a leva à
bebia muito e também batia nela. Júnior relata uma loucura, como no dia em que ela quebrou a janela e
experiência diferente na relação com o pai e com a cortou os pulsos. Liane sente-se tão louca que tem
mãe, lembrando momentos de bem-estar na vontade de sumir, de morrer. Liane olha para o
companhia deles. A separação do casal teria genograma e diz que “parece um carma”, que
ocorrido após 13 anos de casados. Marília diz que a nenhuma delas tem sorte com os homens. Ao ouvir
iniciativa teria sido sua, em função dos problemas a filha, Marília agrega algumas histórias de sua
com as bebedeiras de Ricardo. Ela já havia pensado, família de origem, para mostrar o quanto a vida das
muitas vezes, na separação, mas considera que a mulheres é difícil. Marília tem cinco irmãs. O pai,
escolha de romper teria acontecido após uma surra Airton, era um homem muito violento e todos
que Ricardo teria dado em Liane. Marília decidira tinham muito medo dele. Lembra-se de ver o pai
que não deixaria mais Ricardo machucar a filha. machucar a mãe. Ela e as irmãs, quando pequenas,
Comentam sobre a família do pai, dizendo que os se escondiam, mas, à medida que foram crescendo,
avós já faleceram. O pai de Ricardo fora um homem começaram a tentar interferir e acabavam sendo
muito violento com os filhos e também alcoolista. machucadas também. A mãe teria tentado fugir do
Ricardo tem outros dois irmãos, também com pai várias vezes, mas ele sempre a buscava de volta,
problemas com o álcool. Atualmente, apenas Júnior até que uma vez ela tomou veneno de rato; queria
mantém contato com o pai, visitando-o com morrer, mas não conseguiu. Marília emociona-se ao
freqüência. Marília conta que teria procurado contar a historia e os filhos a acolhem, mostrando
Ricardo quando Liane engravidou aos dezesseis surpresa com o relato. Ao receber a solidariedade
anos. Ele teria negado a ajuda, dizendo que a dos filhos, conta que as agressões não eram apenas
responsabilidade era exclusivamente dela. Liane físicas, mas que seu pai havia molestado
esclarece que engravidou do seu primeiro sexualmente todas as irmãs. Marília diz que a
namorado, o que resultou-lhe uma filha, Gisela, família só teve descanso quando o pai morreu.
com oito anos de idade. Sua relação com o pai de Liane comenta, com tristeza, a história, dizendo
Gisela seria muito tumultuada, mas a menina teria agora compreender porque as irmãs de Marília são
uma relação próxima com o pai. Marília retoma o tão revoltadas. Contam que três das quatro irmãs
relato da história do ponto em que considerou ter romperam seus casamentos em função de situações
interrompido, falando sobre sua união com Luis, de violência. Liane refere novamente a idéia de que
um ano após a separação de Ricardo. Liane diz que “só pode ser um carma, pois se tem dez homens
com esta nova união teria recomeçado o inferno em num lugar, a gente vai lá e escolhe a maçã podre,
suas vidas. Primeiro o pai bebia e não deixava sempre a maçã podre... A gente precisa se livrar
ninguém em paz; depois Luís perdia todo dinheiro disto”. Na sessão seguinte, conversando sobre como
Violência
68
Lia
Airton
Violência
Violência
Violência Violência
Violência
53 Violência 48 42
M: 13 S: 12
Legenda
Violência Violência
26 22
Homem Separação
Rafael Mulher União/casamento
Celso Liane Júnior
⌧ Morte Namoro
SOBRE AS AUTORAS:
Liara Lopes Krüger: Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Mestre em Psicologia Social, Terapeuta de Família e Casais,
Coordenadora do Serviço Social Judiciário do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), Assistente
Social Judiciária.
Blanca Susana Guevara Werlang: Doutora em Ciências Médicas – Saúde Mental – UNICAMP, Psicóloga
Clínica, Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação e Diretora da Faculdade Psicologia (FAPSI) da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Membro do Grupo de Trabalho para
implantação de Estratégia Nacional de Prevenção ao Suicídio - Ministério da Saúde - Secretaria de Atenção à
Saúde.