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QUIZILA DE YEMANJÁ E A CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS DURANTE UM

PROCESSO RITUAL NUMA CASA DE CANDOMBLÉ EM SERGIPE

Díjna Andrade Torres1

Resumo: No Candomblé, os processos rituais exigem dxs participantes uma sociabilidade e interação intensa, visto que
todo o processo é um processo coletivo, em que cada integrante realiza uma função importante ao longo das etapas.
Portanto, todxs se comunicam, contam e ouvem histórias, elaboram discursos e constroem suas experiências e
narrativas, e logo, as informações passam a circular ao longo dos dias em que os rituais ocorrem e todo esse processo
comunicativo é também um ato performativo. As mulheres ocupam seus espaços em papéis eminentemente
importantes, especialmente em relação às religiões afro-brasileiras, cujas representações femininas dos orixás são
personagens fortes, imponentes e poderosas. O que pretendo apresentar neste breve artigo, é um esboço das narrativas
que ditam a personalidade e temperamento das filhas de Yemanjá como quizilentas, complicadas e problemáticas,
especificamente no processo ritual referente à feitura ou feitoril do santo, e a construção desse discurso através das
narrativas apresentadas. Não quero aqui, neste curto espaço, problematizar a atuação das narrativas nas Ciências Sociais
ou confrontar autorxs sobre o que seriam as narrativas e como elas devem ser feitas, visto que a bibliografia utilizada
me dá abertura para uma discussão mais ampla e em que o sujeito não aparece como engessado, uma forma de buscar
na multiplicidade das experiências e discursos como essas narrativas são construídas nesta casa de santo.

Palavras-chave: Candomblé. Narrativas. Gênero.

“Minha Yemanjá é quizilenta”, disse Mãe Cristina há alguns anos, antes que eu fizesse o
feitoril2 no Ilê Asé Omin Mafé. Na época, relacionei a afirmação com a personalidade
questionadora e inquieta de Mãe Cristina, sempre muito intensa e buscando explicações para o que
ela via de incoerente. Ao me preparar para o processo, no final de 2012, algumas filhas e filhos de
santxs me alertavam sobre as possíveis quizilas que eu poderia enfrentar após o processo de feitoril.
“O santo joga para você aquilo que você precisa aprender a lidar, e são as lições mais duras”,
afirmou uma filha de santo da casa.
Até então, estava muito tranquila, pois meu relacionamento com minhas mães de santo era
pacífico, bem como com xs outrxs integrantes da casa, e sempre que ouvia um boato ou fofoca,
procurava silenciar e não levar adiante as informações que me eram passadas, mesmo tendo em
conta que para muitas pessoas, a fofoca é um critério de sociabilidade, e de acordo com Braga
(1988) os fuxicos ou fofocas
representam a força institucionalizada da mudança numa ordem que não quer
transformações. Mas eles existem e para não se constituírem em ameaça,
impedimentos e formas de reparações devem estar sempre presentes (BRAGA,
1988: 14)
1
Doutoranda em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil.
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Processo de iniciação no Candomblé, que inclui alguns rituais e duração de aproximadamente 30 dias de processo
ritualístico, a depender da casa.

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A fofoca ou fuxico, então, é considerada uma forma de quizila, seja de quem cria ou quem é
atingido por ela. Ao contrário de outros tipos de religiões, cujo encontro e sociabilidade com vários
integrantes são periódicos e com tempo determinado, a exemplo de missas e palestras, além da
transitoriedade de participantes, que possuem um papel de ouvinte/passivo, o Candomblé tem
integrantes ativos em todo o processo ritual, com tarefas específicas e gerais para quem participa do
processo, e mesmo para quem é visitante e está somente ali para observar ou para consultar-se com
alguma entidade, em casos de festas para Exu, Caboclos e Erês 3. Os processos rituais exigem dxs
participantes uma sociabilidade e interação intensa, visto que todo o processo é um processo
coletivo, em que cada integrante realiza uma função importante ao longo das etapas. Portanto,
todoxs se comunicam, contam e ouvem histórias, elaboram discursos e constroem suas experiências
e narrativas, e logo, as informações passam a circular ao longo dos dias em que os rituais ocorrem e
todo esse processo comunicativo é também um ato performativo.
De acordo com Bauman (1975), a performance oferece um enquadre que convida à reflexão
crítica sobre os processo comunicativos. Uma dada performance está ligada a vários eventos de fala
que a procedem e sucedem (performances passadas, leituras de textos, negociações, ensaios, fofoca,
relatos, críticas, desafios, performances subseqüentes, e similares). Uma análise adequada de uma
única performance requer então estudos etnográficos sensíveis a como sua forma e significado são
índices de uma gama mais ampla de tipos de discurso, alguns dos quais não são enquadrados como
performance. A pesquisa centrada na performance pode gerar uma maior compreensão de diversas
facetas do uso da linguagem e suas inter-relações, já que as contrastantes teorias da fala, e suas
preposições metafísicas correlatas, abarcam mais do que apenas o evento de discurso em si, os
estudos de performance podem abrir um campo mais amplo de perspectivas sobre como a
linguagem pode ser estruturada e quais papeis pode exercer na vida social.
Por ser uma religião de tradição oral, e em se tratando desta casa de santo especificamente,
os ensinamentos passados são feitos, através do discurso, e também por meio de observação. De
acordo com Malinowski (1978), o discurso significa nada sem o contexto da atividade a qual ele
está inserido, e para pensar no significado, em como reconstruí-lo, precisamos pensar no propósito
da ação. Ou seja, inserindo esse comentário dentro da realidade desta casa de santo da qual faço
parte, o processo de comunicação, o falar e o silenciar dependem muito do contexto no qual eles

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Exu – tipo de orixá, mas nesse caso nos referimos a entidades que chamamos de povo de rua, a exemplo de pombas
gira, tranca ruas, etc. Caboclos – são as entidades indígenas, e Erês são as entidades crianças. Diversas entidades são
cultuadas nas casas de Candomblé, a depender da nação ou linhagem que o terreiro segue. Em se tratando desta casa de
santo, além desses três tipos de entidades, há também o culto à Marujo, fora isso, somente aos Orixás do panteão Ketu.

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serão produzidos e introduzidos, o discurso deve ser utilizado com bastante cautela, e a depender do
contexto, a fala pode operar como uma quizila, algo que crie um grande problema para aquela
pessoa que discursou ou para quem recebeu o discurso.
De acordo com Motta (2000), a estrutura básica do candomblé se dá através de um
“contrato” entre o homem e deus o qual se manifesta através do transe e da dança, o qual ele
denomina como “contrato diádico”. Essa relação é estabelecida através de comprometimentos de
um com o outro através de ofertas, que o autor caracteriza como o “dar de comer” ao santo, em
troca da manifestação deste último nos corpos de seus “filhos”.
Pensando a partir da afirmação de White (1987), de que a narrativa surge a partir de nossa
experiência e o esforço de passar linguisticamente essa experiência, e neste caso, eu, como autora
da história, busco trazer essas narrativas vividas e contadas a partir do meu olhar e da minha
experiência dentro de parte desse processo, que aconteceu entre novembro de 2012 e fevereiro de
2013.

Presente e passado – a experiência não vista e a experiência compartilhada

Desenvolver um trabalho de campo acerca de questões sobrenaturais é sempre desafiador


por diversos motivos, um deles é a dubiedade de suas narrativas, uma vez que muito do que é
contado e acreditado é proveniente de um passado somente registrado oralmente, como experiências
passadas de mães e pais para suas filhas e filhos. Além disso, como acreditar em seres invisíveis aos
olhos de muitos? Como transformar em dados científicos o que um Orixá comunica num jogo de
búzios, ou uma entidade nos fala em determinada consulta?

No caso do candomblé, vimos que os milagres ou as revelações não são percebidos como
inovações, mas como redescobertas de algo esquecido ou não reconhecido. Revelações que
permitem entender o passado noutros termos — mais profundos, talvez mais autênticos.
Talvez isto se deva à ideologia das trocas mediadas, do dom, que predomina em instituições
como o candomblé e que prefere ver a inovação como reprodução. Neste caso, a função dos
antropólogos seria reconhecer a historicidade dessas revelações, ver como são,
efectivamente, objectivações de categorias sem precedentes: ver como, ao querer reproduzir
os valores tradicionais do candomblé, este se transforma, incorporando a história do seu
país e da sua gente (Sansi, 2009, p. 155, apud GOLDMAN, 2009:131, grifos do autor).

Segundo Steedley (1993), a constituição das relações entre narrativa e experiência considera
questões de subjetividade. Em se tratando de religiões afro-brasileiras, as histórias são entrelaçadas,
e muitas vezes indivíduo e entidade se misturam, experiências se entrelaçam, há a multiplicidade de
histórias, que ainda de acordo com a autora previamente citada, essas experiências não tentam

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apagar a representação ritual ou vice-versa e sim, uma está imbricada na outra, e que não devemos
pensar em modelos fixos e padronizados para definir e dar continuidade ao que seriam essas
experiências dentro de um universo de multiplicidades o qual o candomblé e suas inúmeras
narrativas estão inseridas.
Cardoso (2007) afirma que mais do que narrar uma "realidade" supostamente exterior a
essas experiências, as estórias tornam-se parte inextricável da "realidade" que narram.

Envoltas pela tensão do imprevisível e do incontrolável, as narrativas evocam a dimensão


inesperada dessas presenças — mesmo quando desejadas ou bem-vindas — a qualidade
irrestrita dos seus movimentos e a sua natureza transgressora...Contadas não só por clientes
e filhos-de-santo, mas também pelos próprios espíritos, sujeitos e objetos confundem-se em
um narrar ao mesmo tempo disperso e coletivo do deslocamento voluntarioso do "povo da
rua" através de fronteiras sociais. (CARDOSO, 2007:318).

Não há como padronizar o que não é fixo, o que não é dado de forma convencional,
especialmente em se tratando de presente e passado neste contexto, em que nem mesmo a
temporalidade é fixa. Além disso, a multiplicidade de sujeitos no Candomblé é produzida e
dispersada na experiência, pois a geração dessas experiências é distribuída na prática social,
fazendo com que esses sujeitos se engendrem nas narrativas, pois há um papel a ser representado e
distribuído dentro desse escopo vivenciado, ao mesmo tempo que sujeitos, entidades e experiências
se misturam a ponto de não sabermos mais quem é quem dentro de todo o processo, por muitas
vezes. E as idas e vindas entre o presente e passado ocupam um papel fundamental para se pensar
sobre essas narrativas.
O tempo, neste caso, atua como marcador de determinadas experiências, mas a ambiguidade
das experiências também irá distorcer a temporalidade dos eventos. Apesar de o respeito ao passado
e ao que foi passado do pai de santo de Mãe Bequinha, Tonho Mutalambô, para ela e suas filhas e
filhos, há uma nebulosidade em se tratando do que seria a tradição, do que se pode mudar,
questionar e fazer diferente no tempo presente. Muito do que é dito num passado, especialmente
recente, é modificado a depender do contexto ou da manipulação de ideias e direcionamento, ou
seja, quem vai receber essa informação? E qual é a finalidade desta informação naquele momento?
Algumas dessas situações, da mudança de discurso do passado para o presente, já causou
desconforto entre xs integrantes da casa, ocasionando a saída de algumas pessoas que eram filhxs de
santo, por não compreender que não há uma linearidade dos fatos, que presente e passado se
entrelaçam e que a intencionalidade do discurso está implícita em muitas, se não em todas dessas
ações.

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Discurso e narrativa sobre e para as filhas de Yemanjá

Assim como Steedley apresentou exemplos de conversas entrelaçadas sobre as mulheres na


Sumatra que se comunicavam com espíritos, dentro do contexto que trago e da multiplicidade de
minhas experiências ao longo do período que apresentei, pensei nos papeis ocupados pelas filhas de
Yemanjá em questão e nas diversas narrativas e suas ambiguidades em se tratando de lidar com
tudo que envolve essas experiências, desde as relações pessoais, até a relação com orixás e
entidades. “O povo de Yemanjá é quizilento, porque ela é dona das cabeças, mexe com o juízo de
qualquer um, é um povo que gosta de falar, e mais ainda de ser ouvido”, disse Mãe Bequinha,
yalorixá do Ilê Asé Omin Mafé, e uma das minhas mães de santo4.

De acordo com Maluf (1999),

Cada percurso individual por essas experiências confunde-se com a história de vida,
modificando-a e dando-lhe novos sentidos. É preciso levar em conta a experiência singular
(ligada a uma dimensão coletiva e social) e significado dado a essa experiência por sujeitos
singulares. (MALUF, 1999: 03).

Pela tradição oral do Ilê, as filhas de Yemanjá geralmente tem o costume de observar muito
o contexto, e de pensar antes de falar. No meu caso, posso afirmar que a minha identidade e o papel
que desenvolvo enquanto filha de santo é muito diferente do papel que desenvolvo dentro de minha
família biológica, como esposa, filha, neta, sobrinha e prima.
No terreiro, o pensar antes de falar, o observar e calar é pré-requisito para uma boa forma de
comunicação e fundamental para a demonstração de respeito aos mais velhos, que consiste em saber
ouvir, ver, mas, sobretudo obedecer ao que xs mais sábixs tem para te ensinar. Assim como a
narrativa e o discurso, Kirshenblatt-Gimblett (1989) afirma que o texto também tem a potência de
carregar coisas que escapam o nosso controle, e da mesma forma que xs antropólogxs carregam a
incerteza de fala daquelas pessoas as quais entrevistam ao longo da pesquisa de campo, o texto
produz efeitos a partir de sua própria estruturação. Assim como o discurso, o texto também possui
um projeto político, buscando preencher um compartimento que já está “dado” pelo contexto
escolhido, bem como o tipo de discurso que se emprega e o posicionamento do sujeito em cada
contexto em que está inserido, constituindo um processo de escolhas, seja na produção de um texto
etnográfico ou na construção de um discurso.

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Quando me refiro a duas mães de santo é porque sou a primeira filha feita de uma mãe de santo da casa, que é filha de
santo de Mãe Bequinha, e de acordo com o processo ritual, a primeira filha de uma mãe de santo deve ser feita por ela e
pela mãe dela, como forma de concretizar esta primeira feitura, por isso, sou feita pelas mãos de Mãe Bequinha e de
Mãe Martha.

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...a maior parte dos estudos de narrativa tem tratado os textos como fixos, ignorando a
contextualização de sua produção, ou seja, ignorando que a narrativa é o resultado do
evento de sua narração num contexto cultural particular e as implicações deste evento para
o texto. (LANGDON, 1999:15).

E a partir dessa construção oral, impregnada de ambiguidades e temporalidades


entrelaçadas, como trazer para o texto as narrativas orais e discursos? E como pensar na
temporalidade do passado e da história para a construção da experiência e das narrativas? Scott
(1999) aponta a importância da história para a construção da experiência, visto que os sujeitos são
constituídos através da experiência, e que a historicização aponta para várias possibilidades de
interpretação para que possamos compreender as experiências. Ou seja, a experiência é uma história
dx sujeitx e a linguagem, ou nesse caso específico de uma casa de Candomblé, o discurso/narrativa,
é o local onde a história é encenada. Essa assertiva retoma a premissa de que o contexto é o palco e
xs sujeitxs são atores, cuja representação irá depender deste contexto o qual elxs serão inseridxs.
Para Scott, retomar a experiência possibilita trabalhar a subjetividade, e neste sentido, o
deslocamento que Steedley propõe é fundamental para buscar entender como funcionam a
construção desses discursos através das experiências.
Voltando ao Ilê e ao processo ritual, nas casas de Candomblé que pude conhecer e em se
tratando da casa que frequento, um dos pré-requisitos para se acreditar ou não num discurso é a
credibilidade de quem conta, ou seja, se é uma pessoa que está sempre envolvida com fofocas e
com o hábito de “falar demais”, outrxs integrantes alertam para não “dar ouvidos” a essas pessoas.
No Candomblé, ouvir e observar é sempre mais coerente do que falar.
O que xs mais velhxs da casa falarem, é tido como certeiro, e não se deve questionar as
ações ou o discurso da mãe de santo e das autoridades, não somente por uma questão hierárquica,
mas porque a hierarquia no Candomblé implica mais experiência, conhecimento e tempo de
religião, o que faz com que algumas pessoas saibam mais do que outras. O estágio inicial, ao qual
me submeti, faz com que eu tenha que ouvir e calar muito mais, obedecer sem questionar, mesmo
que eu discorde, porque aquelas pessoas sabem mais ou se as coisas acontecem de determinada
forma, é o Orixá que quer te mostrar alguma coisa, e se tiver paciência, saberá compreender, assim
foi explicado a mim.

A construção da narrativa e a quizila de Yemanjá

Por ser a dona das cabeças, de acordo com a mitologia dos Orixás e história oral passada nos
terreiros, Yemanjá é muito associada à proteção, cuidado, paciência e racionalidade na hora de

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tomar suas decisões, não deixando de lado também o senso de justiça e o instinto vingativo, caso
seja contrariada. Muito do que se passa para xs filhxs de santxs no Candomblé, é a relação entre as
características dos orixás, sejam elas físicas ou psicológicas, e esta relação entre mito, arquétipo e
sujeitx na maioria das vezes se confunde. Por exemplo, muitas vezes algumas atitudes ou
características físicas são atribuídas por causa do Orixá, como afirmar que quem é de Yemanjá
geralmente tem vontade de ser mãe, filhas de Iansã devem casar-se com filhos de Xangô, Filhas de
Yemanjá se relacionam melhor com pessoas de Oxalá, e tudo isso baseando-se nos mitos, como se a
história dos Orixás fossem entrelaçadas de alguma forma com a nossa, e nisso entram também as
características físicas, como as mulheres de Yemanjá, a depender da qualidade da Orixá, podem ter
seios fartos e quadris largos, gostam de ter cabelos longos, ou se curtos, com estilo diferente do
casual.
Se são filhas das Yemanjás mais guerreiras, como é o caso de Yemanjá Ogunté ou Fecum
(qualidades de Yemanjás mais jovens), o arquétipo é de mulheres altas, magras e esbeltas, e com
personalidade mais introspectiva. No meu caso, de Yemanjá Sobá, antes mesmo da confirmação no
jogo de búzios, muitas pessoas mais velhas no santo5 afirmavam que eu era filha de Yemanjá Sobá
com Xangô por causa de características físicas como a baixa estatura, coluna mais curvada, cabelos
longos, falante e “transparente como as águas” (um pai de santo disse-me uma vez).
Além dessas características, algumas pessoas afirmam que uma das quizilas de Yemanjá é a
fofoca ou fuxico. Ou seja, geralmente são pessoas que não gostam, mas acabam sendo vítimas de
falatórios por conta de sua trajetória ou personalidade inquieta.
Muito do que é dito e construído depende da autoria do discurso e da intencionalidade do
mesmo, mas nunca há um discurso sem intenção, sem propósito e sem um jogo político por trás
dele. A autoria do discurso e para quem ele é dito e feito, depende de quem também irá receber, a
pessoa que irá acreditar no que se conta e que irá reproduzir o que foi contado, dessa forma, a
fofoca ou fuxico torna-se uma quizila dentro da casa de santo, por disseminar “segredos”, e neste
contexto religioso, o segredo, o mistério e o não dito tem um poder e importância extrema para a
continuidade e legitimidade das ações e rituais que lá acontecem.
Os ruídos na comunicação, a fofoca e o silêncio operam como categorias primordiais dentro
desta esfera, e esses ruídos expõem a fragilidade dos sujeitos, uma vez que a palavra tem uma
agência em relação à vida das pessoas (DAS, 2007) e o silêncio que é visível, não é reconhecido

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Pessoas velhas no santo são aquelas que estão no candomblé a mais tempo ou que fizeram boa parte das obrigações
que filhxs de santo fazem durante os 21 anos de trajetória.

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dentro deste contexto como a negação do discurso ou a ausência do que o que se quer dizer de fato.
No Candomblé não há o momento de defesa de uma acusação, pois geralmente as acusações são
feitas por quem pode acusar, ou seja, por quem tem respaldo seja hierárquico da religião ou ligado à
família biológica, e quem recebe a acusação é quem não irá confrontar o acusador, uma vez que há
o respeito pela hierarquia ou há a forma de evitar as “coisas que não vão e não podem ser mudadas”
através do silêncio.
E o silêncio opera de diversas maneiras, não somente em resposta aos conflitos, como
também em resposta às diversas questões feitas em relação a como são mutáveis as leis, regras ou
andamento dos rituais a depender de quem esteja à frente dele, ou quem esteja recebendo o ritual.
No Candomblé, tudo é muito relativo, nada é igual ou impassível de mudanças, a individualidade e
a transformação operam constantemente e de maneira relacional, muitas vezes estão tão imbricadas
que se confundem, e por isso, há várias formas de interpretação e de utilização do silêncio dentro
deste contexto.
The response to some of my questions was silence. Sometimes the silence indicated a
simple refusal to answer the question. It often signaled danger. At other times, according to
the context, it indicated an affirmative or a negative response to my question. I neither case
I would change the subject. I didn’t push because I recognized the danger or knew the
answer. Often my question was answered, by in direction, in the conversation that
followed. (CRAPANZANO, 2008, p.35)

O discurso, nesse sentido, está carregado de relações de poder, de submissão,


pressuposições, competição, persuasão convencimento ou objetiva fazer isso. Há ainda o discurso
carregado de contradições quando as explicações generalizadas são confrontadas por
acontecimentos diversos que não há como premeditar ou evitar, ou, pelo contraste entre o geral e o
individual, a exemplo da premissa de que cada Orixá é único como cada indivíduo é único, cada
Orixá lida com cada filho ou filha de santo de maneira diferente, única e singular, cada Orixá cobra
e dá de acordo com a individualidade e merecimento de cada um, segundo o que aprendi e ouvi na
casa.
Essas indagações constam aqui não mais como indagações de uma filha de santo, não que
eu, a filha de santo, não as tenha, mas como antropóloga é que posso expressá-las, mesmo correndo
o risco de ser julgada por não estar exercendo o meu papel de Yawó, que é o de calar e observar,
afinal, “não se questiona, se segue e aprende”. A ambiguidade dos discursos é também passada para
as narrativas, a exemplo das obras de Pierre Verger e Reginaldo Prandi sobre a mitologia dos
Orixás e como os mitos diferem, contrastam e convergem em diversas ocasiões, a depender de
quem conte e da forma como são contados.

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A diversidade do outro, é pela diferença que ele se faz o outro, e isso é característico de
todas as comunicações, que em todas há relações assimétricas entre os comunicantes. É melhor
pensar em situações não comunicativas, do que utópicas, porque a utopia é ideal e aí já há a
assimetria no pensamento. De acordo com Pereira (2009), os atos de fala dependem de f6rmulas
convencionais e de outros usos da linguagem como entonação, oposição nas trocas convencionais,
relações sociais. Ou seja, nesse caso, as narrativas constroem-se a partir das experiências e eventos,
mas também trazem a ambiguidade do discurso e toda a subjetividade das relações as quais estão
imbricadas nessas experiências e na construção dessas narrativas.
A construção dessas narrativas e a mutabilidade das mesmas em relação às filhas de
Yemanjá, depende também do contexto em que essas pessoas estão inseridas. Para tudo há uma
explicação, para todo questionamento uma resposta, pois até o silêncio é uma resposta, e dentro do
Candomblé, pode ser das mais assertivas. O silêncio fala, às vezes ele até grita.
Ha também que se levar em consideração os atores envolvidos, bem como o sistema de
valores e regras mais amplas que guiam as relações sociais. Como parênteses, é importante
salientar que a definição de contexto e as varias interfaces deste foram posteriormente
discutidas por inúmeros autores preocupados com a linguagem, bem como por alguns
estudiosos da teoria da performance e da práxis. Entre estes, cabe salientar o livro
organizado por Duranti e Goodwin (1992), onde os autores realizam uma tomada hist6rica
dos usos do "paradigma" da contextualização das analises da linguagem, bem como
apontam alguns déficits nas definições dadas por Hymes na primeira onda da etnografia da
fala. Bauman e Briggs (1990) apresentam os conceitos de contextualização, entextualizacao
e descontextualizarão para dar cabo ao processo de transposição de realidades dentro do
percurso da interação, levando em consideração o caráter social e historicamente construído
desses movimentos. (PEREIRA, 2009: 308 - 309).

Neste sentido, é importante pensar na transitoriedade do tempo, atores envolvidos no


processo, mas principalmente, pensar nas formas de linguagem e no contexto em que essas
narrativas surgem e para quem. Não há como engessar ou delimitar as narrativas dentro de um
universo como o das religiões afro-brasileiras. Especialmente porque cada casa de axé ou de santo é
única no sentido em que cada uma delas possui suas regras, sua forma de condução e personagens
diferentes, com histórias diferentes e maneiras de relacionar-se diferentes também. Podemos pensar
nessas narrativas como mutáveis, bem como as regras de cada casa, contextos e situações, além
disso, mesmo a universalização de mitos e histórias é passível de mudanças, é passível de erros e de
transformações ao longo dos processos rituais em que a casa está sempre submetida. Portanto, tratar
dessas narrativas como assertivas e histórias prontas e fixas, é tentar engessar um universo em
constante transmutação.

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Considerações finais

Esse breve trabalho buscou muito mais o questionamento do que as explicações ou certezas
que muitas vezes tentamos conseguir através do trabalho de campo. Tratar sobre as questões dentro
do universo religioso afro-brasileiro é um desafio constante, seja para os que, assim como eu, fazem
parte de uma dessas religiões, seja para curiosxs ou estudiosxs do tema.
Busquei trazer um pouco da minha experiência como filha de santo do Ilê Axé Omin Mafé
para problematizar uma questão central sobre as filhas de Yemanjá nesta casa, que é a “fama” de
que são cheias de quizilas, ou problemáticas e inconstantes. Toda essa premissa, ao que pude
constar e perceber ao longo de minhas observações e conversas com integrantxs da casa, é a de que
está fundada não só nas experiências vividas e contadas de mães e pais para filhxs de santo, como
também no mito narrado e contado sobre a história da Orixá Yemanjá, que carrega consigo um
temperamento inconstante como o mar, e que é mitologicamente conhecida pela personalidade forte
e outras características previamente citadas.
A bibliografia escolhida é ampla, no sentido de trazer a voz e a importância do Outro para a
construção do discurso e das etnografias, pontuando e problematizando questões importantes, que
apesar de trazer campos e contextos diferentes, se encaixam e podem ser relacionais com o que
busco para tentar compreender melhor os processos os quais a casa que frequento passa. Além
disso, tentei mostrar como todo discurso é político, e é mutável a depender de quem o faça e para
quem o faça, e acredito que essa formação e construção dependa de inúmeros fatores, a começar
pelo contexto e relações imbricadas entre xs atores envolvidos nos processos de comunicação o qual
o discurso será elaborado.
Sendo assim, deixo em aberto alguns questionamentos para que possam ser melhores
desenvolvidos e elaborados com mais revisão bibliográfica e tempo de pesquisa, que envolvem a
questão da formação da quizila e o contraste entre santos e indivíduos. Pensando em tentar
problematizar ainda mais essas relações, mitos e discursos que perpassam a questão religiosa,
envolvendo relações interpessoais entre a família de santo e seres sobrenaturais.

Referências

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vol.77, n.2 (jun), 1975: 290-311.

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Yemanjá's quizila and the construction of narratives during a ritual process in a Candomblé
house in Sergipe

Abstract: In Candomblé, ritual processes require intense sociability and interaction from its adepts,
since the whole process is a collective process, in which each member performs an important
function throughout the stages. Therefore, everyone communicates, tells and listens to stories,
elaborates speeches and builds their experiences and narratives, and then, information circulates
throughout the days in which rituals occur and this whole communicative process is also a
performative act. Women occupy their space in eminently important roles, especially in relation to
the Afro-Brazilian religions, whose female representations of the orixás are strong, imposing and
powerful characters. What I intend to present in this brief article is an outline of the narratives that
dictate the personality and temperament of Yemanjá's daughters as quizilenta, complicated and
problematic, specifically in the ritual process regarding the feitoril of the saint, and the construction
of this discourse through narratives Presented. I do not want here, in this short space, to
problematize the performance of narratives in the Social Sciences or to confront authors about what
the narratives would be and how they should be done, since the bibliography used opens the door to
a wider discussion and in which the subject does not appear as plastered, a way of searching in the
multiplicity of experiences and discourses as these narratives are built in this house of saint.

Keywords: Candomblé. Narratives. Gender.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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