Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo: O presente artigo tem como objetivo identificar os dispositivos das Ordenações Manuelinas e das
Ordenações Filipinas que tratavam da escravidão e como os elementos neles presentes possibilitavam o
delineamento da personalidade jurídica dos escravos. Tal análise é cotejada com opiniões doutrinárias de juristas
brasileiros do oitocentos e com a produção historiográfica sobre escravidão a fim de se delinear como o instituto
da personalidade jurídica dos escravos foi abordado pelos sujeitos históricos na segunda metade do século XIX.
*
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestranda em Direito pela Universidade de
São Paulo. E-mail: maardipa@gmail.com.
524 O TRATAMENTO JURÍDICO DOS ESCRAVOS NAS ORDENAÇÕES MANUELINAS E FILIPINAS
Introdução
A personalidade jurídica dos escravos, durante o período da escravidão no Brasil, ainda
é um tema pouco analisado e sistematizado. As recentes pesquisas historiográficas
demonstram que os cativos, principalmente após a segunda metade do século XIX,
procuravam a via institucionalizada do Judiciário para garantir direitos que acreditavam
possuir e conquistar novos direitos, o que contribuiu para a contestação da legitimidade do
domínio senhorial. Assim, parte-se do pressuposto de que os escravos valiam-se do direito
brasileiro oitocentista e contribuíam ativamente para sua construção.
Nesse contexto, a personalidade jurídica dos escravos era um instituto em constante
disputa pelos diversos atores históricos. Atribuir ou não personalidade aos cativos e em que
medida tal personalidade deveria ser reconhecida eram questões que permeavam o direito
escravista e possuíam uma importância central, pois a personalidade, de certa maneira,
delimitaria o âmbito de atuação legal dos escravos. Assim, para melhor compreender os
diversos significados que os sujeitos atribuíam à personalidade, é necessário empreender uma
análise da legislação, da jurisprudência e das obras jurídicas que versavam sobre a questão
escravista. Tal análise deve identificar a historicidade de tais fontes, ou seja, inseri-las nos
contextos sócio-temporais dos quais são frutos e identificar as mudanças e permanências que
sua utilização sofreu ao longo do processo histórico. Ademais, é importante levar em
consideração que tais documentos não possuem significado unívoco: eles foram
constantemente apropriados e re-significados de acordo com os diferentes interessem em jogo
em um determinado momento histórico.
Neste artigo, optou-se por analisar os dispositivos que regulamentavam as relações
escravistas nas Ordenações Manuelinas e nas Ordenações Filipinas. Este recorte temático se
justifica, pois as Ordenações Filipinas vigeram no Brasil até 1916 e vários de seus
dispositivos foram de central importância na delimitação do âmbito de atuação dos sujeitos
históricos no contexto da escravidão brasileira. Ressalte-se, ainda, que, apesar de diversas de
suas disposições terem sido revogadas ao longo do século XIX, principalmente com o advento
do Código Criminal de 1830 e do Código de Processo Criminal de 1832, “o direito civil
substantivo continuou sendo o último baluarte das Ordenações” (COSTA, 2002, p. 289). As
Ordenações Manuelinas foram analisadas em razão de sua importância como fonte a partir da
qual as Ordenações Filipinas foram elaboradas.
A legislação possui caráter histórico, ou seja, é produto de contextos sociais específicos
e é apropriada de maneira diferente pelos sujeitos históricos nos diferentes contextos
temporais de uma sociedade. Tal não poderia ser diferente com as Ordenações. Fruto do
absolutismo português, foram aplicadas ao Brasil colonial e continuaram vigorando durante o
período imperial. Assim, a aplicação, a interpretação e a apropriação da legislação escravista
foram sendo alteradas de acordo com as transformações profundas que a escravidão brasileira
passou ao longo de mais de três séculos. Este trabalho, procura se concentrar nas
ambiguidades presentes no texto legal em relação à personalidade jurídica dos cativos e como
tais ambiguidades possibilitaram conflitos em torno da personalidade dos escravos na segunda
metade do século XIX, período escolhido em razão da intensificação da contestação do
regime escravista. Assim, a análise dos dispositivos das Ordenações foi cotejada com
posições doutrinárias de juristas oitocentistas e com textos historiográficos sobre escravidão,
com o intuito de se verificar como o seu texto era apropriado pelos agentes históricos
brasileiros na segunda metade do século XIX.
Utilizou-se como fonte para o texto das Ordenações a edição comentada por Cândido
Mendes de ALMEIDA, publicada no Brasil em 1870, e a compilação da legislação escravista
elaborada por Silvia Hunold LARA (2000, pp. 53-136) em “Legislação sobre escravos
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 525
ligados a questões de Direito Civil eram 5 nas Ordenações Manuelinas e passaram a ser 15
nas Ordenações Filipinas. Dentre essas ampliações, merecem destaque:
A proibição de que os cativos fizessem testamento ou fossem testemunhas de
testamentos (Livro IV, título LXXXI, §§ 4 e 6 e Livro IV, título LXXXV).
A proibição de que os escravos fossem tutores ou curadores (Livro IV, título
CII, § 1).
A proibição de que os escravos “vivessem por si” e que os negros fizessem
bailes em Lisboa (Livro V, título LXX).
As Ordenações não mencionam expressamente a personalidade jurídica dos escravos.
Entretanto, é possível, por meio de uma análise crítica, identificar seu tratamento. Para tanto,
os dispositivos que regulamentam a escravidão forma reunidos em quatro grupos:
1. Dispositivos que concedem direitos e garantias aos escravos, ou seja,
corroboram sua personalidade jurídica, na medida em que, para se adquirir
direitos, é necessário possuir personalidade, ainda que limitada.
2. Dispositivos que restringem direitos dos escravos, ou seja, limitam o âmbito de
sua personalidade.
3. Dispositivos que punem o cativo, ou seja, reconhecem nele um ser capaz de agir
segundo sua própria vontade.
4. Dispositivos que tratam os cativos como bens.
Não há grande predominância de uma forma de tratamento sobre as outras. Os números
são bastante equilibrados: somando-se os dispositivos das Ordenações Manuelinas com os
das Ordenações Filipinas, temos 18 dispositivos que restringem direitos, 16 que concedem
direitos, 18 que punem os cativos e 18 que os tratam como bens.
A análise numérica de tais dispositivos não é suficiente. Entretanto, indica que a lei
escravista era permeada por ambiguidades e disposições que poderiam ser usadas tanto a
favor da atribuição da personalidade jurídica dos cativos quanto a favor de sua redução à
categoria de propriedade, de ser privado de qualquer grau de personalidade perante a ordem
jurídica.
Como não basta a análise quantitativa, foram selecionados alguns dispositivos que põem
em relevo temas importantes para o debate acerca da personalidade dos escravos perante o
ordenamento jurídico brasileiro.
A questão da liberdade
Muitos dos dispositivos que, em certa medida, garantem ou concedem direitos aos
cativos estão relacionados com a liberdade. Analisar-se-ão alguns dispositivos que versam
sobre o tema.
Era previsto pelas Ordenações que, durante as férias do Judiciário, podem haver atos
em processos sobre a liberdade ou o cativeiro (Ordenações Manuelinas, Livro III, título
XXVIII, § 8 e Ordenações Filipinas, Livro III, título XVIII, § 8). Esse dispositivo garantia,
assim, que esses processos, em razão da relevância de seu objeto, não fossem retardados em
razão das férias judiciais.
Caso interessante de ressignificação dos dispositivos normativos é o Livro III, título
LXXXII, § 1 das Ordenações Filipinas, que dispõe:
528 O TRATAMENTO JURÍDICO DOS ESCRAVOS NAS ORDENAÇÕES MANUELINAS E FILIPINAS
ocorria, na prática, era a sua oitiva como “testemunha por informação”. Desse modo, é
possível afirmar que a restrição imposta aos escravos podia ser, na prática, ignorada por meio
de brechas na legislação.
Os cativos também não podiam ser testemunhas em testamentos (Ordenações Filipinas,
Livro IV, título LXXXV), sendo, ainda, proibidos de testar (Ordenações Filipinas, Livro IV,
título LXXXI, §§ 4 e 6). Entretanto, ALMEIDA (2004b, p. 909) afirma que o escravo pode
testar com o consentimento do senhor, uma vez que não há impedimento algum nesse sentido
nas Ordenações e que, entre nós, os escravos não são coisas, como eram perante o Direito
Romano.
Os escravos tampouco podiam ser tutores ou curadores (Ordenações Filipinas, Livro
IV, título CII, § 1). Em seu comentário, ALMEIDA (2004b, p. 996) afirma que, para o
português Manoel BORGES CARNEIRO, se o testador nomeou o escravo à tutoria ao mesmo
tempo concedendo-lhe a liberdade, ele pode ser tutor.
Após ser criticado por Antonio Pereira REBOUÇAS por não mencionar expressamente a
proibição ao cativo de ser tutor ou curador, Augusto Teixeira de FREITAS, na segunda edição
da Consolidação das Leis Civis, acrescenta em nota ao artigo referente aos impedidos de
exercer tutela e curatela:
Não mencionei o escravo, porque na 1ª Edição, omiti tudo que pertencia a escravos,
o que agora vai suprido. Escravos não podem ser tutores, ou curadores, ainda que
nomeados em testamento; mas a Ord. L. 4º T. 102 § 1º nesta parte pode ser
conciliada com o Dir. Rom., entendendo-se que a proibição refere-se a escravo, que
não pertença ao testador. Pertencendo ao testador, a nomeação é válida, porque
importa uma concessão tácita de alforria (FREITAS, 2003, p. 201).
Essas restrições demonstram que o escravo era privado de capacidade civil, o que
corrobora o afirmado pela civilística brasileira oitocentista: o escravo é dotado de
personalidade natural, o que lhe confere certa gama de direitos, mas não possui personalidade
civil, o que lhe impossibilita o exercício de atos civis. Assim, perante o Direito Brasileiro
oitocentista, os escravos eram dotados de personalidade jurídica, porém, não gozavam de
capacidade civil (DIAS PAES, 2010).
Revogação da alforria por ingratidão
O Livro IV, título LV das Ordenações Manuelinas, correspondente ao Livro IV, título
LXIII das Ordenações Filipinas, é um exemplo da ambiguidade da legislação em relação ao
escravo. Eram consideradas causas gerais de ingratidão: proferir o donatário grave injúria
contra o doador; feri-lo; fazer com que o doador tenha “grande perda e dano em sua fazenda”;
causar dano ou perigo à pessoa do doador; não cumprir promessa feita ao doador. Em caso de
alforria, além destas causas, o dispositivo considera ingratidão que, estando o patrono “em
necessidade de fome”, o liberto não o auxilie, caso haja meios financeiros para tal. Entretanto,
outra importante previsão desta ordenação é a determinação de que o direito a tal revogação
seja exclusividade do senhor, não passando a seus herdeiros quando de sua morte, o que, de
certa maneira, era uma garantia de liberdade ao cativo após o decurso de “um prazo”.
Ao longo do século XIX, diversos foram os debates doutrinários a respeito da correta
interpretação deste dispositivo.
Em nota ao artigo 421 da Consolidação das Leis Civis, que elencava as causas de
ingratidão pelas quais se podem revogar as doações, FREITAS (2003, p. 300) afirmou que as
Ordenações permitiam a revogação das alforrias por ingratidão, entretanto, ela não era
possível em relação aos libertos nascidos no Brasil, com base no artigo 6º, §1º e no artigo 94,
530 O TRATAMENTO JURÍDICO DOS ESCRAVOS NAS ORDENAÇÕES MANUELINAS E FILIPINAS
Para ALMEIDA (2004c, p. 1168), ainda que o Código Criminal não tenha previsto a
situação específica de estupro de escrava, a expressão “mulher honesta” deve também abarcar
as cativas, pois a condição de escrava não exclui a honestidade.
O uso da violência em relações sexuais entre senhores e suas escravas era um tema que
despertava, nos tribunais, o debate acerca da personalidade dos cativos. Robert Edgar
CONRAD (1997, pp. 273-281) e Lenine NEQUETE (1988, pp. 61-77) citam um processo de
defloramento de escrava (artigo 219 do Código Criminal), no qual o advogado da cativa
defendia seu direito de comparecer em juízo e ter reconhecida a punibilidade de seu senhor
com base em sua personalidade jurídica. O advogado do senhor, por sua vez, afirmava que
não havia sido cometido crime, pois a escrava era propriedade e não poderia ingressar em
juízo por não gozar de capacidade civil.
O jurista Caetano Alberto SOARES, com base nas Ordenações, responde à pergunta “se
o senhor que abusa da virgindade da escrava, prometendo-lhe a liberdade, perde o direito a
ela”:
Seria para desejar que a lei estabelecesse alguma coisa de positivo nesse caso a favor
da escrava, e do seu filho, tido do senhor; e que assim como aquele que toma
forçosamente posse da coisa e esbulha a pessoa, que dela está de posse, perde o
direito qualquer, que nela tinha, Ord. Liv. 4º. tit. 58 princ.; assim também o senhor
da escrava, que abusasse de sua honra e virgindade, perdesse o direito dela. Do
mesmo feitio seria para desejar, que o filho dessa escrava fosse forro e o pai
obrigado a dar-lhe a liberdade; mas ao contrário, a Ord. Liv. 4º. tit. 92, permite que
esse filho fique na escravidão.
Não achando pois disposição alguma legal, que favoreça a escrava nesse caso
entendo que ela nenhuma ação tem para a sua liberdade, e nem o filho, porque este
para ter direito contra o pai para o forrar e alimentar seria necessário, que o pai o
reconhecesse por seu. Este o meu parecer, que sujeito à emenda dos doutos. – Rio de
Janeiro 20 de Julho de 1851 (CAROATÁ, 1867, pp. 54-55).
Percebe-se, portanto, que as ambiguidades das disposições sobre relações sexuais entre
senhores e escravas possibilitavam que tais dispositivos fossem utilizados ora em favor das
cativas, ora em favor de seus senhores, sendo, portanto, ressignificados no contexto das
relações de força entre os agentes históricos.
Proibição de “viver sobre si”
O Livro V, título LXX das Ordenações Filipinas proibia os escravos de “viverem sobre
si”, mesmo com a anuência de seus senhores, que deveriam pagar multa caso essa ordenação
não fosse cumprida, sendo o escravo preso e açoitado no pelourinho. Tampouco podiam os
escravos e negros forros fazerem bailes em Lisboa e no raio de uma légua ao redor da cidade.
ALMEIDA foi contundente em seu comentário a respeito dessa proibição: “Hoje não tem
mais execução esta Ordenação. Os Senhores podem dar a permissão aos escravos que lhes
nega aqui o antigo Legislador (ALMEIDA, 2004c, p. 1218)”.
A historiografia comprova, de maneira inequívoca, que esta proibição não tinha eficácia
na sociedade brasileira. Eram inúmeros os casos de escravos que “viviam sobre si”,
essencialmente nos núcleos urbanos.
Uma das alternativas mais comuns para escravos que deixavam a casa do dono era
alugar um quarto, choça ou casa. Em 1842, a prática de alugar para escravos já era
tão comum que se baixou um regulamento proibindo escravos de alugar, mesmo
com permissão de seus senhores. Em parte, a polícia temia que escravos morando
sozinhos pudessem esconder fugitivos e criminosos em seus cômodos alugados,
como de fato o faziam para proteger parentes e amigos. Evidentemente, nem
senhores nem escravos obedeceram ao regulamento, pois a polícia ainda se queixava
em 1860 do aluguel para escravos (KARASCH, 2000, p. 186).
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 533
O historiador Sidney CHALHOUB, identifica que a prática do “viver sobre si”, usada
como embasamento jurídico em ações de liberdade, possuía também significado político na
luta pela alforria.
Assim, os escravos pareciam precisar de mobilidade para terem condições de pagar
os jornais determinados – e aí estaria a origem das autorizações para que escravos
morassem em quartos de cortiços ou em casas de cômodos. Por outro lado, isto
implicava que tais cativos tivessem “o modo de vida que eles escolherem”
(CHALHOUB, 1990, p. 235).
Percebe-se assim que a eficácia da legislação estava condicionada à conjuntura histórica
da sociedade. O que era entendido como direito ou como proibição era constantemente
reelaborado pelos agentes históricos em suas relações sociais, de acordo com os diversos
interesses em jogo.
Batismo de escravos
As Ordenações Manuelinas (Livro V, título XCIX) e as Ordenações Filipinas (Livro V,
título XCIX) preveem a obrigatoriedade do batismo dos escravos “de Guiné” e dos filhos das
“escravas que das partes de Guiné vieram”, nascidos no Brasil, pelos seus senhores.
De acordo com ALMEIDA, em seu comentário ao título XCIX do Livro V das
Ordenações Filipinas, o descumprimento desta ordenação não é mais considerado crime, uma
vez que não há qualquer tipificação nesse sentido no Código Criminal de 1830. Ademais, “a
disposição não tinha mais razão de ser” após o fim do tráfico de africanos.
Neste comentário, o autor afirma ainda que o alvará de 3 de agosto de 1708 determinou
que os filhos dos ingleses não poderiam ser batizados contra sua vontade. O batismo só
poderia ser feito na idade de sete anos, por ser a idade em que já se podia escolher sua
religião. Percebe-se, portanto, que ALMEIDA era orientado por certa “tolerância religiosa”,
num contexto em que a autoridade religiosa sobre assuntos civis estava sendo questionada
(GRINBERG, 2001, pp. 37-43).
O batismo de escravos era amplamente regulado pelas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, de 1853, nos §§ 50-57. Tais dispositivos ilustram com bastante clareza
as tensões existentes entre o catolicismo e as crenças africanas: os escravos filhos de “infiéis”
deviam ser afastados de seus pais, pelo senhor, para que não se “pervertam” e para que lhes
fosse ensinado “o que é necessário para serem bons Cristãos”. Ademais, em vários momentos
afirma-se que os escravos não são capazes de compreender os ensinamentos da doutrina cristã
por serem demasiado rudes e boçais.
Tratamento como bens
Grande parte dos dispositivos que tratavam os escravos expressamente como bens se
referiam a relações comerciais. São exemplos: a compra e venda de cativos (Livro IV, título I,
§ 2 e Livro IV, título LXX das Ordenações Filipinas), os contratos de compensação que
podem ter escravos como objeto (Livro IV, título LXXVIII, §§ 7 e 8 das Ordenações
Filipinas) e a sua consideração como bens indivisíveis em inventário (Livro IV, título XCVI,
§ 5 das Ordenações Filipinas).
Exemplo emblemático do tratamento dos cativos como bens é o Livro IV, título XVII
das Ordenações Filipinas, que trata dos vícios redibitórios dos escravos. No entanto, mesmo
esse dispositivo denuncia a ambiguidade da legislação a respeito do estatuto do escravo: ao
elencar a hipótese de vício de ânimo, acaba-se por reconhecer que o escravo podia agir
segundo suas próprias vontades, contra as ordens do senhor. Ou seja, o escravo, apesar de
534 O TRATAMENTO JURÍDICO DOS ESCRAVOS NAS ORDENAÇÕES MANUELINAS E FILIPINAS
considerado bem, objeto de transações comerciais, era um ser dotado de agência e, portanto,
não podia ser completamente reificado perante o direito.
Conclusão: além do que silencia a lei
Da análise dos dispositivos das Ordenações Manuelinas e das Ordenações Filipinas que
regulamentam a escravidão, pode-se concluir que, ainda que não houvesse expressa menção à
personalidade jurídica dos escravos, o tema permeava o contexto jurídico da sociedade
escravista.
A legislação vigente apresentava possibilidades tanto para o reconhecimento da
personalidade quanto para a redução do cativo à condição de coisa. Tal ambiguidade era
aproveitada pelos diversos atores sociais que, na luta pela prevalência de seus interesses,
resignificavam os institutos jurídicos, participando, assim, ativamente, da construção da
cultura jurídica brasileira oitocentista. Enquanto arena central de conflito (THOMPSON,
1987, pp. 348-361), a legislação foi tendo sua interpretação alterada por meio dos diferentes
usos que dela faziam os grupos sociais, em contextos históricos específicos. Tal característica
pode ser particularmente vista nos debates que envolviam a possibilidade de revogação da
alforria por ingratidão e nas proibições de “viver sobre si”.
Ademais, as disposições normativas presentes nas Ordenações também limitavam o
âmbito de atuação dos senhores, estabelecendo certos limites à propriedade senhorial, bem
como a determinadas garantias aos escravos e libertos, como, por exemplo, o princípio da
prevalência da liberdade sobre normas gerais de direito e a revogação por ingratidão como
prerrogativa exclusiva do ex-senhor. É certo que tais limites, garantias e direitos conferidos
aos cativos não eram suficientes para se considerar que a escravidão brasileira não foi violenta
ou que tenha sido mais “branda” do que em outros locais. Entretanto, tais prerrogativas legais
foram importantes na utilização de brechas institucionais para contestação do domínio
escravista no final do século XIX. Além disso, conforme demonstrado, as proibições legais,
muitas vezes, não tinham eficácia prática e, principalmente nos núcleos urbanos, os escravos e
libertos acabavam gozando de uma autonomia maior do que aquela estabelecida na legislação.
Mas essa mediação através das formas da lei, é totalmente diferente do exercício da
força sem mediações. As formas e a retórica da lei adquirem identidade distinta que,
às vezes, inibem o poder e oferecem alguma proteção aos destituídos do poder. …
Como tal, a lei não foi apenas imposta de cima sobre os homens: tem sido um meio
onde outros conflitos sociais têm se travado (THOMPSON, 1987, p. 358).
Assim, a realidade jurídica e institucional traçava os limites do possível tanto para os
escravos quanto para os senhores. Os escravos procuravam, de diversas maneiras, se
apropriar, em prol de maior autonomia e liberdade, de um aparato legal que havia, muitas
vezes, sido criado para manter a continuidade do domínio escravista. Da mesma maneira, os
senhores procuravam, ao máximo, restringir o reconhecimento de direitos e garantias aos
cativos, pelo ordenamento, garantindo, assim, a preponderância de seu direito de propriedade.
Referências
ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de
Portugal recopiladas por mandado d’El Rei D. Filipe I. 14ª edição. Tomo II. Brasília:
Senado Federal, 2004a. [Edição fac-similar].
. Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal recopiladas por
mandado d’El Rei D. Filipe I. 14ª edição. Tomo III. Brasília: Senado Federal, 2004b.
[Edição fac-similar].
ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 535